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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.28 no.1 São Paulo jan./mar. 2018

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.123380 

ARTIGO ORIGINAL

 

Desenvolvimento neuropsicomotor e das habilidades auditivas em pré-escolares

 

 

Raphaela Barroso Guedes-Granzotti; Layna Santos Siqueira; Carla Patrícia Hernandez Alves Ribeiro Cesar; Kelly Silva; Danielle Ramos Domenis; Rodrigo Dornelas; Aline Cabral de Oliveira Barreto

Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS)- Lagarto (SE), Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: O desenvolvimento neuropsicomotor e das habilidades auditivas, influenciados tanto por fatores biológicos como ambientais, tem relação direta com o desempenho escolar. Dessa forma, a realização de triagens em ambiente escolar possibilita a identificação precoce de alterações nesse desenvolvimento reduzindo assim, os prejuízos na vida dessas crianças.
OBJETIVO: Caracterizar a relação entre o desenvolvimento neuropsicomotor e as habilidades do processamento auditivo em pré-escolares.
MÉTODO: Foram realizados em 108 pré-escolares de três instituições públicas, com idades entre quatro anos e um mês e cinco anos e 11 meses, de ambos os sexos. Foram realizadas teste de reatreio do processamento auditivo central (PAC) por meio da avaliação simplificada do processamento auditivo (ASPA) e do desenvolvimento neuropsicomotor utilizando o Teste de Triagem de Desenvolvimento Denver II. Os dados foram analisados pelos Testes Qui-quadrado e Correlação Bivariada com coeficiente Pearson, adotando-se significância de 5% e alfa de 0,1.
RESULTADOS: No rastreamento do PAC, 100% dos sujeitos apresentaram respostas normais na prova de detecção, 81,5% na de localização sonora, 49% na prova de memória sequencial não verbal e 58,3% na prova de memória sequencial verbal. Na triagem do desenvolvimento neuropsicomotor, a frequência de respostas adequadas à idade cronológica foi significativa em todas as áreas, sendo de 86,1% (93) na área pessoal social, 92,5% (100) no motor fino adaptativo, 87% (94) na linguagem e 92,5% (100) no motor grosseiro. Constatou-se relação significativa apenas entre as alterações de linguagem e as provas de memória sequencial (p<0,05).
CONCLUSÃO: Houve relação entre as alterações de linguagem e as alterações nas habilidades de ordenação temporal do processamento auditivo central.

Palavras-chave: saúde escolar, triagem, percepção auditiva, desenvolvimento infantil, fonoaudiologia.


 

 

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento neuropsicomotor infantil é um processo que tem início na vida intrauterina e que avança fase após fase, sendo que em cada uma delas a criança obtém novas aquisições. Apesar de ser uma sequência fixa, o ritmo do desenvolvimento varia de criança para criança, permitindo estabelecer limites de normalidade e idades mínima e máxima nos marcos do desenvolvimento1,2.

Envolve aspectos que vão desde a maturação neurológica e o crescimento físico à construção de habilidades relacionadas ao comportamento e às esferas cognitiva, afetiva e social da criança; sendo resultado da interação entre os fatores genéticos, biológicos e ambientais. Os primeiros anos de vida são marcados por importantes formações motoras, físicas, mentais e sociais, sendo o período em que a criança possui especial sensibilidade aos estímulos vindos do ambiente, em virtude de suas percepções sensoriais3.

Dentre as possibilidades de percepção dos estímulos do meio ressalta-se a audição, mais especificamente, o processamento auditivo, que tem um papel importante por determinar como o sistema auditivo periférico e central recebem, analisam e organizam essas informações, sendo constituído por uma série de processos envolvidos nas habilidades auditivas, incluindo detecção, sensação, discriminação, localização, reconhecimento, compreensão, atenção e memória para os sons4,5.

O desenvolvimento dessas habilidades depende de processos que envolvem vias nervosas complexas, que podem ser afetadas por fatores ambientais, sociais e patológicos levando a um transtorno funcional da audição em que a criança detecta os sons normalmente, mas tem dificuldades de interpretá-los. Crianças que possuem essa dificuldade podem apresentar alterações em diversos aspectos do desenvolvimento neuropsicomotor como no desenvolvimento de fala e linguagem, na compreensão da fala em ambiente ruidoso, disgrafia, comportamento social inadequado (agitação e distração), baixo desempenho escolar e desatenção ao som6.

Pesquisas mostram7,8 que lacunas no desenvolvimento de pré-escolares podem comprometer o desempenho escolar e as oportunidades no futuro. Por isso, deve-se ter maior vigilância nos primeiros cinco anos por meio de intervenções precoces, com o objetivo de atenuar tais lacunas e evitar que alterações no desenvolvimento passem despercebidas, sendo evidenciadas apenas quando a criança demonstre incompetência escolar9.

Uma das possibilidades para a identificação precoce de alterações no desenvolvimento se dá por meio de triagens, que visam avaliar um grande número de pessoas com o intuito de oferecer detecção e intervenção o mais precocemente possível. Com a necessidade de extenso alcance, deve-se adotar um procedimento que seja rápido, de fácil aplicação, porém que apresente validade e seja confiável10.

