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Journal of Human Growth and Development

Print version ISSN 0104-1282On-line version ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.30 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.v30.9975 

ARTIGO ORIGINAL

 

Interações de pares de bebês em programa de acolhimento institucional

 

 

Gabriella Garcia MouraI; Gisele Mathias de SouzaI; Kátia de Souza AmorimII

IDepartamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) - Vitória (ES), Brasil
IIPrograma de Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP) - ribeirão Preto (SP), Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: Com base na perspectiva da intersubjetividade infantil, entende-se que bebês são capazes de interagir com bebês desde muito cedo; e tais interações podem oferecer importantes experiências constitutivas às crianças
OBJETIVO: Investigou-se como se dão as interações de bebê-bebês/crianças pequenas em instituição de acolhimento (abrigo), descrevendo: a frequência destas interações; os recursos emocionais-comunicativos envolvidos; a responsividade dos parceiros; e, a organização do ambiente enquanto circunscritor
MÉTODO: Conduziu-se Estudo de Caso descritivo-exploratório, de abordagem qualitativa, acompanhando as interações de bebê focal (10-13 meses) com seus pares (de 4 a 17 meses), em instituição acolhimento. Realizaram-se videogravações semanais, por três meses no contexto naturalístico. Categorias como "orientação da atenção", "busca/manutenção de proximidade", "trocas sociais" e "responsividade" foram quantificadas e comparadas com interações bebê-cuidadores. Episódios interativos foram minuciosamente descritos
RESULTADOS: A organização do espaço físico-social foi marcada por berços, carrinhos, portões e grades, com poucos brinquedos disponíveis. Verificou-se que os bebês permaneceram grande parte do tempo em atividades individuais (sozinhos) e seus comportamentos sociais foram mais frequentemente direcionados aos cuidadores. As interações bebê-bebês/crianças pequenas ocorreram em menor frequência e, mesmo assim, foram nestas que mais se observaram atividades conjuntas e interações co-reguladas (envolvendo reciprocidade e compartilhamento). A responsividade dos pares envolveu, inclusive, comportamentos empáticos e pró-sociais (com experiência de engajamento interpessoal), onde operavam processos atencionais, emocionais e motivacionais
CONCLUSÃO: As interações de pares de bebês acolhidos se mostraram pouco frequentes. Mas, quando ocorreram, as crianças demonstraram sensibilidade e responsividade às expressões emocionais-comunicativas dos seus coetâneos. A organização do ambiente institucional mostrou-se relevante circunscritor das interações de pares: pelo arranjo material/espacial que dificultava o contato entre as crianças pequenas; e pela ausência do adulto como agente promotor destas interações. Destaca-se a importância de novas investigações sobre indicadores interacionais no acolhimento de bebês

Palavras-chave: bebês, criança acolhida, interação social, interação de pares.


 

 

Síntese dos autores

Por que este estudo foi feito?

Deslocando o foco tão centrado da relação adulto-criança, estudos vêm mostrando que importantes funções psicológicas se desenvolvem nas interações bebê-bebês/crianças pequenas.

Considerando que a razão adulto-criança é baixa em instituições de abrigamento e usualmente as crianças são os parceiros mais disponíveis para interações, mostrou-se relevante articular estes conhecimentos do campo do desenvolvimento infantil com dados empíricos situados.

O que os pesquisadores fizeram e encontraram?

Conduziu-se Estudo de Caso, descritivo-exploratório, de abordagem qualitativa, acompanhando por meio de vídeogravações as interações entre bebês em uma instituição de acolhimento. Os resultados indicaram que os bebês passavam a maior parte do tempo sozinhos em berços e carrinhos, sendo pouco frequente a proximidade e contato físico com seus pares. Mesmo assim,

as crianças mostraram-se parceiros interativos mais responsivos do que os adultos e, entre elas, houve maior ocorrência de comportamentos sociais reciprocamente orientados. Observou-se, ainda, sensibilidade aos sinais mútuos, sincronia e ações coordenadas cooperativas.

O que essas descobertas significam?

