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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.27 no.1 São Paulo jan./abr. 2017

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.127645 

ORIGINAL ARTICLE

 

Desempenho escolar e bullying em estudantes em situação de vulnerabilidade social

 

 

Marcela Almeida ZequinãoI; Allana Alexandre CardosoII; Jorge Luiz da SilvaIII; Pâmella de MedeirosII; Marta Angélica Lossi Silva.III; Beatriz pereiraI; Fernando Luiz CardosoII

IUniversidade do Minho (UM)
IIUniversidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
IIIUniversidade de São Paulo (USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: O bullying escolar é caracterizado pela repetitividade das agressões ao longo do tempo, pela intencionalidade em se ferir ou causar sofrimento ao outro e pelo desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas. Não se trata de um fenômeno atual, pois as situações recorrentes de violência entre pares na escola provavelmente acompanham a história dessa instituição. O envolvimento no bullying escolar pode trazer consequências negativas, inclusive, para o processo de ensino-aprendizagem dos estudantes, no qual os envolvidos podem apresentar baixo desempenho, reprovação ou abandono escolar, assim como episódios de indisciplina.
OBJETIVO: identificar o desempenho escolar de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, bem como, analisar as possíveis relações deste desempenho escolar com a participação em situações de violência que caracterizem bullying.
MÉTODO: Participaram 375 crianças e adolescentes do Ensino Fundamental, de ambos os sexos, com idades entre 8 e 16 anos. Os instrumentos utilizados foram: Teste de Desempenho Escolar, Escala Sociométrica e Questionário para o Estudo da Violência Entre Pares. Os dados foram analisados por meio dos testes ANOVA-Two way e correlação de Spearman.
RESULTADOS: O presente estudo indicou que as crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social apresentaram em relação ao desempenho escolar resultados abaixo dos níveis esperados nos três subtestes: escrita, aritmética e leitura, em ambos os sexos e nos diferentes grupos etários. Em uma análise intra e extra-grupo, verificou-se uma diferença significativa entre crianças e adolescentes do sexo feminino em todos os subtestes. Entretanto, o mesmo não foi verificado entre os meninos. Também se verificou relações entre baixo desempenho escolar e participação em situações de bullying, nos quais foi encontrado que o escore no subteste de escrita esteve correlacionado negativamente com praticar agressões e testemunhar violência na escola. Resultado semelhante ocorreu em relação ao subteste de leitura. O escore do subteste de aritmética, por sua vez, correlacionou-se negativa com as três formas de participação em situações de violência escolar: agredir, sofrer agressões e testemunhar violência contra os colegas. Por fim, o escore total obtido no TDE correlacionou-se negativamente de forma significativa com praticar agressões e testemunhar violência.
CONCLUSÃO: Com base nos resultados encontrados no presente manuscrito, identificou-se que a maioria das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social investigados neste estudo, apresentaram desempenho escolar em nível considerado inferior ao esperado para a série/ano que frequentavam. Aliado a tais resultados, verificou-se que meninas adolescentes apresentaram melhor desempenho em relação as crianças do mesmo sexo. Ademais, verificou-se a existência de relações entre baixo desempenho escolar e participação em situações de bullying nas quais os envolvidos assumiam diferentes perfis perante este fenômeno: vítima, agressor e espectador.

Palavras-chave: Palavras-chave: escolaridade, bullying, vulnerabilidade social.


 

 

INTRODUÇÃO

O bullying escolar é caracterizado pela repetitividade das agressões ao longo do tempo, pela intencionalidade em se ferir ou causar sofrimento ao outro e pelo desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas1. Não representa um problema atual, pois as situações recorrentes de violência entre pares na escola provavelmente acompanham a história dessa instituição.

Como o bullying constitui fenômeno social e de grupo, todos os comportamentos dos estudantes envolvidos (vítimas, agressores e espectadores), bem como dos demais membros da comunidade escolar, exercem efeito sobre a sua gênese, manutenção e/ou interrupção. De igual modo, a identificação das nuances por ele apresentadas em diferentes realidades socioculturais é de fundamental importância para a sua prevenção e enfrentamento de modo singular, em conformidade com as características apresentadas por cada instituição escolar e localidade específica2.

