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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.28 no.2 São Paulo maio/ago. 2018

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.147240 

ARTIGO ORIGINAL

 

Corpo, cultura e significado

 

 

Cláudia de Souza DouradoI; Suzete Maria FustinoniII; Janine SchirmerIII; Camila Brandão-SouzaIV

IMestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora assistente da Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (EMESCAM). Vitória - ES, Brasil
IIDoutora em Enfermagem pela Universidade de São Paulo e Professora adjunto da Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Enfermagem - EPE/UNIFESP. São Paulo - SP, Brasil
IIIDoutora em Enfermagem pela Universidade Federal de São Paulo; Professora Titular da Universidade Federal de São Paulo e Diretora da Escola Paulista de Enfermagem - EPE/UNIFESP. São Paulo - SP, Brasil
IVMestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Enfermagem - EPE/UNIFESP. São Paulo - SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: O ser humano perpassa a história na procura da plenitude e da perfeição do corpo. Mudam-se os atores, muda-se o cenário, o contexto sociocultural, os gostos e interpretações, o significado, e permanece-se a busca pelo corpo ideal.
OBJETIVO: Propõe-se uma abordagem de caráter crítico-reflexiva sobre o padrão do corpo ao longo da trajetória histórica, assim como sua representatividade cultural e o significado a ele atribuído.
MÉTODO: Trata-se de uma dissertação crítico-reflexiva construída com base em literatura existente. Utilizou-se os bancos de dados: MEDLINE, LILACS, Scientific Eletronic Library - SciELO e Bireme; bem como o Google Acadêmico e literaturas cinzentas. A elaboração do manuscrito seguiu as normas da revisão de literatura, e aproximou-se da abordagem qualitativa.
RESULTADOS: Há de se considerar a relação que a mídia estabelece com o corpo, impulsionando uma busca incansável por um reflexo padronizado no espelho, encarado como beleza; A cultura do poder de compra sobre o corpo feminino, da discriminação, da violência, da indiferença. Revela-se uma discussão sobre aspectos fundamentais e importantes para se compreender o corpo na totalidade, não apenas como uma estrutura orgânica, mas como algo complexo e subjetivo que sofre constantes influências do ambiente ao qual é exposto, da época e da sociedade na qual está inserido.
CONCLUSÃO: Conclui-se que o corpo sempre esteve em uma posição de destaque nas civilizações dentre os inúmeros períodos históricos vividos, independente de qual momento, sempre houve um estereótipo corporal a ser seguido, cultuado e adorado, e a busca por essa conquista continua nos dias atuais.

Palavras-chave: corpo humano, cultura, indústria da beleza, narcisismo.


 

 

INTRODUÇÃO

O corpo é alomórfico, é adaptativo e adaptado... é cobrado, é olhado, é alvo de críticas e de desejo, de regras e repressões... o que nem sempre é lembrado, é que junto de um corpo, tem sempre um humano. O corpo humano, suas diversas formas, contornos, cores e significados atribuídos dentro de um contexto sociocultural atravessa a história, em constante busca pela perfeição tangível e inatingível.

Seu significado sofreu muitas alterações ao longo do tempo, já simbolizou pureza, desejo, castidade, fertilidade, luxúria, liberdade, ostentação, status econômico, consumismo, narcisismo, saúde, carrega sempre uma relação de reciprocidade com a sociedade, sofrendo influência da mesma, assim como também tendo o poder de influenciá-la.

Dedicando-se a entender esse tema complexo, inquietações surgiram e tomaram proporções significativas. Qual o significado do corpo, sua história, sua cultura? Por que o corpo na atualidade foi reduzido à imagem? Qual o papel da mídia nesse processo? O corpo tem preço? Esses questionamentos têm respostas e interpretações, mais do que apresentá-las, buscou-se estimular a reflexão sobre o corpo, não como a estrutura e o revestimento aparente, mas com a complexidade que lhe é devida, e a subjetividade que carrega.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo crítico-reflexivo construído com base em literatura existente acerca do corpo e seu significado. Utilizou-se os bancos de dados Pubmed/MEDLINE, LILACS, Scientific Eletronic Library - SciELO e Bireme; bem como o Google Acadêmico e literaturas cinzentas, como blogs de historiadores, jornais de época e arquivos de revistas.

