SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 issue3Professional activity in the context of health education: a systematic reviewPrevalence and factors associated with depression in medical students author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Journal of Human Growth and Development

Print version ISSN 0104-1282

Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.24 no.3 São Paulo  2014

 

ORIGINAL RESEARCH

 

A ecologia do desenvolvimento motor de escolares litorâneos do nordeste do brasila,b

 

 

Francisco Salviano Sales NobreI; Mônia Tainá Cambruzzi CoutinhoII; Nadia Cristina ValentiniII

ILaboratório de Crescimento e Desenvolvimento Motor Humano - LACREDEM. Grupo de Estudos em Desenvolvimento Motor & Saúde da Criança e do Adolescente. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará - Campus Juazeiro do Norte, Ceará
IIStudy Group on Motor Evaluation and Intervention School of Physical Education / Federal University of Rio Grande do Sul

 

 


RESUMO:

FUNDAMENTAÇÃO: a prevalência de atrasos motores (AM) em escolares é um fenômeno intercultural que atua principalmente em crianças desfavorecidas socioeconomicamente.
OBJETIVO: avaliar a proficiência motora (PM) de escolares da rede pública do Ensino Fundamental I de um município litorâneo da Região Nordeste do Brasil e interpretar o mesmo à luz do Modelo Bioecológico.
MÉTODO: trata-se de um estudo de abordagem mista, qualitativo e quantitativo. A parte quantitativa do trabalho fez uso do Test of Gross Motor Development Edition 2 para avaliar o desempenho motor nas habilidades motora fundamentais de 104 crianças com idades entre 7 e 10 anos, 56 meninos (8,2±1,0 anos) e 48 meninas (8,3 ± 0,9 anos). Para parte qualitativa, o pesquisador inseriu-se ecologicamente no contexto e fez uso de observação assistemática não participante e entrevistas a 7 Representantes de Pais, 7 professores de educação física e 11 professoras polivalentes de diferentes escolas. Análise de dados: os dados qualitativos foram organizados mediante a síntese da análise de conteúdo. Os dados quantitativos foram tratados por meio de estatística descritiva (média, desvio padrão, distribuição de frequência) e estatística inferencial (Teste t de Student).
RESULTADOS: verificou-se que 95,1% das crianças apresentaram AM para habilidades locomotoras e 81,7% para habilidades manipulativas, com maior prejuízo para o sexo feminino nas habilidades manipulativas (p < 0,001). A análise dos dados qualitativos à luz do Modelo Bioecológico sugerem que os AM podem ser explicados pela ausência de estruturas físicas e recursos materiais nas escolas, mas, principalmente, pela falta de oportunidades, baixa capacitação docente, e pela inexistência de uma proposta pedagógica para promover a PM tanto nas escolas como nos projetos sociais esportivos. Ainda, o Modelo Bioecológico permitiu constatar que a PM interfere na forma como a criança se relaciona com o contexto.
CONCLUSÃO: Infere-se que em curto prazo, parte da solução do problema pode está na articulação das ações do exossistema (Secretarias Governamentais do Município) e, que em longo prazo faz-se necessário alterações no macrossistema (Legislação Educacional) que garanta aos microssistemas (escolas e projetos sociais esportivos) possibilidades de promover a PM das crianças.

Palavras-chave: desenvolvimento humano, desempenho motor, habilidades motoras, atrasos motores, modelo bioecológico.


 

 

INTRODUÇÃO

Um fenômeno que tem intrigado os cientistas do movimento humano diz respeito à prevalência de atrasos motores detectada em escolares. Este fenômeno manifesta-se independentemente da classe socioeconômica1,2, sendo, porém, mais prevalente entre crianças em situação de risco social1,3 , inclusive entre aquelas assistidas por programas sociais4.

Supõe-se que parte da explicação para esse fenômeno possa ser contemplada em estudos que considerem a relação indissociável que se estabelece entre o indivíduo e o contexto. Em particular, o modelo Pessoa-Processo-Contexto-Tempo (PPCT) mostra-se robusto para atender esta perspectiva. Conforme esclarecem Bronfenbren-ner e Morris5, p. 794:

O elemento central do modelo é o Processo. Mais especificamente, este construto envolve formas particulares de interação entre o organismo e o ambiente denominando-se processos proximais que operam ao longo do tempo e são reconhecidos como os principais mecanismos que produzem o desenvolvimento humano. No entanto, o poder de tais processos para influenciar o desenvolvimento varia substancialmente como uma função das características da pessoa, dos contextos imediatos e remotos e dos períodos de tempo no qual os processos proximais ocorrem.

No Modelo PPCT, os ambientes imediatos nos quais a criança participa ativamente são os microssistemas (exemplo: escola, projetos sociais esportivos, comunidade); a rede social formada entre os microssistemas é definida como mesossistema; os ambientes remotos em que a criança, apesar de não participar ativamente deles, mas tem seu desenvolvimento afetado pelas decisões ocorridas neles, chamam-se exossistema (exemplo: secretaria de educação, secretaria de esporte etc.). Por fim, o contexto maior, definido como macrossistema é formado pelos microssistemas, mesossistemas e exossistemas característicos de uma cultura ou subcultura, os quais revelam o sistema de crenças, recursos, estruturas de oportunidades, riscos, intercâmbios sociais, estilos e opções de vida que são incorporados em cada um desses sistemas. O que ocorre no exo, meso ou microssistema pode ser influenciado por esse contexto maior6.

Sob a perspectiva do modelo PPCT, Bronfenbrenner6 sugere que as características da pessoa em um determinado momento da sua vida se mostram como um produto das características da pessoa e do ambiente durante ao longo da vida da pessoa até aquele momento. Tais características pessoais podem se apresentar de forma positiva ou negativa, podendo afetar o poder e direção dos processos proximais ao longo do curso da vida5.

Particularmente, três características da pessoa podem afetar o seu desenvolvimento: os recursos, que se referem às habilidades, experiências e conhecimentos necessários para o funcionamento eficaz dos processos proximais; as disposições, que são características motivacionais que podem colocar os processos proximais em movimento em um domínio de desenvolvimento particular e sustentar o seu funcionamento; e a demanda, característica que convida ou desencoraja reações da pessoa em seu ambiente social, podendo favorecer ou prejudicar o funcionamento dos processos proximais. Essas características interagem atuando na força e direção dos processos proximais5.