No Brasil, um levantamento sobre os índices de prevalência deste tipo de violência realizado no ano de 2002 demonstrou que 40,5% de uma amostra de 5.500 estudantes estavam envolvidos em situações de bullying, com os perfis de vítimas (16,9%), agressores (12,7%) e vítimas/agressoras (10,9%)3. Em 2009, outra investigação nacional identificou uma ocorrência generalizada, principalmente no que se refere ao testemunho de situações de bullying, uma vez que 70% de um grupo de 5.168 estudantes referiram ter presenciado cenas deste fenômeno entre os colegas4. No ano de 2012, a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) em sua segunda edição, realizada com uma amostra de 109.104 estudantes de escolas públicas e privadas dos 27 estados brasileiros, mapeou o fenômeno na atualidade, revelando que que 7,2% eram vítimas de bullying e 20,8% agressores5.

Como se pode notar, os dados de prevalência tipificam o bullying como problemática preocupante. As consequências e impactos negativos que provoca aos estudantes também são amplamente documentados pela literatura especializada. Em geral, essas consequências são englobadas em três grupos e se referem à saúde, ao desenvolvimento psicossocial e ao processo ensino-aprendizagem. No que se refere especificamente ao processo ensino-aprendizagem, denota-se que os estudantes envolvidos podem apresentar baixo desempenho, reprovação ou abandono escolar, assim como episódios de indisciplina6.

De modo geral, no contexto escolar as vítimas faltam às aulas frequentemente e sem motivo, apresentam baixo desempenho, demonstram insegurança ao se manifestar em público e preferem se manter afastadas dos colegas. Já os agressores exercem poder de manipulação nos colegas, que podem inclusive auxiliarem nas agressões, e são responsáveis por instalar um clima de insegurança e medo nas escolas. Dessa forma, demonstra-se que a condição do insucesso escolar é relacionada a todos os estudantes envolvidos em situações de bullying7.

De acordo com Félix, Alamillo e Ruiz8, nos países com economias em desenvolvimento, essa realidade parece se agravar, não somente no que se refere aos níveis e taxas de ocorrência do fenômeno, mas também pela baixa incorporação da temática nas políticas públicas, em práticas curriculares transversais e mesmo pelo campo da ciência. O caráter recente da investigação do bullying nos países em desenvolvimento representa um atenuante dessas considerações, devido à pequena quantidade de produções divulgadas acerca da temática. Não obstante, é preciso considerar que crianças em situações adversas de vida, sejam elas de natureza econômica, social, familiar ou pessoal, podem enfrentar dificuldades de aprendizagem. Essas dificuldades podem ser duradouras ou passageiras, de maior ou menor intensidade, e conduzirem-nas a outros problemas na escolarização, tais como o baixo desempenho, reprovação e, enquanto situação mais grave, o abandono dos estudos9.

Ademais, dificuldades na escolarização se apresentam associadas a outros problemas de natureza comportamental e emocional. As crianças com dificuldades de aprendizagem e de comportamento geralmente se caracterizam como menos envolvidas nas tarefas escolares, além de constituírem um grupo vulnerável ao envolvimento com bullying escolar3.

O baixo desempenho vem sendo relacionado à forma como os estudantes participam em situações de bullying como vítimas, agressores e espectadores 10. Uma lacuna na literatura é a ausência de estudos que investiguem a relação entre desempenho escolar e bullying em populações mais vulneráveis, considerando que ambas as variáveis apresentam características diferenciadas a depender do contexto social investigado. Na realidade brasileira, especialmente, variações na qualidade do ensino público e as desigualdades entre os estratos sociais são dois problemas que permitem considerar a escola como um produto social desigualmente distribuído11.

