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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.26 no.2 São Paulo  2016

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.119238 

ORIGINAL RESEARCH

 

Análise do ciclo da violência doméstica contra a mulher

 

 

Kerle Dayana Tavares de LucenaI; Layza de Souza Chaves DeiningerII; Hemílio Fernandes Campos CoelhoII; Alisson Cleiton Cunha MonteiroIII; Rodrigo Pinheiro de Toledo ViannaII; João Agnaldo do NascimentoII

IUniversidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (UNCISAL), Trapiche da Barra, Maceió AL, Campos III. Departamento de Saúde Pública (UNCISAL). Pós-graduação em Modelos de Decisão em Saúde (UFPB)
IIUniversidade Federal da Paraíba (UFPB), Castelo Branco III, João Pessoa PB, Campos III. Departamento de estatística (UFPB). Pós-graduação em Modelos de Decisão em Saúde (UFPB)
IIIFaculdade de Ciências Médicas da Paraíba. João Pessoa(PB) Brasil

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: A VCM tem-se produzido sob a organização hierárquica do domínio masculino nas relações sociais entre os sexos. É um tipo de relação social historicamente delimitada, culturalmente legitimada e cultivada, na qual a mulher está exposta a agressões objetivas e subjetivas, tanto no espaço público como no privado. As consequências da violência sofrida pela mulher materializam-se em agravos biológicos, psicológicos e sociais que dificultam sua experiência de viver a igualdade humana e social plenamente. A persistência e a multiplicidade das formas de expressão da violência contra a mulher, ao longo da história, indicam a importância do tema e a necessidade de se investigar como essa prática interfere no processo de viver, adoecer e morrer de quem as sofre
OBJETIVO: analisar o ciclo da violência doméstica contra a mulher
MÉTODO: Trata-se de um Inquérito de base populacional, transversal, exploratório, descritivo de abordagem quantitativa. O estudo foi desenvolvido no município de João Pessoa-PB no período de agosto de 2013 a dezembro de 2015. A população foi composta por 427 mulheres acima de 18 anos residentes no município cenário do estudo. Para a coleta de dados, foram utilizados dois instrumentos: WHO VAW STUDY e WHOQOL BREF validado para avaliação da qualidade de vida. Realizou-se uma análise descritiva, a partir de frequências absolutas e relativas para as variáveis: sociodemográficas; VDCM e QV, além da média para as variáveis contínuas. Sob CAAE de n° 20418813.0.0000.5183. : em relação ao índice de qualidade de vida geral das mulheres deste estudo corresponde a 61,59 numa escala de 0 a 100. Quanto aos escores de cada domínio, verifica-se que o domínio das relações sociais foi o que obteve melhor média dentre os demais domínios (69,84), e o domínio meio ambiente com a menor média (51,03
CONCLUSÕES: a violência doméstica contra a mulher vem afetar direta e negativamente a qualidade de vida das mulheres vitimizadas em diversos aspectos, pois interfere na saúde física e psicológica da mulher, na sociedade e suas relações sociais, trazendo consequências, também, para o sistema de saúde

Palavras-chave: saúde da mulher, identidade de gênero, violência doméstica.


 

 

INTRODUÇÃO

O termo violência doméstica contra a mulher (VDCM) foi adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde a Assembleia Geral realizada em 1993. Embora muitos autores utilizem termos como "violência do parceiro íntimo" e "violência familiar contra a mulher", para adoção do termo "violência doméstica contra a mulher" levou-se em consideração os inúmeros estudos realizados, sendo este o escolhido por tratar-se de uma acepção mais comum entre os trabalhos procedentes dos Estados Unidos. A sua definição mais ampla ficou desde então estabelecida e a violência contra a mulher passou a ser definida como: qualquer ato de violência baseada no gênero que produza ou possa produzir danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais na mulher, incluídas ameaças de tais atos, a coerção ou privação arbitrária da liberdade, tanto na vida pública quanto na privada.

