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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.26 no.2 São Paulo  2016

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.119262 

ORIGINAL RESEARCH

 

Triagem do Desenvolvimento Neuropsicomotor de Crianças das Unidades de Educação Infantil do Município de Belém, Pará, Brasil

 

 

Talitha Buenaño França GuerreiroI; Lília Iêda Chaves CavalcanteI; Elson Ferreira CostaI; Mário Diego Rocha ValenteII

ILaboratório de Ecologia do desenvolvimento, Universidade Federal do Pará, Belém, PA - Brasil
IIDepartamento de Trânsito do Estado do Pará

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: O desenvolvimento infantil é considerado uma sequência de mudanças no comportamento e processos subjacentes, sendo influenciado por fatores biológicos e ambientais. A triagem e o acompanhamento do desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM) têm se revelado como procedimentos eficientes na identificação precoce das diferentes afecções na infância.
OBJETIVO: Este estudo teve como objetivo relacionar o estado do desenvolvimento neuropsicomotor de crianças, na faixa etária de 36 a 48 meses, que frequentavam Unidades de Educação Infantil (UEI) do município de Belém, com determinadas características pessoais e variáveis do seu ambiente ecológico.
MÉTODO: Foram aplicados os seguintes instrumentos: Questionário das Características Biopsicossociais da Criança, o Instrumento de medição do Nível de Pobreza Urbana, e por fim, o Teste de Triagem do Desenvolvimento Denver II.
RESULTADO: O estudo revelou que das 319 crianças avaliadas, 77,74% apresentaram desenvolvimento suspeito de atraso. As variáveis que apresentaram relação estatisticamente significativa foram escolaridade paterna (p<0,001**), principal cuidador da criança (p = 0,039*), planejamento da gravidez (p = 0,007*). Quanto ao instrumento de medição do nível de pobreza urbana, a pontuação variou de 28 a 52 pontos, e apresentou relação estatisticamente significativa com o desfecho (0,003)*
CONCLUSÃO: A alta prevalência da condição de suspeita de atraso no desenvolvimento entre as crianças pesquisadas alerta para a influência de fatores socioeconômicos relativos à condição da família e do município em que moram no crescimento e desenvolvimento infantil, e aponta a necessidade de introduzir programas de estimulação precoce.

Palavras-chave: desenvolvimento infantil, Teste Denver II, nível de pobreza urbana.


 

 

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento infantil é um termo muito complexo, que compreende definições originadas em diversas áreas, como a pediatria, a fisioterapia e psicologia. Os estudos mais recentes enfatizam o desenvolvimento como um processo de mudanças e permanências, demonstrando que a aquisição e o uso de habilidades integram vários sistemas e funções do indivíduo em constante interação com o ambiente físico e social1-6.

São muitos os fatores que influenciam a saúde e o desenvolvimento infantil, podendo estar relacionados à hereditariedade e adaptação biológica, além de condições ambientais (experiência e estimulação sensoriomotora, nutrição, condições socioeconômicas, afetivas). O impacto desses fatores no desenvolvimento infantil tem sido objeto de muitos estudos nas últimas décadas, apontando que a identificação e intervenção precoce são fundamentais para o prognóstico das crianças com distúrbios do desenvolvimento7-9.

É importante notar que a avaliação do desenvolvimento da criança parece ineficiente quando está baseada somente em impressões clínicas. Menos de 30% das crianças com retardo mental, distúrbio de linguagem ou outros problemas de desenvolvimento, tiveram tais situações detectadas mediante o julgamento clínico7-10. Com o objetivo de promover alguma forma de intervenção precoce para os chamados desvios do desenvolvimento, o uso de instrumentos padronizados tem sido indicado e recomendado por especialistas e instituições 2-6, uma vez que possibilita a providência de recomendações antecipatórias aos pais, cuidadores e profissionais.