Em contexto de cuidado coletivo, onde o cuidado individualizado muitas vezes é dificultado pela proporção cuidador-criança, as interações entre bebês lhes permitem perceber que suas ações repercutem no outro (ainda que não seja um adulto); um outro que lhe atende, responde e conforta, contribuindo para seu desenvolvimento físico, cognitivo, social e afetivo. Espera-se que aspectos e características cruciais destes processos possam ser intencionalmente perseguidos, discutidos e planejados, levando em conta a importância do adulto cuidador como promotor, mediador e agente cultural nos encontros entre pares.

 

INTRODUÇÃO

Como apontam Amorim et al.1, estudos empíricos vêm mostrando que bebês interagem com bebês desde a mais tenra idade. Apesar da incompletude motora, o amplo repertório de competências emocional, visual, auditiva, olfativa, gestual e postural dos bebês lhes permitem serem participantes ativos nas interações com seus coetâneos2, demonstrando padrões diferenciais de recursos comunicativos e expressivos3, e especificidades no desenvolvimento do engajamento social4.

Porém, de acordo com Bradley e Smithson5, no âmbito da Psicologia do Desenvolvimento, a sociabilidade dos bebês tem sido mais usualmente estudada em termos de capacidades e comportamentos diádicos, e em especial na interação com adultos (mãe-bebê). Tradicionalmente, os bebês têm sido tratados como temas da vida privada e reprodutiva1,3, embora estudos recentes venham apontando evidências de suas capacidades para interagir com coetâneos e em situações de grupo, com mais de dois parceiros simultaneamente, abrindo uma série de questões empíricas, teóricas e práticas5. Nessa linha, as interações em grupos de crianças têm possibilitado discutir a criação de significados compartilhados e o processo de constituição de importantes funções psicológicas6. Como mostram Pedrosa e Carvalho6, bebês se interessam pelas ações e objetos de outras crianças, extraindo significados destas atividades. Mesmo antes de as crianças usarem a linguagem verbal, as experiências que vivenciam durante suas (inter)ações e brincadeiras com os pares viabilizam o desenvolvimento de competências relacionadas à atribuição de significados, à construção de novos significados e à (trans)formação dos mesmos3,7.

Assim, objetos, brinquedos e até ações do par constituem-se em atrativos, possibilitando, por exemplo, o estabelecimento de interações bebê-bebê-objetos, consideradas como fundamentais para o desenvolvimento da atenção conjunta8 ou do engajamento conjunto coordenado4. Tais processos referem-se à habilidade de a criança de coordenar sua atenção/ação em direção a um objeto ou evento juntamente com outro indivíduo e viabilizam o reconhecimento das intenções comunicativas do outro, sendo marco no desenvolvimento das habilidades comunicativas referenciais4,9. Envolvendo processos sensório-motor intermodais, com sincronização e coordenação das ações, também promovem avanços nas habilidades da criança de imitar seus parceiros sociais, sendo através da imitação que seus repertórios comportamentais e comunicativos expandem10.

Portanto, deslocando o foco tão centrado da relação diádica adulto-criança, verifica-se que crianças pequenas são parceiras de outras crianças em interações que oportunizam diversas aprendizagens e negociação de posições e papéis3,6. As interações de pares de bebês fornecem diversas evidências de suas habilidades, permitindo identificar potencialidades e (re)conhecer formas de sociabilidade11, além de dar suporte para a construção de práticas diferenciais em contextos de cuidado/educação coletiva1. Esses processos têm sido mais usualmente investigados a partir de contextos de Educação Infantil6,8. Porém, interroga-se: como se dão as interações de pares de bebês e de bebês com crianças pequenas em instituições de acolhimento (programa de proteção especial, na forma de abrigo de longa permanência, para crianças e adolescentes em alto risco e vulnerabilidade social), onde a razão adulto-criança é baixa e os pares usualmente são os parceiros interativos mais disponíveis? Quais seriam as particularidades destas interações nesses contextos?

Estas questões são relevantes na medida em que, por motivos diversos envolvendo graves ameaças aos seus direitos, vulnerabilidades, abandono, negligência e violências, bebês acolhidos são encaminhados para instituições de acolhimento onde chegam a passar vários meses de vida e, muitos, até mesmo anos. Além de estarem alijados do ambiente familiar, usualmente estes bebês também não frequentam creches, sob a prerrogativa de que a instituição acolhedora já exerce o mesmo papel12,13. Portanto, o ambiente de acolhimento institucional costuma ser o principal ou único campo onde se abrem possibilidades interativas destas crianças.

