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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.26 no.2 São Paulo  2016

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.119266 

ORIGINAL RESEARCH

 

Caracterização da evolução clínica dos recém-nascidos com gastrosquise em uma unidade de terapia intensiva neonatal de referência da américa latina

 

 

Ana Carolina RedondoI; Rubens FeferbaumII; Renata Amato VieiraII, Daniel de Albuquerque Rangel MoreiraI, III; Uenis TannuriI,III; Werther Brunow de CarvalhoI, II; Maria Esther Jurfest Rivero CecconI, III

IMédica Pediatra, Neonatologista e Mestre em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) - São Paulo (SP), Brasil
IIProfessor Livre Docente em Neonatologia pela FMUSP, Médico Assistente do CTIN2 do Instituto da Criança do HCFMUSP - São Paulo (SP), Brasil
IIIDoutora em Ciências pela FMUSP e Médica Assistente do CTIN2 do Instituto da Criança do HCFMUSP - São Paulo (SP), Brasil

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: As malformações congênitas fazem parte das principais doenças observadas ao nascimento. Entre as causas de óbito no período neonatal as malformações foram a segunda causa, sendo ainda a primeira, a prematuridade.
OBJETIVOS: Caracterizar a evolução clínica dos recém-nascidos (RN) com gastrosquise (GTQ) em uma unidade de terapia intensiva neonatal e descrever as morbidades renal, nutricional e infecciosa relacionados ao manejo clínico pós-natal na unidade de terapia intensiva neonatal.
MÉTODO: Foi realizado estudo observacional retrospectivo em 50 RN com GTQ, utilizando a associação de anormalidades intestinais, impossibilidade de fechamento primário do defeito abdominal e necesidade de reoperação como critérios de classificação para a doença. O nível de significância foi p < 0,05.
RESULTADOS: A admissão hospitalar para cirurgia primária ocorreu com mediana de idade de 2 horas. O total de 14% das crianças foram submetidas a uma interposição de silo primária e 24% apresentaram malformação intestinal associada. Dezenove RN necessitaram mais de uma intervenção cirúrgica. A mediana do tempo de estadia foi de 33 dias, sendo maior nos pacientes com GTQ complexa (56 dias). Todos os RN recuperaram o débito urinário a partir de 48 horas do pós-operatório e 40% apresentaram hiponatremia e oligoanúria nesse período. Não houve diferença entre a natremia e o tempo de jejum (p = 0,79). O ganho ponderal foi similar em ambos os grupos com nutrição parenteral total e tornou-se significativamente maior nos pacientes com GTQ simples após a alimentação enteral (p = 0,0046). Esses RN evoluíram 2,4 vezes com menos colestase. Sepse tardia ocorreu em 58% dos pacientes e foi relacionada à infecção do CVC em 37,9% dos casos. A mortalidade foi maior nos RN infectados com GTQ complexa e a taxa global de mortalidade foi de 14%.
CONCLUSÃO: A caracterização clínica dos RN com GTG depende da complexidade e do conhecimento e condução das morbidades para diminuir a mortalidade.

Palavras-chave: gastrosquise, recém-nascido, mortalidade, nutrição parenteral total, insuficiência renal, infecção.


 

 

INTRODUÇÃO

As malformações congênitas fazem parte das principais doenças observadas ao nascimento. Nos Estados Unidos é citada uma prevalência de cerca de 3%1 e no Brasil um estudo realizado no Instituto Fernandez Figueira na cidade de Recife comprovou que a prevalência foi semelhante, de 2,7% entre os recém-nascidos (RN) vivos, e de 6,7 % entre os natimortos. Entre as causas de óbito no período neonatal as malformações foram a segunda causa, sendo ainda a primeira a prematuridade2.

A gastrosquise (GTQ) que é uma malformação congênita da parede abdominal apresenta um aumento crescente no mundo todo, sendo sua causa não totalmente elucidada3. Na década de 60 a prevalência desta doença era de 1:50.000 nascidos vivos, porém, recentemente Kirby et al.4 relatam que no período de 1995 a 2005 nos Estados Unidos, houve um aumento temporal de 2,23 por 10.000 nascidos vivos (NV) para 4,42 por 10.000 NV. A prevalência na América do Sul mais recente foi de 2,9:10.0005.

