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Journal of Human Growth and Development

Print version ISSN 0104-1282On-line version ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.27 no.2 São Paulo May/Aug. 2017

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.122707 

ARTIGO ORIGINAL

 

Recursos familiares e promoção do desenvolvimento de crianças com paralisia cerebral

 

 

Carla Matheus MorillaI; Carla Andrea Cardoso Tanuri CaldasII; Amanda Cristina Alcantara Verceze ScarpelliniIII; Patricia Leila dos SantosIV

IFaculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - Av. Bandeirantes, 3900, Bairro Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP, Brasil, CEP 14049-900 Brasil; Aluna do Curso de Fisioterapia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP
IICaldas - Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP - Campus Universitário, S/N, Ribeirão Preto, SP, Brasil, CEP 14048-900/ Médica Assistente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo
IIIHospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP - Campus Universitário, S/N, Ribeirão Preto, SP, Brasil, CEP 14048-900 Brasil/ Fisioterapeuta do Centro de Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo
IVFaculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - Av. Bandeirantes, 3900, Bairro Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP, Brasil, CEP 14049-900/Professor Doutor do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, Divisão de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: A Paralisia Cerebral (PC) descreve um grupo de desordens permanentes do movimento e da postura, causando limitação da atividade, atribuído a um distúrbio não progressivo que ocorre no cérebro em desenvolvimento. Assim, a família da criança com PC torna-se essencial e será muito exigida, tanto para conduzir o desenvolvimento da criança num ambiente favorável quanto para a manutenção de suas condições de saúde. Um bom funcionamento familiar e uma variedade de estímulos ambientais podem ser decisivos para apoiar a criança com PC.
OBJETIVO: Analisar a dinâmica familiar e a disponibilidade de recursos promotores de desenvolvimento infantil presentes no ambiente familiar de crianças com Paralisia Cerebral.
MÉTODO: Foi recrutada uma amostra de 25 mães de crianças com PC seguidas no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. As mães preencheram a Escala de Avaliação da Coesão e Adaptabilidade Familiar (FACES IV), o Inventário de Recursos do Ambiente Familiar (RAF) e um questionário sociodemográfico.
RESULTADOS: A idade média das mães foi de 32,3 (±7,6) anos, 68% com pelo menos o ensino fundamental completo e 80% viviam com companheiro. A idade média das crianças foi de 48,0 (±15,5) meses; 56% delas eram meninas e 68% das crianças da amostra frequentava creche ou pré-escola. Foram observadas correlações moderadas entre recursos ambientais e funcionamento familiar (0,39<r<0,70), sendo que as escalas indicativas de boa funcionalidade familiar do FACES IV apresentaram correlações positivas com o escore geral do RAF.
CONCLUSÃO: As crianças com PC têm poucas oportunidades de participação em atividades fora da casa, mas tem recebido uma boa oferta de recursos em seus lares. O bom funcionamento ou dinâmica familiar mostrou associação com a maior oferta de recursos no ambiente doméstico.

Palavras-chave: paralisia cerebral, familia, desenvolvimento infantil, fatores de proteção, relações familiares.


 

 

INTRODUÇÃO

A paralisia cerebral (PC) constitui-se em uma condição de risco ao desenvolvimento infantil e desencadeia uma série de situações que podem agravar ou proteger a criança e seu desenvolvimento. A PC, ou encefalopatia crônica não progressiva da infância, descreve um grupo de desordens permanentes do desenvolvimento, do movimento e da postura, causando limitação da atividade, e que é atribuída a um distúrbio não progressivo que ocorre no cérebro durante o desenvolvimento fetal ou na infância. As desordens motoras são frequentemente acompanhadas de alterações sensitivas, de percepção, cognitivas, de comunicação, de comportamento, epilépticas e musculoesqueléticas secundárias1,2.

A PC pode ser consequência de eventos pré, peri ou pós-natal, como: hemorragia intraventricular em prematuros, consumo de álcool e cocaína por parte da gestante, infecções na mãe ou na própria criança (rubéola, toxoplasmose, citomegalovirus, meningite), deslocamento de placenta, asfixias, acidentes no momento do parto, traumatismo crânio-encefálico, prematuridade, baixo peso ao nascer e meningoencefalites no recém-nascido1,3.