As habilidades motoras fundamentais (HMF) são consideradas o ABC do movimento1. Assim, por exemplo, como uma criança não alfabetizada não consegue ler e escrever, uma criança que não saiba correr, saltar e arremessar, por exemplo, também é considerada motoramente analfabeta4. Entre os recursos pessoais da criança, as HMF apresentam potencial para interferir na forma com ela se relaciona com o contexto, visto que estas habilidades são consideradas pré-requisitos para a participação em atividades de cultura corporal (esportes, lutas e danças)1. O entendimento de como funciona os processos proximais para desenvolver as HMF no microssistema e como este é influenciado por ambientes mais remotos (exo e macrossistema) é de fundamental importância para a elaboração de políticas públicas para educação física, esporte e lazer. Assim, o objetivo do estudo é descrever e explicar os processos proximais para o desenvolvimento de habilidades motoras fundamentais (HMF) em escolares do Ensino Fundamental I (EFI) de um município litorâneo da Região Nordeste do Brasil.

 

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa de metodologia mista quantitativa e qualitativa. A parte qualitativa atende as seguintes características de pesquisa etnográfica7: a) ênfase na exploração da natureza de um fenômeno social específico; b) não subordinação ao conjunto de categorias analíticas e c) investigação detalhada de um caso. Para tanto, o pesquisador utilizou-se da proposta metodológica de inserção ecológica na comunidade8, onde permaneceu residindo durante cinco meses a fim de realizar o estudo.

Em termos de pesquisa em desenvolvimento humano, o estudo situa-se no delineamento pessoa-processo-contexto-tempo (PPCT). Este modelo sugere que o pesquisador investigue informações sistemáticas em quatro domínios específicos: (1) o contexto no qual o desenvolvimento ocorre, (2) as características pessoais (biológicas e/ou psicológicas) dos indivíduos presentes nesse contexto, (3) o processo através do qual o desenvolvimento ocorre, e, por fim, (4) o tempo, através da análise do tempo cronológico (etapa desenvolvimental da criança) e a interferência do tempo sócio-histórico nesse processo. Além disso, o pesquisador está preocupado com os efeitos bidirecionais entre a pessoa e o contexto5.

Em atendimento ao modelo PPCT o presente estudo adotou os seguintes procedimentos: para característica da pessoa em desenvolvimento, avaliou-se a Proficiência Motora (PM) por meio do Test of Gross Motor Development 2 - TGMD 29, validado para população brasileira10. O TGMD 2 é um instrumento orientado ao processo que, baseado em filmagens, permite descrever as características qualitativas no desempenho de 6 habilidades locomotoras - HLOC (correr, galopar, saltar com um pé, salto passada, salto horizontal e corrida horizontal) e 6 habilidades de controle de objetos HCO (quicar a bola, rebater, pegar, chutar, arremessar por cima e por baixo).

Os contextos, bem como suas interconexões, foram identificados por meio da descrição das características dos elementos que compõem o macrossistema. Assim, quando abordamos as estruturas de oportunidades e recursos, obtivemos informações sobre o microssistema; ao investigarmos os intercâmbios sociais, estilos e opções de vida, obtivemos informações sobre o mesossistema. Neste conjunto de elementos identificamos como o exossistema agia sobre o micro e mesossistema. A identificação dos riscos e sistema de crenças forneceu informações mais específicas sobre o macrossistema relacionado à educação física, esporte e lazer. A identificação dos processos proximais deu-se pela investigação de como as atividades para promover as HMF eram ofertadas e realizadas nos microssistemas. Finalmente, o tempo foi analisado de dois modos: os efeitos da passagem do tempo sobre o desenvolvimento motor das crianças, ou seja, o tempo cronológico que orienta as expectativas para o nível de HMF desejado para a faixa etária na qual as crianças se encontravam e o tempo sócio-histórico que envolve as ações favorecedoras ou inibidoras para o desenvolvimento das HMF.

Características socioeconômicas do contexto:

O município selecionado para realizar o estudo está localizado na Região Litoral Noroeste do Ceará. O município em questão possui uma população de 61.158 habitantes, dos quais, 74,23% residem na zona urbana. A administração pública, em conjunto com o comércio e o setor de serviços, responde por 77,4% dos empregos formais. A renda domiciliar per capita de menos de ½ salário mínimo corresponde a 63,8% e, entre ½ e 1 salário mínimo a 20,7%. Ainda, 28,51% da população economicamente ativa, que foi objeto deste estudo, apresenta rendimento domiciliar per capita mensal de até R$70,00, o que os classificam como extremamente pobres11.

Participantes:

No momento da pesquisa 2.991 crianças frequentavam o Ensino Fundamental I (EFI) na rede urbana; 104 crianças, entre 7 e 10 anos , tiveram a motricidade ampla avaliada, 56 meninos (8,2±1,0 anos) e 48 meninas (8,3 ± 0,9 anos). Para obter informações acerca dos contextos e dos processos proximais entrevistou-se 7 Representantes de Pais junto ao Conselho Escolar de suas respectivas escolas (1 pai e 6 mães), 7 professores de educação física (5 homens e 2 mulheres) e 11 professores polivalentes (10 mulheres e 1 homem) de diferentes escolas do município. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi obtido dos pais, professores e alunos que concordaram em participar do estudo. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Processo nº 19861.

Estudo dos elementos do macrossistema:

Foi realizado estudo observacional com visita em loco em todas as escolas do município que ofertavam EFI e em todas as instituições que ofertavam Projetos Sociais Esportivos (PSE). Em seguida, registrou-se em diário de campo as características de estrutura física e recursos materiais para práticas motoras.

Perguntas foram elaboradas enfocando os elementos do macrossistema (riscos, estruturas de oportunidades, recursos, opções de vida, estilo de vida, intercâmbio social e sistema de crianças) para compreender a interconexão com o micro, meso e exossistema; as mesmas foram avaliadas por três professores doutores em Desenvolvimento Motor e conhecedores do Modelo Bioecológico. Algumas perguntas foram feitas apenas para os representantes dos pais (RP), ou apenas para professoras polivalentes (PP), ou para os professores de educação física (PEF). Outras perguntas foram mantidas para mais de um dos grupos (RP, PEF, PP).