Esta doença se caracteriza por um defeito no fechamento da parede abdominal com herniação dos intestinos e de outros órgãos abdominais para a cavidade amniótica. A herniação é na região paraumbilical direita, no entanto, em alguns pacientes pode ocorrer do lado esquerdo6.

Os autores da literatura relacionam o aumento da doença com gravidez em idade inferior a 20 anos, tabagismo, uso de drogas ilícitas, insuficiência placentária com pouca oxigenação fetal. Alguns autores ainda relatam como possível etiologia o uso de substâncias como pseudoepinefrina em descongestionantes nasais e toxinas ambientais. A possibilidade da etiologia genética está sempre presente, no entanto, apesar de existirem filhos da mesma mãe com este problema, o fator de risco mais frequentemente observado é a gravidez na adolescência7-10.

O diagnóstico pré-natal pode ser realizado pela dosagem da alfa-feto-proteína produzida pelo trato gastrointestinal e pelo fígado fetal, além da ultrassonografia fetal, considerada a melhor para a realização do diagnóstico. O problema é diagnosticado no primeiro ultrassom de rotina realizado pela gestante. Neste exame de imagem pode-se observar o problema da parede abdominal lateral à inserção do cordão umbilical, o qual está inserido normalmente. As vísceras encontram-se flutuando no líquido amniótico, sem membrana que recubra as estruturas, as quais são em geral: intestino delgado, intestino grosso, estômago, apêndice, tubas uterinas e ovário, além de porções do trato urinário e/ou genital. O acompanhamento pré-natal é de grande importância, uma vez que, pode ocorrer interrupção precoce da gestação por alteração da vitalidade fetal. Apesar de que não parecer aumentar a morbidade ou mortalidade no parto vaginal, quase sempre estes partos são operatórios devido à indicação obstétrica11,12.

As taxas de mortalidade variam de 3 a 10% e a morbidade elevada no período neonatal está associada a fatores relacionados com a lenta adaptação intestinal pós-cirúrgica, como o uso de nutrição parenteral prolongada (NPP) e cateteres venosos centrais (CVC) por tempo prolongado, infecções e agressão renal12. A complexidade dessa malformação depende de sua associação à atresia intestinal, perfuração, necrose e volvo, cujo manejo cirúrgico necessário torna o quadro de síndrome do intestino curto desafiador, prolonga o tempo de internação hospitalar e promove um somatório de comorbidades13.

Assim, o objetivo é caracterizar a evolução clínica dos recém-nascidos com gastrosquise em uma unidade de terapia intensiva neonatal.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo retrospectivo observacional, realizado no período de outubro de 2011 a outubro de 2014, que incluiu 50 recém-nascidos (RN) diagnosticados com gastrosquise e transferidos para o Centro de Tratamento Intensivo Neonatal 2 (CTIN2) do Instituto da Criança - Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). O único critério de exclusão foram os recém-nascidos que apresentavam outro tipo de defeito de parede abdominal.

Desta maneira foram coletados os seguintes dados dos prontuários das pacientes: clínicos maternos (idade, paridade, pré-natal, diagnóstico no pré-natal, idade gestacional, tipo de parto, uso de drogas lícitas ou ilícitas), do RN (peso de nascimento, Boletim de Apgar, gênero, malformações intestinais e extra-intestinais associadas, tempo de internação hospitalar e mortalidade) e do tratamento cirúrgico (tempo decorrido do nascimento até a abordagem cirúrgica inicial, técnica utilizada e número de reoperações).