Assim, existem localidades ou regiões assinaladas por níveis mais elevados de desigualdade social e de acesso a serviços com maior qualidade e cujos habitantes se encontram em situação de vulnerabilidade social, cuja definição corresponde "à condição de não possuir ou não conseguir usar ativos materiais e imateriais que permitiriam ao indivíduo ou grupo social lidar com a situação de pobreza"12. O acesso a informações e conhecimentos de qualidade na escola, que se refletem na aprendizagem e desempenho escolar, podem auxiliar os estudantes em situação de vulnerabilidade a lidarem melhor ou superarem essa situação, considerando-se que experiência vivenciada na escola contribui para diferentes trajetórias de desenvolvimento de crianças e adolescentes, exercendo forte impacto sobre suas vidas no futuro13.

Nesse contexto também se localiza o bullying, pois um melhor desempenho escolar dificulta o envolvimento em situações de violência na escola10. Assim, o objetivo é identificar o desempenho escolar de crianças e adolescentes moradores em comunidades consideradas de vulnerabilidade social na região metropolitana de Florianópolis (SC), bem como analisar as possíveis relações deste desempenho com a participação em situações de violência que caracterizem bullying (vitimização, prática de agressões e testemunho de violência).

 

MÉTODO

Participantes

Os participantes deste estudo transversal descritivo com amostragem intencional foram 375 crianças e adolescentes do 3º ao 7º ano do Ensino Fundamental, estudantes de duas escolas públicas localizadas na região metropolitana da cidade de Florianópolis-SC. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, entende-se por criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela com a faixa etária entre 12 a 18 anos de idade. Em termos de caracterização, os participantes apresentaram idade no intervalo compreendido entre 8 e 16 anos, sendo que entre as crianças a média de idade foi 10,3 anos para os meninos (n = 123) e 9,8 anos para as meninas (n = 132), enquanto para os adolescentes foi 12,77 (n = 83) e 12,97 (n = 70) respectivamente.

A mobilidade escolar dos participantes se mostrou equivalente para ambos os sexos e grupos etários, com frequência média aproximada de 2,5 escolas. Em relação à cor da pele, entre as crianças os meninos se autodeclararam de cor branca (65,0%), morena (17,9%), preta (11,4%) e parda (5,7%), e as meninas se autodeclararam branca (75,0%), morena (15,9%), preta (7,6%) e parda (1,5%). Já entre os adolescentes os meninos se autodeclararam de cor branca (73,5%), morena (13,3%), preta (7,2%) e parda (6,0%), enquanto as meninas foram branca (70,0%), morena (15,7%), preta (11,4%) e parda (2,9%).

Instrumentos

Teste de Desempenho Escolar - TDE14, que avalia o nível de desempenho escolar no Ensino Fundamental até 6ª série/7º ano. É composto por três subtestes: escrita, aritmética e leitura. O somatório dos escores de cada subteste resulta em um escore bruto total que possibilita uma classificação do desempenho dos estudantes em três níveis: superior, médio e inferior, de acordo com cada série/ano escolar que frequentam.

Escala Sociométrica15, instrumento constituído por perguntas do cotidiano da sala de aula que envolvem comportamentos característicos de estudantes envolvidos em situações de bullying escolar enquanto vítimas e agressores. Cada participante indica o nome de três colegas de classe que mais se encontram envolvidos nas situações descritas. Assim, todos os alunos tiveram dois escores, sendo um para agressão e outro para vitimização, gerados pelo número de vezes em que foram citados, o que possibilitou a classificação enquanto vítima ou agressor.

Questionário para o Estudo da Violência Entre Pares16, estruturado em questões fechadas, sendo que aquelas referentes a ser espectador de bullying são respondidas através de uma escala Likert de 5 pontos, em que 1 = nunca, 2 = pouco, 3 = às vezes, 4 = frequentemente, 5 = sempre. Com o somatório de pontos de todas as questões, cada participante obteve um escore para a participação no bullying escolar enquanto espectador.

Procedimentos

Para a realização da pesquisa obteve-se autorização da Secretaria Municipal de Educação e da direção das escolas. Em todas as etapas da investigação foram seguidas as recomendações e orientações da resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Primeiramente, o projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado de Santa Catarina-UDESC (Protocolo nº5439/2011).

