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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.25 no.3 São Paulo  2015

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.105997 

EDITORIAL

 

Medicina translacional na interseção da medicina baseada em evidências e da medicina narrativa

 

 

Alberto C. S. Costa

Departments of Pediatrics and Psychiatry, Case Western Reserve School of Medicine, Cleveland - USA

 

 

O conteúdo deste editorial é baseado na palestra de abertura que proferi no Sexto Congresso Internacional de Saúde da Criança e do Adolescente (http://congressocisca.com.br/), o qual foi realizado na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, Brasil, em maio de 2015. Nessa ocasião, tive a oportunidade de contar duas histórias paralelas ao público ouvinte. Em primeiro lugar, falei sobre as muitas decisões, às vezes equivocadas, que me levaram a me transformar no pesquisador profissional no campo da Medicina Translacional que sou hoje. Em segundo lugar, descrevi alguns dos marcos históricos que levaram ao desenvolvimento do campo da Medicina Baseada em Evidências, e as consequências deste desenvolvimento para o ensino e a prática atual da medicina.

Graduei na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em 1986. Quando ingressei na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ, não sabia que representava um dos últimos bastiões da medicina tradicional no Brasil, hoje conhecida como Medicina Baseada na Experiência. Por exemplo, o ensino na UERJ era baseado em disciplinas médicas clássicas (i.e., anatomia, fisiologia, farmacologia, patologia, etc.). Em comparação, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o ensino seguia um modelo mais contemporâneo, o qual era dividido em módulos baseados em sistemas. Apesar de antiquada, a abordagem de ensino da UERJ garantia uma repetição infernal dos mesmos assuntos, mas, por outro lado, também garantia que a informação finalmente fizesse uma marca indelével no cérebro do pobre estudante. Além disso, o currículo da UERJ era completamente rígido e não permitia que o estudante cursasse disciplinas não oferecidas pela faculdade. Em contraste, a UFRJ permitia que o aluno tivesse interesses outros que não a medicina. Tal rigidez também foi uma tortura para mim, que era um aluno que vinha de uma escola técnica federal (CEFET RJ) e que, desde o começo da faculdade, já tinha o sonho de se transformar em um médico-pesquisador no futuro.

Existiam outros motivos pelos quais a faculdade de medicina da UERJ era também a mais tradicional das faculdades tradicionais de medicina do Brasil. Por exemplo, a maior parte do terceiro ano da faculdade na UERJ era dedicada à propedêutica médica, onde passávamos quase o dia todo em enfermarias de várias especialidades, aprendendo a coletar histórias clínicas e a fazer exames físicos. Inicialmente, isso também foi um pesadelo para mim. Mas, exatamente por não ter opções, pouco a pouco, fui me tornando cada vez mais confortável em minha interação com os pacientes e progressivamente mais hábil em reconhecer sinais e sintomas de várias doenças e desordens que podem afetar o ser humano. Tais habilidades me acompanham e me são úteis até hoje.

Durante o meu treinamento clínico, tive mentores excelentes, como os professores Jose Augusto Fernandes Quadra (o "Quadrinha"), Fernando Bevilacqua, Jayme Landmann e Pedro Sampaio. Todos estes indivíduos tinham em comum uma imensa quantidade de conhecimento, paixão enorme pela arte da medicina e um ego comensurável com estes atributos. Eles raramente permitiam serem questionados em suas opiniões clínicas (talvez com exceção do Quadrinha; mas ele nunca estava errado...); independente de se tais opiniões fossem baseadas ou não em evidências científicas. "A clínica é soberana!" Eles diziam.

Em 1987, fiquei extremamente contente por pensar que havia abandonado a medicina para sempre, depois da tortura de seis anos de faculdade de medicina. Fui aceito para o programa de pós-graduação do Instituto de Biofísica Carlos Filho na UFRJ (IBCCF-UFRJ), onde passaria a me dedicar completamente às ciências básicas. Apesar de ter tido aulas com figuras luminares tais como o Professor Aristides Leão e o próprio Professor Carlos Chagas Filho, a diferença com a faculdade de medicina era que o aluno era sempre estimulado a questionar o que estava sendo dito. As informações eram sempre apresentadas como falsificáveis; o que é uma postura típica da ciência.