Os critérios para classificação da GTQ quanto à sua complexidade basearam-se na presença de anomalias intestinais associadas, impossibilidade de redução cirúrgica total primária e necessidade de reoperação. Desse modo, os pacientes foram classificados em não-complexos e complexos. O início da dieta enteral foi considerado como aquele que ocorreu por sonda orogástrica ou por via oral e que durou no mínimo 24 horas. Em relação à definição de infecção, foram incluídos nesse grupo todos os pacientes com quadro clínico, segundo a definição da Surviving Sepsis Campaign14, e laboratorial ocorridos após 72 horas de vida, que apresentaram ou não cultura positiva em secreções estéreis. A infecção associada ao cateter foi aquela onde houve identificação na cultura central e periférica do mesmo agente infeccioso. Hiponatremia foi definida como um nível sérico de sódio < 135mEq/L e hipoalbuminemia como uma dosagem sérica de albumina < 3g/dL. Nenhum paciente recebeu diurético de alça durante o momento da avaliação. Não foi utilizado escore de gravidade de risco.

Os dados dos RN foram registrados em formulário de coleta específico e armazenados em planilha eletrônica do pacote estatístico GraphPad-Prism versão 6.0c (GraphPad Software, La Jolla, Califórnia, Estados Unidos). As variáveis qualitativas foram analisadas calculando-se as frequências absolutas e relativas, enquanto que as variáveis quantitativas descritas foram analisadas calculando-se a mediana e os valores mínimo e máximo. O teste de Mann-Whitney foi usado para comparar a mediana de dados entre os grupos, enquanto que para a análise comparativa das medianas de mais de dois grupos utilizou-se o Teste de Kruskal-Wallis com pós-teste de Dunn. Os testes foram realizados com limites de intervalo de confiança de 95% e um valor de p<0,05 foi considerado significativo.

 

RESULTADOS

Nos três anos de estudo foram admitidos no Centro de Terapia Intensiva Neonatal 2 (CTIN2) 50 recém-nascidos (RN) com diagnóstico de gastrosquise (GTQ) (Tabela 1). Não houve diferença em relação aos sexos feminino (26 casos) e masculino (24 casos). A idade gestacional e o peso médio ao nascer foram de 36 1/7 semanas e 2309g, respectivamente. Dentre as mães, seis (12%) tiveram o diagnóstico da malformação fetal apenas após o parto, apesar de todas terem realizado pré-natal. Quarenta e três gestantes (86%) realizaram parto cesáreo e 77% eram primigestas com idade média de 20,8 anos.

A mediana de idade dos RN à admissão hospitalar para correção cirúrgica inicial foi de 2 horas, com tempo máximo de 6 dias. Segundo registro dos prontuários, nenhum dos pacientes apresentou asfixia perinatal baseados no Boletim de Apgar. Dos 50 pacientes, 86% foram submetidos à correção primária do defeito na parede abdominal, enquanto que em 14% optou-se por uso inicial de silo devido à instabilidade hemodinâmica e ventilatória observada durante a redução primária das alças intestinais. O silo é uma bolsa de silicone, necessária para envolver as alças intestinais que após o ato cirúrgico ainda ficaram para fora do abdome, devido a não ser possível colocar todo o conteúdo para dentro de uma vez só, ou porque a criança apresentou alguma instabilidade, como citado acima, que faz com que não se provoque mais alterações. Observou-se associação à malformação do trato intestinal em 24% dos RN e necessidade de nova abordagem cirúrgica em 19 pacientes por obstrução intestinal, perfuração volve e para fechamento da parede abdominal com retirada do silo anteriormente usado.

A mortalidade geral observada foi de 14,5% (sete pacientes). A mediana do tempo de internação dos pacientes que receberam alta hospitalar foi de 33 dias (máximo de 140 dias e mínimo de 17 dias), sendo maior (mediana = 56 dias, máximo = 140 dias e mínimo = 24 dias) naqueles com GTQ complexa (múltiplas abordagens cirúrgicas ou que apresentavam anomalia intestinal associada). Na Tabela 2 estão as características dos RN que faleceram durante a internação.

Dentre os pacientes falecidos descritos, observou-se maior prevalência de anomalia intestinal e consequente necessidade de intervenções concomitantes na primeira abordagem cirúrgica, além de maior tempo de internação hospitalar.