A relação existente entre as alterações do processamento auditivo central e as dificuldades de aprendizagem na fase escolar, já foi amplamente discutida na literatura11-13, entretanto, pouco se discute a respeito da relação entre o desenvolvimento neuropsicomotor e das habilidades auditivas ainda em fase pré-escolar, o que possibilitaria a detecção e intervenção precoce de alterações nestas habilidades antes do inicio do processo de letramento.

Diante do exposto, este estudo teve como objetivo caracterizar a relação entre o desenvolvimento neuropsicomotor e as habilidades do processamento auditivo em pré-escolares.

 

MÉTODO

É um estudo do tipo transversal, observacional, analítico, do qual participaram 108 pré-escolares matriculados em três instituições públicas de educação infantil com idades entre quatro anos e um mês e cinco anos e 11 meses. Foram incluídas crianças que apresentaram mobilidade normal do sistema tímpano-ossicular e presença de reflexos acústicos e excluídas do estudo crianças com presença de alterações em orelha externa ou média, como obstruções em conduto auditivo externo e otites e, também com queixa (professor ou familiar) de deficiência intelectual e auditiva. Durante as triagens foram considerados alguns fatores de exclusão temporária que podiam afetar o desempenho da criança como sono, fadiga, adoecimento, febre, medo ou recusa na participação da proposta, por parte do pré-escolar, sendo a triagem interrompida e retomada em outro momento sem prejuízo para sua validade. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade onde a mesma foi realizada e os responsáveis pelos participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

No ambiente escolar, em uma sala silenciosa e sem distratores foram realizados os seguintes procedimentos:

a) Triagem da função auditiva: Inicialmente, foi realizada meatoscopia com a finalidade de observar alterações de orelha externa/média que impedissem a realização da triagem auditiva. Em seguida, foi realizado o exame de imitanciometria (timpanometria e pesquisa do reflexo acústico) por meio do imitanciômetro portátil MT10/Interacoustics, com tom de sonda de 226 Hz. O reflexo acústico pesquisado foi do tipo ipsilateral, para as frequências de 500, 1000, 2000 e 4000 Hz para a intensidade fixa de 100 dBNPS. A criança PASSOU, nesta etapa da triagem, quando apresentou curva timpanométrica do tipo A e presença de reflexo acústico, em todas as frequências. Após a seleção dos sujeitos que passaram na avaliação imitanciométrica, estes foram submetidos à triagem simplificada do processamento auditivo central (ASPA)14 e do desenvolvimento neuropsicomotor (Denver II) 15.

b) Triagem simplificada do processamento auditivo (ASPA): Os testes de detecção sonora e de localização sonora (LS) são realizados utilizando-se o guizo. As crianças foram orientadas a permanecerem com os olhos fechados durante a apresentação do estímulo e, após o término da estimulação auditiva, a apontar a direção de onde proveio o som. O estímulo sonoro foi percutido nas posições acima, à frente, atrás, lado direito e lado esquerdo da cabeça.

Para o teste de memória sequencial não verbal (MSNV) foram utilizados os instrumentos guizo, sino, agogô e black-black. Antes da triagem propriamente dita, o avaliador apresentou os sons de cada instrumento para que a criança pudesse identificá-los e realizou uma demonstração do teste com a criança posicionada de frente para os instrumentos, solicitando-lhe para apontar a ordem apresentada. Em seguida, foram oferecidas três diferentes sequências utilizando três instrumentos em cada, sem que a criança pudesse ver, para que apontasse a sequência correta.

Para o teste de memória sequencial verbal (MSV) foram utilizadas as sílabas "pa", "ta", "ca", sendo que inicialmente, foi solicitada à criança a produção isolada de cada sílaba para verificar a possibilidade de produção fonoarticulatória. Em seguida, o avaliador emitiu as sílabas em três diferentes sequências, sem pista visual, e a criança foi solicitada a repetir a sequência de sílabas ouvidas.

As respostas foram analisadas isoladamente em relação a sua ocorrência, a partir de critérios de normalidade pré-estabelecidos para a faixa etária estudada11, sendo eles, LS normal de quatro a cinco acertos. O erro esperado está em uma das direções, ou à frente, ou acima ou atrás da cabeça, a partir de três anos de idade; MSNV normal, acertar pelo menos uma sequência de três sons, em três tentativas, aos 3 anos de idade, e acertar pelo menos duas sequências de três sons em três tentativas aos 4 e 5 anos, e duas sequências de quatro sons em três tentativas aos 6 anos. MSV normal, acertar, pelo menos, duas sequências de três sílabas em três tentativas, a partir de três anos de idade.

O reflexo cócleo-palpebral (RCP) foi investigado com o instrumento denominado agogô (109 dBA) e as respostas foram analisadas com relação à presença ou ausência do referido reflexo durante a percussão do instrumento.

c) Triagem do desenvolvimento neuropsicomotor: Foi utilizado o Teste de Triagem de Desenvolvimento Denver II15 composto por 125 itens que avaliam quatro áreas do desenvolvimento infantil: a) Pessoal-Social: aspectos da sociabilidade da criança dentro e fora do ambiente familiar; b) Motor Fino Adaptativo: coordenação viso-manual, manipulação de pequenos objetos; c) Linguagem: emissão de som, capacidade de reconhecer, entender e usar a linguagem e; d) Motor grosseiro: controle motor corporal, sentar, caminhar, pular e os demais movimentos realizados pela musculatura ampla.