Depois de um ano e meio tendo aulas e aprendendo técnicas laboratoriais como estudante de pós-graduação na IBCCF-UFRJ, passei um período prolongado de bolsa sanduiche no Departamento de Farmacologia da Universidade de Maryland (dois anos e meio). Voltei ao Brasil então e defendi meu doutorado em ciências (Biofísica) na UFRJ em 1991. De lá fui para a Baylor College of Medicine, no Texas, onde fiz meu pós-doutoramento em neurociências por quatro anos e meio.

Em 1992, o artigo "Evidence-based medicine. A new approach to teaching the practice of medicine" foi publicado no Journal of the American Medical Association, (JAMA1). Depois de alguma resistência da elite da Medicina Baseada na Experiência, esta área emergente rapidamente ascendeu dentro do establishment da medicina. Abaixo estão alguns comentários extraídos e traduzidos livremente de um editorial do British Journal of Medicine (BJM), publicado em 1996 por Sackett et al.2, o qual responde a algumas das críticas iniciais ao artigo original do JAMA:

  • "Medicina baseada em evidências é o uso consciente, explícito e judicioso da melhor evidência contemporânea na tomada de decisões sobre o cuidado de pacientes individuais. A prática da medicina baseada em evidências significa integrar experiência clínica individual com a melhor evidência clínica externa disponível a partir de uma pesquisa sistemática. Por melhor evidência clínica externa disponível queremos dizer pesquisa clinicamente relevante, muitas vezes oriundas das ciências básicas da medicina, mas especialmente de investigação clínica centrada no paciente [...]."
  • "Evidência clínica externa tanto invalida testes de diagnóstico e tratamentos previamente aceitos, quanto os substitui por técnicas mais poderosas, mais precisas, mais eficazes e mais seguras." [Falseabilidade!]
  • "Bons médicos usam tanto o conhecimento clínico individual quanto a melhor evidência externa disponível, um não é suficiente sem o outro."

Em 1996, consegui meu primeiro emprego como pesquisador independente (Research Scientist), no Jackson Laboratory, uma das instituições no centro da revolução genética e do nascimento da medicina translacional.

No ano 2000, mudei para o Colorado, onde trabalhei como Institute Scientist, e, mais tarde, como Professor Associado de Pesquisa, no Instituto Eleanor Rosevelt, a qual foi a única instituição americana que participou no sequenciamento do cromossomo 21. Naquela instituição, comecei a realizar estudos farmacológicos com modelos de camundongo da síndrome de Down. Mas também comecei a fazer medições neurofisiológicas quantitativas em pessoas com a síndrome de Down.

Em 2006, tornei-me Professor Associado do Departamento de Medicina da Universidade do Colorado. Nesta universidade, comecei a desenhar e executar ensaios clínicos envolvendo pessoas com síndrome de Down, e também comecei a frequentar regularmente as reuniões clínicas do departamento. Em 2011, virei codiretor do curso de farmacologia clínica na faculdade de medicina, o qual era um curso eletivo no currículo médico do quarto ano do curso de medicina. Minha inesperada reaproximação com o ensino médico me levou a muitas e muitas horas de reflexão sobre o currículo médico dos Estados Unidos na década de 2010, sobre como tal currículo se comparava com a instrução que recebi no Brasil nos anos 80 e sobre como a prática da medicina havia mudado como consequência de tal translação espaçotemporal.

Para começar, medicina nos Estados Unidos é curso de pós-graduação, o qual tipicamente é feito depois de quatro anos de faculdade em nível de graduação. Para entrar na medicina o aluno tem que ter cursado vários pré-requisitos durante a graduação (que pode ser em várias áreas do conhecimento). O curso de medicina dura quatro anos de curso, após os quais o estudante recebe o título de doutor em medicina (Medical Doctor, ou MD). (Ou seja, os médicos nos Estados Unidos têm todo o direito de serem chamados de doutores.) Isto é seguido por um internato (em nível de pós-doutorado) de um ano, o qual é seguido por residência em uma das especialidades médicas, e, finalmente, por um fellowship opcional; caso o médico decida se subespecializar.

