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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.28 no.3 São Paulo set./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.152176 

ARTIGO ORIGINAL

 

Dignidade humana à luz da Constituição, dos Direitos Humanos e da bioética

 

 

Paulo André Stein Messetti; Dalmo de Abreu Dallari

Programa de Pós-graduação Mestrado em Bioética, Centro Universitário São Camilo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: A dignidade humana, cunhada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH/1948), é uma expressão de solidariedade social, que deve cimentar as relações entre as pessoas. A dignidade humana é a base de todos os direitos, como liberdade, igualdade, justiça e paz no mundo, e no Brasil, a dignidade humana foi considerada um pilar fundamental da ordem constitucional pós-1988 do país.
OBJETIVO: Este artigo busca uma investigação mais profunda sobre a natureza social da dignidade humana e sua definição ao longo do tempo.
MÉTODO: Trata-se de uma pesquisa exploratória que visa revelar os conceitos de "dignidade humana", "bioética", "direitos humanos" e "constituição". Após descrever a evolução conceitual da dignidade humana e os fatos relevantes para sua formação conceitual na história mundial - como padrão normativo e norma jurídica -, abordamos a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH/1948), a Declaração de Helsinque (DH/1964), a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH/2005) e a definição adotada na Constituição da República Federativa do Brasil (CFRB/ 1988). O estudo foi realizado sem limitação temporal e incluiu uma revisão de livros referenciados, doutrinas jurídicas, bem como artigos e livros no banco de dados SciELO.
RESULTADOS E DISCUSSÃO: As conclusões ratificam que a dignidade humana é o fundamento de todos os direitos, incluindo os de liberdade, igualdade, justiça e paz no mundo, e deve também orientar os direitos e deveres da regulação social. A dignidade humana passou de um critério de poder atribuído à posição social dos indivíduos para um valor do direito à liberdade, que agora ultrapassa o direito à liberdade e é a base da democracia constitucional moderna, que possibilita a realização da solidariedade, bem como o dever e propósito do Estado e da comunidade. A vontade do sujeito, da sociedade, da ciência e do Estado, bem como as regras de dominação e regulação, devem ter um limite na dignidade humana, e essa não é apenas um direito fundamental no sentido da Constituição, devendo prevalecer sobre a vontade exclusiva da ciência, do Estado e da sociedade. Portanto, nas decisões de poder e na realização de possíveis inovações da ciência envolvendo seres humanos exige-se a consideração explícita do respeito e da promoção da dignidade humana.
CONCLUSÃO: A dignidade humana é ponto consagrado no direito constitucional brasileiro, assim como na bioética e nos direitos humanos e constitui todos os direitos fundamentais da pessoa humana. Não é apenas uma regra de autonomia e liberdade, trata-se de preceito obrigatório e inderrogável na tomada de decisões de poder, verdadeiro fundamento principal do Estado democrático de direito.

Palavras-chave: dignidade humana, bioética, direitos humanos, constituição.


 

 

INTRODUÇÃO

A dignidade da pessoa humana, tal qual cunhada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH/1948)1, é expressão da realização da solidariedade social como elo que deve cimentar as relações entre as pessoas. A dignidade humana constitui fundamento de todos os direitos, tais quais os da liberdade, da igualdade, da justiça e da paz no mundo e deve nortear inclusive os direitos e deveres de regulação social. De acordo com Dallari2, a (DUDH/1948) revela claramente a preocupação com a promoção e a proteção da dignidade humana e indica os benefícios e condições a que todo ser humano tem direito de acesso.

No âmbito teórico as bases do pensamento sobre a dignidade humana se encontram fundadas na filosofia de Immanuel Kant, segundo a qual o homem é um fim em si mesmo e não pode servir simplesmente como um meio para o uso arbitrário da vontade de quem quer que seja3. Na obra do filósofo as regras de autonomia da vontade são o fundamento das regras da liberdade, único direito inato, no sentido de que as leis jurídicas e as leis éticas dizem respeito à ela4. Direito e ética fazem parte das regras dos costumes para o filósofo, com a diferença de que as regras jurídicas exigem a adequação da ação aos deveres exteriores (uma lei que impõe sanção à conduta indesejada), enquanto que as regras éticas exigem adequação da intenção e da ação a deveres próprios da ética, que não os das regras exteriores, a menos que as regras exteriores sejam internalizadas pelo agente da conduta ética. Ricardo Terra, tendo Kant como referência, afirma que: "O direito é a limitação da liberdade de cada um como condição de seu acordo com a liberdade de todos, enquanto esta é possível segundo uma lei universal"4.

