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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.26 no.1 São Paulo  2016

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.110985 

ORIGINAL RESEARCH

 

Saúde de Minorias Sexuais do Nordeste Brasileiro: Representações, Comportamentos e Obstáculos

 

 

Cíntia de Lima GarciaI, * ; Grayce Alencar AlbuquerqueII; Jefferson DrezettIII; Fernando AdamiIV

IMestre em Ciências da Saúde. Faculdade de Juazeiro do Norte (FJN) - Juazeiro do Norte (CE), Brasil
IIDoutora em Ciências da Saúde. Universidade Regional do Cariri (URCA) - Crato (CE), Brasil
IIIDoutor em Ciências da Saúde. Núcleo de Programas Especiais - Serviço de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital Pérola Byington - Centro de Referência da Saúde da Mulher. São Paulo (SP), Brasil
IVDoutor em Saúde Pública. Laboratório de Estudos e Escrita Científica do Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Medicina do ABC (FMABC) - Santo André (SP), Brasil

 

 


RESUMO

OBJETIVO: identificar Representações Sociais de saúde e principais desigualdades, obstáculos e desafios vivenciados pela população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais com relação ao acesso aos serviços de saúde.
MÉTODO: pesquisa qualitativa foi realizada com um grupo de minorias sexuais recrutados por meio da técnica de bola de neve. Os dados foram organizados segundo Bardin e analisados sob a perspectiva das Representações Sociais.
RESULTADOS: Participaram doze gays, nove travestis, seis lésbicas e três bissexuais. A maioria representou a saúde como ausência de doenças e indicou a vulnerabilidade do grupo em adquirir doenças sexualmente transmissíveis. A busca por serviços de saúde foi motivada por sintomas patológicos ou para rastreio de doenças sexualmente transmissíveis. As dificuldades encontradas estavam relacionadas com as deficiências do serviço de saúde face ao preconceito.
CONCLUSÕES: A população de estudo apresentou representações de saúde reducionistas, procuraram os serviços de saúde sob a perspectiva curativa e enfrentou desafios / obstáculos no acesso aos serviços de saúde.

Palavras-chave: saúde de minorias, homossexualidade, doenças sexualmente transmissíveis, desigualdades em saúde, preconceito.


 

 

INTRODUÇÃO

Minorias sexuais, incluindo os indivíduos que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) e aqueles que sentem atração por indivíduos do mesmo sexo ou comportamentos, são pouco estudados em amostras de base populacional no que diz respeito à saúde e a desigualdades de saúde1. Entretanto, pesquisas disponíveis indicam que a acessibilidade desses sujeitos à saúde é perpassada por uma série de iniquidades, violações e obstáculos, em virtude da hegemonia heterossexual2.

Dados brasileiros relatam nas unidades de saúde atendimentos discriminatórios, condutas inadequadas, constrangimentos, conotações preconceituosas e até mesmo ofensas verbais pelos provedores de saúde3,4. Essas experiências negativas geram insegurança nesses indivíduos e os levam a evitar os atendimentos em saúde5.

Em decorrência disso, complexos indicadores de saúde são encontrados no grupo, a exemplo de concentração de HIV/Aids entre transexuais e homens que mantêm relações sexuais com homens6; índices globais alarmantes de distúrbios mentais e tentativas de suicídio entre jovens e adultos LGBT7; maior propensão ao uso de alcool e substâncias psicoativas8; e mulheres lésbicas e bissexuais com mais chances para obesidade e doenças cardiovasculares9.

Tendo em vista esses dados, que refletem a restrição de acesso à saúde, bem como o tratamento dispensado pelos serviços a esse grupo minoritário, surgiram os seguintes questionamentos que nortearam a pesquisa: Como a população LGBT entende a saúde? Em que situações essa população procura os serviços de saúde? Quais as dificuldades/obstáculos encontram durante sua busca por assistência?