Em contraste, no Brasil (como na maioria dos países do mundo) os alunos vão para a faculdade de medicina direto do segundo grau, o que pode ser parcialmente justificado por diferenças entre os sistemas de ensino médio dos dois países. No início dos anos 1980, o estudante de medicina brasileiro costumava cursar cinco anos de educação formal na faculdade de medicina, o que ajudava a reduzir um pouco a lacuna de educação formal entre os alunos dos dois países. Isto costumava ser seguido por um ano de internato (antes da graduação). Só após o internato o estudante recebia o título de médico. À semelhança do que acontece nos Estados Unidos, os médicos recém-formados, então, prosseguiam para a residência e, potencialmente, fellowship. É realmente triste perceber, no entanto, que o tão-importante quinto ano do ensino médico formal foi excluído do currículo médico brasileiro, e foi substituído por um segundo ano de internato. As consequências da retirada do quinto ano do ensino formal médico são difíceis de quantificar. Mas, dado que estes alunos ingressaram na faculdade de medicina sem qualquer instrução universitária anterior, é difícil acreditar que a retirada de um ano de instrução universitária tenha tido um efeito positivo. Talvez os melhores dados que corroborando esta suposição venham do relatório publicado recentemente pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=NoticiasC&id=3501), que constatou que 55% dos médicos recém-formados no estado mais poderoso do Brasil não conseguiram obter uma nota mínima de aprovação (ou seja, 60% de acertos em um teste de conhecimento médico geral) no exame obrigatório do estado.

Um dos resultados adicionais do curso de medicina ser um curso de pós-graduação nos Estados Unidos é que, em geral, os estudantes são mais maduros que os estudantes brasileiros quando ingressam no curso de medicina. Obviamente, isso se dá porque os estudantes americanos são, em média, quatro anos mais velhos que os estudantes brasileiros. Esta diferença é claramente mais visível nos anos iniciais da faculdade.

Quando me tornei professor na faculdade de medicina da Universidade do Colorado, comecei a me familiarizar com um ritual interessante que exemplifica o nível de maturidade dos estudantes de medicina americanos de primeiro ano. Ao final do primeiro ano do curso de medicina, os alunos tinham a oportunidade de participar de uma cerimônia social onde eles se encontravam com os familiares dos doadores dos corpos que haviam sido dissecados por eles como parte de seu treinamento em Anatomia Humana. Vendo a seriedade com a qual tais alunos abordavam esta cerimônia, só pude me envergonhar da lembrança do adolescente imaturo de 18 anos de idade que fui ao terminar o meu primeiro ano de faculdade de medicina, e da minha completa falta de respeito pela história pessoal dos cadáveres que tive o privilégio de dissecar...

Em 2013, fui para a Case Western Reserve University, Ohio. Atualmente, sou Professor Titular de Pediatria e Psiquiatria, também sou Diretor do Programa de Deficiência Intelectual no Instituto da Saúde da Criança. Nesta nova fase da minha carreira, estou cada vez mais envolvido com a área de Medicina Translacional. Meu foco continua sendo a busca de po-tenciais terapias para melhorar cognição e poten-cialmente retardar a progressão de processos neuro-degenerativos em pessoas com síndrome de Down. Nesta capacidade, meu trabalho consiste principalmente em desenhar e executar tanto estudos pré-clínicos em modelos animais como ensaios clínicos envolvendo participantes humanos.

No meu dia a dia tenho que lidar com as complexidades associadas com a tradução eficaz e ética de dados obtidos no laboratório em informações potencialmente e clinicamente relevantes. Frequentemente, me pego refletindo sobre, ou mesmo debatendo, questões e assuntos que há muito tempo haviam se mantido em estado latente em meu cérebro, assuntos como a história da medicina e questões como a educação médica no século 21 e o estado atual e o futuro da prática clínica. Tudo isto porque, quer eu goste ou não de admitir, Medicina Translacional é uma forma de medicina. E, ao longo da última década, pouco a pouco, me transformei num praticante deste tipo de medicina não-tradicional.

Medicina Translacional é uma disciplina no âmbito da investigação biomédica e da saúde pública que visa melhorar a saúde dos indivíduos e da comunidade3. O Institute of Medicine's Clinical Research Roundtable auxiliou na identificação de dois "obstáculos translacionais" principais para a implementação plena da medicina translacional, os quais foram rotulados de T1 e T2. O primeiro obstáculo (T1) foi descrito como a "transferência de novos achados sobre mecanismos de doenças obtidos no laboratório para o desenvolvimento de novos métodos diagnósticos, terapêuticos e de prevenção, e seu teste inicial em seres humanos." O segundo empecilho (T2) citado foi "a tradução de resultados de ensaios clínicos para a prática clínica diária e tomadas de decisão de saúde." Ao traduzir achados científicos em ferramentas diagnósticas, terapias, procedimentos, políticas e educação, a medicina translacional tem crescido rapidamente em sua habilidade de acelerar descobertas.