No Brasil, por disposição constitucional a dignidade humana foi estabelecida como pilar fundamental do Estado democrático de direito. Trata-se de regra jurídica com força normativa, superior às regras meramente éticas e, assim, no ordenamento jurídico pátrio é imposta uma proteção constitucional e legislativa, para além da ética, ao ditame da dignidade humana, conforme a prescrição inaugural do artigo 1º, III da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988)5.

A consolidação do Estado de direito contemporâneo, notadamente no Brasil, com foco na ideia de solidariedade e de emancipação social em prevalência à noção de dominação, se tratou de evolução social que possibilitou fundamentar a própria dignidade humana para além da noção de autonomia da vontade e apta a estabelecer o contexto jurídico do instituto no Brasil com a promulgação da (CRFB/1988).

Em paralelo à conquista democrática, na segunda metade do século XX surge a bioética com a sua missão declarada de criar uma ponte para o futuro, entre as ciências humanas e as ciências da saúde. Em 2005 a UNESCO adotou por aclamação a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH/2005)6 e consagrou expressamente, inclusive em seu prefácio, a bioética entre os direitos humanos internacionais. Reconheceu, ainda, a interligação entre a ética e os direitos humanos no domínio da bioética, e proclamou o dever de pleno respeito da dignidade humana. Chegada a quarta revolução industrial com a virada do milênio, segundo Schwab7, a fusão de tecnologias e integração dos domínios físicos, digitais e biológicos se dará sem precedentes e, mais do que nunca, a dignidade humana é a medida que deve ser usada para balizar tal interação.

Essas transformações convidam a uma investigação mais profunda sobre a natureza social da dignidade humana e sua definição ao longo do tempo. Este artigo procura preencher essa lacuna.

 

MÉTODO

Este artigo baseia-se em uma pesquisa exploratória que visa desmembrar os conceitos de "dignidade humana", "bioética", "direitos humanos" e "constituição".

Depois de descrever a evolução conceitual da dignidade humana e os fatos relevantes para sua formação conceitual na história mundial - como padrão normativo e norma jurídica -, abordamos a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH/1948), a Declaração de Helsinque (DH/1964), a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH/2005) e a definição adotada na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988)..

O estudo foi realizado sem limitação temporal com pesquisa teórica em livros referenciados, doutrina jurídica, legislação internacional sobre direitos humanos e bioética, na (CRFB/1988) e em artigos e livros na base de dados SciELO.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Fundamentações teóricas básicas para a definição da dignidade humana

O termo "dignidade humana", em sua acepção moderna e jusnaturalista, no âmbito do constitucionalismo, se encontra expresso nos "Federalist Papers" de 1787 como valor inerente à natureza humana8. Por sua vez, a filosofia kantiana é a base para o que se criou com o positivismo jurídico, tratando-se de um jusnaturalismo de fundamento racional e voluntarista, que é o que se constitui na dogmática jurídica moderna ou positivista jurídica9. A teoria jurídica mais expressiva - no Brasil e no exterior - ainda hoje encontra a fundamentação e de certa forma uma conceituação da dignidade da pessoa humana em Kant3.

Em resumo, Kant3 argumentou que a dignidade humana merecia proteção para que a vontade individual prevalecesse. Ele também considerou que os seres humanos são um fim em si mesmo, com um valor inerente não substituível por um preço.

Hoje, mais do que isso, concebe-se a dignidade enquanto direito-dever além de valor moral, de modo que o instituto se tornou um preceito normativo constitucional, prevalente sobre as demais normas jurídicas dos Estados de direito modernos, verdadeiro pilar do direito e das normas jurídicas, alicerce do Estado, em que todas se fundamentam e encontram seu principal conteúdo de validade.