A Violência Contra a Mulher (VCM) pode ser explicada como um fenômeno que se constitui a partir da naturalização da desigualdade entre os sexos. Esta se assenta nas categorias hierárquicas, historicamente construídas, como um dos mecanismos ideológicos capaz de legitimar o status quo, entre os quais se encontram as classificações sociais e nesta a classificação sexual.1

A VCM tem-se produzido sob a organização hierárquica do domínio masculino nas relações sociais entre os sexos. É um tipo de relação social historicamente delimitada, culturalmente legitimada e cultivada, na qual a mulher está exposta a agressões objetivas e subjetivas, tanto no espaço público como no privado. As consequências da violência sofrida pela mulher materializam-se em agravos biológicos, psicológicos e sociais que dificultam sua experiência de viver a igualdade humana e social plenamente. A persistência e a multiplicidade das formas de expressão da violência contra a mulher, ao longo da história, indicam a importância do tema e a necessidade de se investigar como essa prática interfere no processo de viver, adoecer e morrer de quem as sofre.

Violência de gênero é o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se apresenta como desvio. Ainda que não haja nenhuma tentativa, por parte das vítimas potenciais, de trilhar caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência. Com efeito, a ideologia de gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas potenciais aos ditames do patriarca, tendo este necessidade de fazer uso da violência.2

A violência doméstica é definida por Schraiber e D'Oliveira3, como atos cometidos por familiares, companheiros ou ex-companheiros que vivam ou não no mesmo ambiente, podendo ser cometida dentro deste ou não. Ela ocorre, predominantemente, no interior do domicílio, porém, é comum que o agressor persiga sua vítima no ambiente de trabalho, não descaracterizando, com isso, a violência doméstica.

Neste estudo, utilizou-se o termo violência contra mulher no âmbito doméstico, distinguindo os seguintes elementos: a) o uso da força física ou verbal que prejudica ou ameaça a vida e o corpo da mulher na integridade física, emocional ou sexual; b) a coerção como forma de perpetuar a subordinação feminina e c) que esse agravo seja produzido pelo parceiro com quem estabelece ou estabeleceu uma relação íntima. Com base nas definições apresentadas, tomou-se violência doméstica contra a mulher na perspectiva de gênero, desta forma foram utilizadas ambas como sinônimas, bem como violência conjugal, pois tais denominações possibilitam-nos abordar de maneira mais ampla, formas tradicionais de violência, incluindo a violação dos direitos humanos da mulher.

Os serviços de saúde fazem parte da rota percorrida por grande parte de mulheres vítimas da violência doméstica. Contudo, nesses serviços, muitas vezes não se valorizam as agressões, a violência em si, mas a lesão ou o dano causado por ela. Isto porque a lesão constitui o problema específico da área da saúde, sobretudo no enfoque hegemônico do modelo de assistência cartesiano e exclusivamente biologicista.4

Desse modo, mesmo uma violência reconhecida não é devidamente valorizada nos serviços de saúde o que favorece sua invisibilidade como fenômeno social interferindo no processo saúde-doença. Nesse contexto, a violência doméstica praticada contra as mulheres constitui um problema de saúde pública e coletiva e, como tal, requer a articulação dos serviços de saúde com outras instituições, como as Secretarias de Segurança e Delegacias da Mulher. Requer também uma reformulação na área da educação, na formação dos Recursos Humanos, e, a adoção de estratégias para o enfrentamento do problema em foco, que com este estudo esperamos contribuir para a sua visibilidade e compreensão.5

Em relação às consequências da violência na vida e saúde das mulheres, Guedes et al6, Lucena et al5, confirmaram em seus estudos, que em João Pessoa, a violência impacta significativamente a saúde física, mental e social das mulheres por ela vitimizadas. Problemas como hipertensão arterial, doenças cardíacas, transtornos da ansiedade, distúrbios do sono e alimentação, depressão, stress, acidente vascular encefálico, paralisia facial, e comprometimentos da sexualidade foram referidos pelas participantes dos estudos como consequências diretas da violência sobre a saúde e a vida social das mulheres participantes do estudo.