Procedimento metodológico das entrevistas:

O procedimento de entrevista proposto aqui neste trabalho baseou-se na Análise do discurso do sujeito coletivo (DSC)12. O DSC diz respeito a uma proposta metodológica de organização e tabulação de dados qualitativos de natureza verbal. Para tanto, os autores propõem o uso das seguintes figuras metodológicas: Expressões-Chaves (ECH), que são trechos ou transcrições literais do discurso que revelam a essência do depoimento; as Ideias Centrais (IC), que é uma expressão linguística que descreve de maneira mais sintética o sentido de cada um dos discursos e, Ancoragens (AC), que corresponde a uma manifestação linguística explícita de uma dada teoria, ideologia ou crença que o entrevistado professa. As entrevistas foram obtidas por meio do uso de um gravador digital de voz DVR - 2926.S Powerpack®, e em seguida, transcritas para análise.

Em seguida destacamos um quadro-síntese que orienta como todos os elementos do Modelo PPCT foram contemplados no estudo:

 


Quadro 1 - clique para ampliar

 

Análise dos dados

Os dados qualitativos obtidos por meio de diário de campo e entrevistas foram organizados mediante a síntese da análise de conteúdo7. Os dados quantitativos foram tratados por meio de estatística descritiva (média, desvio padrão, distribuição de frequência) e estatística inferencial (Teste t de Student). Todas as informações foram então interpretadas à luz do Modelo Bioecológico.

 

RESULTADOS

Desenvolvimento motor

Atrasos nas habilidades motoras fundamentais (HMF) tem sido detectadas em diferentes culturas.3,4 Este fenômeno sugere a necessidade de que essas informações sejam levantadas considerando o contexto e o sexo da criança para elaboração de políticas púbicas mais efetivas. A Tabela 1 expõe as características de desempenho motor de todas as crianças participantes do estudo conforme sexo:

De acordo com os dados normativos estabelecidos no TGMD 29,10, 95,1% e 81,7% das crianças estavam abaixo do percentil 5 para habilidades locomotoras (HLOC) e habilidades de controle de objetos (HCO), respectivamente, o que as classificam com atrasos motores (AM). As crianças deste estudo apresentaram uma pontuação bem aquém do que se requer para a média de suas idades, que é de 42 pontos para HLOC, em ambos os sexos, e de 42 e 38 pontos para HCO em meninos e meninas, respectivamente. Diferença estatisticamente significativa foi observada apenas para HCO a favor dos meninos.

Estudo do contexto:

1) Estrutura física para práticas motoras

A forma como o espaço físico está organizado não pode ser ignorado no processo da aquisição da habilidade motora14,15. Na Figura 1, o desenho geométrico do triângulo faz referência à presença de escolas que ofertavam o Ensino Fundamental I (EFI); os círculos vazios, presença de estrutura física mínima; os círculos preenchidos, presença de estrutura física adequadac e, pentágonos, as unidades sociais de apoiod.

 

 

Verificou-se no município estudado uma prevalência de estrutura física inexistente para práticas motoras orientadas nas escolas que ofertavam o Ensino Fundamental I (EFI). Apenas uma escola apresentava estrutura física adequada. A grande maioria das escolas era desprovida de espaços para realizar aulas de educação física (EF). Verificou-se também uma heterogeneidade na distribuição das unidades sociais de apoio. Cabe destacar que a pesquisa observacional permitiu constatar que os poucos espaços públicos existentes para práticas motoras, encontravam-se em situação de total abandono como ilustrado na Figura 2.

 

 

O estudo observacional também permitiu constatar a existência de unidades sociais de apoio muito próximas a algumas escolas. Entretanto, tais espaços não eram utilizados pelas escolas para desenvolver as aulas de EF. O estudo evidenciou, na época, a existência de 6 projetos sociais, nenhum vinculado ao Ministério da Educação ou Esporte. Dos 6 projeto sociais, apenas 3 faziam uso de práticas motoras na sua proposta educacional e, em todos eles, as atividades eram desenvolvidas por monitores sem formação na área de pedagogia ou EF.

2) Riscos enquanto fator limitador de práticas motoras

Dentre os problemas urbanos, na contemporaneidade a violência se apresenta como um dos principais contribuintes para a perda da autonomia infantil. Quando perguntou-se aos representantes de pais se a violência se constituía como um fator inibidor ou limitador de práticas motoras, eles tenderam a responder que não. De fato, a inserção ecológica do pesquisador na comunidade8 permitiu constatar que de forma geral o município onde se desenvolveu o estudo não era violento. O Discurso do Sujeito Coletivo (DSC1.1), faz referência ao discurso dos pais que residiam nos dois únicos bairros considerados violentos, ratificando o que fora identificado por meio de observação.

DSC 1.1

AC: a violência está associada à formação de gangues e tráfico de drogas.

Eu não tenho confiança de deixar meu menino brincar sozinho na rua. Aqui às vezes tem briga, tem gente que vem das outras ruas brigar aqui e essa briga é por causa de drogas. Inclusive, as crianças são muito agressivas, formam gangues, e aí, com isso, fica perigoso pras outras crianças que não se enturmam. Então, eu não deixo minhas filhas saírem pra brincar.

3) Oportunidades para práticas motoras no microssistema.

Ao questionar professores de EF (DSC 2.1) e professores polivalentes (DSC 2.2) sobre a existência de aulas de EF no Ensino Fundamental I (EFI), registrou-se apenas discursos convergentes. Em ambos os DSC fica explícita a falta de compromisso do poder público para com as aulas de EF no EFI.

DSC 2.1

AC: as aulas de Educação Física são desenvolvidas por professores polivalentes que se sentem despreparados e comprometem o desenvolvimento motor das crianças.

Eu acredito que seja de conhecimento de todos que as professoras polivalentes podem pegar as turmas para fazer a prática de educação física. Infelizmente isso é no município inteiro e creio que em outras cidades também. Eu gostaria de ressaltar que essas crianças estão tendo um prejuízo enorme. Muitos deles quando chegam no 6º ano são totalmente descoordenados. Qualquer movimento mais específico eles não conseguem realizar, justamente porque não tiveram essa base consolidada. Ainda tem o prejuízo no desenvolvimento afetivo, porque muitas crianças ficam isoladas, se sentem envergonhadas por não saber jogar.