Com base no número de crianças e adolescentes participantes em um projeto social que atende estudantes em situação de vulnerabilidade social da região metropolitana de Florianópolis, um tamanho de amostra foi calculado assumindo um alfa de 0,5 e poder de 50%. A partir do cálculo amostral, o mínimo esperado eram 316 participantes. O tamanho da amostra final foi de 375. A seleção das duas escolas participantes do estudo foi intencional, por acessibilidade e por participarem do projeto social.

Previamente à coleta dos dados, as crianças e adolescentes receberam informações detalhadas sobre a pesquisa. Somente participaram os estudantes que manifestaram vontade em colaborar com a investigação e apresentaram assinado por um responsável o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE. A coleta ocorreu nas escolas, durante o horário das aulas. Para se avaliar o desempenho escolar,os participantes responderam o Teste de Desempenho Escolar - TDE. Em seguida, preencheram a Escala Sociométrica, com vistas à identificação dos papeis que desempenhavam em relação ao bullying. Posteriormente, para se verificar se testemunhavam situações de bullying na escola, responderam ao Questionário para o Estudo da Violência Entre Pares. Os instrumentos foram aplicados e supervisionados por dois pesquisadores.

Análise dos dados

Inicialmente realizou-se uma análise exploratória dos dados, com o intuito de sumarizar as informações obtidas no estudo. As variáveis qualitativas foram descritas em termos de frequência absoluta e percentual, já as variáveis quantitativas estão descritas por média e desvio padrão.

Para atingir os objetivos do estudo optou-se por utilizar Análise de Variância de dois fatores (ANOVA-Two way) para comparar conjuntamente o efeito do sexo e da diferença entre crianças e adolescentes (grupo etário). A metodologia de Análise de Variância, baseia-se em particionar a variância total de uma determinada resposta (variável dependente) em duas partes: a primeira devida ao modelo de regressão (no caso, intra-grupo e extra-grupo para sexo e grupo etário) e a segunda devida aos resíduos (erros) (dentro dos grupos). Quanto maior for a primeira em relação à segunda, maior é a evidência da diferença entre as médias dos grupos em estudo (sexo e grupo etário). Esse modelo tem como pressuposto que seus resíduos tenham distribuição normal com média 0 e variância constante. Este pressuposto foi checado em a cada análise realizada, os resultados foram obtidos com o auxilio do software SAS® 9, através da PROCEDURE GLM.

Para relacionarmos os papeis de participação em situações de violência na escola e as medidas de desempenho escolar utilizamos o coeficiente de correlação de Spearman, que quantifica a associação entre duas variáveis quantitativas. Este coeficiente varia entre os valores -1 e 1. O valor 0 (zero) significa que não há relação linear, o valor 1 indica uma relação linear perfeita e o valor -1 também indica uma relação linear perfeita mas inversa, ou seja quando uma das variáveis aumenta a outra diminui. Quanto mais próximo estiver de 1 ou -1, mais forte é a associação linear entre as duas variáveis. Os resultados foram obtidos com o auxílio do software SAS® 9.0, através da PROCEDURE CORR. Já os gráficos que compõem a matriz de correlação foram construídos com o auxílio do software R (Versão 3.1.3).

Em todas as análises adotou-se um nível de significância fixo em 5%.

 

RESULTADOS

Na avaliação feita pelo Teste de Desempenho Escolar, o maior percentual de estudantes se localizou no nível inferior de desempenho escolar esperado para a série/ano que frequentavam, em ambos os sexos e nos diferentes grupos etários, nos três subtestes que compõem o instrumento: escrita, aritmética e leitura. O desempenho mais baixo ocorreu no subteste de aritmética tanto para meninos, quanto para meninas, nas diferentes idades.