Por sua complexidade, a violência doméstica ainda representa um desafio para o setor saúde. Entre as dificuldades para superar tal desafio encontram-se os obstáculos para o seu diagnóstico, tais como os fatores de ordem cultural, a falta de orientação dos usuários e dos profissionais de saúde, fazendo parecer que ambos os grupos de sujeitos envolvidos têm receio em lidar com os desdobramentos do fenômeno.7

Nessa perspectiva, a OMS criou um instrumento denominado "World Organization Violence Against Women" (WHO VAW STUDY), que objetiva estimar a violência doméstica contra a mulher. Nesse instrumento, quanto maior o escore, maior a diversidade de atos de violência sofridos por elas. Nesse estudo, utilizou-se o instrumento validado para estimar sua ocorrência, seus atores determinantes e a associação com a qualidade de vida em conjunto com o World Health Organization Quality of Life-abreviado (WHOQOL-BREF).

Adota-se neste estudo o conceito de qualidade de vida enquanto direito de cidadania, e o seu conceito é o fundamento de um conjunto de indicadores. É proposto um conceito de QV, no qual a questão ambiental se agregue aos demais itens mensurados pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Nesta concepção a qualidade de vida é definida como a soma das condições econômicas, ambientais, científico-culturais e políticas coletivamente construídas e postas à disposição dos indivíduos para que estes possam realizar suas potencialidades.8

Diante do exposto, por todos os problemas ocasionados pela violência contra mulher, esse estudo objetivou analisar o ciclo da violência doméstica contra a mulher.

 

MÉTODO

Trata-se de um Inquérito de base populacional, transversal, exploratório, descritivo de abordagem quantitativa. A unidade de análise foram os domicílios no município de João Pessoa-PB. O estudo foi desenvolvido no período de agosto de 2013 a dezembro de 2015.

A população foi composta por 424 mulheres acima de 18 anos residentes no município cenário do estudo. Utilizaram-se como critérios de inclusão desse estudo os domicílios da cidade de João Pessoa, que residam mulheres maiores de 18 anos. Os critérios de exclusão foram: domicílios com mulheres surdas-mudas; domicílios sem conformação familiar e os domicílios onde a mulher não possua capacidade cognitiva para responder o questionário.

O plano amostral utilizado para produção de dados desta tese foi a partir da amostragem estratificada por bairros da cidade de João Pessoa. A população-alvo foi definida como sendo todos os domicílios da cidade, sendo a lista destes domicílios fornecida pela Prefeitura de João Pessoa considerando o ano de 2014 como referência. A seleção da amostra então foi realizada segundo método de alocação ótima ao número de domicílios por bairro, e considerando custo de seleção fixo para todos os elementos da população-alvo. Quadras em cada bairro foram percorridas pela equipe de pesquisadoras, e foram incluídos na amostra, todos os domicílios em que residiam mulheres maiores de 18 anos, sendo estas mulheres as selecionadas para participar da pesquisa.

A coleta de dados foi realizada por entrevistadoras que foram submetidas a um treinamento prévio e atenderam aos critérios de: ser estudantes universitárias da área da saúde e ter disponibilidade de no mínimo oito horas semanais para a coleta. As visitas foram realizadas nos domicílios selecionados para a pesquisa onde após esclarecimento dos objetivos da pesquisa e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido a responsável pelo domicílio respondeu as questões da pesquisa. Os dados foram coletados por meio de um roteiro semiestruturado.

Para a coleta de dados, foram utilizados dois instrumentos: 1)Instrumento WHO VAW STUDY validado para estimar a violência de gênero contra a mulher 2) Instrumento WHOQOL BREF validado para avaliação da qualidade de vida.

No roteiro semiestruturado foram coletadas informações acerca das características familiares e de indicadores socioeconômicos, tais como: número de moradores, sexo, idade, estado civil, nível de escolaridade dos membros e condições econômicas (fonte de renda), número de trabalhadores em cada família, renda familiar, renda per capta, participação em programa de complementação de renda e apoio social; local de residência; condições de moradia; acesso a serviços públicos de saneamento básico; acessibilidade e condições de assistência à saúde, educação, segurança e transporte; condições de saúde, rede social e apoio social.