A classificação da PC pode ser feita pelas características clínicas dominantes: espástico, discinético e atáxico; pelos membros afetados (hemiparesia, diparesia e quadriparesia); de acordo com o comprometimento motor das funções motoras globais (GMFCS I a V); e, quanto a distribuição anatômica, em unilateral (monoparética, hemiparética) e bilateral (diparética, triparética e quadriparética)1,4.

Com o avanço dos recursos da saúde, a sobrevivência de crianças com algum acometimento ou complicação tem sido favorecida, havendo uma tendência de elevação dessas taxas. Nas últimas 5 décadas, houve uma melhora na atenção neonatal e obstétrica, resultando em um declínio significativo da mortalidade infantil. Devido a isso, há uma grande preocupação clínica e científica sobre o aumento de crianças nascidas com sequelas neurológicas2.

Não há dados de prevalência da doença no Brasil. Alguns autores1,5,6 comentam que, em países em desenvolvimento, a incidência da doença é de 7 por 1000 e que no Brasil ocorrem cerca de 30.000 a 40.000 casos novos por ano. Entretanto, tais dados são do início dos anos 2000, faltando estudos atualizados.

Os prejuízos decorrentes da PC podem ser variados, podendo incluir problemas cognitivos, visuais e auditivos, além das disfunções motoras e sensoriais, interferindo em todo o desenvolvimento infantil e impondo limitação funcional e dependência de outras pessoas6.

Assim, a família da criança com PC, considerando todas as características da doença, torna-se essencial e será muito exigida, tanto para conduzir o desenvolvimento da criança em um ambiente favorável quanto para o cuidado e manutenção de suas condições de saúde. A criança com PC vai requerer da mãe e da família maior paciência e sensibilidade para que possa adquirir segurança acerca do mundo que a rodeia, para desenvolver-se em ritmo próprio e para estabelecer um vínculo positivo com o ambiente, partindo de suas possibilidades3.

Alguns autores7,8 apontam uma série de fatores presentes no ambiente familiar que podem afetar de modo negativo o desenvolvimento infantil: desemprego dos pais e problemas financeiros; baixa escolaridade materna; brigas conjugais; expectativas limitadas dos pais quanto ao desenvolvimento dos filhos; abusos físicos e emocionais dirigido às crianças; negligência ou interação limitada mãe/bebê; a presença de quatro ou mais filhos; mau desempenho de papéis familiares; valores, normas e a comunicação escassos.

Outros fatores podem favorecer o desenvolvimento. A autonomia, condição social positiva, união e suporte familiar, a adoção de uma rotina diária, de um meio de comunicação que facilite a compreensão de necessidades e a ajuda de parentes e de amparos sociais contribui para atenuar ou neutralizar o efeito de condições adversas de desenvolvimento. Um bom funcionamento familiar e uma grande variedade de estímulos ambientais podem ser decisivos para apoiar a criança acometida pela PC7.

É importante considerar que durante a infância as crianças são expostas a diversos estímulos e desenvolvem habilidades que ajudam a impulsionar seu próprio desenvolvimento, estabelecendo uma interação com o ambiente em que vive. Este influencia e é influenciado pela criança, contribuindo para o processo do desenvolvimento9. Entretanto, as doenças na infância são um ponto de interferência negativa no desenvolvimento da criança, desequilibrando seu organismo e, por consequência, o ambiente ao seu redor.

Considerando que há uma interação entre os aspectos cognitivos, sociais, afetivos e físicos, é preciso olhar para todos eles ao estudar o desenvolvimento infantil, como eles se integram e como alterações nestas diferentes dimensões do desenvolvimento podem impactar sobre a criança, sua família e o ambiente no entorno dessa.

Mudanças vêm ocorrendo nas famílias, decorrentes da intensa participação das mulheres (mães) no mercado de trabalho, do aumento da diversidade familiar e das novas formas de olhar o sistema familiar, mas a família continua sendo o principal contexto de socialização das crianças, mantendo-se o grande responsável pelo cuidado, pela transmissão de valores e por organizar a vida e a rotina dos membros mais jovens10.