A construção teórica do presente artigo baseia-se no levantamento bibliográfico, categorização dos temas, interpretação e análise dos achados, assemelhando-se a uma abordagem qualitativa, pois quando houve saturação de discurso, ou seja, os materiais disponíveis passaram a não trazer novidades, a busca foi finalizada. A elaboração do manuscrito seguiu as normas da revisão de literatura, trazendo informações existentes, somadas à análise crítica dos autores.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Corpo é força de trabalho, maquinário da existência, executor e provedor. Bem antes de significar apenas status, o corpo já foi morada do espírito, em algumas culturas, continua sendo. Em toda a trajetória de sua existência foi e é incompreendido dentro dos seus limites, da sua singularidade, individualidade, beleza, significado.

Mas afinal, o que é beleza? Depende. Corpos com um percentual mínimo de gordura, músculos hipertrofiados, abdome bem definido, mamas e glúteos arredondados e firmes, cérebros atrofiados... Rugas de sol de que tem o dever de levar o pão para casa, mamas pêndulas de quem muito amamentou a cicatriz que possibilitou o nascimento, sabedoria no olhar... Beleza depende do estado evolutivo de quem vê.

Mesmo assim, sendo tão relativa, a beleza dos corpos sempre teve um padrão estabelecido em cada época. Na Grécia antiga o homem grego, com músculos e rico era o possuidor da beleza e admiração, por meio de esculturas nuas, já às mulheres não era atribuída beleza alguma, ao contrário, beleza feminina era sinônimo de perversidade e maldição. Essa corpolatria ao masculino também foi vivenciada no mundo romano, nessa época a maquiagem assume um papel importante para as mulheres, sendo condenada na época medieval, por meio da abominação da igreja católica, que atribuía beleza feminina às virtudes de caráter e discrição1.

Desde o fim da Idade Média até o presente momento o padrão foi "De esbelta a roliça e de natural a pintada, a silhueta e o rosto femininos foram correspondendo às diferentes condições de dieta, de estatuto e de riqueza, dando origem a novos padrões de aparência e gosto", em grande parte das vezes, orientado pelos critérios estabelecidos pelos homens da época2.

No renascimento, contrariando a Idade Média, beleza foi reflexo visível de um interior cheio de bondade, que deveria ser exteriorizada. O renascentismo Italiano influenciou toda a Europa (século XVI), enaltecendo o nu, um nu mais roliço, mamas grandes, quadris avantajados3, pele e cabelos claros, rosto oval1.

Entre os séculos XVI e XVII o paladar esteve predominantemente ligado aos alimentos derivados do leite e os doces, caracterizando a culinária europeia, os quais eram entendidos como símbolos de fartura, riqueza, nobreza e saúde, e em resultado disso, corpos gordos. Já a magreza, sinal de pobreza e ausência de saúde e beleza3.

Um século adiante a concepção de gordura começa a se alterar, juntamente à estética feminina, que assume delicadeza e graça, traduzidas por uma imagem de mulheres compridas e magras, e prevalecendo no século XIX2.

No século XX há um movimento a favor da desmistificação da figura do corpo e do pudor. Inicia-se, nos Estados Unidos, entre as décadas de 50 e 60, intervenções cirúrgicas voltadas apenas para a estética, há uma preocupação com a longevidade, com a eternização da beleza4.

No Brasil surge o biquíni, e ainda, a "barriga grávida, de biquíni, na praia de Ipanema", eternizada por Leila Diniz, encarnando o espírito da cidade, na qual corpos magros, musculosos, altos, bronzeados conviviam de forma harmônica com estrias e celulites de outros corpos, com barriguinhas salientes e com "desbotados", surge o então corpo carioca5, uma espécie de diversidade genética e cultural que deu samba.

Hábitos dietéticos, higiene e cultura física marcam a segunda metade da década de 60, manter-se belo é necessário, o vigor e a juventude estão acessíveis nas casas de cosmético, o envelhecimento não é mais virtude6. O corpo de sexy simbols são eternizados em revistas, o padrão magro, branco e de classe média se sobrepõe aos corpos roliços, pretos e pobres7. Na década de 70, com origem nos Estados Unidos, campanhas que estimulam os exercícios físicos e o emagrecimento buscam a diminuição da morbimortalidade oriunda de alterações do sistema cardiovascular, e como forma de combate à obesidade, nos anos 80 chegam ao Brasil os primeiros conceitos fitness8, e em consequência disso, o aparecimento dos ex-gordos, aqueles que trocaram a gordura por uma vida "completamente saudável" e com movimento.