Durante a triagem, o teste foi interrompido caso a criança se cansasse ou precisasse participar de alguma atividade prevista na instituição, sendo retomado em outro momento sem prejuízo para sua validade. O resultado de cada uma das áreas avaliadas foi considerado como normal, de risco ou não testável de acordo com a interpretação do teste para cada item avaliado, seguindo o seguinte critério: normal, quando não houvesse atrasos ou no máximo um "cuidado"; risco de atraso, quando houvesse dois ou mais "cuidados" ou um ou mais atrasos; não testável quando a criança recusou-se a realizar um ou mais itens.

Na análise estatística, os dados foram tabulados e processados no software SPSS Statistics data editor, versão 21.0. Para a descrição dos dados, foi feito uso da apresentação tabular e gráfica das médias, dos desvios-padrão e dos intervalos de confiança. Foi aplicado o teste de correlação bivariada com coeficiente Pearson para análise da correlação de alterações entre as áreas do desenvolvimento avaliadas, linguagem, motor grosseiro, motor fino adaptativo e pessoal social; e para correlacionar às alterações em cada uma das áreas do desenvolvimento avaliadas com a variável idade. O Teste de Qui quadrado foi utilizado para comparação das alterações em cada uma das áreas entre os sexos. Os valores foram considerados significativos para p 0,05 e o valor de alfa admitido de 0,1.

 

RESULTADOS

Das 108 crianças, 54,6% (59) eram do sexo masculino com idade média igual a 4,4 (±0,97) anos e 45,4% (49) do sexo feminino com idade média de 3,9 (±1,06) anos, não havendo diferença estatística desta variável, entre os grupos.

Na Triagem simplificada do processamento auditivo (ASPA), 100% (108) apresentaram respostas normais na prova de detecção, 81,5% (88) na de localização sonora, 49% (53) na prova de memória sequencial não verbal (MSNV) e 58,3% (63) na prova de memória sequencial verbal (MSV), sendo que nas provas MSNV (p>0,05) e MSV (p>0,05) não foram encontradas diferenças significativas entre as respostas alteradas e as normais.

Na população estudada, 30,5% (33) apresentaram risco para atraso no desenvolvimento em pelo menos umas das áreas avaliadas. A frequência de respostas adequadas à idade cronológica, no Teste de Denver II, foi significativa em todas as áreas, sendo de 86,11% (93) na área pessoal social, 92,5% (100) no motor fino adaptativo, 87% (94) na linguagem e 92,5% (100) no motor grosseiro. Comparando o desempenho entre os sexos, não foram observadas diferenças significativas na área pessoal social (p=0,69), motor grosseiro (p=0,71) e linguagem (p=0,09); entretanto, no motor fino adaptativo encontramos um desempenho melhor no gênero feminino (p<0,05).

Aplicando-se o teste de correlação bivariada entre os resultados encontrados na triagem do desenvolvimento neuropsicomotor (Tabela 1) e as habilidades avaliadas na ASPA, constatou-se relação estatisticamente significativa apenas entre as alterações de linguagem e as provas de MSV (p<0,01) e MSNV (p<0,05) (Tabela 1).

 

DISCUSSÃO

A análise dos resultados da relação entre o desenvolvimento neuropsicomotor e das habilidades do processamento auditivo demonstrou associação positiva da área de linguagem com as habilidades de memória sequencial não verbal (MSNV) e de memória sequencial verbal (MSV), evidenciando a maior probabilidade de crianças com alterações no processamento auditivo apresentarem também risco para alterações no desenvolvimento da linguagem.

Considerando a organização da linguagem em subsistemas e que dentre eles o desenvolvimento do sistema fonológico e do sistema semântico são os que mais recebem influência das habilidades auditivas encontramos estudos que relacionaram as alterações do processamento auditivo à presença de alterações fonológicas16-19 e do vocabulário18, corroborando com os achados deste estudo.

A relevância deste estudo, entretanto se deve ao fato de que os achados foram evidenciados por meio de triagens que podem ser aplicados em crianças no próprio ambiente escolar. Sendo que o Teste de Triagem de Desenvolvimento Denver II15 é um teste amplamente utilizado por apresentar bons índices de validade e confiabilidade, possuir facilidade e rapidez de aplicação, baixo custo e permitir fácil treinamento, sendo empregado tanto em pesquisas como na prática clínica. Assim como a Triagem simplificada do processamento auditivo (ASPA), também amplamente utilizada na literatura por ser de fácil aplicação e indicar uma possível alteração da função auditiva20,21. Cabe salientar que em ambos os casos, por se tratarem de triagens, na ocorrência de respostas alteradas, faz-se necessária avaliação especifica para confirmar ou não as "falhas" detectadas.

As experiências auditivas têm papel importante na habilidade do indivíduo de se comunicar, compreender, se socializar e principalmente nos processos de aprendizagem. Para o aprendizado especificamente da leitura e da escrita, o escolar precisa ser capaz de associar um componente auditivo fonêmico a um componente visual gráfico, tendo percepção e compreensão da correspondência grafo-fonêmica, sendo que estudos identificam como alguns dos preditores ao processo de letramento o desenvolvimento da linguagem oral, da consciência fonológica, da memória de trabalho e das habilidades auditivas16,22,23.