Objetivou-se, à luz dos depoimentos de indivíduos de um grupo LGBT, analisar as Representações Sociais (RS) acerca da saúde e as principais iniquidades, impasses e desafios vivenciados por esse grupo minoritário ao acessar os serviços de saúde. O conhecimento prévio dessas informações é importante para a formulação de estratégias e políticas que garantam a eficiência das ações de assistência e a promoção da saúde para o grupo LGBT.

 

METODO

Tratou-se de uma pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa, realizada com pessoas pertencentes ao grupo LGBT residentes no município Juazeiro do Norte (CE), interior do Nordeste brasileiro, entre o período de julho a setembro de 2013.

Procedimentos

Foi realizada uma parceria com o Grupo de Apoio a Livre Orientação Sexual do Cariri (GALOSC), instituição que milita na cidade em prol dos direitos humanos do grupo LGBT, que forneceu o contato dos indivíduos cadastrados, dessa forma, foi realizado contato por meio de ligações telefônicas, obedecendo à técnica de "cadeia de informantes" ou snowball10, segundo a qual cada participante da pesquisa indica contatos de outros possíveis sujeitos.

Os indivíduos foram convidados a participar voluntariamente da pesquisa. Após o aceite do participante e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), as entrevistas foram realizadas e gravadas em aparelho de mídia digital, as quais totalizaram aproximadamente 50 horas. Para a coleta de dados, realizou-se uma entrevista individual semiestruturada previamente agendada, contendo questões acerca das trajetórias social, familiar e cultural, além de perguntas norteadoras sobre o objeto em estudo.

A coleta de dados foi encerrada após atingir o "ponto de saturação teórico"11. Esse "ponto de saturação" é atingido quando os novos entrevistados começam a repetir os conteúdos já obtidos em entrevistas anteriores, sem acrescentar novas informações relevantes.

Análise dos dados

Após a transcrição na íntegra das falas dos participantes, empregou-se a Análise de Conteúdo (AC) proposta por Laurence Bardin. Na AC o texto é um meio de expressão do sujeito, onde o analista busca categorizar as unidades de texto (palavras ou frases) que se repetem, inferindo uma expressão que as representem12.

O marco teórico metodológico foi a Teoria das Representações Sociais (TRS), proposta por Moscovici, em 1961. Essa teoria, que é parte da Psicologia Social, valoriza os aspectos socioculturais e psicossociais que envolvem o comportamento humano13.

As RS são modos socialmente compartilhados de conhecer, ou representar e interagir com o mundo e a vida cotidiana, que está sempre presente numa opinião, posicionamento, manifestação ou postura de um individuo em sua vida cotidiana14.

Nesse estudo, a TRS aplicou-se para a investigação das percepções, das visões e dos comportamentos relativos à saúde, tendo em vista que estes emergem de construtos sociais de vida, de saberes e práticas dos sujeitos.

Aspectos éticos e legais

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética de Pesquisas em Seres Humanos da Faculdade de Medicina do ABC, localizada em Santo André (SP), sob protocolo 200935.

 

RESULTADOS

Foram entrevistados 30 indivíduos, com idades entre 18 e 51 anos, majoritariamente do sexo masculino (80%). Quanto à orientação sexual, 12 (40%) eram gays, nove (30%) travestis, seis (20%) lésbicas e três (10%) bissexuais.

Os sujeitos foram predominantemente pardos (40%), solteiros (73%) e provenientes de bairros periféricos da cidade (86,6%). Quanto às trajetórias escolar e profissional, a maioria possuía superior incompleto (36,6%), exercendo atividades remuneradas diversas (80%).

A exploração do material permitiu identificar três dimensões temáticas predominantes: a primeira retratou a saúde como a ausência de doenças; a segunda mostrou a saúde LGBT atrelada às doenças transmitidas pelo sexo; e, por último, a terceira evidenciou o acesso do grupo aos serviços de saúde marcadamente curativista e envolto de obstáculos. A partir disso, foi possível construir quatro categorias, expostas a seguir.