Em contrapartida, o subteste de leitura apresentou os melhores escores, embora também esteja situado abaixo da média para a maioria dos estudantes pesquisados, tanto para o sexo feminino quanto para o masculino. A pouca oscilação nos escores dos subtestes colaborou para que o escore total do TDE igualmente refletisse o baixo desempenho escolar apresentado pelos participantes da pesquisa, conforme apresentado na Tabela 1.

 

Tabela 2

 

 

Tabela 3

 

Os resultados das correlações entre os escores do TDE e as formas de participação em situações de violência escolar, indicam a existência de correlações negativas baixas, porém a maioria significativas. O escore no subteste de escrita esteve correlacionado negativamente, em níveis significativos, com praticar agressões e testemunhar violência na escola. Resultado semelhante ocorreu em relação ao subteste de leitura. O escore do subteste de aritmética, por sua vez, correlacionou-se negativa e significativamente com as três formas de participação em situações de violência escolar (agredir, sofrer agressões e testemunhar violência contra os colegas). Por fim, o escore total obtido no TDE correlacionou-se negativamente de forma significativa com praticar agressões e testemunhar violência (Tabela 4 e Figura 1).

 

DISCUSSÃO

Os dados produzidos no presente manuscrito indicaram que crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social apresentaram, em relação ao desempenho escolar, resultados abaixo dos níveis esperados para as suas respectivas séries/anos escolares, preponderando para os três subtestes (escrita, aritmética e leitura) a classificação inferior para a maioria dos estudantes investigados, em ambos os sexos e nas diferentes faixas etárias. Em termos de comparação, o resultado mais baixo ocorreu no subteste de aritmética, ao passo que os resultados menos ruins se localizaram no subteste de leitura. Resultados semelhantes foram encontrados por Capellini et al.17 em estudo realizado com uma amostra de estudantes paulistas de uma escola pública, e por Ferreira, Conte e Marturano18 com um grupo de escolares com problemas de comportamento na escola.

De igual modo, na investigação de Silva et al.19, realizada também na região metropolitana de Florianópolis, em uma escola de localização periférica, os resultados também não apontaram diferenças significativas entre os sexos. Todavia, se tratava de uma amostra composta apenas por alunos com dificuldade de aprendizagem. A semelhança entre os resultados desta investigação e dos demais estudos apresentados, em que foram avaliadas crianças e adolescentes com perfis diferentes, porém todas estudantes de escolas públicas, indica que talvez a qualidade do ensino público não esteja adequada apenas em localidades consideradas de vulnerabilidade social, mas trate-se de uma problemática mais geral e abrangente.

Não obstante, a literatura compreende o desempenho influenciado não somente por variáveis intraescolares, em termos da qualidade da educação oferecida aos estudantes, bem como a outras variáveis de natureza extraescolar, tais como, o nível socioeconômico, o acesso a outros recursos sociais, e o contexto social e cultural das crianças e adolescentes em idade escolar20. Independente das causalidades do baixo desempenho dos participantes deste estudo, o escore total no TDE em nível inferior por eles apresentado, denota dificuldades muito acentuadas na aprendizagem e domínio dos conteúdos escolares, o que pode dificultar-lhes a mobilidade social, de modo a saírem da condição de vulnerabilidade em que se encontram21.

Contudo, apesar dos baixos resultados encontrados para todos os subtestes do desempenho escolar, verificou-se uma diferença entre as crianças e adolescentes do sexo feminino. Os dados indicaram melhor desempenho das meninas mais velhas em relação as mais novas. Entretanto, o mesmo não foi observado no sexo masculino. Isso indica o baixo rendimento como uma característica presente na infância e na adolescência dos meninos participantes da pesquisa, a qual pode se manter estável para esse grupo ao longo dos anos escolares.

Assim sendo, suas respectivas trajetórias na escolarização podem ser prejudicadas, tendo em vista diversos estudos indicarem que quanto menor o desempenho, maiores são as chances de ao longo do tempo ocorrerem desvinculação, evasão e manifestação de problemas comportamentais, decorrentes da frustração em relação à capacidade para a aprendizagem10. Na contramão desse processo, um bom desempenho pode exercer efeito de proteção, mitigando a relação existente entre insucesso escolar e o surgimento de problemas psicossociais e comportamentais, por acrescentar à experiência educacional elementos positivos, como o interesse pelos conteúdos aprendidos.