Todas estes preditores precisam ser desenvolvidas no período pré-escolar uma vez que as experiências vividas, nesses anos, estão relacionadas com o desenvolvimento cognitivo e neuropsicomotor e são dependentes da qualidade dos estímulos recebidos, que podem ser advindos tanto do ambiente familiar quanto escolar24, justificando a importância da detecção precoce de alterações ainda neste período.

O ambiente escolar, mais especificamente as creches ou instituições de educação infantil, passaram a ter um grande papel social a partir da década de 1970 como um serviço de resposta às necessidades e aos direitos da mulher que trabalha na preocupação de eliminar a discriminação da mulher enquanto mãe e a sua consequente exclusão ou marginalização do mercado de trabalho. Sendo que, desde 1996, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) a educação infantil passou a ser considerada como a primeira etapa da educação básica deixando o caráter assistencialista para assumir um papel educacional visando "o desenvolvimento integral da criança até os 6 anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade''25.

Sob essa nova perspectiva, estudos sobre a influência do ambiente escolar observaram que as instituições de educação infantil com equipamentos adequados, boa qualidade no cuidado e adequada metodologia pedagógica, exercem influência positiva no desenvolvimento infantil assim como possibilitam a identificação precoce de alterações nesse desenvolvimento26,27 considerando que o reconhecimento precoce desses distúrbios, seguido de intervenções adequadas, pode reduzir os prejuízos na vida das crianças afetadas, possibilitando seu desenvolvimento escolar e social além de proporcionar uma melhor qualidade de vida28.

Entretanto é importante salientar a alta prevalência de crianças com risco para atraso no desenvolvimento neuropsicomotor encontradas neste estudo, que corroboram, com estudos brasileiros que utilizaram procedimento de pesquisa semelhante6,29-35. Biscegli et al.29, Souza et al.30, Brito et al.6, Torquato et al.31 e Amaro et al.35 encontraram prevalência de risco para atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, respectivamente, de 37%, 30,2%, 46,3%, 31,6% e 37,35% ao utilizarem o Teste de triagem de Denver II em pré-escolares de instituições públicas.

Da mesma forma encontramos uma alta incidência de alterações na avaliação simplificada do processamento auditivo, sendo que a prevalência de falhas está em consonância com estudos que utilizaram o mesmo instrumento em escolares e pré-escolares16,18,28,33, assim como a observação de uma maior dificuldade nas provas de memória sequencial verbal (MSV) e memória sequencial não verbal (MSNV), que avaliam a habilidade auditiva de ordenação temporal simples, do que nas provas de localização e discriminação da fonte sonora11,17,28,33.

Apesar de neste estudo não ter tido como objetivo analisar a qualidade das instituições, mas baseando nas observações das pesquisadoras durante a realização das triagens e os dados encontrados em outros estudos29,35,36 pode-se dizer que de maneira geral as creches e pré-escolas públicas no Brasil, têm o seu funcionamento precário, com escassez de recursos, falta de infraestrutura, despreparo de seus funcionários e adoção de rotinas com predomínio de ações voltadas para os cuidados básicos de alimentação e higiene. Fato este que pode ter influenciado a alta prevalência de alterações.

Quanto ao maior número de crianças do sexo masculino, por ser uma diferença pequena, não desequilibrou a amostra e possibilitou comparar o desempenho em cada uma das áreas do desenvolvimento neuropsicomotor, não havendo diferença significativa entre os sexos nas áreas pessoal-social, linguagem e motor grosseiro, assim como observado em outros estudos31,34,35. Entretanto, divergindo destes estudos, foi verificado um desempenho inferior no sexo masculino na área motor fino adaptativo, fato que pode ser justificado pelas brincadeiras preferenciais entre os dois grupos, já que meninos tem preferência por atividades que necessitam de menor maturação de atividades motoras finas como jogar bola, andar de bicicleta e simulação de lutas9.

A associação positiva entre as respostas obtidas nas triagens entre a área da linguagem do desenvolvimento neuropsicomotor e as provas de MSV e MSNV se justificam pelo fato de que a sequencialização temporal está relacionada com a memória auditiva de curto prazo de acordo com sua ordem de apresentação, durante determinado período de tempo. Habilidade esta necessária também para o desenvolvimento da linguagem, já que a fala e a compreensão da linguagem são dependentes da capacidade de se trabalhar com a sequência sonora6,36.

 

CONCLUSÃO

Os achados apresentados neste estudo reforçam a importância e a efetividade da realização de triagens como instrumentos capazes de detectar precocemente riscos de alteração no desenvolvimento infantil em pré-escolares trazendo assim avanços importantes para a promoção da saúde infantil. Já que estudos neste molde podem contribuir na avaliação e aperfeiçoamento de políticas públicas de vigilância e acompanhamento multiprofissional que favoreçam o desenvolvimento infantil no ambiente escolar. Apesar disso, são necessárias pesquisas futuras que minimizem algumas limitações detectadas neste estudo como o tamanho da amostra e o número de instituições incluídas e, a necessidade de utilizar instrumentos que possibilitem avaliar tanto o ambiente escolar como o familiar e sua relação com o desenvolvimento infantil. Além disso, é importante que instrumentos de avaliação sejam utilizados para confirmar as alterações encontradas nas triagens tornando os resultados mais consistentes e possibilitando uma generalização desses achados.