Saúde: "É viver bem, sem estar doente"

Vários sujeitos significaram saúde como a mera ausência de doenças, hábito sexual seguro:

Saúde para mim é viver bem, sem estar doente. (Gay, 27 anos)

Saúde é fazer sexo com camisinha. (Travesti, 38 anos)

Outros participantes, particularmente travestis, além de mencionarem a prática de sexo protegido como conceito de saúde, apresentaram ainda a beleza como quesito necessário para ter saúde, o que demonstra a importância da estética em suas vidas:

É a pessoa amanhecer o dia toda bonita... Fazer sexo com camisinha. É o que eu acho que seja saúde (Travesti, 26 anos)

Outros depoimentos indicam o acompanhamento a consultas médicas como fator necessário para a saúde, conforme relato a seguir:

É você tá bem com si, ter acompanhamento com médico. (Gay, 25 anos)

Pequena quantidade de depoentes citou a saúde mental, uma boa alimentação e a educação como requisitos necessários para gozar de uma boa saúde:

Ter saúde é você ser uma pessoa saudável física, mentalmente e espiritualmente, teu organismo funcionar de uma maneira boa, perfeita. (Gay, 39 anos)

Assim depende da tua alimentação, de como você se comporta, uma boa educação. (Lésbica, 22 anos)

Saúde LGBT: a visão do grupo

Ao se interrogar sobre possíveis especificidades da saúde LGBT, ficou evidente que as representações da maioria dos sujeitos tiveram foco no risco de DST/Aids, uma vez que depoentes apontaram a prática de comportamentos sexuais de risco entre parcela significativa da população homossexual, o que resulta em maiores chances para aquisição de DST:

A população homossexual tem mais risco de doenças sexualmente transmissíveis, porque ainda tem muita gente despreparada, por exemplo, fazem sexo sem camisinha, e isso acarreta muito em DST. (Gay, 35 anos)

Outros indicam condições de vida comuns ao grupo, tais como fatores que o expunham a situações consideradas de risco. Sujeitos, conforme os relatos que se seguem, consideraram a marginalização imposta ao grupo e a falta de oportunidades de ingresso no mercado de trabalho como causas principais para o uso de álcool e drogas, prostituição e, consequentemente, maior vulnerabilidade às DST:

O homossexual tem uma maior vulnerabilidade porque muitos vivem à margem, e aí muitos vão para as bebidas, para as drogas, vão para prostituição. (Gay, 27 anos)

O risco de o homossexual adoecer é maior. A falta de emprego, oportunidade, muitos travestis optam por fazer programas nas ruas, e como aconteceu comigo, pode acontecer com outros, ser forçada a manter relações sem camisinha e daí contrair uma doença. (Travesti, 22 anos)

A participante a seguir ainda mencionou a prostituição como uma alternativa para atingir a estética idealizada, no entanto deixou evidente os riscos presentes nesse universo, como a venda de sexo sem preservativo:

O pessoal diz: vai pra São Paulo que com três meses tu bota tua prótese. Num instante tu consegues lá... Às vezes um homem oferece 100, 200, 300 reais pra você transar sem camisinha com ele... (Travesti, 34 anos)

"Procuro pouco, porque adoeço pouco": a busca pelos serviços de saúde

Os sujeitos foram investigados quanto aos itinerários de busca pelos serviços de saúde, o que possibilitou verificar que a maioria viu serviços de saúde como locais voltados para diagnóstico e tratamento de doenças, particularmente para DST:

Procuro pouco, porque também adoeço pouco, quando vou é mais saúde bucal, infecção, gripe, essas coisas. (Gay, 39 anos)

Procuro de 6 em 6 meses, para fazer exames de HIV, sífilis, essas coisas. (Travesti, 51 anos)