Nesse sentido, diversos estudos têm investigado o impacto de condições socioeconômicas e ambientais, estilos de vida e condições de saúde das crianças sobre seu desenvolvimento. No Brasil, até o presente, são raros os estudos de base populacional sobre desigualdades sociais no desenvolvimento das crianças e os fatores de risco para atraso, limitações e incapacidades funcionais2,7-11. Na região Norte, tais estudos são mais raros ainda, para não se dizer nenhum. Diante de tal situação, é visível a necessidade de mais estudos que possam reconhecer a influência dos aspectos ecológicos em populações abrangentes, além da urgência de se produzir maior conhecimento em torno da população do Norte brasileiro, ainda pouco abordada nesse aspecto.

Assim, o objetivo deste estudo é relacionar o desenvolvimento neuropsicomotor de crianças com características pessoais e variáveis do seu ambiente ecológico.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo transversal, de caráter exploratório descritivo, com abordagem quantitativa dos dados, realizado no município de Belém do Pará. Participaram do estudo 319 crianças, tendo como critérios de inclusão crianças de ambos os sexos, com idade entre 36 a 48 meses, que frequentassem as Unidades de Educação Infantil vinculadas à Secretaria Municipal de Educação, Prefeitura Municipal de Belém. Foram excluídas crianças que apresentassem distúrbios que afetam sua expressão da fala, alterações sensoriais, auditivas e/ou visuais e sequelas de comprometimento do sistema nervoso central.

Para o cálculo da amostra, foi utilizado o processo de amostragem por conglomerado. A margem de erro do cálculo amostral ficou em 5% e o nível de confiança representa 95%. Nesse sentido, como a população do estudo era composta por 1201 sujeitos, o tamanho de amostra ideal foi estabelecida em 300 sujeitos. Todavia, adicionou-se um percentual de 7% de sujeitos prevendo possíveis perdas, o que totalizou 320 sujeitos.

As Unidades de Educação Infantil envolvidas na pesquisa foram distribuídas proporcionalmente pelos oito distritos administrativos por sorteio, conforme o número de estabelecimentos de ensino existentes em cada um deles, assim como, o número de crianças avaliadas em cada distrito.

Para registrar as informações referentes a criança foi aplicado um Questionário de Características Biopsicossociais da Criança (QCBC) composto de 48 perguntas, abordando em torno das seguintes categorias: identificação, história pré, peri e pós-natal e condições socioeconômicas e ambientais. Os questionários foram respondidos após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecidos assinado pelos responsáveis. A pesquisa foi aprovada conforme protocolo CAAE 05177512.5.0000.5172.

Com relação às condições socioeconômicas das famílias das crianças participantes do estudo, foi utilizado um instrumento de medição do Nível de Pobreza Urbana (NPU). Tal instrumento permite tomar para análise uma gama de elementos descritores da condição socioeconômica de populações urbanas pobres, com o objetivo de gerar uma medida capaz de mensurar sua variabilidade, mas que não se limitasse à consideração da renda familiar. O instrumento é composto por 13 itens, com pontuação de cada item variando em uma escala de zero a quatro, e a soma obtida em cada um desses itens estabelece o nível de pobreza urbana da família12.

Para avaliação do desenvolvimento, foi utilizado o Teste de Triagem do Desenvolvimento Denver II - TTDD II6,13. De maneira geral, o Denver II consiste em 125 itens, organizados em quatro dimensões: a) pessoal/social; b) motricidade fina/adaptativa; c) linguagem e d) motricidade grosseira; apresenta bons índices de confiabilidade, com 0,99 interobservador e 0,9 em teste re-teste. A validade do teste fundamenta-se em sua padronização, e não em sua correlação com outros testes, uma vez que todos os outros são constituídos de modo ligeiramente diferente14. O teste também se destaca como um dos instrumentos mais utilizados em pesquisas brasileiras10-11, até porque desponta como o teste mais aplicado mundialmente2,3,6. Após a avaliação foram classificadas no teste com o desenvolvimento: Normal, quando a criança não apresentava nenhum tipo de atraso ou no máximo um item de precaução; e foram considerados casos indicativos de Suspeita de Atraso no desenvolvimento, quando indicasse dois ou mais itens de precaução ou um ou mais itens de atraso.