 

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ARTIGO ORIGINAL
DOI: http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.123380

 

Desenvolvimento neuropsicomotor e das habilidades auditivas em pré-escolares

 

 

Raphaela Barroso Guedes-Granzotti; Layna Santos Siqueira; Carla Patrícia Hernandez Alves Ribeiro Cesar; Kelly Silva; Danielle Ramos Domenis; Rodrigo Dornelas; Aline Cabral de Oliveira Barreto

Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS)- Lagarto (SE), Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: O desenvolvimento neuropsicomotor e das habilidades auditivas, influenciados tanto por fatores biológicos como ambientais, tem relação direta com o desempenho escolar. Dessa forma, a realização de triagens em ambiente escolar possibilita a identificação precoce de alterações nesse desenvolvimento reduzindo assim, os prejuízos na vida dessas crianças.
OBJETIVO: Caracterizar a relação entre o desenvolvimento neuropsicomotor e as habilidades do processamento auditivo em pré-escolares.
MÉTODO: Foram realizados em 108 pré-escolares de três instituições públicas, com idades entre quatro anos e um mês e cinco anos e 11 meses, de ambos os sexos. Foram realizadas teste de reatreio do processamento auditivo central (PAC) por meio da avaliação simplificada do processamento auditivo (ASPA) e do desenvolvimento neuropsicomotor utilizando o Teste de Triagem de Desenvolvimento Denver II. Os dados foram analisados pelos Testes Qui-quadrado e Correlação Bivariada com coeficiente Pearson, adotando-se significância de 5% e alfa de 0,1.
RESULTADOS: No rastreamento do PAC, 100% dos sujeitos apresentaram respostas normais na prova de detecção, 81,5% na de localização sonora, 49% na prova de memória sequencial não verbal e 58,3% na prova de memória sequencial verbal. Na triagem do desenvolvimento neuropsicomotor, a frequência de respostas adequadas à idade cronológica foi significativa em todas as áreas, sendo de 86,1% (93) na área pessoal social, 92,5% (100) no motor fino adaptativo, 87% (94) na linguagem e 92,5% (100) no motor grosseiro. Constatou-se relação significativa apenas entre as alterações de linguagem e as provas de memória sequencial (p<0,05).
CONCLUSÃO: Houve relação entre as alterações de linguagem e as alterações nas habilidades de ordenação temporal do processamento auditivo central.

Palavras-chave: saúde escolar, triagem, percepção auditiva, desenvolvimento infantil, fonoaudiologia.


 

 

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento neuropsicomotor infantil é um processo que tem início na vida intrauterina e que avança fase após fase, sendo que em cada uma delas a criança obtém novas aquisições. Apesar de ser uma sequência fixa, o ritmo do desenvolvimento varia de criança para criança, permitindo estabelecer limites de normalidade e idades mínima e máxima nos marcos do desenvolvimento1,2.

Envolve aspectos que vão desde a maturação neurológica e o crescimento físico à construção de habilidades relacionadas ao comportamento e às esferas cognitiva, afetiva e social da criança; sendo resultado da interação entre os fatores genéticos, biológicos e ambientais. Os primeiros anos de vida são marcados por importantes formações motoras, físicas, mentais e sociais, sendo o período em que a criança possui especial sensibilidade aos estímulos vindos do ambiente, em virtude de suas percepções sensoriais3.

Dentre as possibilidades de percepção dos estímulos do meio ressalta-se a audição, mais especificamente, o processamento auditivo, que tem um papel importante por determinar como o sistema auditivo periférico e central recebem, analisam e organizam essas informações, sendo constituído por uma série de processos envolvidos nas habilidades auditivas, incluindo detecção, sensação, discriminação, localização, reconhecimento, compreensão, atenção e memória para os sons4,5.

O desenvolvimento dessas habilidades depende de processos que envolvem vias nervosas complexas, que podem ser afetadas por fatores ambientais, sociais e patológicos levando a um transtorno funcional da audição em que a criança detecta os sons normalmente, mas tem dificuldades de interpretá-los. Crianças que possuem essa dificuldade podem apresentar alterações em diversos aspectos do desenvolvimento neuropsicomotor como no desenvolvimento de fala e linguagem, na compreensão da fala em ambiente ruidoso, disgrafia, comportamento social inadequado (agitação e distração), baixo desempenho escolar e desatenção ao som6.

Pesquisas mostram7,8 que lacunas no desenvolvimento de pré-escolares podem comprometer o desempenho escolar e as oportunidades no futuro. Por isso, deve-se ter maior vigilância nos primeiros cinco anos por meio de intervenções precoces, com o objetivo de atenuar tais lacunas e evitar que alterações no desenvolvimento passem despercebidas, sendo evidenciadas apenas quando a criança demonstre incompetência escolar9.

Uma das possibilidades para a identificação precoce de alterações no desenvolvimento se dá por meio de triagens, que visam avaliar um grande número de pessoas com o intuito de oferecer detecção e intervenção o mais precocemente possível. Com a necessidade de extenso alcance, deve-se adotar um procedimento que seja rápido, de fácil aplicação, porém que apresente validade e seja confiável10.

A relação existente entre as alterações do processamento auditivo central e as dificuldades de aprendizagem na fase escolar, já foi amplamente discutida na literatura11-13, entretanto, pouco se discute a respeito da relação entre o desenvolvimento neuropsicomotor e das habilidades auditivas ainda em fase pré-escolar, o que possibilitaria a detecção e intervenção precoce de alterações nestas habilidades antes do inicio do processo de letramento.