O corpo belo e natural dos anos 60 transita pelo musculoso nos anos 80 e chega aos anos 2000 associando forma física ao bem-estar. É mais do que óbvio que há uma variedade muito maior de formas e estruturas corporais contemporâneas. "Mas as revistas parecem não saber disso, ou não querer ver, ou não ter condições nem interesses industriais, comerciais, tecnológicos de mostrar essa variedade9".

Muito além da estética, o corpo carrega o "eu", suas experiências, significado, ritos e tradição. Para os cristãos, o corpo é o templo no qual o Espírito Santo habita, em outras crenças pode ser o instrumento utilizado para incorporação de espíritos que necessitem se comunicar, ou que estejam em profunda tristeza e perdidos, ou ainda, local que a alma encarna temporariamente, em sua constante evolução.

Em alguns países africanos, árabes, asiáticos, americanos e ainda europeus, a interpretação do corpo, ou partes dele, difere de grande parte do mundo, ao ponto de gerar certo desconforto com práticas culturais antigas (pré-históricas) e mobilizar os grupos de defesa pelos direitos humanos. A exemplo disso, a circuncisão feminina (mutilação - sendo essa questão a mais controversa), o sexo "seco", o sexo intergeracional e o transacional, em todos os casos, crenças e cultura sobre o corpo feminino. Corpo esse o qual a maternidade é a finalidade, e os órgãos femininos vistos como meios de produção e consumo, enquanto o homem que tem poucas relações sexuais é inexperiente, a identidade feminina ideal é o "estado virgem"10.

A circuncisão feminina possui níveis do I ao IV, sendo o I a retirada apenas do clitóris, sua glande e ligamento suspensório; o II requer além do clitóris e glande, a retirada dos pequenos lábios; o III, chamado de faraônico por ser realizado desde os tempos de faraó, requer a retirada do clitóris e glande, pequenos lábios, porção medial dos grandes lábios, ainda há a possibilidade de sutura das partes restantes dos grandes lábios para criação de uma superfície lisa, apenas com um pequeno orifício para saída da urina e menstruação, a infibulação. O IV é difícil de enquadrar na maioria das definições da Organização Mundial da Saúde, pois requer vários padrões de corte, incluindo a junção de aspectos de todos os níveis anteriores, raspagem do orifício vaginal, introdução de substâncias que causam estreitamentos do canal vaginal, ou ainda alongamento dos lábios e clitóris11. Trata-se de um rito que requer alguns recursos financeiros e, portanto, se ele é ou não realizado também reflete a situação financeira da família12, sendo símbolo de status, nobreza, castidade e pureza.

Tende-se a pensar que todas as mulheres são ou foram obrigadas a passarem pelo rito, mas de forma curiosa, a prática foi tão significativa para as próprias meninas que quando o governo do Quênia (apenas um dos países adeptos, dentre tantos) proibiu o procedimento de 1920 a 1930, as meninas adentravam ao mato para se circuncidar13. Mas de fato, muitas mulheres pensam diferente nos dias atuais, se negam a realizar o procedimento, ou se já realizaram, fogem com suas filhas em busca de refúgio e asilo, para que suas crianças não precisem passar pela mesma experiência.

Crenças equivocadas estendem a tradição. Acredita-se que o clitóris cresce a tal ponto que se assemelha ao órgão sexual masculino, sendo extremamente tóxico para gestação e o nascimento, trazendo maldição ao feto14.

O sexo "seco" é uma forma de respeito ao cônjuge. Os fluidos corporais que o corpo feminino recebe e produz são poderosos e ligados à fertilidade, porém, se mal utilizados são perigosos. Na excitação, por ocasião do coito, mulheres que ficam muito lubrificadas são comparadas às profissionais do sexo, lubrificação é atribuído a impureza, a promiscuidade, já sua ausência significa juventude, pureza, castidade10.

O sexo intergeracional e o transacional são práticas culturais socialmente aceitas, e defendidas, na Tanzânia. O primeiro trata-se do envolvimento de mulheres mais jovens com homens mais velhos e ricos, usando o corpo como forma de sustento da família, o segundo trata-se do corpo como moeda de troca, mas que difere de maneira significativa da prostituição, pois há uma seleção dos parceiros e preocupação com o que é "moralmente" aceito15.