Assim, se verifica a evolução da importância da dignidade humana, que passou da concepção de um valor moral inserido no direito da liberdade-autonomia, e que hoje se trata de direito-dever elevado a princípio jurídico constitucional que fundamenta o Estado democrático de direito, não mais se resumindo apenas ao âmbito da liberdade. Tal evolução também possibilita a realização da solidariedade como dever do Estado e da coletividade.

A realização da solidariedade no Estado democrático de direito pode dar prevalência concreta à dignidade humana na regulação/dominação e, sobretudo para além da mera autonomia da vontade privada, evitando que decisões da vontade de indivíduos, instituições e Estados se sobreponham à integridade física, psíquica, saúde, ou à personalidade de quem quer que seja. Tal delineamento já tomou este rumo no plano teórico desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH/1948).

De mesmo lado, enquanto os paradigmas dominantes do conhecimento-regulação e do conhecimento-emancipação durante a modernidade e até a segunda guerra mundial coexistiram em equilíbrio dinâmico, na contemporaneidade é necessário superar essa correlação entre os preceitos, de acordo com uma nova teoria crítica pós-moderna ou pós-modernismo de oposição nas ciências sociais, em um novo senso comum emancipatório, de modo a se assegurar uma primazia do pilar da solidariedade sobre o pilar da regulação10 justamente para proporcionar a efetiva proteção e promoção da dignidade humana.

Definição histórica da dignidade humana

A dignidade humana é teorizada desde a antiguidade clássica. As raízes da dignidade humana informam um valor intrínseco da pessoa humana principalmente no pensamento estoico grego e no cristianismo3. No pensamento de Aristóteles, o senhor e o escravo tinham diferentes valores e "dignidades", numa verdadeira "escravidão natural"11. A "dignitas" referia respeito à honra-merecimento da posição social do romano antigo. Tal conceito romano, ora classificado de elitista e opressor, foi cunhado no intuito de atender à necessidade de regulação/dominação sobre outras etnias à época.

Após Roma, passada a idade média, a dignidade humana foi teorizada no jusnaturalismo, no século XVI, como proteção, por fundamentação divina, dos direitos intrínsecos dos ameríndios. Não possuíam os escravos valores inerentes reconhecidos, em si mesmos, e eram possuídos 'como se fossem coisas' na lógica do direito histórico escravista3. A vontade política afrontou a dignidade humana na conquista da América pela Espanha, com a manipulação ética do conceito de pessoa humana para viabilizar a escravização e o extermínio dos índios: os interesses políticos e econômicos da Coroa, que não eram os da dignidade humana e da solidariedade, impuseram-se à vida e à dignidade dos ameríndios12.

Assim, o sistema escravista, desde a origem antiga na Grécia, passou por sua assimilação romana. Na América do colonialismo o escravismo impôs a força no genocídio indígena. Já no século XVIII, na Constituição dos Estados Unidos da América de 1787 não se proibiu a escravidão13 "a mais extremada forma de agressão à dignidade humana", e muitos dos que participaram da produção do texto constitucional eram e permaneceram senhores de escravos, exemplo que também foi seguido no Brasil, em que se manteve um sistema escravista liberal até o final do século XIX, no qual conviviam as liberdades burguesas e o escravismo aristocrático.

Tempos depois, passada a barbárie promovida pela 2ª guerra mundial, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH/1948) prescreveu os delineamentos contemporâneos da dignidade humana, que tem sido gradativamente declarada em textos de direitos humanos e positivada nos ordenamentos jurídicos dos Estados democráticos de direito, gerando força jurídica vinculativa às ações públicas estatais e sociais.

O conceito de "dignidade" adotado historicamente e consolidado pode ser referido como uma qualidade intrínseca do ser humano que o distingue e que o qualifica a ser respeitado pelo Estado e pela sociedade, o faz titular de direitos e deveres que lhe asseguram a proteção contra a opressão desumana, bem como lhe garantem a promoção de condições existenciais mínimas para viver em saúde, além de lhe proporcionar a possibilidade de exercer livre e ativamente os destinos da sua própria existência e da sua vida em comunidade3.