Diante do exposto, este estudo teve como objetivo caracterizar a relação entre o desenvolvimento neuropsicomotor e as habilidades do processamento auditivo em pré-escolares.

 

MÉTODO

É um estudo do tipo transversal, observacional, analítico, do qual participaram 108 pré-escolares matriculados em três instituições públicas de educação infantil com idades entre quatro anos e um mês e cinco anos e 11 meses. Foram incluídas crianças que apresentaram mobilidade normal do sistema tímpano-ossicular e presença de reflexos acústicos e excluídas do estudo crianças com presença de alterações em orelha externa ou média, como obstruções em conduto auditivo externo e otites e, também com queixa (professor ou familiar) de deficiência intelectual e auditiva. Durante as triagens foram considerados alguns fatores de exclusão temporária que podiam afetar o desempenho da criança como sono, fadiga, adoecimento, febre, medo ou recusa na participação da proposta, por parte do pré-escolar, sendo a triagem interrompida e retomada em outro momento sem prejuízo para sua validade. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade onde a mesma foi realizada e os responsáveis pelos participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

No ambiente escolar, em uma sala silenciosa e sem distratores foram realizados os seguintes procedimentos:

a) Triagem da função auditiva: Inicialmente, foi realizada meatoscopia com a finalidade de observar alterações de orelha externa/média que impedissem a realização da triagem auditiva. Em seguida, foi realizado o exame de imitanciometria (timpanometria e pesquisa do reflexo acústico) por meio do imitanciômetro portátil MT10/Interacoustics, com tom de sonda de 226 Hz. O reflexo acústico pesquisado foi do tipo ipsilateral, para as frequências de 500, 1000, 2000 e 4000 Hz para a intensidade fixa de 100 dBNPS. A criança PASSOU, nesta etapa da triagem, quando apresentou curva timpanométrica do tipo A e presença de reflexo acústico, em todas as frequências. Após a seleção dos sujeitos que passaram na avaliação imitanciométrica, estes foram submetidos à triagem simplificada do processamento auditivo central (ASPA)14 e do desenvolvimento neuropsicomotor (Denver II) 15.

b) Triagem simplificada do processamento auditivo (ASPA): Os testes de detecção sonora e de localização sonora (LS) são realizados utilizando-se o guizo. As crianças foram orientadas a permanecerem com os olhos fechados durante a apresentação do estímulo e, após o término da estimulação auditiva, a apontar a direção de onde proveio o som. O estímulo sonoro foi percutido nas posições acima, à frente, atrás, lado direito e lado esquerdo da cabeça.

Para o teste de memória sequencial não verbal (MSNV) foram utilizados os instrumentos guizo, sino, agogô e black-black. Antes da triagem propriamente dita, o avaliador apresentou os sons de cada instrumento para que a criança pudesse identificá-los e realizou uma demonstração do teste com a criança posicionada de frente para os instrumentos, solicitando-lhe para apontar a ordem apresentada. Em seguida, foram oferecidas três diferentes sequências utilizando três instrumentos em cada, sem que a criança pudesse ver, para que apontasse a sequência correta.

Para o teste de memória sequencial verbal (MSV) foram utilizadas as sílabas "pa", "ta", "ca", sendo que inicialmente, foi solicitada à criança a produção isolada de cada sílaba para verificar a possibilidade de produção fonoarticulatória. Em seguida, o avaliador emitiu as sílabas em três diferentes sequências, sem pista visual, e a criança foi solicitada a repetir a sequência de sílabas ouvidas.

As respostas foram analisadas isoladamente em relação a sua ocorrência, a partir de critérios de normalidade pré-estabelecidos para a faixa etária estudada11, sendo eles, LS normal de quatro a cinco acertos. O erro esperado está em uma das direções, ou à frente, ou acima ou atrás da cabeça, a partir de três anos de idade; MSNV normal, acertar pelo menos uma sequência de três sons, em três tentativas, aos 3 anos de idade, e acertar pelo menos duas sequências de três sons em três tentativas aos 4 e 5 anos, e duas sequências de quatro sons em três tentativas aos 6 anos. MSV normal, acertar, pelo menos, duas sequências de três sílabas em três tentativas, a partir de três anos de idade.

O reflexo cócleo-palpebral (RCP) foi investigado com o instrumento denominado agogô (109 dBA) e as respostas foram analisadas com relação à presença ou ausência do referido reflexo durante a percussão do instrumento.

c) Triagem do desenvolvimento neuropsicomotor: Foi utilizado o Teste de Triagem de Desenvolvimento Denver II15 composto por 125 itens que avaliam quatro áreas do desenvolvimento infantil: a) Pessoal-Social: aspectos da sociabilidade da criança dentro e fora do ambiente familiar; b) Motor Fino Adaptativo: coordenação viso-manual, manipulação de pequenos objetos; c) Linguagem: emissão de som, capacidade de reconhecer, entender e usar a linguagem e; d) Motor grosseiro: controle motor corporal, sentar, caminhar, pular e os demais movimentos realizados pela musculatura ampla.