Para avaliar a QV utilizou-se do instrumento denominado WHOQOL-BREF. Este é composto por 26 questões, sendo duas sobre auto-avaliação da QV e 24 questões representando cada uma das facetas do WHOQOL-100. Para a composição das questões do WHOQOL-bref foi selecionada a questão de cada faceta que apresentava a maior correlação com o escore médio de todas as facetas. Assim, o WHOQOL-bref é composto por quatro domínios: Físico, Psicológico, Relações Sociais e Meio Ambiente.

Atendendo a resolução 466/12 de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, após explicação dos objetivos, as mulheres que aceitaram participar da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Ressalta-se ainda, que o projeto de pesquisa foi encaminhado ao Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital Universitário Lauro Wanderley e obteve sua aprovação sob CAAE de n° 20418813.0.0000.5183 em agosto de 2013.

No início os dados foram tabulados em uma planilha eletrônica (Microsoft Office Excel 2008), em seguida pelo programa SPSS for Windows versão 18.0 (Statistical Pachage for the Social Science) e, posteriormente, transferidos para outro pacote estatístico (software R, versão 2.14.1).

Realizou-se uma análise descritiva, a partir de frequências absolutas e relativas para as variáveis: sociodemográficas; VDCM e QV, além da média para as variáveis contínuas. Estimou-se também a prevalência da VDCM e a apresentação do esquema do ciclo da violência de gênero.

 

RESULTADOS

A média da idade das mulheres entrevistadas foi de 35 anos.

Dados sociodemográficos das mulheres

Ao observar a Tabela 01 que, em relação ao estado civil, 55% das mulheres vivem com o companheiro. Quanto à variável escolaridade, observa-se que 25% das mulheres extraídas da amostra não concluíram o ensino fundamental e 22% possuíam ensino superior completo. Na presente pesquisa, os dados de violência em mulheres com nível superior foi praticamente igual às que possuíam apenas o fundamental incompleto, revelando a necessidade de emancipação da opressão de gênero.

 

 

No que concerne à variável raça/cor, 48% das mulheres se autodenominaram brancas. Como esta variável é autorreferida, pode-se ter o viés do dado mascarado, considerando que muitas mulheres podem pertencer à outra etnia. No tocante às variáveis: filhos e vínculo empregatício, 80% das mulheres possuem filhos e 70% exercem atividade remunerada.

Estimativa da prevalência da VDCM e avaliação da QV

Como o levantamento foi realizado considerando o total de domicílios da cidade para o cálculo da amostra e não o total de mulheres, logo, o indicador encontrado também foi relacionado ao número de domicílios. Apesar da cidade de João Pessoa possuir 64 bairros, alguns deles foram agregados, tais como: Bancários, Mumbaba, dentre outros, devido a região geográfica ser grande para o tamanho de amostra e assim obterem-se mais informações, resultando em 55 bairros. Depois de calculado a prevalência de cada bairro, realizou-se o cálculo da prevalência global estimada para o município de João Pessoa no tocante a violência doméstica contra a mulher em 2015 foi de 54,40% ao nível de significância de 95%.

Observa-se na Tabela 02, que as mulheres da amostra obtiveram o escore maior no domínio das relações sociais e o menor no domínio do meio ambiente.

Pode-se afirmar que, de acordo com os resultados apresentados na Tabela 2, IQV GERAL das mulheres deste estudo corresponde a 61,59 numa escala de 0 a 100. Quanto aos escores de cada domínio, verifica-se que o domínio das relações sociais foi o que obteve melhor média dentre os demais domínios (69,84), e o domínio meio ambiente com a menor média (51,03).

A figura 1 apresenta o esquema do ciclo da violência doméstica contra mulher. De acordo com os depoimentos das mulheres que sofreram VDCM, a relação conjugal é permeada inicialmente por insultos, humilhações, intimidação, provocações mútuas, gerando conflitos e tensão. Em seguida, há uma necessidade de confirmação da depreciação e inferiorização da mulher adicionados de ameaças de violência até a confirmação do episódio agudo do fenômeno. A mulher é colocada enquanto objeto e figura passiva, servindo apenas para reprodução biológica. Já o homem é tido como sujeito que utiliza-se da força física e da dominação. Apropria-se da mulher objeto, nega a vivência da VDCM, culpabilizando-a pelo ato sofrido, propõe que irá mudar e que a relação será transformada a partir de promessas mútuas de mudanças, porém o ciclo se renova, após a considerada "lua de mel", pois há falta de cumprimento dos pactos e dos papéis estereotipados, tornando o fenômeno da VDCM recorrente.