Partindo destas considerações, o objetivo do presente estudo foi analisar as interações bebê-bebês/crianças pequenas em programa de acolhimento institucional.

 

MÉTODO

Como delineamento metodológico, optou-se pela condução de estudo observacional, de natureza descritiva e exploratória, em ambiente natural e com amostra por conveniência. Como ressaltam Zangirolami-Raimundo et al.14, estudos como este - baseados em observações sistemáticas e padronizadas, com coleta e registro de informações que ocorrem espontaneamente em contexto naturalístico - permitem estabelecer relações e associações entre fenômenos (no caso específico, com foco nas interações de pares) e, principalmente, permitem alcançar novas hipóteses que guiam a construção e condução de futuros projetos de pesquisa.

Participantes

A presente pesquisa foi realizada em uma instituição de acolhimento para crianças de zero a seis anos de idade, de um município do Estado de São Paulo. Tratava-se de uma entidade não-governamental (ONG) com capacidade para acolher até 20 crianças e que contava com a seguinte equipe: uma diretora; uma equipe técnica (formada por uma coordenadora, uma assistente social e uma psicóloga); funcionários gerais (cozinheira, motorista e serviços gerais); e, três duplas de cuidadoras/educadoras que trabalhavam em sistema de rodízio. A presença de voluntários, visitantes e familiares de crianças acolhidas também era parte integrante do cotidiano institucional.

No decorrer dos três meses de coleta de dados observou-se grande rotatividade de crianças, com novas chegando enquanto outras eram reinseridas às famílias de origem, extensa ou adotiva. Deste modo, 25 crianças estiveram acolhidas, mas apenas cinco permaneceram durante toda a pesquisa, possibilitando o acompanhamento de suas interações ao longo do tempo. Dentre estas, apenas três estavam no primeiro ano de vida e, por isso, foram selecionadas como bebês focais, sendo seus nomes fictícios: Luis Guilherme, acompanhado dos 10 aos 13 meses de idade; Pedro, dos 4 aos 7 meses; e, Lucas, dos 7 aos 10 meses. No presente estudo terá destaque o caso específico de Luis Guilherme - bebê focal que mais interagiu com outras crianças, possivelmente em função da sua maior maturidade motora que já lhe possibilitava se deslocar pelo ambiente, como discutido adiante. Na qualidade de parceiros interativos do bebê focal também tiveram destaque os bebês Lucas (7-10 meses) e Beatriz (17-20 meses).

Instrumentos e procedimentos de coleta de dados

Para a compreensão dos processos desenvolvimentais das crianças acolhidas, o presente estudo tomou como base a perspectiva teórica-metodológica da Rede de Significações (RedSig), desenvolvida por Rossetti-Ferreira et al.15, que valoriza o olhar para a complexidade e para os múltiplos aspectos constituintes dos processos desenvolvimentais das pessoas em situadas interações. A RedSig orienta a compreensão de que, marcados por discursos sociais e elementos político-econômicos, os serviços de acolhimento são contextos de desenvolvimento humano que circunscrevem determinadas possibilidades de formas de relações e socialização infantil, em função dos objetivos da instituição, dos papeis atribuídos às pessoas ali presentes, das rotinas, práticas, materialidades e da organização daquele espaço. Assim, entende-se aqui que as interações dos pares são consideradas como dialeticamente constituídas e constituintes destes contextos.

Com base nesta perspectiva, para a coleta optou-se por trabalhar com videogravações, organizadas de modo a não enfocar apenas em determinado bebê (um indivíduo isolado), mas no ambiente mais amplo, registrando as interações e trocas sociais nos quais os bebês focais estavam envolvidos, permitindo apreender as vivências compartilhadas, os conflitos e outros aspectos que compunham o universo interativo. Assim, a videogravação se apresentou como um instrumento capaz de captar detalhes e permitindo a retomada do material sempre que necessário e a cada vez com oportunidade de atenção a um aspecto diferente16.