Adaptação renal

A evolução geral do débito urinário nos pacientes submetidos à correção cirúrgica encontra-se demonstrado na Tabela 3. Apesar de todos os pacientes recuperarem o débito urinário efetivo a partir de 48h do pós-operatório, observou-se que 5 pacientes (12,5%) mantinham-se oligúricos com 36h de evolução.

Dentre todos pacientes, 35 (70%) apresentaram hiponatremia com a dosagem sérica de sódio variando entre 110 e 133mEq/L e destes 20 (57%) apresentaram oligúria (debito urinário < 0,5-1,0 mL/kg/hora) oligoanúria. Apenas três RN não evoluíram com alteração do sódio sérico e da diurese. A normalização da natremia ocorreu após o quinto dia de evolução em todos os pacientes. Não houve diferença entre a natremia e o tempo de jejum (p = 0,79). Os pacientes de termo receberam no primeiro e segundo dias 80 mL/kg/peso de volume hídrico, ou seja, 20 mL a mais do prescrito normalmente nestes dias para os recém-nascidos de termo, enquanto os pré-termos receberam 90 mL/kg devido à grande perda insensível que ocorre nestes RN, por causa das alças fora da cavidade abdominal. Nas primeiras 48 horas de vida os recém-nascidos não receberam eletrólitos conforme norma do serviço, e após a cirurgia o líquido e os eletrólitos fornecidos dependeram do balanço hidroeletrolítico de cada paciente.

Em relação à dosagem sérica de albumina, observou-se uma mediana de 2,4g/dL (máximo = 1,2g/dL e mínimo = 3,6g/dL). Pela instabilidade hemodinâmica ou necessidade de manipulação mínima não foi possível avaliar em todos os pacientes a variação ponderal nesse período inicial do pós-operatório.

Nutrição

Todos os pacientes iniciaram NPP no primeiro dia de vida. A composição da NPP continha solução padrão denominada NPP 20% ou solução customizada, onde a porção lipídica foi composta por intralípides 20% com triglicerídeos de cadeia média (TCM) ou emulsão lipídica 20% de TCM e óleos de soja, oliva e peixe (TCM/soja/oliva/peixe 20%), tendo em vista a prática estabelecida no serviço durante o período de internação do paciente. No uso da solução customizada atingiu-se a oferta máxima de aminoácidos e intralípides para o peso do paciente no terceiro dia de vida (0-23 dias), conforme a tolerância individual que foi avaliada a partir de exames laboratoriais de função renal e da intensidade da icterícia do RN (Tabela 4)

A análise dos pacientes quanto à evolução nutricional e ao tipo de GTQ (simples ou complexa), mostrou que não houve diferença entre o peso registrado ao nascer e ao início da dieta enteral. Apesar de se observar um peso 1,5 vezes maior nos pacientes com GTQ complexa ao desfecho do caso, o ganho ponderal por dia de internação foi significativamente maior nos pacientes com GTQ simples (p = 0,023). Esse ganho ponderal foi semelhante durante o uso da NPP nos dois grupos, sendo que tornou-se significativamente superior nos pacientes com GTQ simples após a introdução da dieta enteral (p = 0,0046). Também foi observado à alta hospitalar maior ganho estatural nos pacientes com GTQ simples em relação aos com GTQ complexa (p = 0,014) (Tabela 4).

Em relação ao diagnóstico de colestase, observou-se uma frequência 2,4 vezes maior nos pacientes com GTQ complexa quando comparados aos pacientes com GTQ simples. Independentemente da presença de colestase, houve aumento da dosagem sérica de GGT nos pacientes com GTQ complexa (p=0,0013) (Tabela 4).

Infecção

Houve uma frequência de 58% de sepse tardia (29 casos) entre os 50 RN com GTQ simples e complexa, sendo 37,9% (11 casos) das infecções associadas ao uso de CVC. Os pacientes que apresentaram sepse tardia não diferiram quanto à idade gestacional, sexo, peso ao nascer ou tempo decorrido para a abordagem cirúrgica inicial quando comparados aos pacientes que não apresentaram infecção (Tabela 5).