A maioria dos estudos sobre PC tem focalizado sobre seus aspectos clínicos, entretanto, considerando a importância do papel da família neste contexto e a escassez de estudos voltados aos aspectos psicossociais envolvidos na condição de PC na infância, o objetivo deste estudo foi analisar a dinâmica familiar e a disponibilidade de recursos promotores de desenvolvimento infantil presentes no ambiente familiar de crianças com Paralisia Cerebral.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo transversal, descritivo e correlacional, com análise quantitativa de dados e critérios de inclusão previamente determinados. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (CAAE n. 27390114.1.0000.5440) e está de acordo com a Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde e as normas internacionais de pesquisa com seres humanos, tendo adotado todos os procedimentos éticos recomendados. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Participantes

Foi recrutada uma amostra não probabilística de 25 mães de crianças com diagnóstico de PC. Todas as crianças eram acompanhadas no Centro de Reabilitação (CER), ou nos ambulatórios de Espasticidade e Distonia na Infância - ESDI e de Neurorreabilitação Infantil (NRI), todos serviços do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

Os critérios de inclusão para o estudo foram: ter um filho com PC com idade superior a dois e inferior a 7 anos; ser maior de 18 anos. Os critérios de exclusão foram: a criança ter alguma comorbidade psiquiátrica; a mãe ter qualquer dificuldade para responder à entrevista (informado pela equipe do serviço).

Instrumentos

As mães dos pacientes foram entrevistadas para preenchimento de um questionário de informações sociodemográficas dos participantes (idade, sexo, escolaridade, situação conjugal e ocupacional, classe econômica) e das crianças (sexo, idade, escolaridade, presença de irmãos).

O grau de comprometimento da função motora foi medido pelo Sistema de Classificação da Função Motora Grossa11 (GMFCS), baseado na observação do movimento iniciado voluntariamente, com ênfase no sentar, transferências e mobilidade. A classificação varia de I (menor comprometimento) a V (maior comprometimento), considerando-se as limitações funcionais, a necessidade de dispositivos manuais para mobilidade (tais como andadores ou muletas) ou mobilidade sobre rodas, e a qualidade do movimento. Para cada nível são fornecidas descrições quanto à função, separadas por faixa etária. O enfoque do GMFCS está em determinar qual nível melhor representa as habilidades e limitações na função motora grossa que a criança ou o jovem apresenta.

A Escala de Avaliação da Coesão e Adaptabilidade Familiar - versão IV (FACES IV) foi utilizada para avaliar o funcionamento familiar. O instrumento é constituído por 62 itens, que são distribuídos em duas subescalas equilibradas (coesão e flexibilidade), quatro subescalas desequilibradas (desligada, emaranhada, caótica e rígida) e duas subescalas que avaliam dimensões facilitadoras do funcionamento familiar (comunicação e satisfação). Os itens são respondidos em uma escala Likert de cinco pontos. O resultado é calculado a partir da combinação dos escores das escalas equilibradas e desequilibradas e permitem diferenciar entre famílias saudáveis e não saudáveis12. Foi utilizada a versão brasileira, fornecida pelos autores da escala13.

Para avaliar a disponibilidade de recursos no ambiente foi utilizado o Inventário de Recursos do Ambiente Familiar14 (RAF), que aborda três domínios: recursos que promovem aproximação familiar; atividades que mostram estabilidade na vida familiar; práticas parentais que promovem a ligação família-escola. O inventário é aplicado em formato de entrevista, preenchendo-se o mesmo a partir da resposta da mãe. É composto por 101 itens, distribuídos em 10 tópicos: atividades recreativas em casa ou na vizinhança; passeios com a família; atividades programadas e regulares; atividades conjuntas com pais em casa; brinquedos; jornais e revistas; livros; apoio e supervisão escolar; organização de horários; família reunida para atividades de rotina. O escore é calculado pela soma total de itens assinalados em cada tópico e são calculados os escores relativos para cada um.

Procedimento

O contato inicial com as mães foi feito no ambulatório, no dia da consulta da criança. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e os instrumentos foram preenchidos pelo pesquisador, a partir das informações fornecidas pelo familiar.

Análise de dados

Os dados foram armazenados em planilhas do SPSS 17.0, realizando-se a análise descritiva dos mesmos e aplicando-se o teste de correlação de Spearman para verificar as associações entre as variáveis, recursos e funcionamento familiar.

 

RESULTADOS

A idade das mães variou entre 19 e 50 anos (média=32,3 ±7,6 anos), 68% delas tinham pelo menos o ensino fundamental completo e 80% viviam com companheiro. Apenas uma participante residia sozinha com a criança. A tabela 1 apresenta informações referentes às mães.