A equipe de coleta de dados do QCBC era composta pela pesquisadora responsável pelo estudo e mais dois alunos do Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento - PPGTPC, uma acadêmica de fisioterapia, uma de serviço social e mais cinco de terapia ocupacional. Toda a equipe foi previamente capacitada para aplicação do QCBC e os pesquisadores do PPGTPC foram treinados com base na metodologia previamente estabelecida no respectivo manual TTDD II. Uma vez que o teste requer cooperação ativa da criança, foram feitos todos os esforços para ganhar a confiança da mesma e estimular sua participação, como por exemplo, solicitar aos professores que apresentassem os pesquisadores as crianças anteriormente e permanecer um tempo de adaptação até a criança se sentir mais à vontade.

Para análise dos dados foi utilizado o programa de estatística Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 20.0. Inicialmente, foi realizada uma análise da distribuição das frequências das diversas variáveis, em seguida, foi realizado um estudo comparativo entre as variáveis e a condição de suspeita de atraso no desenvolvimento, sendo utilizado o teste do qui-quadrado para esta análise. Em todas as análises foram considerados significantes os valores em que p < 0,05.

 

RESULTADOS

A amostra totalizou 319 crianças, sendo 141 do sexo feminino e 178 do sexo masculino. A maioria das crianças vivia em famílias que recebem de 1 a 3 salários mínimos, sendo os pais os principais responsáveis pela renda, posto que mais da metade delas recebia algum benefício social, geralmente o auxílio financeiro pago pelo Programa Bolsa Família (PBF). Quanto às características dos pais, a maior parte era casada e possuia casa própria. Em geral, as mães tinham idade dentro da faixa dos 20 anos, com 12 anos ou mais de estudo, realizando algum tipo de trabalho regular, enquanto que entre os pais, predominavam os homens com 30 anos ou mais, 9 a 11 anos de estudo, com trabalho informal. Na amostra estudada, observou-se que 65,83% das famílias residiam em casas com três ou mais cômodos, habitada por dois a cinco moradores (74,92%). Também chama a atenção que pouco mais da metade das famílias habitava casas de alvenaria (59,56%), com um percentual ainda expressivo de pessoas que residem em domicílios de madeira ou mistos. Com relação às condições da moradia, a maioria das famílias apresentava água encanada (86,62%), com banheiro próprio interno (79,94%), com ligação regular de energia elétrica (80,25%) e coleta de lixo regular (97,5%).

Observou-se que grande parte da população estudada não nasceu de uma gravidez planejada, representando essa característica 70,53% do total. Todavia, em relação a realização do pré-natal, este foi realizado por 96,23% das mulheres. Já no aspecto de idade gestacional houver um predomínio de crianças nascidas á termo(87,47%), com 12,53% de crianças pré termo. No que se refere ao tipo de parto, a maioria das crianças nasceu por parto cesárea (53,92%). Em relação ao consumo de substâncias, a maioria das mães referiu não ter consumido nenhuma substância (álcool, tabaco, drogas abortivas) durante a gravidez (86,2%).

Das famílias avaliadas, 87 foram classificadas dentro do nível de miséria (27,27%), 132 famílias no nível baixo inferior (41,38%), e mais 100 famílias no nível baixo superior (31,35%), como mostra o gráfico na figura 1. A média calculada ficou em 44 pontos e a moda de 45 pontos, com desvio padrão de 4,54 pontos.

 

 

A tabela 1 mostra os resultados dos escores do TTDD II das crianças do estudo. Observa-se que 77,74% apresentaram desenvolvimento suspeito de atraso e apenas 22,26% apresentaram escore compatível com o status de normalidade.