Semelhantemente, houve afirmação da procura dos serviços de saúde após a exposição a alguma situação considerada de risco para aquisição de doenças transmitidas pelo sexo, conforme relato a seguir, no qual a busca por atendimento foi realizada após a prática de sexo desprotegido:

Busco. Todo mês tem que ir, às vezes de 3 em 3 meses, quando eu faço com homem sem preservativo aí a enfermeira diz que eu tenho que ir de 3 em 3 meses. Pra ver se tem alguma coisa. (Travesti, 31 anos)

Outros afirmaram procurar assistência regularmente, mas para tratar uma doença já instalada:

Sim porque tenho sorologia HIV positivo, aí faço tratamento. (Gay, 36 anos)

Verificaram-se, ainda, pessoas que afirmaram ir a unidades de saúde para adquirir preservativos, entretanto referiram insatisfação quanto ao número de códons entregues, tendo em vista a quantidade que os mesmos necessitavam:

Procuro pra pegar camisinha, mas quando vou eles me dão só cinco, quatro, como a pessoa faz programa, devia das uns 25 a 30. (Travesti, 26 anos)

"É superlotado e fica todo mundo olhando": obstáculos para o acesso à saúde

Quando interrogados acerca da existência de possíveis dificuldades enfrentadas pelo grupo diante o serviços de saúde, alguns depuseram sobre o excesso de pacientes nos serviços de saúde:

Acredito que a dificuldade é mais por superlotação mesmo. (Gay, 27 anos)

Outros discursos sugeriram a existência de um círculo vicioso: o indivíduo não procura os serviços de saúde, e o profissional de saúde está alheio às necessidades do grupo:

Como é que vou procurar o posto de saúde, se eu não for conscientizado, que existe e que funciona? (...) E como uma pessoa vai me atender se não tiver essa conscientização também? (Lésbica, 22 anos)

Além disso, alguns relatos sinalizaram dificuldades referentes à atuação profissional, ao despreparo destes e à existência de discriminação e preconceito institucional como pontos desafiadores para o acesso a saúde.

A dificuldade é exatamente ter profissionais preparados para atender o grupo, sabe? Então se você não suspende seus preconceitos para atender outra pessoa, pode ficar complicado, a maioria vai tratar diferenciados, com negligência (Bissexual, 28 anos)

Infelizmente o LGBT tem muita dificuldade de acesso à saúde, principalmente quando se dirigem ao posto de saúde, eles são discriminados, já vi fatos constrangedores. (Gay, 24 anos)

Já a participante a seguir não procurou assistência por vergonha dos olhares diferenciados que eram direcionados a ela dentro das unidades de saúde, o que revelou a extensão do preconceito social para o setor saúde:

Não... Eu tenho esse probleminha mesmo de ter vergonha de chegar lá, por que todo mundo fica olhando. (Travesti, 33 anos)

 

DISCUSSÃO

RS reducionistas, como a ausência de enfermidades enquanto significados para saúde foram comuns a vários depoentes. Os discursos sobre a saúde LGBT centralizaram as DST, externando a ideia de que a saúde do grupo resume-se a essas patologias. Logo, a busca por serviços de saúde foi predominantemente motivada por alguma doença, rastreio/diagnóstico ou para tratamento de DST. Identificou-se, ainda, que aqueles que acessaram a saúde sinalizam a existência de obstáculos, como a superlotação, uma queixa comum a outros grupos populacionais, e o preconceito social e institucional.

Esses resultados contrapõem o atual conceito de saúde, em que a interação de condicionantes e determinantes sociais, econômicos e ambientais estão envolvidos no processo saúde-adoecimento, sem que o aparato biomédico consiga intervir, uma vez que este atua sobre a centralidade de sintomas patológicos15.

Uma minoria dos sujeitos da pesquisa entendeu a saúde sob esse enfoque, pois apenas alguns discursos trouxeram elementos como equilíbrio mental, alimentação e educação, enquanto condições necessárias para ter saúde.