Os resultados das correlações entre os escores nos subtestes de escrita e leitura e a participação em situações recorrentes de violência na escola, indicam relação significativa com praticar agressões e testemunhar violência na escola. Esses achados estão de acordo com outras investigações que apontam o baixo desempenho vinculado a um maior envolvimento no bullying escolar10. De modo similar, uma pesquisa realizada na Jamaica identificou que os alunos agressivos possuíam maiores desvantagens escolares em termos de habilidades de leitura e escrita e baixas aspirações educacionais. Eram também mais propensos a emitirem respostas agressivas frente a estímulos recebidos, em detrimento de respostas alternativas, acreditando que esses atos geravam resultados positivos22.

Depreende-se, portanto, que o baixo desempenho se correlaciona à prática de agressões. No entanto, os dados não permitem a constatação de relações de causalidade, o que poderia esclarecer se baixo desempenho torna os estudantes mais predispostos à prática de agressões contra colegas na escola, ou se o envolvimento nestas situações prejudica o desempenho. O mais importante, contudo, é a sinalização de que as crianças e adolescentes com baixo desempenho, além de estarem sujeitos ao enfrentamento de problemas na escolarização, em decorrência de dificuldades na aprendizagem, como por exemplo, a desvinculação e a evasão escolar, também podem se envolver em problemas comportamentais, como a prática de agressões, conforme também sinaliza a literatura10.

Em continuidade, o testemunho da violência contra os colegas na escola também se correlacionou aos resultados de leitura e escrita no TDE, indicando que crianças e adolescentes que presenciam situações de violência tendem a ter menor desempenho. Segundo a literatura, os espectadores são indiretamente afetadas pelas situações de bullying, devido ao estresse emocional causado, pois podem sentirem-se culpadas por não terem ajudado a vítima ou então desamparados pelas autoridades escolares. Isto colabora para que se sintam inseguros na escola e tornem-se desatentos em sala de aula, prejudicando seu desempenho escolar23.

Outros estudos também atestam essa relação, ressaltando que, também podem desenvolver sentimentos de aversão à escola, problemas de frequência, evasão, técnicas de neutralização (culpar a vítima), crenças favoráveis à eficácia da violência na resolução de conflitos e que, a longo prazo, estes efeitos negativos de se testemunhar violência na escola podem ser tão prejudiciais quanto o dano causado por experiências concretas vivenciadas24. Embora muitas vezes os estudos sobre bullying direcionem seu foco às vítimas e agressores, os espectadores merecem atenção, pois representam maior quantidade em relação aos outros dois perfis, e como demonstrado neste estudo, existe relação entre se presenciar violência e o desempenho desses estudantes.

Para finalizar, as correlações significativas entre os escores do subteste de aritmética com as três formas de participação em situações de violência escolar, denotam não somente o baixo desempenho como potencializador do envolvimento em situações de bullying, bem como as dificuldades que os estudantes investigados enfrentam na aprendizagem dos conteúdos matemáticos, considerando-se que mais de 81% deles localizaram-se no nível inferior em aritmética. Os resultados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), realizado no ano de 2003, localizou os estudantes brasileiros em 40º lugar em matemática em um total de 41 países avaliados25. Na edição de 2013 deste programa, o Brasil melhorou modestamente sua colocação, ficando em 38º lugar entre 44 países. Malgrado os desafios enfrentados, o baixo desempenho em matemática parece impactar mais nos estudantes vitimizados, pois foi o único subteste de desempenho que correlacionou significativamente para esse grupo, ao passo que leitura, escrita e escore total do TDE correlacionaram-se significativamentecom agressão e testemunhar violência.