A formação e o escopo da bioética

A Bioética se desenvolve de modo substancial a partir de 1970 com um artigo de Van Rensselaer Potter denominado "Bioethics: the science of survival". Potter relacionou a Bioética com o futuro e com a sobrevivência, não limitando a ciência nova às ciências médicas14, consagrando a sua união com os direitos humanos dentro de um conceito de uma nova juridicidade e de solidariedade, que tem na dignidade humana um valor fundamental, numa visão de síntese transdisciplinar que possa permitir a reconciliação da técnica e da humanização num uso crítico dos saberes.

Vale dizer que as raízes da bioética se encontram no Código de Nuremberg15 de 1947, em que foi cunhado o princípio da autodeterminação, como defesa da autonomia, após as barbáries cometidas na 2ª guerra mundial. A proteção da vida e da dignidade humana ganhou novos contornos com a primeira revisão do Código de Nuremberg em 196416, em que a associação médica mundial desenvolveu a assim chamada "Declaração de Helsinque" (DH/1964), com a missão precípua de ofertar à comunidade médica e aos pacientes as diretrizes para as pesquisas que envolvem os seres humanos.

A declaração proclamou entre as suas principais preocupações que a saúde do paciente será a primeira consideração do médico, e que qualquer ato ou notícia que possa enfraquecer o ser humano somente pode ser usado em seu benefício. Já em sua mais recente revisão e consolidação de 201317, a (DH/1964) estabelece em seu 8º princípio básico que o objetivo da pesquisa médica de gerar conhecimento jamais pode ter precedência sobre os direitos e interesses dos sujeitos da pesquisa.

Na sequência, descreve em seu 9º princípio geral que é dever dos médicos envolvidos em pesquisas proteger a vida, saúde, dignidade, integridade, direito à autodeterminação, privacidade e confidencialidade das informações pessoais dos sujeitos da pesquisa. A declaração ainda garante o acesso dos sujeitos de pesquisa a todos os avanços tecnológicos dos estudos clínicos, e bem como à melhor técnica da medicina existente para o tratamento relacionado à pesquisa18, durante o seu curso e mesmo depois.

No Brasil foi redigida em 1996 a Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde, com ampla participação popular, e representou uma nova dinâmica às pesquisas que envolvem os seres humanos. A resolução tem essência bioética e foi coordenada pelo Prof. William Saad Hossne. Não se trata de texto cartorial nem deontológico, mas exige a análise e reflexão crítica de valores envolvidos na pesquisa, e se trata precipuamente de texto voltado à proteção da dignidade do ser humano19.

A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH/2005) promulgada na Conferência Geral da UNESCO6 é destinada aos Estados e à orientação das decisões e práticas de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas, públicas e privadas. Este documento repercute a preocupação trazida na (DH/1964) e consagra, em seu artigo 15, o princípio da partilha dos benefícios de qualquer investigação científica e das suas aplicações com a sociedade, em especial com os países em desenvolvimento. Um dos objetivos da declaração é contribuir para o respeito da dignidade humana e para proteger os direitos humanos. Cabe destacar o artigo 3º da declaração, que prescreve que os interesses e o bem-estar do indivíduo devem prevalecer sobre o interesse exclusivo da ciência ou da sociedade.

O Estado de finalidade solidarista e a dignidade humana após 1988

O Estado de direito moderno foi criado dentro da noção de Hobbes-Rousseau de que era necessário prioritariamente o atendimento ao direito, o que gerou em alguns casos a declaração arbitrária de supostos direitos e a conduta estatal reprovável a partir deles20. Exemplos de declaração arbitrária de supostos direitos são exuberantes na história da humanidade, sendo possível destacar o escravismo antigo, o genocídio indígena na colonização europeia das Américas e o escravismo aristocrático liberal do século XIX no Brasil.

Na teoria do Estado foi Kelsen o teórico que sedimentou as bases para a construção do constitucionalismo no século XX, dentro da noção do normativismo jurídico e da hierarquia das normas constitucionais, de modo que os avanços políticos e ideológicos da Constituição de Weimar13 consolidam a noção moderna de Constituição, dando-lhe novo significado jurídico, diante do seu conteúdo socializante com efeitos práticos, que atribuiu ao Estado o papel de garantidor de direitos sociais em ruptura com a tradição liberal-burguesa. Por outro lado, a teoria pura do direito, de Hans Kelsen, foi o apogeu do Estado de direito que se iniciara no século XIX e que expressou a consolidação do poder da burguesia em face da limitação de seu poder político experimentado no regime anterior13.