Durante a triagem, o teste foi interrompido caso a criança se cansasse ou precisasse participar de alguma atividade prevista na instituição, sendo retomado em outro momento sem prejuízo para sua validade. O resultado de cada uma das áreas avaliadas foi considerado como normal, de risco ou não testável de acordo com a interpretação do teste para cada item avaliado, seguindo o seguinte critério: normal, quando não houvesse atrasos ou no máximo um "cuidado"; risco de atraso, quando houvesse dois ou mais "cuidados" ou um ou mais atrasos; não testável quando a criança recusou-se a realizar um ou mais itens.

Na análise estatística, os dados foram tabulados e processados no software SPSS Statistics data editor, versão 21.0. Para a descrição dos dados, foi feito uso da apresentação tabular e gráfica das médias, dos desvios-padrão e dos intervalos de confiança. Foi aplicado o teste de correlação bivariada com coeficiente Pearson para análise da correlação de alterações entre as áreas do desenvolvimento avaliadas, linguagem, motor grosseiro, motor fino adaptativo e pessoal social; e para correlacionar às alterações em cada uma das áreas do desenvolvimento avaliadas com a variável idade. O Teste de Qui quadrado foi utilizado para comparação das alterações em cada uma das áreas entre os sexos. Os valores foram considerados significativos para p 0,05 e o valor de alfa admitido de 0,1.

 

RESULTADOS

Das 108 crianças, 54,6% (59) eram do sexo masculino com idade média igual a 4,4 (±0,97) anos e 45,4% (49) do sexo feminino com idade média de 3,9 (±1,06) anos, não havendo diferença estatística desta variável, entre os grupos.

Na Triagem simplificada do processamento auditivo (ASPA), 100% (108) apresentaram respostas normais na prova de detecção, 81,5% (88) na de localização sonora, 49% (53) na prova de memória sequencial não verbal (MSNV) e 58,3% (63) na prova de memória sequencial verbal (MSV), sendo que nas provas MSNV (p>0,05) e MSV (p>0,05) não foram encontradas diferenças significativas entre as respostas alteradas e as normais.

Na população estudada, 30,5% (33) apresentaram risco para atraso no desenvolvimento em pelo menos umas das áreas avaliadas. A frequência de respostas adequadas à idade cronológica, no Teste de Denver II, foi significativa em todas as áreas, sendo de 86,11% (93) na área pessoal social, 92,5% (100) no motor fino adaptativo, 87% (94) na linguagem e 92,5% (100) no motor grosseiro. Comparando o desempenho entre os sexos, não foram observadas diferenças significativas na área pessoal social (p=0,69), motor grosseiro (p=0,71) e linguagem (p=0,09); entretanto, no motor fino adaptativo encontramos um desempenho melhor no gênero feminino (p<0,05).

Aplicando-se o teste de correlação bivariada entre os resultados encontrados na triagem do desenvolvimento neuropsicomotor (Tabela 1) e as habilidades avaliadas na ASPA, constatou-se relação estatisticamente significativa apenas entre as alterações de linguagem e as provas de MSV (p<0,01) e MSNV (p<0,05) (Tabela 1).

 

DISCUSSÃO

A análise dos resultados da relação entre o desenvolvimento neuropsicomotor e das habilidades do processamento auditivo demonstrou associação positiva da área de linguagem com as habilidades de memória sequencial não verbal (MSNV) e de memória sequencial verbal (MSV), evidenciando a maior probabilidade de crianças com alterações no processamento auditivo apresentarem também risco para alterações no desenvolvimento da linguagem.

Considerando a organização da linguagem em subsistemas e que dentre eles o desenvolvimento do sistema fonológico e do sistema semântico são os que mais recebem influência das habilidades auditivas encontramos estudos que relacionaram as alterações do processamento auditivo à presença de alterações fonológicas16-19 e do vocabulário18, corroborando com os achados deste estudo.

A relevância deste estudo, entretanto se deve ao fato de que os achados foram evidenciados por meio de triagens que podem ser aplicados em crianças no próprio ambiente escolar. Sendo que o Teste de Triagem de Desenvolvimento Denver II15 é um teste amplamente utilizado por apresentar bons índices de validade e confiabilidade, possuir facilidade e rapidez de aplicação, baixo custo e permitir fácil treinamento, sendo empregado tanto em pesquisas como na prática clínica. Assim como a Triagem simplificada do processamento auditivo (ASPA), também amplamente utilizada na literatura por ser de fácil aplicação e indicar uma possível alteração da função auditiva20,21. Cabe salientar que em ambos os casos, por se tratarem de triagens, na ocorrência de respostas alteradas, faz-se necessária avaliação especifica para confirmar ou não as "falhas" detectadas.

As experiências auditivas têm papel importante na habilidade do indivíduo de se comunicar, compreender, se socializar e principalmente nos processos de aprendizagem. Para o aprendizado especificamente da leitura e da escrita, o escolar precisa ser capaz de associar um componente auditivo fonêmico a um componente visual gráfico, tendo percepção e compreensão da correspondência grafo-fonêmica, sendo que estudos identificam como alguns dos preditores ao processo de letramento o desenvolvimento da linguagem oral, da consciência fonológica, da memória de trabalho e das habilidades auditivas16,22,23.

Todas estes preditores precisam ser desenvolvidas no período pré-escolar uma vez que as experiências vividas, nesses anos, estão relacionadas com o desenvolvimento cognitivo e neuropsicomotor e são dependentes da qualidade dos estímulos recebidos, que podem ser advindos tanto do ambiente familiar quanto escolar24, justificando a importância da detecção precoce de alterações ainda neste período.