DSC 2.2

Bem, eu creio que em todas as escolas tem o horário da educação física, mas não é aquela educação física propriamente dita. Toda semana a gente registra, mas nem toda semana acontece, porque a gente tem aluno que está no 4º ano, mas, está no nível de 1º ano, a maioria. Então a gente empurra mais para o lado de desenvolver a leitura e escrita e, acaba pegando a aula de educação física para isso. É muito complicado, até porque nós não somos preparadas pra dar aulas de educação física. É uma realidade bastante angustiante. É sério, eu não gosto! Deveria ter uma formação para que a gente se preparasse ou que houvesse uma professora especializada em educação física para trabalhar com eles.

4) Conteúdos explorados nas aulas de Educação Física e recursos materiais disponíveis.

Quando questionadas sobre quais conteúdos eram explorados nas aulas de EF e sobre os materiais disponibilizados, as professoras denunciaram a falta de recursos materiais e, de forma mais comprometedora ainda, a inexistência de uma proposta didático-pedagógica para promover a proficiência motora (PM) das crianças.

DSC 3.1

IC: os conteúdos das aulas de educação física se restringem às atividades recreativas e dinâmicas, e os recursos materiais são inexistentes.

A escola não tem espaço, então, a gente desenvolve as dinâmicas de grupo que dão pra fazer na própria sala de aula. Quando tem espaço a gente faz mais é recreação mesmo, brincadeiras, o próprio esporte. Os meninos gostam mais da bola e as meninas do vôlei. A gente não sabe se é bem planejado porque nós não somos formados dentro dessa área e capacitação direcionada para educação física a gente nunca teve. Eu nunca recebi recursos materiais pra minhas aulas. Nenhum!

5) Opções de vida no mesossistema.

Quando os representantes de pais foram indagados sobre quais outras opções de vida além da escola eram ofertadas para as crianças no bairro, verificou-se a presença de discursos divergentes, ratificando o que já havia sido exposto na Figura 1: a presença de mais de uma unidade social de apoio em determinados bairros e a inexistência em outros.

DSC 4.1

IC: A falta de opções de vida está associada à infraestrutura física inexistente.

Aí complicou! Porque assim, eu não vejo opções para as crianças. Eles mesmos é que faz os grupozinhos deles e vão jogar bola em campos baldios. Seria ótimo se eles tivessem um pólo de atendimento ou uma escola que a gente pudesse colocar as crianças lá pra praticar esportes, ter a certeza que tinha alguém olhando por elas. Eu acho que depende dos nossos governantes, têm que ver esse lado, reavaliar o que precisa, e fazer.

DSC 4.2

IC: Existem opções de vida, porém carece de intervenções públicas para seu funcionamento efetivo.

Tem uma associação de moradores, o Projeto ABC, e uma ONG. Quem estuda de manhã é à tarde e quem estuda à tarde é de manhã. Lá tem aulas de música, dança e reforço escolar, mas essa parte de esportes não tem. Esportes só tem na AABBe e no CRASf. O ginásio só é pra os meninos mais velhos. Eu acho que eles deviam olhar mais pelas crianças aqui do bairro, essas autoridades, eles ganham e depois não estão mais nem aí pra nada.

6) Estilo de vida das crianças.

Ao perguntar aos representantes de pais como as crianças ocupavam o tempo livre, o DSC 5.1 revelou uma interconexão entre os elementos que compõem o macrossistema. As opções de vida estão atreladas à estrutura física existente e às oportunidades ofertadas e influenciam o estilo de vida das crianças. Ainda, o DSC 5.1 revelou uma tendência para perda da identidade cultural de brincadeiras que fazem uso da motricidade ampla.

DSC 5.1

IC: O estilo de vida das crianças está associado às opções de vida.

Tem muitas mães que trabalham em casa de família e as crianças ficam soltas aí na rua. Algumas estão no projeto, outras, o lazer delas é ficar de frente para uma televisão ou jogando videogame. As brincadeiras que eles brincam é as que eu conhecia, é o pega-pega, o cola salva, 7 pecados, bola de gude, baladeira, pipa... Mas o que eu vejo mais é brincar de bola nas calçadas por falta de locais apropriados pra elas.

A pesquisa observacional permitiu constatar que as atividades realizadas nos projetos sociais esportivos (PSE) se restringiam ao futebol para os meninos, à dança para as meninas, atividades recreativas para ambos os sexos e capoeira para algumas crianças. Constatou-se assim que o mesossistema formado pelos microssistemas escola e PSE mostrou-se frágil em recursos materiais e na estruturação de conteúdos para promover as HMF, principalmente as habilidades de controle de objetos.

7) Sobre políticas de intercâmbio social.

Ainda com objetivo de saber como as crianças faziam uso da proficiência motora (PM) para interagir com o contexto, perguntou-se aos professores de educação física como o esporte ou os jogos eram utilizados para promover a interação social. Esta pergunta gerou um DSC que aponta para existência de um evento consolidado no macrossistema, porém, com pouco apoio do exossistema Secretaria de Esportes/Prefeitura.

DSC

AC: o intercâmbio social só ocorre por meio de atividades competitivas, com pouco incentivo do exossistema e somente contemplavam os mais habilidosos.

Tinha as olimpíadas escolares. Era um evento que acontecia nos meses de outubro a dezembro. Todos os finais de semana. De repercussão municipal mesmo! Foi um projeto que nasceu com os alunos do curso de Educação Física. Mas as crianças do 1º ao 5º ano não tinham essa vivência porque elas não tinham professor de educação física que pudessem acompanhá-las e treiná-las para a competição. Ele aconteceu em 5 edições, mas, infelizmente por falta de políticas públicas, desde o ano passado não aconteceu. É um prejuízo porque os alunos gostam de jogar, se divertir, conviver com pessoas diferentes.

8) Sobre o sistema de crenças relacionado à EF, esporte e lazer.

Sugere-se que a identificação do sistema de crenças como um elemento do macrossistema no Modelo PPCT5,6, parece poder fornecer algumas explicações do quanto uma atividade é considerada importante nos micros e exossistemas. Sob este raciocínio, elaborou-se a seguinte frase de impacto junto aos pais e professoras polivalentes: "Agora, eu vou dizer uma frase e quero saber se o(a) senhor(a) concorda ou discorda e por que. A frase é a seguinte: não deveria mais haver aulas de educação física na escola."