Um estudo na Tanzânia verificou que a maioria das mulheres jovens acreditava que o corpo seria uma espécie de mercadoria, e o trocariam, sim, por dinheiro. Os homens reforçavam a crença, afirmando que o corpo da mulher é como a carne de um açougue, ou seja, carne exposta e à venda, uma mercadoria que não deveria ser dada, mas comprada; uma maneira fácil de conseguir o sexo, uma vez que pago, não poderia ser recusado. A maioria dos homens entrevistados defendia a cultura, afirmando que nada deveria mudar, uma vez que a mulher não aceitaria o coito sem a troca, forçando-os a realizarem o sexo não consentido. A prática tinha apoio inclusive dos genitores, as mães argumentavam que somente meninas tolas faziam sexo sem nada em troca, e acabavam como alvo de fofocas e desprezo dos homens15.

Em outras diversas culturas, o corpo é direito do ser que o carrega, e o sexo, o sexo é vivenciado com amor, ou tesão, ou vontade, ou no mínimo, claro, o consentimento. A intimidade é grande, e não deve ser invadida, violada, forçada. Diversas mulheres diariamente tentam (re)significar o corpo e o sexo após um episódio de violência sexual. As marcas emocionais são armazenadas no corpo, nas atitudes, nas condutas, nas reações, na corporeidade16. Por vezes a mulher se silencia por medo do julgamento, vergonha, sentimento de humilhação, culpa17,18, desenvolvendo síndromes, fobias, pânico e depressão18. A superação pode ocorrer quando a vítima consegue se enxergar acima do ocorrido, decidindo prosseguir e atribuir-se não mais como vítima, mas como sobrevivente19, uma espécie de mudança de óptica, de enfrentamento, de resistência.

E quando a violência vem por meio de discriminação, preconceito e uma não aceitação velada (nem tão velada assim)? Como compreender quando um humano não se enxerga no corpo que a natureza lhe determinou? "A transexualidade é uma questão de identidade. Não é uma doença mental, não é uma perversão sexual, nem é uma doença debilitante ou contagiosa", e, ao contrário do que se imagina, não se trata da orientação sexual. É uma condição, nem benção, nem maldição. Para os transexuais, o corpo não acompanha o pensamento e a forma com que se enxergam, necessitando de adequação para que possam andar juntos, mente e corpo20. É preocupante que a identidade do outro incomode e revolte tantos conservadores, que por ignorância, discriminam e acreditam que essa condição é inaceitável. Inaceitável é que o transexual seja fadado a viver num corpo que não lhe representa, que não traduz sua alma. Na realidade, essa condição se não acatada e trabalhada pode fazer com que o ser humano se destrua gradativamente, tornando sua vida inviável, "invivível"21. Um estudo com transexuais relatou sofrimento intenso psíquico, traduzidos em depressão, tentativas de suicídio, angústia, transtornos alimentares, não somente pelo conflito biológico, mas também pelas consequências sociais dessa condição21.

Inúmeras são as barreiras criadas à aceitação do corpo, incluindo algumas que são mantidas e escoradas pela própria insegurança e vulnerabilidade psicológica da pessoa afetada. Alterações corporais pós-intervenções frente ao diagnóstico de uma doença que traz modificações à estética e funcionalidade do corpo, sobretudo aquelas que estão associadas a algum tipo de mutilação ou desfiguração, traduz-se em implicações diretas na vida da pessoa e de seus laços afetivos.

O câncer é umas das doenças mais temidas e que mais provoca alterações da imagem corporal. A progressão da doença, assim como o tratamento realizado, podem provocar transformações devastadoras e muitas vezes irreversíveis. Ao se deparar com perdas de certas partes do corpo, com a alopecia causada pela quimioterapia e inchaços, o sujeito não mais se reconhece e passa a ter horror de si mesmo, não aceitando sua imagem corporal22.

Considerando a mama como importante símbolo de feminilidade, o câncer de mama está entre esses grandes medos. Vivencia-se a angústia da mutilação, o medo de morrer, além do temor da perda de seus parceiros, consequência do comprometimento da sexualidade23, impactos que refletem na autoestima, autoimagem e autoconceito da mulher24. Não obstante, para os homens, o pênis representa virilidade e essência da masculinidade. Quando o homem com câncer de pênis se vê diante de um tratamento como a penectomia, uma cirurgia tão mutiladora, ele não mais se reconhece como homem, passando por uma grande ferida narcísica e por grandes prejuízos na autoestima25. Em ambos os casos há necessidade de ressignificação corporal e até mesmo cultural.