Quanto às crianças, a idade variou entre 24 e 77 meses (média=48,0±15,5 meses), 56% eram meninas e 68% das crianças da amostra frequentava creche ou pré-escola, paresentamos os dados na tabela 2.

A tabela 3 mostra os resultados referentes aos recursos disponíveis no ambiente familiar. Observa-se que os tópicos com maiores índices foram: realização de atividades conjuntas com os pais em casa; presença de brinquedos na casa e atividades recreativas em casa ou vizinhança. O recurso menos disponível refere-se a atividades programadas ou regulares.

Sobre o funcionamento familiar, três famílias (12%) foram consideradas disfuncionais. A tabela 4 mostra os resultados médios dos participantes para cada subescala da escala FACES IV.

Quanto às associações entre recursos ambientais e funcionamento familiar, foram observadas correlações moderadas (0,39<r<0,70), sendo que as escalas positivas ou indicativas de boa funcionalidade familiar (coesão, flexibilidade, comunicação e satisfação) do FACES IV apresentaram correlações positivas com o escore geral do RAF. Todas as correlações que se mostraram significativas são apresentadas na tabela 5.

As subescalas Emaranhada e Rígida do FACES IV não se correlacionaram com nenhum recurso ambiental investigado. Os recursos referentes a atividades conjuntas com pais em casa, organização de horários e família reunida para atividades de rotina não se correlacionaram com funcionamento familiar.

 

DISCUSSÃO

Este estudo contribui para a ampliação do conhecimento sobre a influência da família no desenvolvimento de crianças com paralisia cerebral e pode contribuir para o planejamento de ações que visem promover o desenvolvimento mais saudável dessas crianças.

O grupo de mães participantes é bastante semelhante ao referido por outros pesquisadores, com mães jovens, com boa escolaridade e ativas profissionalmente15.

Observou-se que a maioria das famílias incluiu dois cônjuges, o que se configura como fator de proteção ao desenvolvimento, uma vez que permite o compartilhamento de cuidado e a oferta de apoio ao cuidador principal. Pesquisadores16,17 enfatizam que a união afetiva dos pais, os laços estreitos dos filhos com a imagem paterna e o apoio do pai na rotina de uma família com PC tendem a reforçar positivamente o desenvolvimento psicomotor da criança e diminuir os níveis de estresse familiar. A presença de uma figura paterna na casa pode oferecer um maior apoio instrumental, com ajuda financeira, transporte, custeio de medicamentos e moradia. O pai/padrasto também pode oferecer suporte social e assistência emocional, com solução de problemas simples, atenção, amor, carinho e compreensão.

O bom nível de escolaridade predominante na amostra (68% das mães com ensino fundamental completo ou acima) e o nível socioeconômico das famílias evidenciam que a PC é uma desordem que acomete criança independente de condições culturais ou financeiras. Neste sentido, vale lembrar que a PC pode ser consequência de diferentes eventos pré, peri ou pós-natal, que não estão associados necessariamente a condições precárias de vida1,3.

Pouca escolaridade dos pais e pertencer à classe social baixa constituem-se em riscos ao desenvolvimento infantil7,8,17. Por outro lado, é sabido que algumas condições da própria criança, de seu contexto familiar e do contexto mais amplo podem melhorar a resposta da mesma diante do risco de desadaptações7. Assim, considerando que ter PC já se configura em risco ao processo desenvolvimental, as características das mães e famílias encontrados neste estudo podem se estabelecer como condições de proteção para estas crianças.

O diagnóstico de PC impacta de maneira significativa as famílias porque se deparam com a frustração, perda psicológica do filho idealizado, desconhecem qual o significado da PC, os cuidados necessários à criança e como será o desenvolvimento da mesma. As demandas de uma criança com PC alteram o cotidiano da família e provocam a reorganização das rotinas da casa, das relações familiares, alterações no planejamento financeiro. Associa-se a isto a percepção de desamparo, insegurança e frustração diante das restrições e prejuízos funcionais e desenvolvimentais da criança. Gradativamente, a família vai desenvolvendo estratégias para adaptar-se ao contexto e necessidades da criança e elaborando uma nova rotina18.