Estudos que abordam as RS de minorias sexuais acerca da saúde não estão disponíveis na literatura. No entanto, pesquisas que abordaram outros grupos populacionais indicaram a predominância do modelo biomédico na saúde brasileira, sendo a saúde ainda vista como a mera ausência de doenças16.

Corrobora essa evidência pesquisa realizada com usuários de um serviço público de saúde do Rio de Janeiro (RJ), na qual discursos trazem a garantia do acesso a consultas médicas nas RS de saúde. Essa associação é comum na sociedade atual, em que pessoas geralmente buscam os serviços de saúde mediante sintomas patológicos e, de fato, encontram na consulta médica a resolução de suas principais queixas17.

Verifica-se que as RS da maioria dos sujeitos acerca da saúde LGBT priorizaram o comportamento sexual e a vulnerabilidade para doenças relacionadas ao sexo. Indubitavelmente, o HIV/Aids é uma doença grave para alguns subgrupos das populações LGBT; todavia, números elevados de transtornos mentais, alguns tipos de cânceres, obesidade e doenças cardiovasculares também são relatados entre essas populações minoritárias18.

Relatos de um grupo caracterizado por comportamentos sexuais inseguros e por elevados índices de HIV/Aids foram comuns a vários sujeitos. Nesse âmbito mapeamento realizado em bares e locais de convivência homossexual de dois bairros da cidade de São Paulo (SP), evidenciou que 52% dos homens que fazem sexo com homens (HSH) entrevistados mantinham relações sexuais sem proteção com parceiros fixos, enquanto que 42% o faziam com parceiros causais19.

Em outros países, essa problemática persiste. Em pesquisa realizada em Nova Iorque com 150 indivíduos (95% gays, 3% homens bissexuais e 2% transgêneros) recém-diagnosticados com HIV evidenciou que 79% da amostra afirmou ter praticado sexo anal desprotegido20.

Esses dados justificam a presença do uso do preservativo nas RS de saúde dos sujeitos, uma vez que, ao reconhecerem hábitos sexuais inseguros entre pessoas do grupo, bem como a vulnerabilidade dos mesmos, as DST, acabam vendo a possibilidade de ter saúde no sexo seguro (por meio do uso do códon).

Entretanto, evidências científicas mostram que, apesar de terem conhecimentos sobre doenças de transmissão sexual, e formas de contágio e prevenção, altos índices de sexo sem preservativos são relatados em minorias sexuais, particularmente entre os gays e transgêneros21,22.

Ainda em face da vulnerabilidade do grupo as DST, discursos trouxeram o uso de álcool e de drogas como um agravante, uma vez que a marginalização vivenciada pelo grupo foi apontada como uma condição que intensifica as chances de comportamentos inseguros. De fato, a literatura registra taxas maiores de tabagismo, uso de álcool e substâncias ilícitas entre jovens e adultos LGBT quando comparados as seus pares heterossexuais18.

O preconceito detém influência nesse cenário18, pois a vivência da homossexualidade e da expressão de gênero em desacordo com o sexo biológico é marcada pela injúria e pela discriminação2. Nesse sentido, uma extensa revisão literária, postula que o preconceito internalizado está relacionado com a adoção de comportamentos sexuais inseguros pelo grupo.

O Autor reuniu dados consistentes, que suscitaram a existência dessa influência, segundo a qual, ironicamente, as práticas podem estar associadas à internalização do homossexual como disseminador da Aids23.

Além disso, as RS dos sujeitos apontam a falta de oportunidades para ingresso no mercado de trabalho como causa principal para a prostituição e, consequentemente, para o maior risco de exposição às DST. Corrobora tal ideia pesquisa realizada em uma grande metrópole do Nordeste do Brasil com 110 travestis, sendo a maioria (75,2%) com baixos níveis educacionais e envolvida no comércio do sexo (71,8%). Isso revela que a baixa qualificação educacional, aliada ao estigma e à discriminação, dificulta a entrada dessas pessoas no mercado de trabalho formal, tornando a prostituição, muitas vezes, a principal fonte de renda22.