A reação das professoras polivalentes foi unânime sobre a importância da educação física (EF) na formação das crianças. No entanto, os representantes de pais geraram discursos divergentes.

DSC 7.1 (Professoras Polivalentes).

AC: é importante ter aulas de Educação Física, mas com o profissional habilitado.

Eu discordo! A aula de educação física não só promove o bem estar da saúde do corpo, mas também a interatividade e a coletividade. É importante para o crescimento intelectual e físico da criança. É também uma maneira das crianças extravasarem um pouco as energias acumuladas que às vezes as deixam até violentas. É muito bom pra formação delas, para saber que existem regras e essas regras deverão ser respeitadas. Por isso eu acho que deveria sim, só que de uma forma mais séria, com uma pessoa realmente qualificada, profissional mesmo da área, que não é o nosso caso.

DSC 7.2 (Representantes de Pais).

IC: Tem que ter porque é necessário e bom pra saúde.

Discordo, é pra ter porque eu acho necessária. Porque vai ajudar o menino no crescimento, vai desenvolver uma parte lá no cérebro que ajuda ele a prestar mais atenção na aula. As crianças passam de 4 a 5 horas na sala de aula, aquele momento de educação física é o momento que elas têm de colocar a energia pra fora. Tem que ter aquele momento pra eles se distraírem, mas é preciso que seja bem adaptado e ter professores pra acompanhar direitinho.

DSC 7.3 (Representantes de Pais).

IC: se educação física for só jogar bola, é melhor não ter.

Eu concordo, porque eu discordo dessas aulas que tão tendo hoje, vão pra lá só pra jogar bola e chegam machucados. Era preciso professor especializado para cada esporte, as aulas fossem mais compridas e tivessem mais atenção, pensassem mais coisas, porque é só uma coisinha, joga bola e aí pronto vai pra casa. Se é para ser assim, eu acho que não tem necessidade de ter não!

Ainda sobre o sistema de crenças, fez-se a seguinte colocação para os professores de educação física: "Agora, eu vou dizer uma frase e pedir para o(a) senhor(a) completar. A frase é: as aulas de educação física e os projetos sociais esportivos só vão ter realmente sua importância reconhecida pela sociedade quando..."

Ficou patente no DSC 8.1 a necessidade de mudanças no macrossistema e no próprio professor de educação física para que a educação física tenha mais credibilidade na sociedade.

DSC 8.1 .

IC: quando houver seriedade e comprometimento dos governantes e dos próprios professores.

Quando o poder público municipal, estadual e federal deixar de falar e realmente fazer. Houver mais valorização dos profissionais. Políticas públicas sérias que desenvolvam projetos e que deem condições aos profissionais de desenvolverem tanto na escola como na comunidade. Mas, também, quando os professores começarem a mudar a própria cabeça e lutarem por esse reconhecimento. A gente tem uma dificuldade porque não há uma proposta curricular para todas as escolas, o professor de educação física só faz o que quer. Eu acredito que se esse conteúdo fosse sistematizado para ser uma única coisa para ser trabalhada nas escolas a educação física teria mais valor.

 

DISCUSSÃO

A prevalência de atrasos motores (AM) encontrada neste estudo em população economicamente desfavorecida mostra-se consistente com estudos realizados no Brasil3 e no exterior1,4. Porém os AM das crianças do presente estudo são mais pronunciados. Existem evidências que o nível socioeconômico interfere mais sobre as habilidades motoras fundamentais (HMF) que outros fatores tais como raça, etnia e regiões geográficas1. Sabe-se que características de sexo apresentam potencial para influenciar a proficiência motora (PM) das crianças3,4, entretanto, entende-se que as oportunidades ofertadas no contexto é que são mais determinantes para os melhores níveis de PM.

O desempenho mais comprometedor em habilidades de controle de objetos (HCO), principalmente no sexo feminino merece uma atenção especial. O domínio em HCO na infância é aceito como um preditor para participação em práticas motoras livres e/ou organizadas na adolescência13. Uma característica de estímulo pessoal como a "demanda", por exemplo, o sexo não pode passar despercebido, visto que as oportunidades para o desenvolvimento nem sempre são iguais para meninos e meninas16.

A ausência ou precariedade das instalações esportivas tem sido também observada em outros contextos brasileiros14,15, estando alinhada com o nível socioeconômico e distribuição de renda. A Educação Física Escolar enfrenta problemas similares em diferentes contextos do Brasil, o que reflete a necessidade na orientação de políticas públicas do macrossistema para dirimir tais problemas15.

A precariedade de conservação dos espaços públicos faz parte do cenário urbano, sendo possível verificar que as praças públicas, bem como os parques infantis, são vítimas do abandono do poder público, e, muitas vezes, usados para fins ilícitos17. O desenvolvimento de HMF requer um mínimo de estrutura física e recursos materiais. Além disso, existem evidências de que a forma como a infraestrutura física do macrossistema está organizada influencia nas preferências pelos locais e consequentemente na realização das atividades18.

Ao constatar que algumas estruturas físicas públicas existentes não eram utilizadas para servir aos interesses das escolas, o estudo revelou uma total desarticulação no exossistema (Secretaria de Educação, Secretaria de Esportes e Secretaria de Ação Social) para atender às necessidades de promover PM infantil. De acordo com a literatura, contextos que não oportunizam interação entre a criança e o ambiente, tendem a desfavorecer as disposições gerativas que impulsionam o desenvolvimento motor da criança18.

Os tipos de violência variam entre países, regiões, cidades e em unidades geográficas, e, apesar da violência concentrar-se majoritariamente nas regiões metropolitanas, estudos apontam para interiorização da violência associada ao uso e tráfico de drogas19, como também fora pronunciado neste estudo. Apesar de a pobreza não justificar a violência, sendo ela apenas um agravante na prática da violência, no presente estudo verificou-se que os dois bairros considerados violentos estavam localizados na periferia, onde se concentrava a maior parte da população classificada abaixo da linha de pobreza.

É necessário investir em políticas públicas que garantam segurança em locais apropriados para o lazer infantil e que se reverta em oportunidades motoras para as crianças. Dessa forma, os pais poderão se sentir seguros e dar autonomia para as crianças explorarem seus ambientes durante o tempo livre e, assim, se desenvolverem adequadamente18.