O tempo de internação hospitalar e de ventilação mecânica invasiva foi proporcionalmente maior naqueles pacientes portadores de GTQ complexa com infecção e que necessitaram de mais de uma reabordagem cirúrgica (p < 0,0001). Conforme esperado, o uso de hemoderivados nesses pacientes foi maior, excetuando-se o uso do plasma fresco congelado que foi semelhante para os três grupos (p = 0,12) (Tabela 5).

Dos pacientes sem infecção, três foram submetidos a novo procedimento cirúrgico aos respectivos 4, 6 e 18 dias de vida para retirada do silo nos primeiros dois casos e para ressecção tardia de atresia jejunal no terceiro paciente. O tempo de internação foi de 44, 43 e 44 dias, respectivamente (Tabela 5).

 

DISCUSSÃO

Descreve-se a experiência do serviço de Neonatologia de Referência da América Latina no manejo clínico de pacientes com Gastrosquise (GTQ) enfatizando três condições clínicas desafiadoras para o médico intensivista neonatal: adaptação renal, nutrição e infecção.

Diversos trabalhos5-8 demonstram que a prevalência de GTQ realmente está aumentando nos últimos anos no mundo. Como era de se esperar, o aumento foi muito expressivo: 67% em 2 anos. Este fato, associado a uma internação quase sempre se prolongada, acarretou um alto ônus para o serviço público de saúde por paciente.

A mortalidade geral de 14% nesse estudo está acima do descrito na literatura e provavelmente deve-se aos casos mais complexos, como à alta prevalência de anomalia intestinal associada e a múltiplas intervenções cirúrgicas (24 e 38%, respectivamente). Já em relação à idade materna, observamos o mesmo descrito na literatura: uma associação entre a malformação e mães jovens. Dentre todas, apenas 36% apresentavam mais de 21 anos de idade.

Um dado a ser considerado diz respeito à via de parto escolhida para pacientes com este tipo de malformação. Observamos que diferentemente da prática adotada em outros países, onde o parto vaginal é o de escolha a despeito da malformação, a via de parto cirúrgica foi a preponderante na nossa casuística (86% dos casos) por oferecer uma melhor logística de tratamento cirúrgico inicial e garantia de manejo otimizado.

Os pacientes nascidos de parto vaginal foram transferidos de outro hospital em 71% dos casos e apenas um RN (14%) não apresentou perfuração, isquemia ou necrose de alças que culminou com ressecção intestinal extensa e síndrome do intestino curto, o que revela um despreparo nos cuidados iniciais na sala de parto e no transporte neonatal.

Em relação à adaptação renal, alguns trabalhos mostram que a monitorização da pressão intra-abdominal durante o tempo intraoperatório trouxe benefício para os pacientes, pois adicionou um dado objetivo frente à decisão de correção cirúrgica primária ou interposição de silo, até melhor acomodação das alças intestinais15,16. Na casuística apresentada neste estudo o dado mais utilizado para essa decisão foi o da instabilidade hemodinâmica intraoperatória e o da recuperação do débito urinário pós-cirúrgico.

A avaliação da função renal pelo débito urinário nas primeiras 48h de vida é imprecisa, já que naturalmente se somam à oliguria (< 0.5-1,0 mL/kg/hora) oligoanúria do período pós-natal, o quadro de insuficiência pré-renal por hipovolemia secundária à grande perda insensível causada pela exteriorização das alças intestinais e à diminuição da pressão de perfusão renal causada pelo aumento súbito e inevitável da pressão intra-abdominal no período pós-cirúrgico imediato17,18.

Observou-se que apesar de todos os pacientes do estudo apresentar recuperação do débito urinário em 48 horas do pós-operatório, a preocupação nesse período quanto à possível necessidade de terapia de substituição renal fez com que fosse optado preferencialmente pela expansão volêmica com solução coloide (albumina humana a 20% diluída ao meio com soro glicosado 5%) em 98% dos pacientes. Apesar da restrição hídrica relativa adotada, observou-se o desenvolvimento de hiponatremia em 70% dos casos, fato este associado ao aumento da morbimortalidade na literatura.