O ambiente escolar, mais especificamente as creches ou instituições de educação infantil, passaram a ter um grande papel social a partir da década de 1970 como um serviço de resposta às necessidades e aos direitos da mulher que trabalha na preocupação de eliminar a discriminação da mulher enquanto mãe e a sua consequente exclusão ou marginalização do mercado de trabalho. Sendo que, desde 1996, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) a educação infantil passou a ser considerada como a primeira etapa da educação básica deixando o caráter assistencialista para assumir um papel educacional visando "o desenvolvimento integral da criança até os 6 anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade''25.

Sob essa nova perspectiva, estudos sobre a influência do ambiente escolar observaram que as instituições de educação infantil com equipamentos adequados, boa qualidade no cuidado e adequada metodologia pedagógica, exercem influência positiva no desenvolvimento infantil assim como possibilitam a identificação precoce de alterações nesse desenvolvimento26,27 considerando que o reconhecimento precoce desses distúrbios, seguido de intervenções adequadas, pode reduzir os prejuízos na vida das crianças afetadas, possibilitando seu desenvolvimento escolar e social além de proporcionar uma melhor qualidade de vida28.

Entretanto é importante salientar a alta prevalência de crianças com risco para atraso no desenvolvimento neuropsicomotor encontradas neste estudo, que corroboram, com estudos brasileiros que utilizaram procedimento de pesquisa semelhante6,29-35. Biscegli et al.29, Souza et al.30, Brito et al.6, Torquato et al.31 e Amaro et al.35 encontraram prevalência de risco para atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, respectivamente, de 37%, 30,2%, 46,3%, 31,6% e 37,35% ao utilizarem o Teste de triagem de Denver II em pré-escolares de instituições públicas.

Da mesma forma encontramos uma alta incidência de alterações na avaliação simplificada do processamento auditivo, sendo que a prevalência de falhas está em consonância com estudos que utilizaram o mesmo instrumento em escolares e pré-escolares16,18,28,33, assim como a observação de uma maior dificuldade nas provas de memória sequencial verbal (MSV) e memória sequencial não verbal (MSNV), que avaliam a habilidade auditiva de ordenação temporal simples, do que nas provas de localização e discriminação da fonte sonora11,17,28,33.

Apesar de neste estudo não ter tido como objetivo analisar a qualidade das instituições, mas baseando nas observações das pesquisadoras durante a realização das triagens e os dados encontrados em outros estudos29,35,36 pode-se dizer que de maneira geral as creches e pré-escolas públicas no Brasil, têm o seu funcionamento precário, com escassez de recursos, falta de infraestrutura, despreparo de seus funcionários e adoção de rotinas com predomínio de ações voltadas para os cuidados básicos de alimentação e higiene. Fato este que pode ter influenciado a alta prevalência de alterações.

Quanto ao maior número de crianças do sexo masculino, por ser uma diferença pequena, não desequilibrou a amostra e possibilitou comparar o desempenho em cada uma das áreas do desenvolvimento neuropsicomotor, não havendo diferença significativa entre os sexos nas áreas pessoal-social, linguagem e motor grosseiro, assim como observado em outros estudos31,34,35. Entretanto, divergindo destes estudos, foi verificado um desempenho inferior no sexo masculino na área motor fino adaptativo, fato que pode ser justificado pelas brincadeiras preferenciais entre os dois grupos, já que meninos tem preferência por atividades que necessitam de menor maturação de atividades motoras finas como jogar bola, andar de bicicleta e simulação de lutas9.

A associação positiva entre as respostas obtidas nas triagens entre a área da linguagem do desenvolvimento neuropsicomotor e as provas de MSV e MSNV se justificam pelo fato de que a sequencialização temporal está relacionada com a memória auditiva de curto prazo de acordo com sua ordem de apresentação, durante determinado período de tempo. Habilidade esta necessária também para o desenvolvimento da linguagem, já que a fala e a compreensão da linguagem são dependentes da capacidade de se trabalhar com a sequência sonora6,36.

 

CONCLUSÃO

Os achados apresentados neste estudo reforçam a importância e a efetividade da realização de triagens como instrumentos capazes de detectar precocemente riscos de alteração no desenvolvimento infantil em pré-escolares trazendo assim avanços importantes para a promoção da saúde infantil. Já que estudos neste molde podem contribuir na avaliação e aperfeiçoamento de políticas públicas de vigilância e acompanhamento multiprofissional que favoreçam o desenvolvimento infantil no ambiente escolar. Apesar disso, são necessárias pesquisas futuras que minimizem algumas limitações detectadas neste estudo como o tamanho da amostra e o número de instituições incluídas e, a necessidade de utilizar instrumentos que possibilitem avaliar tanto o ambiente escolar como o familiar e sua relação com o desenvolvimento infantil. Além disso, é importante que instrumentos de avaliação sejam utilizados para confirmar as alterações encontradas nas triagens tornando os resultados mais consistentes e possibilitando uma generalização desses achados.

 

REFERÊNCIAS

 

 

Endereço para correspondência:
raphaelabgg@gmail.com

Manuscrito recebido: Novembro 2017
Manuscrito aceito: Dezembro 2017
Versão online: Março 2018

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