No campo da medicina translacional, descobri algo tanto significativo como gratificante, e também uma atividade que se encaixa quase que perfeitamente com a minha formação profissional. A Medicina Translacional fornece pesquisas clinicamente relevantes, as quais são necessárias para informar a prática da Medicina Baseada em Evidências. Infelizmente, porém, muitos não conseguem reconhecer que os métodos e objetivos da Medicina Translacional nem sempre coincidem com os da Medicina Baseada em Evidências.

Quando um pesquisador desenha um ensaio clínico, frequentemente, seu objetivo é testar se uma dada terapia altera positivamente o valor médio da medida primária de eficácia em um grupo de participantes tratados, em comparação com um grupo placebo ou tratamento padrão. Idealmente, o estudo é desenhado de tal forma que nem aqueles que administram a terapia, nem aqueles que recebem a terapia sabem que tratamento está sendo administrado (i.e., estudo duplo-cego). Além disso, é importante que a dimensão da amostra seja suficientemente grande para dar ao estudo poder estatístico suficiente que permita generalizações razoáveis dos resultados do estudo para a população inteira de indivíduos afetados pela desordem ou doença para a qual se espera encontrar um tratamento. Se o estudo for bem-sucedido, os pesquisadores relatarão o achado de que o tratamento afetou positiva e significantemente o valor médio da medida principal de eficácia, com uma ocorrência mínima de eventos adversos. Portanto, pode-se argumentar que investigadores clínicos objetivam "tratar a média" dos seus sujeitos no estudo. Em contraste, um médico em sua prática clínica está interessado em tratar "o paciente individual". Existem muitas outras diferenças importantes, que são determinadas pelo desenho do ensaio clínico. Por exemplo, para evitar possíveis fatores de confusão, investigadores clínicos estabelecem um conjunto de critérios a priori de inclusão e exclusão para participação em um dado ensaio clínico, isto produz como consequência um certo nível de "homogeneização da amostra". Na prática clínica diária, no entanto, um médico normalmente tem pouca escolha, a não ser tentar oferecer tratamento a todos os pacientes, independentemente de se eles encaixam perfeitamente nos limites do desenho do ensaio clínico que levou à aprovação de tal tratamento inicialmente. Embora muitas outras diferenças e limitações poderiam ser listadas aqui, isso iria além do escopo do texto presente. Basta dizer que a incapacidade de reconhecer as limitações inerentes mesmo aos ensaios clínicos mais bem concebidos, em termos da sua utilidade para a prática clínica diária, a qual necessariamente deve lidar com variações individuais, muitas vezes levam a distorções e excessos na aplicação dos princípios da Medicina Baseada em Evidências.

O descontentamento com o atual estado da prática médica, o qual foi denunciado por vários médicos em anos recentes, foi descrito de forma eloquente em um recente editorial publicado pelo cardiologista Dr. Sandeep Jauhar no New York Times em 10 de dezembro de 2014 (http://www.nytimes.com/2014/12/11/opinion/dont-homogenize-health-care.html?_r=0), com o título: "Não Homogeneíze os Cuidados Médicos." Ele começa seu texto dizendo que "Na medicina americana de hoje, "variação" tornou-se uma palavra suja. Variação no tratamento de uma condição médica está associada com o desperdício, a falta de evidências e até mesmo com tratamento irresponsável." Ele, então, segue com uma descrição de como as companhias de seguro e as sociedades de especialidades clínicas juntaram forças "para produzir uma quantidade estonteante de diretrizes de tratamento para tudo, da asma à diabetes, da incontinência urinária à gota." Ele admite que "alguns tipos de variações de tratamento são injustificadas, ou mesmo letais", e, inclusive, cita que "57.000 americanos morrem a cada ano porque o tratamento que recebem não é baseado nas melhores evidências disponíveis." Mas, em seguida, ele argumenta que "o esforço para homogeneizar os cuidados de saúde presume que nós sempre saibamos quais tratamentos são os melhores e quais devem ser aplicados de maneira uniforme." Contudo, como afirma ele, "as evidências para a maioria dos tratamentos na medicina continuam fracas. Na ausência de boas evidências apoiando um tratamento em relação a outro, a tentativa de eliminar variações no atendimento é irracional."

Uma das consequências não intencionais da confiança quase cega em evidências publicadas sobre o tipo de bom senso profissional adquirido através de muitos anos de prática clínica, que costumava ser o guia principal de médicos no passado é uma sensação geral de perda de autonomia na profissão da medicina. Anteriormente, a clínica costumava ser soberana, mas, atualmente, evidências publicadas, a partir de resultados de ensaios clínicos e meta-análises, são os novos soberanos! Quando é que vamos finalmente abolir a monarquia na medicina?