Os DSC 2.1, 2.2 e 3.1 explicitaram como os processos proximais para desenvolver as HMF eram desencadeados e sustentados no microssistema escola. Os discursos mostram o sistema aninhado de ambientes destacados por Bronfenbrenner6, onde o que ocorre no microssistema escola é influenciado pelas decisões que são tomadas no exossistema (Prefeitura/Secretaria de Educação). Por sua vez, esta desarticulação entre o exo e o microssistema é influenciada pelo macrossistema que determina as Leis que não garantem o funcionamento da educação física escolar no EFI.

Apesar de o inciso III do Art. 26 da Lei 9.394/96, de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) determinar que: "a educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da educação básica (...)" (BRASIL20, 2010, p. 3), a lei não estabelece o número de aulas de educação física para cada ciclo de ensino. Logo, a Resolução do Conselho de Educação do Ceará 412/200621, apoiada nas brechas da LDB 9.394/96, determina que as aulas de educação física no EFI são atribuições do professor polivalente e que o tratamento a ser dado para a Educação Física deverá estar explicitado na proposta pedagógica da escola, evidenciando o número e duração das sessões.

Ocorre que quando tal obrigatoriedade estabelecida por lei está associada aos interesses da proposta pedagógica da escola, tem-se que o exossistema (Secretaria de Educação Municipal) não garante que os alunos do 1º ao 5º ano do EFI tenham aulas de educação física como evidenciado no DSC 2.2. Ou seja, a disciplina existe apenas para efeitos legais.

Uma vez que o macrossistema atribui às professoras polivalentes a responsabilidade em desenvolver aulas de EF, espera-se que o mesmo garanta a capacitação para tal, e/ou ainda, considerem as disposições das mesmas para assumirem esta responsabilidade, o que parece ser mínima, conforme mencionado no DSC 2.2. Neste sentido, considerando que uma legislação federal não necessariamente assegure os direitos previstos à educação em sua forma mais ampla22, parece que uma legislação estadual, a exemplo do que ocorre no Estado de São Paulo23, é crucial para estes finsg.

A falta de estrutura física e de recursos materiais denunciada no DSC 3.1 é responsável para que os processos proximais se mostrem negativos, tendo em vista que a ausência de objetos para serem explorados e manipulados inibem a atenção e imaginação do aluno, dificultando, assim, que a interação recíproca ocorra5,6. No entanto, sugere-se, que a falta de capacitação docente relatada no DSC 3.1 tende a ser mais perniciosa que esses outros dois fatores.

A formação continuada dos professores, inclusive dos especialistas, é necessária para promover o desenvolvimento motor. Pesquisa realizada com crianças de elevado nível socioeconômico em Porto Alegre, RS, Brasil, com idade entre 5 e 6 anos, que tinham aulas de educação física, além de práticas motoras extracurriculares ministradas por professores de EF e, realizadas de 2 a 5 vezes por semana, também mostrou prevalência de atrasos motores2. No entanto, há de se considerar que essas crianças estavam tendo oportunidades. O que tem que ser revisto é como os processos proximais se desenvolvem nos microssistemas. Tão importante quanto a persistência temporal relatada acima, é saber se as crianças estão engajadas nas atividades, se há respeito ao progresso de complexidade das atividades, se as atividades permitem o envolvimento da criança com objetos e símbolos estimulando a manipulação, atenção, exploração e imaginação, e se há uma interação recíproca entre crianças e professores e crianças-crianças5,6.

A prática pedagógica do professor por meio da exploração dos conteúdos e recursos materiais disponíveis revela como os processos proximais são operados para promover as HMF. O estudo observacional e o DSC 3.1 revelam que as professoras qualificam suas práticas pedagógicas prioritariamente como recreacionistas. Embora o § 1º do artigo Art. 6 da Resolução CEC 412/200621 sugira que as aulas de educação física no EFI devam ser ofertadas na forma de recreação, pesquisas sugerem que jogar por jogar, ainda que em um ambiente enriquecido por recursos materiais, não promovem a PM, sendo crucial a mediação do professor neste processo24.

Em relação ao microssistema comunidade, o DSC 5.1 revela que as brincadeiras que persistiam na cultura local exigiam mais coordenação motora fina do que grossa (bola de gude, baladeira, pipa). Foi possível observar também pouco envolvimento das meninas nas brincadeiras na comunidade. Pesquisas revelam segregação sexual e falta de oportunidades igualitárias nas brincadeiras durante a infância25. Tal fato pode contribuir também para a maior prevalência de atrasos motores no sexo feminino3, o que sugere que mais opções de práticas motoras devam ser garantidas às meninas nos microssistemas escola e PSE, visto que quando estimuladas, as crianças do EFI apresentam uma maior identificação com brincadeiras de classificação motora25.

Ao identificarmos como a PM da criança interfere no seu intercâmbio social rompemos com uma visão unidirecional de desenvolvimento no qual o contexto direciona o desenvolvimento da criança. Conforme esclarece Bronfenbrenner e Morris (2007)5, as características da pessoa tanto são produtos como produtoras do desenvolvimento. O estudo revelou que as HMF das crianças são influenciadas pelos contextos (micro-meso-exo e macrossistema), ao passo que tais recursos pessoais canalizam a ação motora das crianças nos diferentes microssistemas. As características pessoais da criança repercutem então na forma pela qual o contexto é experienciado por ela, bem como sobre os tipos de contextos para os quais ela é direcionada16 .

O DSC 6.1 revela que apenas as crianças com melhor PM tinham oportunidades de intercâmbio social. Fica explícito que a PM da criança orienta suas metas e disposições e provoca a demanda dos seus pares, afetando a maneira como estes lidam com a criança em desenvolvimento e com as metas, valores e expectativas que têm em relação a ela. Crianças habilidosas apresentam este recurso como um facilitador da interação, pois têm mais oportunidades para liderar, particularmente nas atividades em que suas habilidades superiores se mostrem resolutivas26.

Em relação ao sistema de crenças que envolve a educação física, esporte e lazer, estudo sugere que pais, professores polivalentes e gestores escolares reconhecem a importância das aulas de educação física nas séries iniciais, entretanto, o discurso mostra-se desvinculado da prática27. Sobre o assunto, Molina Neto28 (2003) afirma que tal fato acontece em função da ênfase do projeto social brasileiro estar centrada no desenvolvimento econômico e, sendo assim, valoriza mais os conhecimentos intelectuais, deixando conteúdos atitudinais e procedimentais em segundo plano.