 

 

DISCUSSÃO

Os dados apresentados por esse estudo acerca da prevalência da violência doméstica contra a mulher estimada para João Pessoa (54%) em 2015 corroboram com os dados divulgados pela OMS e pela Organização Pan-americana de Saúde (OPAS). Eles evidenciaram não existir nenhum país ou cidade imune à violência. Das violências interpessoais, a praticada pelo homem contra a mulher é considerada, como um dos maiores problemas mundial na atualidade, com valores entre 10 e 69% de incidência, ocorrendo, cotidianamente, no espaço privado e doméstico.9

De acordo Adeodato10 que traçou o perfil de mulheres que sofreram VDCM, 64% viviam com o parceiro e na pesquisa de Garcia et al11 72,2%. Quanto à variável escolaridade, estudos realizados por Lima12 evidenciaram níveis mais baixos de escolaridade (34%). Outra pesquisa apontou que 52,6% da amostra não concluíram o ensino fundamental.11,13

No estudo realizado por Silva14, a variável escolaridade influenciou na ocorrência do evento, afirmando que quanto maior o poder aquisitivo das mulheres, menor a tolerância com o agressor. Já na pesquisa de Lima12 esta variável não teve significância estatística para a ocorrência de VDCM. Para Adeodato10, os dados de VDCM que envolvem mulheres de maior poder aquisitivo e com melhor escolaridade podem estar subnotificados pela tendência de ocultar o fenômeno nesse estrato social. Porém, na presente pesquisa, os dados de violência em mulheres com nível superior foi praticamente igual às que possuíam apenas o fundamental incompleto, revelando a necessidade de emancipação da opressão de gênero.

No que concerne à variável raça/cor, por esta variável ser autorreferida, pode-se ter o viés do dado mascarado, considerando que muitas mulheres podem pertencer à outra etnia. Na pesquisa realizada por Lima12, também apontou mulheres brancas como maioria nos dados analisados.

No tocante às variáveis: filhos e vínculo empregatício, para Alves15 e Silva14, os filhos podem impedir as mulheres de romper com o ciclo da violência e seu agressor. As mulheres independentes acreditam que o agressor pode mudar e a relação conjugal melhorar, segundo estudo feito por Garcia et al11. A esperança as deixa em uma condição de subordinadas, apesar de não dependerem financeiramente do agressor, dificultando o rompimento do silêncio das mulheres vitimizadas.

O Índice de Qualidade de Vida (IQV) GERAL das mulheres deste estudo corresponde a 61,59 numa escala de 0 a 100. No estudo realizado por Lima12, o escore das mulheres que sofreram violência de gênero foi 42, 14. Outros estudos que compararam de maneira geral, a QV de homens e mulheres, revelaram que, a QV das mulheres é inferior a dos homens.15

Monitorar a qualidade de vida das mulheres que sofreram violência doméstica significa reduzir as iniquidades desse segmento tratado de forma desigual socialmente. Para tanto, é necessário implementar políticas públicas com foco na saúde da mulher por meio de uma articulação intersetorial, além de aperfeiçoar os mecanismos que possam coibir a VDCM, mobilizando diversos atores sociais no tocante ao compartilhamento das decisões com instrumentos que possam garantir direitos constitucionais aos mulheres vitimizadas.

O domínio das relações sociais foi o que obteve melhor média dentre os demais domínios (69,84), corroborando com as pesquisas realizadas por Lima12, cujo escore desse domínio foi de 51,9 e por Castro16 que apresentou uma média superior (77,9). Este fato pode estar relacionado ao apoio social ofertado às mulheres que sofrem VCDM e o suporte familiar.