Na sociedade contemporânea, onde o culto ao corpo é tão praticado e a busca pela perfeição parece incessante, conviver com os olhares alheios quando não é exequível alcançar esse ideal de beleza, torna-se uma vivência sofrível por muitos. Esse sofrimento é intensificado, quando esses padrões são expostos a todo o momento pela mídia, como alcançáveis, compráveis e saudáveis, o que vem transformando os corpos em verdadeiros laboratórios na tentativa de se alcançar o completo bem-estar.

A mídia faz uso de estratégias estudadas, intensas, repetitivas e manipuladoras para alcançar seu objetivo, que quase sempre é incentivar o consumo, seja de um bem, de um alimento, de uma vestimenta, de um estilo de vida... A todo o momento é possível visualizar em revistas, canais de televisão ou internet a associação do padrão de perfeição corporal a algum tipo de anúncio publicitário. As pessoas passam a ser escravas e seguidoras, submetendo-se à rigorosa e impiedosa disciplina da indústria do corpo. A sedução provocada pela mídia gera desejos cada vez maiores na busca da perfeição. O mundo das propagandas não é algo novo, entretanto, foi no século passado que a mídia ganhou força, tornando-se uma ditadora do modismo. Na época do patriarcado, a violência simbólica era exercida através da igreja, escola e família, já hoje, é praticada, particularmente, nas plataformas midiáticas, sobretudo após o advento da internet. As mídias representam um papel essencial na construção do imaginário social do corpo.

Os símbolos sociais do corpo e de sua boa forma mostram-se como fatores que estimulam a "autoestima" e passam a ideia de que estão relacionados a força de vontade do indivíduo, sugerindo que cada um pode ter o corpo que quiser, basta querer9.

Atrelado a esse processo de propulsão à busca do corpo perfeito, as redes sociais também se constituem em ferramentas influenciadoras que intensificam ainda mais a imposição desse padrão26. O indivíduo, ao utilizá-las, busca incessantemente a conquista da maior quantidade possível de reações, de likes, de smiles, de elogios... Facebook, Instagram, Snapchat, e outras inúmeras redes já extintas, propagaram e propagam a realização pessoal na exposição. O acesso à ferramentas que transformam fotos reais em fotos manipuladas, as "photoshopadas", a possibilidade de colocar filtros para que as imagens fiquem mais atrativas, traduzem-se de um estilo de vida fundamentado no culto ao corpo e consequentemente numa ilusória felicidade inabalável, ao menos na tela. Já não basta como o próprio indivíduo se enxerga, e sim como sua imagem está sendo avaliada e julgada pelo mundo virtual26.

Tudo tem um preço. Mas afinal, quanto custa um corpo? Quanto custa "o" corpo? O corpo vale o quanto ele consome, simples assim. A indústria da estética cresce de forma assustadora. São pacotes das celulites, das estrias, compras coletivas para retirada dos vasinhos, das rugas, consórcios para bens maiores, como o silicone, a lipoaspiração... e se o dinheiro der, pode-se fazer tudo no mesmo dia, e o melhor, "sem perigo algum".

As pessoas não ficaram mais feias, ou menos bonitas; não ficaram imperfeitas, ou menos perfeitas. O fato é que estão em constante insatisfação, e existe um motivo para isso: Pessoas felizes, bem resolvidas e satisfeitas têm outras ambições que vão além do consumo e da busca pela perfeição... E isso é um perigo para o mercado.

O comércio do corpo tem o intuito de torná-lo cada vez mais moldado em um padrão tão inalcançável que até o mais belo dos humanos sente-se incomodado por não estar nos moldes estabelecidos. A grande questão é, produção em larga escala, molde e modelos estabelecidos ofuscam a beleza da singularidade, da individualidade, do indivíduo... nem todos conseguem enxergar isso, na realidade, a origem do sucesso dos "corpos de departamento" é a cegueira provocada pelo marketing, pela internet, pela ociosidade.

Acredita-se que essa beleza ditada seja sinônimo de saúde, de jovialidade, juventude, disposição, taxas de colesterol, triglicérides e glicose dentro dos ideais. Não, não é. Por vezes essa cobrança excessiva, a insatisfação crônica, a revolta e constante dieta fazem surgir distúrbios alimentares e de imagem (anorexia, bulimia), psicopatias (melancolia, ansiedade, depressão), isolamento e alterações de humor27,28. A adequação do corpo ao modelo induzido não é receita para a satisfação, essa conquista pode ocorrer, e muitas vezes vêm acompanhada de um vazio existencial, perda da espontaneidade, da naturalidade e do erotismo28.