Outro grande desafio quanto ao manejo dos pacientes com GTQ, talvez o maior, é a nutrição. O tempo para o restabelecimento do trânsito intestinal efetivo varia principalmente se há associação à atresia intestinal, lesão isquêmica e ressecção cirúrgica extensa. Conforme demonstrado na literatura, o tempo de jejum para os pacientes com GTQ simples foi semelhante em nossa casuística (mediana de 19 dias), com ganho ponderal durante a NPP exclusiva semelhante ao esperado para pacientes em nutrição enteral eutrófica (22g/Kg/dia).

A NPP dessas crianças constitui verdadeiro desafio não somente pela dificuldade do controle eletrolítico e glicêmico, mas também devido à associação entre jejum prolongado e frequentes episódios de sepse bacteriana, ocasionando quase sempre quadro de colestase associada à nutrição parenteral (CANP), que é caracterizado pelo aumento da bilirrubina direta e das enzimas hepáticas. A gravidade e a progressão desse quadro frequentemente prejudica a manutenção da NPP ou mesmo a torna inviável desde que o tratamento proposto é a diminuição dos aminoácidos e da emulsão de lipídeos, ocasionando oferta insatisfatória de nutrientes para um crescimento adequado.

A recente introdução da emulsão lipídica 20% de TCM e óleos de soja, oliva e peixe trouxe uma melhor perspectiva no controle da CANP. A substituição da emulsão de intralípides 20% com TCM pela de TCM/ triglicerídeos de cadeia longa (TCM/TCL), quando ocorre aumento da bilirrubina direta e enzimas hepáticas, ocasiona queda desses indicadores, permite a manutenção da oferta calórico-proteica adequada da NPP e ganho ponderal satisfatório19,20.

Já se observou em trabalhos experimentais de fetos de coelhos com GTQ induzida uma redução na absorção de aminoácidos e glucose quando comparados ao grupo controle e uma diminuição da expressão de genes envolvidos com a absorção de nutrientes nos enterócitos21,22. Nos pacientes do nosso estudo a realimentação foi dificultada pela dismotilidade com frequentes episódios de vômitos e distensão abdominal. A introdução lenta e em pequenos volumes de fórmulas à base de hidrolisados proteicos foi utilizada na maioria dos casos estudados. No entanto, a prescrição do leite humano, quando possível, tem melhor indicação.

A sepse corresponde a uma das principais causas de morbidade e mortalidade no RN, apesar dos avanços nos cuidados intensivos prestados23,24. Acredita-se que a gravidade da evolução clínica se deve a vários fatores como prematuridade e graus variáveis de deficiência na resposta imune, inata e adaptativa25-27, que atuam na interação existente entre o hospedeiro e seu agente agressor e, consequentemente, na ativação de uma cascata de eventos que irão formar a expressão da resposta imune.

A despeito dessa maior suscetibilidade do RN a quadros infecciosos, observa-se que nos pacientes com GTQ há a adição de outros fatores predisponentes como exposição das vísceras ao meio externo, jejum prolongado com maior possibilidade de translocação bacteriana, necessidade de acesso venoso prolongado para NPP e abordagens cirúrgicas com possibilidade de manipulação intestinal.

O estudo de Baird et al.28 demonstrou associação de infecção à ferida operatória em 12,6% dos casos e infecção associada ao CVC em 14,9%, particularmente por Staphylococcus coagulase negativo. Ainda, os autores demonstraram a importância do fechamento precoce do problema abdominal na taxa de complicações infecciosas. Pode-se observar na casuística apresentada uma alta frequência de sepse tardia (58%), sendo 37,9% das infecções associadas ao uso de CVC. Apesar da ampla disponibilidade no uso de cateteres centrais de inserção periférica (PICC) na rotina do serviço (86% dos pacientes) e sua associação a menores taxas de infecção na literatura, a alta taxa de infecção associada ao cateter venoso observada em nosso estudo gera um alerta em relação aos cuidados e direcionamento da terapêutica antimicrobiana, já que 72,7% dessas infecções foram relacionados ao Staphylococcus epidermidis.

 

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Manuscript submitted: Mar 12 2016
Accepted for publication Apr 16 2016

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