Os resultados indicaram uma correlação significativa (p 0,003*) entre o nível de pobreza e estado de desenvolvimento das crianças, como pode ser observado na tabela 2. As seguintes variáveis mostraram associação significativa com suspeita de atraso no DNPM na análise bivariada: escolaridade paterna (p < 0,001**), principal cuidador da criança (p = 0,039*), planejamento da gravidez (p = 0,007*). (Tabela 3).

 

Tabela 4

 

DISCUSSÃO

A análise dos resultados mostrou que parte significativa das crianças de três anos apresentou resultados indicativos de suspeita de atraso nessa população. Entretanto, neste estudo, o percentual de crianças que apresentou este estado demonstrou ser superior quando comparado aos que representam a condição dessa população em triagens feitas no país nos últimos quinze anos.

Entre os estudos brasileiros que utilizaram procedimento de pesquisa semelhante, o que apresentou resultados que mais se aproximam dos aqui relatados foi o realizado por Caon e Ries14, que apontou a existência de 86,2% das crianças com desempenho questionável, isto é, com suspeita de atraso no desenvolvimento. Nesse sentido, chama atenção o fato de que os resultados obtidos neste estudo diferem até o momento da maioria dos estudos brasileiros de avaliação do desenvolvimento de crianças por meio do TTDD II2-3. Em algumas pesquisas brasileiras7,10, cerca de 40% a 46% das crianças apresentavam desenvolvimento avaliado como em risco e/ou com suspeita de atraso, mas a maioria das pesquisas revela um percentual próximo a faixa de 20%19-20.

Entre as possíveis explicações para esta variação, estariam as próprias características da população estudada em Belém. Neste estudo, seleção da amostra envolvia crianças pertencentes a rede de serviços municipais e públicos, onde em geral são atendidas crianças oriundas de famílias de menor renda e que vivem em condições socioeconômicas desfavoráveis, e, presumidamente, sob os efeitos da pobreza, que traz limitações ao desenvolvimento adequado das crianças. De acordo com informações coletadas junto às coordenadoras das UEI visitadas ao longo da pesquisa, existe uma extensa lista de espera de crianças em idade escolar e à espera da efetivação de sua matrícula. Diante da impossibilidade das UEI atenderem a essa demanda crescente, no início do ano costuma ser feita uma seleção das crianças que irão ocupar as vagas disponíveis.

Essas crianças são selecionadas pelos próprios professores a partir de informações reunidas com base em visita feita ao domicílio onde vivem com seus responsáveis. Pelo que foi apurado, a seleção das crianças para ingresso nas UEI utiliza como critério o grau de vulnerabilidade social apresentado por suas famílias, que inclui a consideração de fatores socioeconômicos (especialmente, a renda dos cuidadores habituais) e outras situações que tendem a aumentar a chance de estarem expostas a qualquer forma de violência ou negligência (uso do álcool e outras drogas, histórico de transtorno mental, por exemplo).

Assim, professores e coordenadores das UEI admitem que as famílias com renda muito baixa geralmente apresentam maior probabilidade de negligenciar os cuidados básicos com a saúde e a educação de suas crianças, uma vez que têm dificuldades de várias ordens para, por exemplo, oferecer alimentação adequada e/ou suficiente nos primeiros três anos de vida dos filhos, sendo esta uma condição de vulnerabilidade que deve receber tratamento prioritário e ser atendida pela instituição sempre que possível. Nessa perspectiva, quanto mais precárias forem as condições de saúde da família e do ambiente em que vive a criança, com ausência de saneamento básico e/ou água potável, mais exposta ela poderá ficar à doença, e maior deve ser a prioridade dada pela UEI no sentido de incluí-la socialmente. Do mesmo modo, outros indicadores da vulnerabilidade social das famílias das crianças costumam ser considerados pela coordenação da UEI no momento da seleção dos alunos, tais como o envolvimento dos pais com substâncias ilícitas, violência familiar, pais ou familiares cumprindo pena em reclusão.