Tais gravações foram realizadas semanalmente, uma hora com cada bebê, ao longo de três meses, em diferentes dias da semana e períodos do dia, com o intuito de descrever, do modo mais abrangente possível, a rotina dos bebês e as diferentes dinâmicas interativas. Para a condução do presente estudo, trabalhou-se com um recorte deste material, sendo analisadas oito semanas consecutivas de videogravações, com duração de 20 minutos cada uma (Figura 1).

Procedimentos de análise dos dados

A análise dos dados teve como foco: 1) a frequência de ocorrência das interações de pares (inclusive, em comparação com a frequência de interações com adultos cuidadores); 2) a responsividade dos parceiros; 3) os recursos emocionais e comunicativos envolvidos; 4) os aspectos psicossociais constituídos e constitutivos da sociabilidade infantil nesse contexto; e, 5) a organização do ambiente, entendendo este como um dos elementos circunscritores dos limites e das possibilidades nas interações dos pares.

Buscando descrever esses pontos, a análise dos dados foi conduzida em três etapas. Primeiro foi feito um mapeamento geral das videogravações buscando demarcar a ocorrência das interações de Luis Guilherme com as demais crianças. A "interação" foi compreendida como um potencial de regulação entre componentes do campo interativo17. Assim, a "regulação" se refere ao comportamento socialmente dirigido ao outro ou em função do outro, independentemente de haver resposta, podendo ocorrer mesmo à distância e sem a criança perceber que está regulando o comportamento do outro. Já a "co-regulação" envolve reciprocidade e comportamentos mutuamente direcionados17. Partindo desta definição operacional, foram registrados: duração do episódio; participantes envolvidos; local onde estavam; enredo dos acontecimentos (o motivo central); e, recursos expressivos e comunicativos utilizados. Ainda, neste mapeamento buscou-se descrever a organização do ambiente físico e social em que se davam (ou não) as interações dos pares.

Em um segundo momento, com o intuito de apreender se haviam parcerias preferenciais18, foi realizada uma observação sistemática das videogravações, buscando quantificar a frequência de ocorrências das seguintes categorias: "orientação da atenção", "busca/manutenção de proximidade" e "trocas sociais" (interações co-reguladas) de Luis Guilherme direcionadas a crianças e adultos deste contexto, considerando a responsividade dos parceiros. Igualmente, foram quantificadas as ações dos bebês/crianças direcionadas a Luis Guilherme (tais como vocalizações, toques, busca de proximidade, etc.), contabilizando a presença ou ausência de resposta de Luis Guilherme a estes comportamentos. E, ainda, foram contabilizadas as ações de adultos direcionadas a Luis Guilherme (como falas, objetos oferecidos, etc.), contando também os índices de respostas do bebê.

Em um terceiro momento, foram selecionados dois episódios interativos referentes aos dois dias em que os índices interativos de Luis Guilherme com os pares foram mais elevados. Trata-se de um episódio da Semana 2 e um da Semana 5, nas quais Luis Guilherme interagiu, respectivamente, com Beatriz e Lucas. Tais episódios foram selecionados pelas suas especificidades que permitem discutir aspectos psicossociais do desenvolvimento dos bebês.

É válido ressaltar que a pesquisa foi aprovada por Projeto no Comitê de Ética em Pesquisa (sob o nº 494/2010-2010-1-824.59.5), em conformidade com as normas e resoluções vigentes no que se refere às pesquisas com seres humanos19.

 

RESULTADOS

Organização do ambiente como circunscritor das interações dos pares

Dois espaços da instituição destacaram-se como principais campos interativos dos pares de idade: o berçário e a varanda. O berçário assemelhava-se a uma enfermaria pediátrica. Os berços ficavam posicionados lado-a-lado, em duas filas paralelas e formando um corredor central por onde as cuidadoras transitavam. Ao final deste "corredor" havia camas pequenas, onde dormiam as crianças de dois a seis anos de idade. Portanto, o berçário consistia em um grande quarto onde dormiam todas as crianças (exceto os recém-nascidos que ficavam em outro cômodo).