O suporte de uma rede social e familiar é reconhecido pelas mulheres como fundamental no processo de superação da violência perpetrada pelo parceiro íntimo. Estudo aponta que 82,2% das mulheres agredidas, amparavam-se na atenção familiar e de amigos quando sofriam violência.12

O domínio meio ambiente com a menor média (51,03), corroborando com diversos estudos que avaliaram a qualidade de vida das mulheres de maneira geral (38,3) e (55,2).12,17 Nesse domínio, as mulheres responderam a questões sobre ambiente físico, recursos financeiros, moradia, entre outros, podendo estar relacionado à dependência financeira da maioria das mulheres, ocasionando relações de submissão.

Pode-se constatar que a violência é uma realidade presente no cotidiano das mulheres que a sofrem e tal situação afeta a saúde e a qualidade de vida delas. Este estudo revelou uma alta prevalência de VDCM (54%). Na pesquisa pioneira de Heise et al18, que reuniu dados de 35 estudos em 24 países, e no estudo feito pela Schraiber et al 19 foi comprovada estatisticamente a alta incidência de violência de homens contra mulheres, sendo a forma mais endêmica a violência sexual e física de companheiros íntimos contra suas mulheres, o que reitera o fenômeno como um grave problema de saúde pública.

Palazzo et al20 afirmam que 40% a 70% dos homicídios ocorridos no mundo, contra o sexo feminino, são acometidos por parceiros íntimos; sendo que, em São Paulo, essa prevalência foi de 27% e, em Pernambuco, de 34%. Segundo o mesmo estudo, no que se refere à violência física, destaca-se que, na faixa etária de 20 a 29 anos, no sexo feminino, houve prevalência superior de vitimização (40,9%) em relação ao sexo masculino (21,1%).

A VDCM é previsível e, portanto, deve ser enfrentada não apenas no campo da Filosofia e do Direito, mas também na área da saúde. Nessa perspectiva, defende-se a relevância de se intervir nos termos da saúde, com ações intersetoriais, seja na recuperação das vítimas, seja, sobretudo, prevenindo novos danos.

Salienta-se que a VDCM está mais transparente e menos aceitável, isso se deve provavelmente aos movimentos ativistas de enfrentamento da violência contra a mulher. Esse fato pode explicar os valores mais altos das taxas de violência doméstica da população de mulheres brasileiras. A menor aceitabilidade da violência perpetrada pelo parceiro íntimo pode desencadear uma maior sensibilidade e maior visibilidade da violência doméstica. Diferenças culturais sobre a facilidade de expressão também podem ser fatores de desvendamento da violência contra as mulheres.3

Embora haja avanço no enfrentamento do fenômeno, as mulheres ainda vivenciam, em suas relações sociais do cotidiano, situações sociais e simbólicas veladas, que envolvem questões de gênero. Inegavelmente, essas situações acometem a saúde psicológica, física, bem como a qualidade de vida das mulheres. Todavia, as formas como elas dão significado à violência doméstica não são ainda totalmente conhecidas e compreendidas de maneira sistematizada. Isso se reflete no fato de que a dificuldade atual para se lidar com o problema da violência e atender as vítimas é enorme, tanto por parte dos profissionais da rede básica de saúde que assinalam como barreiras aspectos relacionados às vítimas, a falta de conhecimento e de habilidades próprias para abordar situações de violência, quanto pela estrutura do serviço de saúde.

Ao se considerar que homens e mulheres são responsáveis pela reprodução social dessa dominação androcêntrica que constitui uma ordem social de dominação injusta e violenta, vê- se que tal condição se perpetua, apesar de algumas conquistas e mudanças obtidas pelo feminismo. Essa realidade acompanha a humanidade em seu percurso histórico e só será passível de transformação por meio de intervenções políticas que possam incidir em várias instâncias como educação, igreja, família e estado que atuam na reprodução social da ordem dominante.21

O ciclo da violência inicia-se de uma forma lenta e silenciosa, que progride em intensidade e consequências. O agressor muitas vezes não lança mão incialmente de agressões físicas, mas coíbe a liberdade individual da vítima e fomenta humilhações e constrangimento. Dessa maneira, antes de agredi-la fisicamente, a importuna com o intuito de baixar a autoestima da mulher vitimizada para que, depois, ela tolere as agressões físicas. Portanto, a violência psicológica em geral precede à física; no entanto, a primeira deve ser identificada independente de sua relação com a segunda. A mulher vítima da agressão tende a aceitar, justificar as atitudes do agressor e protelar a exposição de suas angústias até a situação se tornar insustentável.5

A qualidade de vida é um conceito elaborado pela sociedade a partir de suas experiências, dos conhecimentos que têm significados e valores que conferem a suas histórias em um determinado tempo e espaço nos quais vivem. Portanto, a qualidade de vida é uma definição construída socialmente e carrega em si uma identidade cultural específica que, por sua vez, reflete um padrão considerado por determinada sociedade como propiciador de satisfação e bem-estar.