É perceptível, em alguns discursos, que o comércio profissional do sexo configura-se, muitas vezes, como um caminho atrativo para atingir a feminilização idealizada, em que a troca de sexo, protegido ou não, por dinheiro, garante o acesso às próteses de silicone, que vão reconfigurar o corpo masculino.

Nesse sentido, a estética e o corpo são centrais nas preocupações dos travestis e transexuais. A luta contra a natureza biológica, por meio do uso de hormônios, de silicone, cirurgias e maquiagens, faz florescer as características femininas nos seus corpos24.

Esses dados estão intimamente relacionados ao surgimento da beleza nos significados de saúde de travestis, uma vez que as RS são influenciadas por vivências partilhadas no ambiente, que passam a ser tidas e perpetuadas como realidades individuais.

Isso evidencia a vulnerabilidade da saúde LGBT, o que pode decorrer do acesso restrito do grupo aos serviços de saúde e, particularmente, às ações de promoção da saúde. Essa restrição de acesso foi evidenciada em várias falas, uma vez que a maioria dos sujeitos viu os serviços de saúde sob um prisma curativista e afirmou buscá-los apenas na presença de sintomas patológicos ou para realizar rastreio e tratamento para DST.

Assim, percebe-se que a utilização dos serviços de saúde pelos sujeitos sofreu influência das RS do grupo sobre a saúde, sendo esta predominantemente vista como ausência de doenças, e das percepções acerca a saúde LGBT, uma vez que a maioria enfocou as DST (Figura 1).

Entretanto, a procura por assistência à saúde, mediada apenas por queixas patológicas ou pela busca de diagnóstico, coloca a saúde desses indivíduos em risco, o que implica em acesso restrito às ações de promoção da saúde.

O único motivo apontado por alguns sujeitos para a busca pelo serviço de saúde que diferiu dos dados acima foi a aquisição de preservativos, mas, ainda assim, os sujeitos direcionam críticas à quantidade de preservativos recebida, pois, segundo eles, era insuficiente, principalmente para aqueles que trabalham com sexo.

Esse achado foi comum em outras pesquisas, como a de Pimenta e Merchan-Hamann25, em que os depoentes citaram o acesso restrito ao preservativo nas Unidades Básicas de Saúde e, por esse motivo, acabavam comprando o dispositivo.

Esses dados revelaram uma falha importante dos serviços de saúde em relação à prevenção das DST, pois a indisponibilidade de preservativos é um dos motivos para o não uso deles durante as relações sexuais19.

Ainda acerca da procura por serviços de saúde, verificou-se entre as seis lésbicas entrevistadas, que não houve procura por exames preventivos para o câncer de colo de útero e mama, por exemplo. No Brasil e em outros países, pesquisas revelaram parcelas significativas de lésbicas que não se submeteram a exames rotineiros para rastreio do câncer de colo de útero3,26.

Pesquisa realizada com mulheres homossexuais e bissexuais do Brasil afirmou que as dificuldades relatadas pelos sujeitos frente à realização de exames preventivos foram o desconforto e o constrangimento próprio do exame ginecológico; a ausência de especificidade lésbica nos serviços de saúde; e o despreparo dos profissionais de saúde quanto às necessidades de saúde da mulher lésbica27.

Deficiências nos serviços de saúde também foram centrais nos depoimentos dos sujeitos desta investigação, posto que as narrativas dos mesmos direcionaram críticas ao sistema de saúde, apontando insatisfações que foram desde a precariedade e ineficiência dos programas, até o preconceito institucional. Tais questões são desafiadoras para a saúde LGBT, sobretudo porque afastam esse grupo dos serviços de saúde.