A escola pode e deve funcionar como fator de proteção e promoção do desenvolvimento infantil. Entretanto, pelo que se pode conferir o acesso aos serviços mantidos pela política de educação infantil nessas áreas a partir da preferência dada às famílias com maior nível de risco social, parece ser vista como uma medida de proteção importante, não sendo possível, contudo, em razão dos limites colocados pelos objetivos deste estudo, verificar o quanto a permanência no ambiente escolar tem representado ou poderá representar para as crianças novos estímulos e oportunidades de crescimento e aprendizagem ao final da infância.

Em situações excepcionais como manda a legislação de proteção à infância, a matrícula em uma UEI é conseguida através de solicitação expressa do Conselho Tutelar com atuação na região. Um exemplo dessa situação é o caso de uma criança avaliada no estudo, aparentemente saudável, porém mal conseguia falar o seu próprio nome, tendo apresentado atraso em todos os aspectos do desenvolvimento avaliados pelo TTDD II, apesar de não terem sido identificadas evidências de limitações ou deficiência, tanto física como mental. A criança em questão estava frequentando a UEI há poucos meses, tendo sido encaminhada à época da pesquisa pelo Conselho Tutelar. Havia a informação de que a criança passava o dia inteiro na companhia de sua mãe (portadora de transtorno mental), perambulando pelas ruas e circulando de ônibus pela cidade, com o objetivo de vender doces e outras guloseimas.

Também é importante destacar o quanto ainda se conhece pouco sobre o desenvolvimento de crianças que vivem fora do eixo sul-sudeste do país, onde foi realizada a maior parte dos estudos utilizando TTDDII21,22. Presume-se que as condições ambientais em que estão crescendo as crianças nas demais regiões, como no Norte do Brasil, podem ser mais danosas ao desenvolvimento infantil em razão das desigualdades sociais e regionais que caracteriza historicamente o país. Segundo Issler e Giugliani12, as crianças, por serem mais vulneráveis, são as que mais sofrem os efeitos deletérios da pobreza e da falta de educação dela mesma e de seus cuidadores, posição esta compartilhada por outros autores23,24,25.

Nos países em desenvolvimento, muitas crianças, seus pais e cuidadores, são vítimas de desigualdades sociais que limitam seu acesso a bens e serviços fundamentais à sobrevivência e aprendizagem social19. No presente estudo, o nível de pobreza das famílias mostrou ter associação estatisticamente significativa aos desfechos obtidos entre crianças que moram e estudam em diferentes distritos administrativos de Belém, corroborando os achados de outras investigações que aplicaram o TTDDII. Tais estudos demonstram existir uma associação entre variáveis preditores do nível socioeconômico da família e a aquisição de marcos de desenvolvimento pela criança5,6,24,25.

O nível de pobreza pode levar a criança a apresentar sérios problemas de saúde, incluindo aqueles associados com atrasos do desenvolvimento neuropsicomotor, pois há uma menor estimulação e maior exposição a fatores de risco. Pode-se, assim, supor que existem evidências de que crianças de baixo nível socioeconômico tendem a ser continuamente expostas a múltiplos fatores adversos, constituindo um importante grupo de risco para atrasos no desenvolvimento.É também importante referir ainda que nem todos os estudos que exploraram as relações entre classe social e desenvolvimento infantil têm usado os mesmos indicadores para marcar essa condição específica, alguns utilizam a renda da família como principal - ou, às vezes, o único - preditor.

No presente estudo, a renda familiar não se revelou um fator de risco forte para desenvolvimento classificado como suspeita de atraso. Outros estudos também apresentaram este dado11,23. Tal achado pode ser justificado pelo fato de a amostra estudada apresentar-se relativamente homogênea em relação aos níveis de renda, com 65% das famílias apresentando ganhos de 1 a 3 salários mínimos.