Neste sentido, há de se reconhecer que os processos proximais serão tão mais positivos conforme o valor significativo que o tipo de habilidade represente para a sociedade, visto que depende claramente de suas crenças e metas22. Assim, por exemplo, pais e professores estarão mais propensos a equipar as crianças com aqueles tipos de habilidades que julguem ser mais essenciais para elas16.

A visão reducionista que a sociedade tem da educação física ao associá-la meramente ao esporte e, particularmente, ao futebol, é construída dentro de um tempo sócio-histórico. Ao passo que os professores de EF criticam o macrossistema como o principal responsável por sua pouca valorização profissional28, os mesmos assumem, numa autocrítica, o dilema de que professores formados em diferentes momentos históricos e em diferentes instituições, apresentam práticas semelhantes.

Esta atitude do professor remete aos papéis destacados por Bronfenbrenner5. Para este teórico os papéis devem ir além das expectativas que a sociedade tem sobre quem desempenha o papel, e incorporar, também, as expectativas que o próprio indivíduo tem em relação ao que ele espera que os outros esperem dele. Nesta perspectiva, como reivindicado no DSC 8.1, uma verticalização de conteúdos é crucial para que os processos proximais possam operar positivamente e o professor de educação física seja valorizado na sociedade.

Uma análise do elemento Tempo no Modelo PPCT sob o prisma sócio-histórico mostra que a falta de condições de trabalho do professor de educação física no Brasil carrega consigo raízes históricas que datam dos anos finais do Século XIX aos dias atuais14. O que ocorre com a educação física é apenas um reflexo do que acontece na educação pública como um todo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo propôs uma alternativa para compreender o desenvolvimento motor (DM) a partir do modelo bioecológico. Verificou-se então, que uma característica desenvolvimental (proficiência motora - PM), tanto é afetada pelo contexto, como também interfere na sua relação com o mesmo. Ao se constatar quase 100% de atrasos motores (AM) nas crianças, verificou-se que a PM da criança pode ser afetada pela violência no ambiente e sistema de crenças dos pais. Neste estudo, a ausência de estruturas físicas e recursos materiais, e, principalmente, a falta de oportunidades para práticas motoras e a baixa capacitação docente foram os fatores mais intervenientes neste processo. A análise da relação bidirecional entre a criança e o contexto evidenciou que os AM interferem na forma como as crianças experienciam o contexto (brincadeiras e competições esportivas).

A partir desses resultados, é razoável acreditar que existe uma necessidade de articulação no exossistema (Secretarias Governamentais do Município) e alterações no macrossistema (Legislação Educacional) para garantir aos microssistemas (Escola e Projetos Sociais Esportivos) possibilidades de promover a PM. De um ponto de vista mais pragmático, é fundamental adotar uma proposta pedagógica que não fique restrita à recreação e contribua para promover o DM. Uma verticalização de conteúdos no Ensino Fundamental também é crucial. Ao que pese nas limitações deste trabalho, é importante destacar que a influência de fatores tais como estado nutricional e percepção de competência que afetam a PM não foram investigados neste estudo. De qualquer forma, acredita-se que este trabalho se apresenta como um avanço em pesquisa na área de Educação Física ao romper com uma visão de DM que geralmente associa o desenvolvimento da criança a um único ambiente e desconsidera que a PM da criança também afeta o contexto.

 

Agradecimentos:

In memoriam ao Prof. Dr. Ruy Jornada Krebs pelas relevantes contribuições prestadas nas discussões sobre a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano durante a elaboração do projeto de pesquisa que deu origem a este trabalho, bem como à Profª. Drª. Normanda Araújo de Morais por suas sugestões pontuais que agregaram valor a este trabalho.

 

REFERÊNCIAS

1. Booth, ML. et. al. Mastery of fundamental motor skills among New South Wales School students: prevalence and sociodemographic distribution. Aust J Sci Med Sport. 1999; 2 (2): 93-105.         [ Links ]

2. Brauner, LM.; Valentini, NC. Análise do desempenho motor de crianças participantes de um programa de atividades físicas. R. da Educação Física UEM. 2009; 20 (2): 205 - 216. http://dx.doi.org/10.4025/reveducfis v20 n2 p 205-216        [ Links ]

3. Spessato, BC.; Gabbard, C.; Valentini, NC.; Rudsill, M. Gender differences in Brazilian children's fundamental movement skill performance. early child development and care. 2012; 7 (14): 1 - 8. http://dx.doi.org/10.1080/03004430.2012.689761        [ Links ]

4. Goodway, JD.; Robinson, LE.; Crowe, H. Gender differences in fundamental motor skill development in disadvantaged preschoolers from two geographical regions. Res Q Exerc Sport. 2010; 81 (1): 7 - 24.         [ Links ]

5. Bronfenbrenner, U.; Morris, PA. The bioecolo-gical model of human development. Handbook of child psychology. Department of Human Development, Cornell University, Ithaca, New York, USA, 2007. 793 - 828. http://edfa2402resources.yolasite.com/resources/BronfenbrennerModelofDevelopment.pdf. (acesso em 12/07/2012)        [ Links ]

6. Bronfenbrenner, U. Ecological systems theory. (In): Bronfenbrenner, U. Making human being human: bioecological perspectives on human development. Thousand Oaks, CA: Sage Publications, 2005. 106 - 73.         [ Links ]

7. Flick, U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2009, p. 203 - 18.         [ Links ]

8. Cecconello, AM.; Koller, SH. Inserção ecológica na comunidade: uma proposta metodológica para o estudo de famílias em situação de risco. Psicol. Reflex. e Crit. 2003; 16 (3): 515 - 524. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-79722003000300010        [ Links ]

9. Ulrich, DA. TGMD 2 - Test of gross motor development examiner's manual . 2 ed. Austin, Texas: Pro-ed, 2000. 04 - 60.         [ Links ]

10. Valentini, NC. Validity and reliability of the TGMD -2 for Brazilian children. J. Mot Behav. 2012; 44 (4): 275 - 80.         [ Links ]

11. IPECE. Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará. Perfil Básico Municipal. Disponível em http://www.ipece.ce.gov.br/publicacoes/perfil_basico/pbm-2011/. Acesso em 07 de Junho de 2012.         [ Links ]