Os cuidados requeridos pela criança com PC podem impactar substancialmente o orçamento familiar, porque geram gastos maiores do que uma criança sem PC ou porque algum membro da família necessita interromper suas atividades fora de casa (incluindo as atividades laborais) para dedicar-se ao cuidado intensivo da criança19. Observou-se que as famílias parecem ter desenvolvido estratégias para enfrentar os gastos extras: as mães continuaram trabalhando (muitas delas trabalham de forma autônoma e transformaram sua casa em seu ambiente de trabalho) e os casais continuaram unidos (as mães contam com o apoio do cônjuge), minimizando riscos que poderiam advir da diminuição da renda familiar.

O bom perfil socioeconômico apresentado pelos participantes precisa ser analisado com cautela, pois a pesquisa foi realizada em um hospital público de atenção terciária, que oferece atendimento altamente especializado. Um dos ambulatórios onde os participantes foram recrutados realiza o tratamento com toxina botulínica, que tem alto custo e deve ser associado à fisioterapia20. Esses tratamentos nem sempre estão disponíveis no mesmo serviço ou através de planos de saúde, devido às especificidades do procedimento.

O fato de muitas crianças não estarem frequentando creche ou pré-escola chama a atenção porque a instituição escolar é um recurso que pode auxiliar e impulsionar o desenvolvimento das crianças em geral. A inclusão de crianças com deficiências em escolas regulares ou a garantia à educação está prevista em lei no Brasil. Existe uma série de discussões sobre o que de fato é inclusão e sobre o direito de as crianças com deficiências serem atendidas em suas necessidades, que em geral requer uma série de adaptações do ambiente escolar21. A dificuldade de adequação das instituições pode ser um dos entraves para esta participação em instituições de cuidados e educação infantis.

A frequência à creche, pré-escola e educação regular se apresenta como um fator de proteção ao desenvolvimento infantil7. No caso das crianças com PC, detecta-se que quanto maior o comprometimento motor e com a associação frequente da PC com outras comorbidades como déficits cognitivos, sociais e de linguagem, muitas delas acabam fora da escola, não sendo inseridas nem em instituições de educação especial22. Este grupo de crianças, em particular, dependerá exclusivamente dos recursos disponíveis no ambiente doméstico para impulsionar seu desenvolvimento, bem como dependerá muito mais das interações familiares para seu desenvolvimento emocional e social.

Com relação aos recursos ambientais, nota-se a predominância de atividades realizadas em casa ou vizinhança, principalmente com os pais. As atividades recreativas que envolvam o recrutamento da coordenação e do movimento voluntário da criança são fundamentais para o incremento dos aspectos psicomotores, proporcionando assim o máximo de desenvolvimento, autoconfiança, lazer e minimizando as dificuldades resultantes da PC19.

Em decorrência das dificuldades apresentadas pelas crianças com PC, as famílias limitam-se ao ambiente doméstico, já adaptado e mais confortável para elas e para a criança. Sem perceber, restringem a possibilidade de ofertar mais recursos e variedade de interações sociais.

É no convívio social que a criança desenvolve laços afetivos, importantes para seu desenvolvimento comportamental. Entretanto, a interpretação sobre a condição da criança, sobre até onde ela é capaz de conviver harmoniosamente e sobre o quão frágil ela é depende muito do olhar da família, mais especificamente da mãe. Quando a interpretação dos familiares é muito influenciada pela patologia da criança, isso restringe seu ambiente de exploração e seus recursos para tal19.

As limitações decorrentes da PC também dificultam a inserção da criança em outras atividades, realizadas fora de casa, a exemplo do que acontece com relação à escola. Atividades programadas e regulares fora do ambiente doméstico (como natação, judô, balé, música, entre outras), bem como passeios, acabam se tornando restritos. A grande maioria dos locais para lazer e atividades extracurriculares, públicos ou privados, não está preparada para receber essas crianças e suas famílias.

Outros autores8,23,24 já apontaram que as famílias de crianças com condições crônicas passam mais tempo envolvidas em atividades de cuidado do que com lazer. O tratamento de saúde fica em primeiro plano.

A restrição das atividades de lazer, a maior dificuldade de acesso a atividades extracurriculares e à própria escola, bem como o estigma carregado pela criança e sua família é um dos motivos para a baixa incidência de passeios fora de casa indicado pelas mães, que se agrega a dificuldades financeiras decorrentes do aumento de custos com os cuidados e tratamento.