A busca frenética incansável pelo corpo perfeito vem transformando as academias em grandes usinas de corpos, onde o objetivo primordial já não é mais um estilo de vida saudável, mas sim a conquista da boa forma e da magreza, permitindo assim uma boa apresentação do corpo aos outros5. Existe uma grande dicotomia dentro desses estabelecimentos, a cultura do corpo não é a cultura da saúde, como tenta-se vender.

A corpolatria tem levado muitos a ruína de seus próprios corpos. A saúde... saúde é um detalhe. Muita água para hidratar e alimentos naturais para fornecimento de energia seria uma boa combinação para prática de exercícios e uma vida saudável. Porém, suplementos hiperprotéicos e os anabolizantes têm tido papel representável no "espaço saúde", sendo o último ainda mais preocupante, pois pode apresentar efeitos colaterais desde os mais leves, como acne e estrias, até os mais importantes, como diminuição da função do miocárdio, danos no fígado e risco aumentado de tumores29.

A construção de um corpo atlético ou com curvas perfeitas, independente do esforço e sacrifício, faz parte de um processo de idealização de uma autoimagem que se vê como saudável, jovem, atraente e sedutora30. Essa distorção do real sentido de se frequentar uma academia impõe a importantes ressignificações do corpo na cultura e aprisiona o indivíduo a um constante processo de frustração, uma vez que, nem tudo aquilo que ele deseja, é possível ser alcançado. Um espaço que deveria representar saúde e bem-estar físico, hoje tem sido invadido por métodos fáceis de alcançar o padrão corporal desejável, mas parece um preço alto demais a ser pago pela perfeição.

Além de um corpo perfeito, é preciso que o corpo seja jovem... ou ao menos, pareça ser de uma pessoa mais jovem do que realmente é, ou seja, "conservado". Não estamos falando de envelhecimento ativo, com capacidades funcionais preservadas, autonomia, não fragilidade... a ordem resume-se em imagem corporal.

As alterações do tecido conjuntivo, que participa da estrutura da epiderme, ditam as mudanças externas, essas modificações do aparelho colágeno-elástico no decorrer da história de vida justificam muitas alterações e adaptações biomecânicas e bioquímicas da pele com o envelhecimento31.

O amadurecimento gera cabelos brancos, flacidez e demais sinais, os quais "devem" ser combatidos com a manutenção corporal energética, lançando mão de todos os recursos possibilitados pela indústria do belo9. A preocupação aqui não é com a finitude do ser, o fechamento do ciclo, o medo da morte. Não há problemas com o morrer, morrer é apenas uma certeza, o problema é com o envelhecer, ou melhor, o envelhecer do corpo.

Na realidade, a velhice é palco privilegiado da desilusão narcísica, velhice tem um tempo, um status, facetas e preconceito em tudo que a envolve32. É preciso entender que todos os corpos estão de passagem, e que o envelhecimento muitas vezes é um grande momento para reflexão, pois é o momento que coisas importantes realmente ganham importância... As cicatrizes contam histórias, as rugas aumentam nos sorrisos, mas ainda sim se quer sorrir... Compreende-se que muito tempo foi perdido com preocupações que não faziam o menor sentido, deseja-se mais tempo... A reverência e o culto ao físico para muitos perdem o sentido, é um estágio da evolução, o sentido está agora em viver intensamente. A juventude foi o ensaio, o palco agora está preenchido por outro ator, e a cena continua bem mais interessante, com toda certeza.

 

CONCLUSÃO

Desta forma, o corpo, representante do sujeito, é profundamente persuadido pelos parâmetros culturais e históricos, adquire significado ao interagir com o ambiente que o cerca, tudo que o envolve está impregnado de valores, e assim, através dessa relação mútua, o ser humano manifesta sua dimensão sociocultural.

Nesse contexto, é fundamental assimilar o corpo de forma holística, não limitando seu aspecto biológico em si, mas toda a sua subjetividade expressa pelo sentir, pensar e agi, aspectos que realmente o caracterizam como ser dotado de humanidade.

 

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Endereço para correspondência:
Cláudia de Souza Dourado
claudias_dourado@hotmail.com

Manuscrito recebido: Novembro 2017
Manuscrito aceito: Janeiro 2018
Versão online: Junho 2018

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