12. Lefevre, F.; Lefevre, AMC. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). 2ª ed. Caxias do Sul: Educs, 2005, p. 13-57.         [ Links ]

13. Barnett, LM.; Van Beurden, E.; Morgan, PJ.; Brooks, LO.; Beard, JR. Childhood motor skill proficiency as a predictor of adolescent physical activity. J. Adolesc Health. 2009; 44 (3): 252 - 59.         [ Links ]

14. Gaspari, TC.; Souza Junior, O.; Maciel, V.; Impolcetto, F.; Venancio, L.; Rosário, LF. et. al. A realidade dos professores de educação física na escola: suas dificuldades e sugestões. R. Min. Educ. Fís. 2006; 14 (1): 109 - 37. http://www.revistamineiradeefi.ufv.br/artigos/arquivos/7828138ea2673071ec9aa11cf 361c7ed.pdf . (acesso 09/07/2012).         [ Links ]

15. Tokuyochi, JH., Bigotti, S.; Antunes, FH.; Cerencio, M.; Dantas, LEPBT.; Leão Marcos, H.; Tani, G. Retrato dos professores de Educação Física das escolas estaduais do estado de São Paulo. Motriz. Rev. Educ. Fisc. 2009; 14(4): 418 - 28.         [ Links ]

16. Tudge, J.; Doucet, F.; Odero, D. Desenvolvi-mento infantil em contexto cultural: o impacto do engajamento de pré-escolares em atividades do cotidiano familiar. Interfaces Rev. de Psic. 2009; 2 (1): 23- 33.         [ Links ]

17. Luz, GM. da; Raymundo, LS.; Kuhnen. Uso dos espaços urbanos pelas crianças: uma revisão. Psicol. teor. prat. 2010; 12 (3): 172 - 84. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ptp/v12n3/v12n3a14.pdf. (acesso em 06/07/2012).         [ Links ]

18. Krebs, R. J.; Carniel, J. D.; Machado, Z. Contexto de desenvolvimento e a percepção espacial de crianças. Movimento. 2011; 17 (1): 195 - 212. http://www.seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/15483/12949. (acesso em 06/07/2012).         [ Links ]

19. Souza, E. R. de.; Lima, M. L. C. de. Panorama da violência no Brasil e suas capitais. Ciênc. saúde coletiva. 2006; 11 (supl): 1211 - 22. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232006000500011        [ Links ]

20. Brasil. LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. 5ª ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação Edições Câmara, 2010. P. 23. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. (acesso em 9/07/2012).         [ Links ]

21. Ceará. Conselho de Educação do Ceará. Resolução 412/2006. Disponível em http://www.cee.ce.gov.br/phocadownload/resolucoes/RES-0412-2006.pdf. p.1 - 3 (acesso em 12/07/2012).         [ Links ]

22. Freitas, L. B. L.; Shelton, T. L.; Tudge, J. R. H. Conceptions of US and Brazilian early childhood care and education: A historical and comparative analysis. Int. J. Behav. Dev. 2008; 33 (2): 161 - 170.         [ Links ]

23. Silva, E. V. M.; Venâncio, L. Aspectos legais da Educação Física e integração à proposta pedagógica da escola. (In): Darido, S. C.; Rangel, I C. A. (Org.). Educação Física na Escola: implicações para a prática pedagógica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008, p. 50 - 63.         [ Links ]

24. Palma, M. S.; Pereira, B.; Valentini, N. C. Jogo com orientação: uma proposta metodológica para a educação física pré-escolar. R da Educação Física/UEM. 2009; 20 (4): 529-541. http://dx.doi.org/10.4025/reveducfis v20 n4 p 529-541        [ Links ]

25. Cordazzo, S. T. D.; Vieira, M. L.; Almeida, A. M. T. Brincadeiras de crianças brasileiras e portuguesas no contexto escolar. Journal of Human Growth and Development. 2012; 22 (1): 1 - 13. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbcdh/v22n1/pt_09.pdf. (acesso em 16/03/2014).         [ Links ]

26. Miyabayashi, L. A.; Pimentel, G. G. de A. Interações sociais e proficiência motora em escoares do ensino fundamental. Rev. Bras. Educ. Fís. Esporte. 2011; 25 (4): 649 - 63. http://dx.doi.org/10.1590/S1807-55092011000400009        [ Links ]

27. Magalhães, J. S.; Kobal, M. C.; Godoy, R. P. de. Educação Física na Educação Infantil: uma parceria necessária. Revista Mackenzie de Educação Física e Esportes. 2007; 6 (3): 43 - 52. http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/remef/article/viewFile/1223/936. (acesso em 06/07/2012)        [ Links ]

28. Molina Neto, V. Crenças do professorado de educação física das escolas públicas de Porto Alegre. Movimento. 2003; 9 (1): 145 - 69. http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/86384/000382577.pdf?sequence=1. (acesso em 09/07/2012).         [ Links ]

 

Manuscript submitted May 18 2014
Accepted for publication Oct 21 2014

 

 

This work had the financial support of the Coordination for the Improvement of Academic Staff (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Docente-CAPES) through providing scholarships at doctoral level (PIQDTec) and, financial support from the Ministry of
a Education /Sesu/PROEXT no. 4/2011/ SIGProj no. 78454.394.29047.16042011. This article was based on the Thesis entitled: Motor development in context: contributions from the
b bioecological model of human development, put forward in October 2013 in the Postgraduate Program in Human Movement Science from the Federal University of Rio Grande do Sul.
c Estrutura física mínima (presença de pátio ou quadra sem cobertura); estrutura física adequada (presença de quadra coberta); baseado em (Gaspari et. al14, 2006; Tokuyochi et. al15, 2008).
d Instituições públicas e/ou não governamentais que desenvolvem ou poderiam desenvolver Projetos Sociais Esportivos - PSE.
e Associação Atlética Banco do Brasil.
f Centro de Referência em Assistência Social.
g No Estado de São Paulo, a Resolução 173 de 5 de dezembro de 200223 estabelece a obrigatoriedade das aulas de educação física em todas as séries, duas vezes por semana, devendo ser ministradas por professores de educação física, assistidos por professor(a) polivalente.
Application of the Article:
Motor delays. A problem which contributes to sedentary behavior, and therefore, social isolation and development of hypokinetic disorders in children and adolescents.
Corresponding author:
salvianonobre@gmail.com