Por outro lado, evidenciou-se que as crianças com PC têm tanto ou mais recursos disponíveis em seu ambiente familiar do que outras crianças. Isto só não é verdadeiro quanto à supervisão de atividades escolares pelos pais e quanto à organização da rotina diária25,26.

Sobre a supervisão de atividades escolares feita pelos pais em casa, recorda-se que pouco mais de um terço das crianças com PC não frequentava qualquer tipo de instituição escolar ou de cuidados diários (creches, pré-escola ou Ensino Fundamental). Quanto às que frequentavam creches e pré-escola, nestas instituições a demanda de atividade a ser feita em casa é baixa ou inexistente, não sendo necessária supervisão dos pais.

A demanda por atendimentos de saúde (fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, psicopedagogia, entre outros), bem como a necessidade de cuidados e auxílio para atividades de vida diária por parte da criança, dificulta o estabelecimento da rotina, o que justifica que entre famílias de crianças com PC seja mais difícil organizar horários bem definidos para a rotina diária.

Quanto à dinâmica familiar, as famílias de crianças com PC apresentam-se funcionais, com boas relações entre os membros. Apresentam boa coesão (aproximação afetiva entre os integrantes da família) e boa capacidade de adaptação (flexibilidade, isto é, regras e papéis bem definidos e delimitados), o que é indicado por melhores resultados em coesão e flexibilidade (indicadores de bom funcionamento familiar) do que em separação (desengajada), emaranhamento, rigidez e caos (indicadores de disfuncionalidade).

Estudos realizados em outras culturas27,28, no contexto da saúde, evidenciaram mais dificuldades relacionadas a coesão, flexibilidade e comunicação familiares. Isto fortalece a ideia de que ter uma criança com PC altera a dinâmica familiar e a família (grupo), bem como seus membros individualmente, atribuem significados à experiência e desenvolve estratégias psicológicas, interpessoais e de cuidado para lidar com a situação, adaptando-se e podendo seguir em frente18.

Diante de uma criança com PC, especialmente quando ela é pequena (menores de 7 anos), a família esforça-se por manter-se coesa, como estratégia de apoio e enfrentamento da situação. Neste sentido, as boas habilidades de comunicação, presentes nas famílias estudadas, são favoráveis a uma dinâmica familiar mais saudável, podendo ser decisiva para a boa adaptação frente ao problema de saúde da criança.

O funcionamento familiar positivo e saudável, predominante entre as famílias estudadas, apresenta-se como um fator de proteção ao desenvolvimento destas crianças, fortalecendo a noção da importância da atenção à família no tratamento das crianças com PC.

Ter a família como parceira no tratamento da criança com PC melhora o cuidado com a criança18. Características familiares e da criança influenciam no tipo de tratamento procurado e ofertado às famílias29.

Observaram-se relações entre recursos do ambiente doméstico e funcionamento familiar. A coesão entre os membros da família (definida como a proximidade afetiva entre os membros) associou-se com boa parte dos recursos familiares. Este aspecto do funcionamento familiar, mais do que a capacidade de adaptação (flexibilidade) e as habilidades comunicacionais parece ser decisivo para uma boa dinâmica familiar no contexto da PC. Trata-se de famílias que já tinham recebido o diagnóstico e, portanto, se ajustado ao mesmo.

As limitações do estudo referem-se ao tamanho da amostra e à utilização de um instrumento pouco conhecido, como o Inventário de Recursos do Ambiente Familiar. Como fortaleza, a pesquisa destaca o papel da família, em especial aquela bem adaptada, na estimulação do desenvolvimento das crianças com PC. Como apontado previamente, pesquisas sobre os aspectos psicossociais da PC ainda são escassos, em comparação com estudos clínicos e avanços terapêuticos dirigidos à melhora da funcionalidade motora. Sugere-se atenção especial à família no contexto de tratamento da PC, visando a promoção e estimulação do desenvolvimento das crianças.

Em conclusão, as crianças com PC têm poucas oportunidades de participação em atividades fora da casa, mas tem recebido uma boa oferta de recursos em seus lares. O bom funcionamento ou dinâmica familiar mostrou associação com a maior oferta de recursos no ambiente doméstico.

 

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Endereço para correspondência:
plsantos@fmrp.usp.br

Manuscript received: 10 January 2017
Manuscript accepted: 10 June 2017
Version of record online: 06 September 2017

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