Contemporaneamente se entende que a legitimação dos atos do Estado depende de sua adequação às finalidades. A ideia de solidariedade é intrínseca às finalidades do Estado e da sociedade. Tal finalidade demonstra a atitude dos indivíduos em suas relações recíprocas, bem como dos Estados em relação aos indivíduos, em que pode ser resumida a vida do Estado nas ações de conservar, ordenar e ajudar como as três grandes categorias de funções que lhe são adequadas20.

A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988) foi cunhada com ampla participação da sociedade. Teve seu conteúdo elaborado com inspiração na Constituição Portuguesa de 1976, e nas constituições programáticas de Weimar, de 1919, e na Mexicana de 1917, bem como nos anexos das declarações de direitos da ONU de 1966. Determinada à proteção dos direitos humanos, de conteúdo democrático, consolidou o Estado de direito brasileiro e está alinhada às finalidades dos direitos humanos universais, dentre os quais se insere a bioética.

A Constituição Cidadã deixou de lado um modelo liberal-voluntarista-racional-deontológico puro, e transcende a um modelo centrado na função social das relações jurídicas, de base social-ambiental, com fundamento na dignidade humana, que mantém intrínsecas relações com o modelo kantiano do direito e da dignidade humana21.

Para Dallari2, as finalidades e conteúdo da Constituição não podem contrariar os direitos fundamentais em sua concepção protetiva da dignidade humana, adotando apenas regras de comportamento e estabelecendo ordem arbitrária, pois as finalidades precípuas da Constituição consistem na proteção e promoção da dignidade humana, não se tratando de verdadeira Constituição uma lei que embora assim seja denominada apenas imponha regras de comportamento e uma ordem arbitrária, sem proteger e promover a dignidade de todos.

A conceituação jurídica da dignidade da pessoa humana pode ser decomposta em quatro princípios21: igualdade, integridade física e moral, liberdade e solidariedade. A dignidade humana no contexto constitucional brasileiro se trata de uma garantia de conteúdo metafísico pautada em um remoto jusnaturalismo, caracterizada em uma última proteção da pessoa (personalidade) ante à disposição pelo poder público de todas as demais propriedades e bens de seu patrimônio jurídico3. Nesse sentido, decisões judiciais têm colocado a dignidade humana dos presos acima do dever de punir e de dominar do Estado, principalmente em caso de superlotação e incapacidade de celeridade estatal na busca da punição, ou na ausência de instituição prisional adequada ao mandamento constitucional inderrogável da dignidade humana, situação em que, para se promover o fundamento precípuo do Estado, deve prevalecer a liberdade do cidadão22.

Relativamente aos efeitos práticos e concretos da eficácia jurídica da normativa da dignidade humana no direito constitucional brasileiro e no direito internacional dos direitos humanos é importante ressaltar a possibilidade constitucional de exigência dos direitos dela decorrentes ao Judiciário, que encampam não são só os deveres de abstenção do Estado para o livre exercício dos direitos civis e políticos pelos indivíduos, mas também incluem a garantia e a promoção dos direitos sociais, culturais e econômicos pelo Estado, e o seu respeito e adoção pelos particulares23.

Os efeitos exigíveis diante do Poder Judiciário, sem os quais o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana se considera violado, devem incluir (minimamente) o ensino fundamental gratuito, prestações de saúde preventiva e assistência aos desamparados23. O rol de direitos consagrados que garante eficácia à dignidade humana trata-se de fruto de uma prevalência de ideias de justiça numa acepção doutrinária pós-moderna e pós-positivista no direito brasileiro. Os direitos fundamentais devem ser concebidos e interpretados dentro de uma nova hermenêutica constitucional, de modo a se garantir plenamente a vida digna de todos21.