Muitos médicos veem o número crescente de diretrizes de tratamento, juntamente com a diminuição de compensação financeira por tempo gasto com o paciente, como fatores limitantes à liberdade profissional. Nos Estados Unidos, médicos estão frustrados com a profissão em números nunca vistos historicamente. Uma pesquisa de 2010 pelo The Physicians Foundation4, constatou que 40% dos médicos ativos pensaram em deixar o atendimento clínico em 1-3 anos, quer por aposentadoria ou para procurar outro emprego não-clínico na área da saúde ou um emprego ou negócio fora da área da saúde. No entanto, deve-se mencionar que, como ressaltado pelos autores da pesquisa, "historicamente, a insatisfação do médico não é um fator importante que contribua para que o médico abandone a profissão." No entanto, também tem acontecido um aumento bem documentado na taxa de esgotamento (burnout) médico, que é caracterizado principalmente pela exaustão emocional relacionada ao trabalho. Uma análise recente de correlatos de esgotamento médico em diferentes regiões e especialidades médicas, identificou a autonomia no local de trabalho como o correlato mais forte do engajamento no trabalho5. Portanto, profissionais em especialidades ambulatoriais em sistemas de cuidados gerenciados podem vivenciar estados de saúde negativos devido ao ambiente altamente regulado, o qual limita a sua autonomia, tomada de decisões e capacidade de desenvolver relações profissionais duradouras com seus pacientes6. O esgotamento médico tem sido associado a transtornos afetivos, alcoolismo e abuso de substâncias, todos os quais são diagnósticos psiquiátricos comuns entre médicos que cometem suicídio. Estima-se que, em média, 400 médicos nos Estados Unidos cometem suicídio a cada ano cada (o equivalente uma faculdade de medicina por ano; http://emedicine.medscape.com/article/806779).

Tenho a sorte de ser membro do corpo docente de dois departamentos clínicos na faculdade de medicina da Case Western Reserve University (CWRU), uma instituição que, em mais de 160 anos, ganhou uma reputação internacional de excelência no ensino e pesquisa médicos. Além disso, a Faculdade de Medicina da CWRU tem estado na vanguarda do desenvolvimento de currículos médicos a quase 70 anos. Três educadores da faculdade de medicina da CWRU (Drs. Joseph T. Wearn, T. Hale Ham e John L. Caughey, Jr.) foram ganhadores do Prêmio Abraham Flexner da Association of American Medical Colleges por contribuições excepcionais à educação médica, pelo desenvolvimento e implementação do currículo de 1952. Em adição, Dr. Frederick C. Robbins ganhou o prêmio Flexner em reconhecimento à sua liderança educacional. O artigo de 1962, publicado na New England Journal of Medicine, o qual descreve o então novo currículo da Faculdade de Medicina da CWRU7, deu origem ao que hoje é conhecido como a grande "revolução" curricular de 1952. Foi este currículo que originou a abordagem de sistemas de órgãos integrados, que permite uma aprendizagem interdisciplinar significativa de temas, ao invés de fatos médicos dispersos organizados em disciplinas clássicas8. Nas décadas subsequentes, esta abordagem foi adoptada pela maioria das grandes universidades do mundo, incluindo a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No entanto, como mencionado ante-riormente, a minha faculdade de origem, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), foi uma das mais lentas a adotar a grande "revolução" curricular de 1952. A UERJ também foi lenta em seu apoio integral à pesquisa biomédica básica. Consequentemente, e, infelizmente, esta faculdade vivenciou um declínio em seu nível de prestígio nacional a partir da última década do século 20, a qual se estendeu até a primeira década do século 21.

A faculdade de medicina da CWRU é atualmente parte de um grupo seleto de uma dúzia faculdades de medicina americanas envolvidas em um esforço nacional para planejar e implementar uma nova "revolução no currículo médico para o século 21". Este novo currículo supostamente fará uso pesado de ferramentas tecnológicas, bem como produzirá médicos mais colaborativos, que se sentirão à vontade em discussões de casos clínicos e estratégias terapêuticas tanto com colegas de sua subespecialidade, como com membros de diferentes especialidades médicas, pesquisadores de ciências básicas e membros de outras disciplinas completamente diferentes. Por exemplo, através de uma parceria pioneira com a Microsoft Corporation, a faculdade de medicina da CWRU está inovando no ensino da anatomia humana através do uso de HoloLens (http://case.edu/hololens/). Consequentemente, quando ele for inaugurado em 2019, o nosso novo prédio de educação médica será o centro de uma das primeiras faculdades de medicina sem cadáveres nos Estados Unidos.