Já a varanda constituía-se em amplo espaço externo coberto e contornado por muretas baixas e grades de ferro, com apenas dois pequenos portões de acesso, os quais eram mantidos fechados com travas situadas no alto, de modo que apenas os adultos conseguiam abri-los. Havia poucos brinquedos disponíveis, menos ainda ao alcance dos bebês. Nesse contexto, não era incomum observar as crianças brincando e manipulando os sapatos que lhes caíam dos pés ou as próprias vestimentas, transformando-os em objetos pivôs nos interesses, nas aproximações, nas disputas e nas negociações.

Os bebês de até quatro ou cinco meses de idade passavam a maior parte do tempo no berçário, em berços ou carrinhos, tendo pouco ou quase nenhum contato com as demais crianças da casa. A possibilidade de proximidade com os pares passava a ser maior a partir dos seis meses, quando eles eram colocados em cadeirinhas ou carrinhos na varanda, sob supervisão de algum cuidador ou voluntário. Nestas ocasiões, observou-se que as crianças maiores (que costumavam ficar na varanda) não eram indiferentes aos bebês. Dirigiam-lhes a atenção, buscavam proximidade e inter(agiam). A partir do momento em que os bebês conquistavam maior autonomia motora e conseguiam se sentar, arrastar-se e engatinhar, passavam a ser colocados (em determinados momentos) no chão da varanda ou em andadores.

Em função da circunferência dos andadores, os bebês ficavam ainda mais alijados da proximidade e contato com outras crianças, além de ficarem impossibilitados de alcançarem objetos e brinquedos no chão. Muitas vezes, quando tentavam se aproximar, acabavam passando com as rodas sobre os pés das outras crianças, as quais revidavam empurrando ou locomoviam os bebês (dos/nos andadores) para o outro lado da varanda. Em contraponto - para além das disputas por espaços, brinquedos e objetos - também foi possível perceber o cuidado das crianças maiores com os bebês, por exemplo, ajudando-os a alcançar algum brinquedo ou objeto de interesse; ou chamando a atenção do adulto para suas necessidades.

Luis Guilherme e as transformações nas suas interações com outras crianças

A descrição das funcionárias a respeito de Luis Guilherme foi unânime: um bebê calmo, tranquilo, que não dava trabalho. Inclusive, a Psicóloga relatou sentir-se preocupada, pois ele era tão calmo que ninguém o percebia e ele acabava ficando muito em frente à televisão. A cozinheira relatou impressão similar, dizendo que ele era "tão bonzinho" que ninguém costumava pegá-lo no colo. Para Nice, uma das cuidadoras, mesmo quando ele estava doente, ele não dava trabalho: mamava e dormia normal.

Em coerência com essas características descritas, as videogravações mostraram que o "choro" não foi um recurso expressivo frequentemente utilizado por Luis Guilherme. Já o "olhar", o "engatinhar em direção", o "balbuciar" e o "gesto de apontar" foram seus principais recursos direcionados a parceiros específicos.

No início, Luis Guilherme era um bebê que pouco enfrentava embates com outras crianças, sendo comum vê-lo recuar ou desistir com facilidade de brinquedos que estavam sendo disputados. Diferindo da maioria, ele não costumava chorar quando alguma criança lhe tomava um objeto/brinquedo, tal como foi observado em um episódio interativo do primeiro mês de gravação, envolvendo a dupla de irmãos Paulinho (3 anos) e Sofia (2 anos). Neste dia, Luis Guilherme (10 meses) estava sentado no chão segurando um sapato quando Paulinho e Sofia se aproximaram e lhe tomaram o objeto. Ele, então, saiu engatinhando na direção oposta, não se envolvendo em disputa com os irmãos.

Em outra semana ocorreu episódio semelhante, desta vez envolvendo Beatriz (18 meses), a qual brincava com uma pequena bola verde que despertou o interesse de Luis Guilherme. Conforme ele se aproximava de Beatriz (engatinhando e se arrastando) e tentava pegar a bola da mão da menina, ela se afastava, mas não muito, como se integrasse à brincadeira a possibilidade de aproximação do bebê. Este ciclo (de aproximação-afastamento) se repetiu algumas vezes até que ele se sentou e parou de segui-la, mantendo apenas o olhar atento em sua direção. Então, Beatriz lançou a bola longe (distanciando-a) e, de imediato, ela foi em sua direção (aproximando-se da bola), acompanhada por L. Guilherme que novamente tentou alcançá-la. Contudo, duas crianças maiores entraram no recinto e pegaram a bola, resultando na imediata desistência de Luis Guilherme e Beatriz de tentarem pegar o brinquedo.