A concretização da dignidade humana requer intenso empenho do Estado e da sociedade, e o seu conceito será sempre um processo de construção, havendo críticas que se levantam contra a possibilidade de uma conceituação jurídica da dignidade humana3. Ela deve ser reconhecida, protegida e promovida, mas jamais poderá ser criada, concedida ou retirada, já que é inerente a cada ser humano3. Às crianças e aos adolescentes é assegurada, ainda, a absoluta prioridade na efetivação do direito à dignidade humana na previsão constitucional do artigo 2275.

A dignidade humana, erigida no Brasil a fundamento do Estado, deve ser tida por prevalente e com força normativa, efetiva, e de concreta realização pela via da melhor interpretação da Constituição.

A dignidade enquanto direito, dever e valor moral se tornou, ao longo da evolução histórica, um elemento normativo prevalente sobre as demais normas jurídicas dos Estados de direito modernos, verdadeiro pilar do direito em que se fundamentam todas as normas jurídicas, servindo inclusive de conteúdo necessário para a validade das decisões de poder.

Assim, se verifica a evolução da importância da dignidade humana, que passou de um critério de poder atribuído à posição social de indivíduos a um valor inserido no direito da liberdade, e que hoje extrapola o direito de liberdade e se trata de um fundamento do Estado democrático de direito, que possibilita a realização da solidariedade como dever e finalidade do Estado e da coletividade.

A vontade individual do sujeito, da sociedade, da ciência e do Estado, bem como as regras de dominação-regulação, devem ter limites na dignidade humana, e não se constitui a dignidade humana meramente de um direito fundamental no sentido da Constituição.

A dignidade humana e os direitos humanos são duas faces da mesma moeda na contemporaneidade. Por consequência, com a proteção constitucional conferida no artigo 1º, III da Constituição da República Federativa do Brasil, onde houver o desrespeito à promoção e à proteção da dignidade humana não haverá eficácia e efetividade dos direitos humanos: sociais, culturais e econômicos, lado a lado com as liberdades civis e políticas.

A dignidade humana é fruto das lutas dos seres humanos que, individual e coletivamente, se opõem à força da dominação que lhes nega a emancipação, ao longo da história, e teve nas declarações de direitos e nas constituições e legislações democráticas a sua consolidação como pilar supremo de todos os direitos e do Estado. Assim é a dignidade ponto consagrado da Constituição e do direito constitucional brasileiro, também da bioética e dos direitos humanos, e nela se constituem todos os direitos fundamentais da pessoa humana.

Após a barbárie dos genocídios do século XX é necessário pensar e desenvolver soluções para evitar ofensas à dignidade humana, no presente e no futuro, numa assunção de responsabilidade e tutela dos direitos das próximas gerações de seres humanos, devendo a dignidade ser protegida e promovida acima de todos os demais valores e fundamentos, sejam eles econômicos, militares, jurídicos, éticos, ou meramente egoístas. Diante das inovações tecnológicas recentes, que incluem algoritmos para o aprendizado das máquinas sem intervenção humana e que alimentam inteligências artificiais, é preciso incluir o manto da proteção da dignidade humana também na construção de controles e modulações frente a tais novidades e promessas da ciência.

Assim, conclui-se que a dignidade do ser humano não é apenas uma regra de autonomia, e deve prevalecer sobre a vontade exclusiva da ciência, do Estado e da sociedade. As vontades dos sujeitos, a sociedade e o Estado, e as regras de dominação e regulação, encontram limites na dignidade humana. O direito constitucional, os direitos humanos na ordem nacional e internacional, assim como a bioética, formam uma ponte para o futuro da humanidade. A dignidade humana é, portanto, um preceito obrigatório e inderrogável na tomada de decisões de poder e na realização de possíveis inovações da ciência envolvendo seres humanos, exigindo-se a consideração explícita quanto ao seu respeito e promoção.

 

Agradecimentos

Aos professores Fábio Costa Morais de Sá e Silva, Blanca Elena Guerrero Daboin, Sandra Regina Cavalcante e José Luiz Gondim dos Santos.

 

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Endereço para correspondência:
paulo@stm.adv.br

Manuscrito recebido: Setembro 2018
Manuscrito aceito: Outubro 2018
Versão online: Novembro 2018

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