Alguns revelaram a existência de um círculo vicioso: de um lado, o usuário que não está consciente da importância dos serviços promotores da saúde e, por isso, não o procura; do outro, os profissionais que não detêm a qualificação e a conscientização necessárias acerca da saúde LGBT, para atrair a população para os espaços de saúde.

O despreparo dos profissionais da saúde frente ao grupo foi evidenciado por outros estudiosos da área2-4. Além disso, a discriminação e o preconceito social presentes nos serviços de saúde configuram-se como grandes obstáculos para o acesso da população LGBT à saúde28.

Logo, a deficiência no acolhimento dessa população nos serviços de saúde, somada à inadequação dos programas, às especificidades do grupo, e às abordagens profissionais incrementadas por percepções equivocadas e estereotipadas, resulta em dificuldade de acesso, desqualificação da assistência prestada29 e afastamento previsível desses grupos das ações de cuidados e promoção da saúde28.

Pode-se afirmar que, indubitavelmente, o preconceito e a homofobia são fatores vulnerabilizantes para o grupo LGBT18 e, ao pensar em melhorias para a saúde desse público, devem-se planejar medidas que reduzam os efeitos dessas iniquidades na vida das populações LGBT.

Limitações

A generalização desses dados é questionável. A investigação foi realizada com uma amostra pequena e intencional de participantes. Além disso, ao mesmo tempo em que em o método de recrutamento de sujeitos adotado viabilizou a realização da pesquisa, também deixou limitações, tendo em vista que é possível terem sido recrutados os sujeitos mais visíveis na sociedade, expostos a condições ambientais semelhantes, o que forma e embasa as representações e vivências dos mesmos.

Entretanto, a adoção da técnica snowball se justifica por se tratar de um grupo social complexo e difícil de ser contatado para realização de investigações científicas. Ademais, os dados ora apresentados contribuem para o preenchimento de lacunas acerca do assunto e, portanto, avança no conhecimento sobre a saúde do grupo LGBT, o que deve contribuir para ações que viabilizem a ampliação do acesso desse grupo a saúde.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise, sob a perspectiva das RS, revelou que a maioria dos sujeitos desse estudo apresentou visões reducionistas acerca da saúde, atribuindo sentidos como a ausência de doenças, sexo seguro e acesso a consultas médicas para conceituá-la.

Além disso, predominaram, nos discursos sobre a saúde LGBT, representações de um grupo exposto a maiores riscos para aquisição de DST, particularmente a Aids. Os motivos apontados para esse risco acrescido foram desde hábitos sexuais inseguros, até os comportamentos vulneráveis associados ao grupo, como o uso de drogas e a prostituição.

Quanto ao acesso à saúde, percebe-se a reprodução comportamental das representações dos sujeitos, uma vez que a maioria buscou os serviços de assistência imbuída por algum sintoma patológico, para realizar rastreio e tratamento para DST.

Ademais, aqueles que procuraram serviços ou provedores de saúde direcionam críticas importantes ao sistema e ao tratamento recebido, revelando a presença de obstáculos, quase sempre em função da heteronormatividade ainda hegemônica, inclusive na saúde.

Portanto, os dados ora apresentados revelaram uma população exposta a condições e comportamentos de risco, com visões limitadas sobre a saúde e ainda perpassadas de obstáculos e iniquidades sociais, o que levanta reflexões quanto à acessibilidade desse grupo à saúde, bem como acerca da atenção dispensada pelos serviços de saúde a esse grupo.

É necessária uma maior aproximação dos profissionais e serviços de saúde com a população LGBT, a fim de estabelecer uma atenção mais eficiente e equânime ao grupo. As unidades de saúde devem priorizar ações de atenção e promoção da saúde do grupo em questão, viabilizando a redução de danos à saúde LGBT.

 

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Manuscript submitted: Jan 15 2016
Accepted for publication Feb 05 2016.

 

 

* Corresponding author: Cintia de Lima Garcia. E-mail: cintiadelimagarcia@hotmail.com

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