Algumas semanas depois, quando já estava conseguindo ficar em pé (em posição ereta) e aprendendo a andar, Luis Guilherme (12 meses) estava entretido com um brinquedo pendurado na parede quando Eduardo (2 anos) se aproximou para brincar com o mesmo. Diferente das situações anteriores, Luis Guilherme esticou os braços e colocou a mão no peito de Eduardo, impondo-lhe um gesto de afastamento do brinquedo. Mas Eduardo não se afastou. Então, Luis Guilherme empurrou Eduardo e colocou a mão sobre as suas mãos. Observou-se, assim, como a conquista da postura ereta e da habilidade de andar possibilitou outros movimentos ao bebê, e repercutiu no seu modo de interagir com outras crianças.

Frequências interativas

A Tabela 1, abaixo, retrata os comportamentos de Luis Guilherme direcionados a crianças e adultos no decorrer de dois meses de videogravação (oito semanas), nas quais o bebê tinha 11 meses e 6 dias de idade na Semana 1 (S1) e 12 meses e 24 dias na Semana 8 (S8).

Como é possível verificar, foram baixas as frequências de ocorrências de comportamentos de Luis Guilherme direcionados a crianças e adultos, como mencionado pelos profissionais nas entrevistas. Isto coincide com o dado observado nas videogravações de que, usualmente, ele permanecia mais da metade do tempo de gravação em atividade individual, alijado das interações interpessoais.

Quando ocorreram comportamentos como "orientação da atenção" e "busca/manutenção de proximidade", esses estiveram mais frequentemente direcionados aos adultos. Contudo, embora os adultos tenham sido os parceiros para os quais Luis Guilherme mais se orientou, ainda assim tais eventos direcionados às crianças também foram significativos. Inclusive, as crianças se mostraram mais responsivas do que os adultos. Ou seja, apesar da menor porcentagem de direcionamento de comportamentos de Luis Guilherme às crianças, em comparação aos adultos, ainda assim as porcentagens de respostas daquelas foram muito superiores. Isso significa que foram observadas mais trocas sociais de Luis Guilherme através de atividades conjuntas envolvendo interações recíprocas com outras crianças do que com adultos.

Na segunda semana (S2) e na quinta semana (S5), os índices de interações com os pares foram maiores, especialmente no que se refere à orientação da atenção, o que coincide com os dias em que o conjunto de crianças estava na varanda, brincando, correndo, pulando e gritando, atividades estas que fixavam a atenção de Luis Guilherme. Assim, observou-se que o local onde era colocado e as atividades ali realizadas por ou entre os pares se mostravam um grande atrativo para o bebê, contribuindo para favorecer não só os encontros das crianças como suas interações e co-regulações.

Nesse sentido, a Tabela 2 mostra ações de outros bebês e crianças em direção a Luis Guilherme e seus índices de respostas.

Observa-se que a ação mais frequente das outras crianças em direção a Luis Guilherme se referiu ao "caminhar/engatinhar em direção ao bebê", evidenciando a busca por proximidade, que obtinha índices de responsividade de Luis Guilherme a estas crianças.

Por outro lado, a Tabela 3 permite observar os comportamentos dos adultos dirigidos ao bebê e seus índices de resposta. A expectativa era de que estes fossem mais frequentes do que os comportamentos das crianças expressos na Tabela 2, hipótese esta que não se confirmou. O que se destaca, na Tabela 3, é o elevado índice de responsividade de Luis Guilherme aos adultos; ou seja, era uma criança responsiva, particularmente na interação com os adultos.

Por fim, também buscou-se observar quem foram as crianças que mais interagiram com Luis Guilherme e que mais se envolveram com ele em trocas sociais, em atividades conjuntas. Os dados revelaram que Beatriz (18 meses) e Lucas (8 meses) tiveram índices diferenciados, inclusive sendo na relação com eles que ocorreu o alto número de interações na segunda (S2) e quinta (S5) semanas, destacadas nas Tabelas 1 e 2. Com o intuito de analisar minuciosamente parte do conteúdo destas interações, dentre os episódios, foram selecionados e dois deles serão apresentados a seguir: um da interação de Luis Guilherme com Beatriz, em S2; e, outro da interação de Luis Guilherme com Lucas, em S5.