Ao encerramento desta narrativa, minha ambivalência com relação a muitos novos desenvolvimentos no ensino e prática da medicina deve ter se tornado evidente ao leitor deste editorial. Minha perspectiva sobre o assunto é, obviamente, diferente do médico típico, já que não sou exposto à prática clínica diária. Além disso, já sou velho o bastante para ter começado a romantizar uma formação médica que foi verdadeiramente traumática quando se sucedeu. No entanto, como muitos outros da minha geração, vejo uma perda progressiva da dimensão humana na prática moderna de medicina como um problema a ser resolvido. Chavões como "medicina personalizada" (que, recentemente, está começando a ser substituído nos Estados Unidos por "medicina de precisão") podem ser promessas vazias se a pessoa humana, com todas suas idiossincrasias, dimensões e "variações inconvenientes" não for trazida de volta para o primeiro plano da nossa profissão.

Embora tenha detestado cada minuto que passei dissecando cadáveres durante minhas aulas de anatomia, também sinto que esta prática foi uma introdução necessária aos encontros frequentes vivenciados entre o médico e o desfecho da vida humana. Tal introdução me foi muito útil quando, anos mais tarde, "perdi" meu primeiro paciente durante um plantão no pronto socorro, quando era um estudante veterano de medicina. Contudo demorou 25 anos, quando eu já era docente de uma escola de medicina em uma terra distante, em meu novo país adotado, quando finalmente fui capaz de conciliar meus sentimentos, e entender como essa experiência poderia ser melhorada grandemente pela reincorporação da dimensão humana ao doador de corpo anônimo. Como cientista, obviamente, sou bastante hábil e confortável com o uso de tecnologia. No entanto, médicos supostamente devem servir a pacientes individuais, e tecnologia deve ser utilizada como um meio para melhorar, não diminuir, o contato humano entre o médico e o paciente. A educação médica no século 21 definitivamente necessita de uma revolução, a qual deverá se beneficiar enormemente das muitas lições adquiridas a partir da prática da medicina baseada em evidências. Mas essa revolução não será eficaz se os estudantes não forem intensamente orientados sobre métodos para desenvolverem empatia com outros seres humanos, de como ouvir suas histórias e de respeitar sua humanidade básica. Tenho otimismo de que, como foi feito muitas vezes antes, a faculdade de medicina da CWRU e outras instituições na vanguarda da nova revolução curricular vão encontrar maneiras inteligentes de reforçar a dimensão humana na formação médica. Porque, satisfação ao longo prazo com a prática médica vai depender não só da valorização da comunicação, trabalho em grupo, e senso de propósito comum, mas também do respeito ao indivíduo, que deve ser interpretado tanto como respeito profundo à humanidade do paciente como respeito à autonomia profissional do médico.

Um movimento interessante que está começando a emergir é a chamada Medicina Narrativa, a qual reconhece o valor das narrativas individuais na prática clínica, pesquisa e educação. Em sua essência, Medicina Narrativa visa não só a validar a experiência do paciente, mas também incentivar a criatividade e autorreflexão no médico. A Columbia University é uma das pioneiras neste campo, e criou, em 2009, um programa de mestrado em Medicina Narrativa (http://www.narrativemedicine.org). Medicina personalizada muitas vezes soa como uma promessa vazia, por causa das crescentes disparidades no acesso aos cuidados médicos de ponta nos Estados Unidos e em outros países. Da mesma forma, Medicina Narrativa também pode soar como um projeto difícil de implementar, dado o tempo cada vez mais curto que se espera que o médico típico passe com seu paciente em uma consulta. Apesar disso, movimentos como a Medicina Narrativa me dá alguma esperança de que a prática da medicina continuará a evoluir, mas sem que se olvide de suas raízes.

No final das contas, não devemos esquecer que: "A medicina é uma ciência de incerteza e uma arte de probabilidade." (William Osler9, tradução livre)

E também que: "O universo é feito de histórias, não de átomos." (Muriel Rukeyser10, tradução livre)

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10. Rukeyser, Muriel, Speed of darkness, Stanza IX. New York, Random House (1968).         [ Links ]

 

 

Corresponding author: Alberto C. S. Costa. E-mail: Alberto.Costa@case.edu

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