De todo modo, em termos descritivos, fica evidente que a condição de baixa renda é uma característica não apenas presente, como predominante na população estudada. Este dado é importante porque historicamente o fator econômico tem sido associado e até limitado ao padrão de renda de indivíduos, famílias e populações, na medida em que diz muito sobre o nível de acesso a bens e serviços fundamentais à promoção do desenvolvimento, como alimentação, moradia e saneamento1,4,5,24,25.

Estudos a respeito do desenvolvimento infantil destacam que a renda familiar mensal produz efeito sobre a qualidade das condições que impactam de forma direta sobre o desenvolvimento neuropsicomotor da criança, como por exemplo, a alimentação e a atenção básica à saúde materno-infantil1,24. Sendo assim, deficiências nesta variável conduzem a situações desfavoráveis no âmbito da assistência à saúde da criança, nas condições ecológicas colocadas pelo ambiente em que e vive e da sua educação em termos mais gerais, o que pode influenciar negativamente no seu desenvolvimento biopsicossocial, elevando as chances de ela apresentar algum tipo de déficit ou atraso em seu desenvolvimento neuropsicomotor.

Um estudo avaliou duas coortes de crianças aos 12 meses utilizando o TTDDII. Na primeira coorte as crianças mais pobres apresentaram o dobro de falhas no Teste de Triagem Denver II, comparadas àquelas que apresentavam renda superior. Segundo o autor, a comparação entre os resultados obtidos em 2004, e o que havia prevalecido no ano de 1993, mostra uma tendência à redução do percentual de crianças com desenvolvimento suspeito de atraso. Pelo exemplo em questão, nota-se que houve uma redução em torno de 29% nas situações consideradas como de risco para o atraso entre as crianças de famílias mais ricas, ao passo que entre as famílias pobres essa prevalência caiu em 36% (p <0,05). Entretanto, o estudo também revelou que quando foi calculado o risco relativo entre as crianças mais pobres e os mais ricos, essa perspectiva diminuiu apenas ligeiramente (de 1,6 a 1,4), indicando um efeito relativamente estável da renda familiar sobre a condição de atraso nos 11 anos que separam as duas coortes19.

Entre as correlações estabelecidas entre as variáveis analisadas e o desfecho, identificou-se associação entre a escolaridade do pai e suspeita de atraso no desenvolvimento. A literatura mostra que são fortes as evidências de que quanto maior a escolaridade dos pais, menor a chance de a criança apresentar suspeita de atraso no desenvolvimento19,25. Pais com escolaridade mais elevada têm geralmente uma percepção mais adequada das necessidades de seus filhos para promover o desenvolvimento esperado em dada faixa de idade, realizando estímulos e cuidados adequados para a aquisição do domínio motor grosseiro e fino, linguagem e pessoal-social.

O tipo de ocupação do pai também esteve estatisticamente relacionado ao desenvolvimento suspeito de atraso. Esse resultado pode estar de acordo com a hipótese de que, quanto maior o nível de escolaridade melhor poderá ser o emprego do pai, promovendo maiores oportunidades e melhores estímulos para o desenvolvimento da criança. Assim como a escolaridade da mãe age como fator de proteção para o desenvolvimento da criança, a do pai também pode ter esse recurso24.

No presente estudo a escolaridade materna não apresentou associação com o estado do DNPM, um achado observado em outros trabalhos26. Outros estudos mostraram que o nível de instrução materna acarreta uma situação de vulnerabilidade para crianças na primeira infância, revelando importante associação desta variável com prejuízos no desenvolvimento17,19,25.

De fato, a escolaridade dos pais é um fator preditivo do desenvolvimento visto que o tempo de estudo está intimamente relacionado às habilidades cognitivas que os pais utilizam para estimular seus filhos. Entende-se que a escolaridade dos pais aumenta as chances de escolarização de seus filhos, condiciona as práticas de cuidado e o próprio ambiente ecológico em que a criança está inserida, ampliando as experiências físicas e socioculturais dessas crianças, incentivando globalmente seu melhor desenvolvimento.