Apesar das contribuições apresentadas por este estudo à literatura nacional acerca da relação entre desempenho escolar e participação em situações de bullying entre estudantes em situação de vulnerabilidade social, especialmente considerando a escassez de produções nacionais atinente a essas três temáticas, algumas limitações necessitam serem destacadas. O delineamento transversal impede a realização de inferências sobre direção das relações identificadas, não permitindo o estabelecimento de causalidades. Pesquisas futuras podem adotar delineamento longitudinal, por esse possibilitar o acompanhamento de alterações ocorridas ao longo do tempo, de modo a identificar os efeitos exercidos pelo baixo desempenho escolar no envolvimento em situações de bullying, identificando assim relações de causa e efeito.

Outra limitação ocorreu por não se avaliar diretamente a situação de vulnerabilidade social dos participantes, contando apenas com os critérios adotados pelo programa social que participavam. Estudos futuros podem avançar nessa direção. De igual modo, não foram coletados dados de outros grupos de estudantes que não apresentassem vulnerabilidade social, o que limitou a interpretação dos resultados, por se utilizar exclusivamente informações da literatura. Ressalta-se a importância de mais estudos quantitativos que visem suprir essa limitação para que possam tornar mais clara à relação entre o desempenho escolar e o bullying, com o objetivo de obter dados mais explicativos que possam subsidiar esforços de prevenção e enfrentamento destes dois problemas nas escolas.

Apesar de tais limitações, os resultados acerca das correlações entre desempenho escolar e participação em situações de bullying (vítimas, agressores e espectadores) reforçam a relevância do tema, pois confirmam as indicações do bullying enquanto problema de saúde pública devido à sua elevada prevalência e aos prejuízos que causa ao desenvolvimento saudável e o bem-estar psicossocial de crianças e adolescentes5. Identificar diferentes formas de manifestação da violência contra crianças e adolescentes e o modo como afetam as suas vidas é fundamental para oferecer cuidado. Assim, os resultados obtidos neste estudo podem colaborar na elaboração de programas de intervenção vinculados à estratégia de promoção da saúde e à integralidade do cuidado na escola, na perspectiva de um modelo emancipatório, que busque o empoderamento e a participação dos sujeitos envolvidos. Perspectiva importante para alterações de trajetórias de vulnerabilidade social ou envolvendo violência, especialmente se compreender uma dimensão que integre múltiplos setores e envolva tanto aspectos macroestruturais (a exemplo das políticas públicas sociais), como a articulação e integração de diferentes setores e serviços na perspectiva da intersetorialidade e integralidade, definindo-se e estabelecendo-se redes de apoio e proteção.

A relevância desse estudo consiste na contribuição para uma abordagem da relação entre desempenho escolar e bullying em diferentes grupos etários que vivem em um contexto específico de vulnerabilidade social. Sugere-se que a temática continue a ser estudada nessa perspectiva para que se tenham mais dados que possibilitem comparar o fenômeno em diferentes grupos e camadas sociais, além de ampliar a nossa compreensão sobre o que causa ou elicia essa pratica social no ambiente escolar.

 

CONCLUSÃO

Com base nos resultados encontrados no presente manuscrito, identificou-se que a maioria das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social investigados neste estudo, apresentaram desempenho escolar em nível considerado inferior ao esperado para a série/ano que frequentavam. Aliado a tais resultados, verificou-se que meninas adolescentes apresentaram melhor desempenho em relação às crianças do mesmo sexo, entretanto, o mesmo não foi verificado entre os meninos. Ademais, verificou-se a existência de relações entre baixo desempenho escolar e participação em situações de bullying nas quais os envolvidos assumiam diferentes papéis perante este fenômeno (vítima, agressor e espectador). Depreende-se a partir dos resultados a necessidade de melhora do desempenho dos estudantes investigados, com vistas não somente a aumentar as chances de progredirem pessoal e profissionalmente, considerando a situação de vulnerabilidade social que se encontram, bem como de evitar o envolvimento em situações de violência escolar.

 

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ORIGINAL ARTICLE

 

 

 

Endereço para correspondência:
Marcela Almeida Zequinão
Universidade do Minho (UM)

Manuscript submitted: 2016
Accepted for publication May 2016

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