Meneghel et al22 alertam para o fato de que os episódios de VDCM não devem ser encarados no nível institucional como situações individuais e passíveis meramente de abordagens com tratamentos específicos centrados no dano físico. Pelo contrário, os autores defendem que a questão necessita ser considerada como violação ética dos direitos humanos das mulheres; Porém precisa-se compreender o fato enquanto fenômeno social cuja questão central se encontra nas desigualdades de gênero. Logo, o foco deve ser atuar nas iniquidades de gênero e não somente ofertar atendimentos que abrandam consequências e efeitos de âmbito individual e comportamental.

Considera-se que a desigualdade de gênero é questão central do fenômeno da violência e, assim, pode-se ponderar que a opressão, enquanto fator que envolve desigualdade de poder e submissão, também constitui um núcleo fundamental para se compreender a violência como fenômeno social advindo das iniquidades de gênero. Dessa maneira, a opressão representa uma forma de exercer o poder do valor patriarcal dominante de masculinidade e, ao mesmo tempo, também faz perpetuar as iniquidades de poder expressas nas relações desiguais de gênero.

O estudo aponta que as mulheres da amostra possuem baixa qualidade de vida (61,59). O IQV de quem sofreu violência (59,61) é menor do que o das mulheres que não sofreram (66,79).

A repetição da VCDM com suas consequências impactantes deixa marcas inefáveis nas mulheres, minando sua autonomia e influenciando diretamente na qualidade de vida, conforme dados deste estudo.

Infelizmente, as pesquisas que relacionam as duas temáticas abordadas ainda é escasso e pouco se conhecia acerca do impacto da VDCM na QV das mulheres vitimizadas. Os dados obtidos através dessa pesquisa, bem como os modelos de tomada de decisão utilizados, poderão subsidiar os gestores no processo de tomada de decisão na área da saúde da mulher no tocante a identificação da violência de gênero.

Em suma, a violência doméstica contra a mulher, vem afetar direta e negativamente a qualidade de vida das mulheres vitimizadas em diversos aspectos, pois interfere na saúde física e psicológica da mulher, na sociedade e suas relações sociais, trazendo consequências, também, para o sistema de saúde. A VDCM, sutil ou declarada, produz marcas no corpo e na alma de quem as vivencia ao impactar de forma negativa em vários aspectos da vida da mulher vitimada, principalmente na saúde. Condições que afetam a saúde das pessoas consequentemente implicarão repercussões negativas e prejuízos para a qualidade de vida.

Considerando a complexidade da VDCM, fenômeno essencialmente cultural, somente passível de mudança significativa gradativamente ao longo das gerações, ressalta-se que qualquer mudança de comportamento envolve reflexão, questionamento em várias instâncias sociais como a família, a escola, o trabalho, a igreja, dentre outras. Essas mudanças na forma de pensar e agir que podem ocorrer ao longo das gerações com o passar do tempo histórico, podem, sim, ocasionar a formação de uma nova ordem social.

O Estado enquanto instância definidora das políticas públicas, entre as quais as referentes à saúde da coletividade - deve articular as práticas profissionais em saúde à superestrutura social e a qualidade de vida. Assim, no âmbito da assistência à saúde, é necessário qualificar os profissionais na perspectiva de gênero, isto requer responsabilização institucional e intersetorial dos serviços, bem como suporte de conhecimento teórico aos profissionais de saúde envolvidos na assistência à saúde das vítimas de violência.

 

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Manuscript submitted: Feb 23 2016
Accepted for publication Mar 19 2016

 

 

Correspondig author: Kerle Dayana Tavares de Lucena. Email: kerledayana@gmail

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