Neste estudo, a variável "cuidador principal" apresentou associação significativa em relação ao desenvolvimento neuropsicomotor da criança. O desenvolvimento infantil se dá invariavelmente em contexto que sofre interferência de diferentes fatores considerados por seus especialistas como positivos ou negativos, na medida em que são determinantes sobre os processos de maturação e aprendizagem da criança. Entre eles pode ser citada a relação mãe/criança ou cuidador/criança1,23.

Pelo exposto, é consensual a importância da interação mãe-filho para o desenvolvimento cognitivo e motor da criança, sendo a mãe, de forma geral, quem consegue interpretar com relativa facilidade os sinais sutis das crianças e responder adequadamente a eles, sendo que crianças que dispõe de menor tempo diário com a mãe apresentaram uma maior frequência de déficit no equilíbrio estático quando comparadas àquelas que permaneciam mais tempo com esse cuidador, sugerindo que a presença materna pode agir como um fator de proteção para aquisição dessa habilidade motora1,23.

Neste estudo, em relação ao sexo das crianças, foi possível perceber que não houve diferença significante quanto ao resultado global do TTDDII. Resultados aproximados também foram verificados em estudos anteriores que utilizaram o mesmo instrumento19-21. Entretanto, estudos semelhantes encontraram interferência do sexo no desempenho das crianças submetidas ao TTDDII, demonstrando que costuma ser significativa a correlação entre o sexo da criança e a variável que designa o desfecho apontado pela avaliação dos domínios desenvolvimentais21. Tal fato pode estar vinculado às expectativas que a sociedade hoje tem em relação às diferentes habilidades/modos de ser de meninos e meninas, assim como ao fato de elas se desenvolverem mais rápido que eles no que diz respeito também à maturidade física27.

 

CONCLUSÃO

Na amostra estudada, observou-se que as crianças apresentaram uma alta prevalência de desempenho suspeito de atraso no desenvolvimento, quando avaliadas pelo TTDD II. Os resultados constroem um quadro que deve ser analisado com preocupação na medida em que aponta para a necessidade da constituição de um sistema de vigilância do desenvolvimento capaz de detectar os grupos de risco entre crianças que frequentam as UEI localizadas nos diferentes distritos administrativos do município de Belém, e contribuir na formulação de medidas eficientes para prevenção e correção de déficits e problemas proeminentes nas diversas áreas do seu desenvolvimento.

Este tipo de estudo e, por conseguinte, a discussão dos seus principais resultados apresentam-se como uma medida necessária e essencial quando se pretende contribuir para a avaliação sistemática de políticas públicas voltadas à educação e à saúde das crianças, na cidade de Belém e em outros contextos urbanos, além de apoiar e orientar as estratégias de programas de acompanhamento e vigilância do desenvolvimento de um equipe multidisciplinar. Recomenda-se que sejam realizados novos estudos longitudinais com amostra maior, e que possam envolver crianças em outra faixa etária, a fim de se obter resultados mais consistentes e conclusivos no que esse refere à compreensão da complexa ecologia do seu desenvolvimento.

Outras ferramentas de avaliação também podem ser utilizadas, inclusive para avaliar as características ecológicas de ambientes como a família e as UEI, assim como investigar concepções dos cuidadores e práticas de cuidado com esperada influência no desenvolvimento da criança. Entende-se ser esta a condição para se propor intervenções com resultados mais efetivos no campo da promoção da saúde e da educação na primeira infância.

 

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Mariane Lopes pela colaboração na coleta de dados, assim como desenrolar da pesquisa.

 

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Manuscript submitted: Mai 12 2016
Accepted for publication Jun 16 2016

 

 

Corresponding author: Lília Iêda Chaves Cavalcante. E-mail: liliaccavalcante@gmail.com

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