Descrição de episódios

Luis Guilherme e Beatriz: um caso de empatia (Figura 2)

Luis Guilherme (11 meses e 11 dias) estava no andador, preso no vão do portão de ferro entre a varanda e a lavandaria. Ali, ele olhava na direção de Luzia (cuidadora), enquanto esta colocava roupas na máquina de lavar (Fig.2, A). Após alguns minutos parado neste portão, Beatriz (18 meses) aproximou-se dele e tentou afastá-lo do portão, empurrando-o para fora do vão, afastando-o da lavanderia (Fig.2 B). Como resultado, o andador se virou para a varanda onde as outras crianças estavam brincando de colocar peças de roupas na cabeça. A partir daí L. Guilherme passou a focar a atenção na brincadeira das crianças. Após alguns instantes, Luzia passou por trás do seu andador, empurrando-o com o pé, tentando tirá-lo do seu caminho (Fig.2, C), o que fez o bebê retomar a atenção à cuidadora. Mas esta passou por ele e seguiu rapidamente em direção a outra criança, que estava sem a calça e com uma blusa na cabeça. Nesse momento, L. Guilherme girou o andador para o lado oposto onde estava Luzia e seguiu determinado em direção a um brinquedo pendurado em uma parte da grade que separa a lavanderia da varanda. Luzia, então, passou por trás dele, levando a criança com ela (Fig.2, D). L. Guilherme percebeu esse movimento e olhou para trás, vendo-a passar de mãos dadas com Eduardo (criança com o pano na cabeça), indo em direção ao berçário (Fig.2 E). Novamente, ele voltou a seguir a cuidadora, indo em direção à entrada do berçário. Beatriz acompanhou L. Guilherme com o olhar e observou que Luzia fechou a porta de acesso ao berçário. Como L. Guilherme a havia seguido, acabou ficando sozinho frente à porta, num cantinho escuro. Beatriz foi até L. Guilherme, passou a mão em sua cabeça (Fig.2, F) e empurrou seu andador de volta para a varanda (Fig.2, G), no rumo do brinquedo que estava pendurado na grade da lavanderia (Fig.2, H).

Luis Guilherme e Lucas: um envolvente encontro (Figura 3)

Luis Guilherme (1 ano e 5 dias) e Lucas (8 meses e 24 dias) estavam cada um em seu berço, em frente à TV (Fig.3, A), com outras crianças ao redor. Seus respectivos berços estavam encostados um no outro, grade com grade. Lucas estava deitado, olhando para a TV e Luis Guilherme estava sentado, mexendo em um urso de pelúcia. De repente, Lucas olhou para trás, se virou e se posicionou de joelhos no berço, ficando frente-a-frente com Luis Guilherme. Este imediatamente sorriu, ficando em pé no berço com o apoio da grade. Lucas também sorriu. Nesse instante, Luis Guilherme esticou o braço sobre as grades dos berços, em direção a Lucas. Este tentou se levantar, mas como estava apoiado em um travesseiro macio, acabou se desequilibrando, não conseguindo. Luis Guilherme esticou ainda mais o braço na direção de Lucas. Este, por sua vez, olhou para o Luis Guilherme, ergueu o corpo levantando a cabeça e esticando o pescoço, de modo que Luis Guilherme conseguiu tocar seus cabelos (Fig.3, B). Em seguida, Luis Guilherme tirou a mão da cabeça de Lucas, o qual (desajeitado) virou-se (ou caiu) para o lado esquerdo, também se afastando, mas sem deixar de olhar para Luis Guilherme (Fig.3, C). Novamente os dois tentaram se tocar: Luis Guilherme voltou a esticar o braço em direção a Lucas e este tentou se erguer e se manter firme sobre o travesseiro, ficando mais ao alcance do outro, permitindo novamente que este passasse a mão em seu cabelo. Ainda de maneira desajeitada no travesseiro, tentando se equilibrar com o corpo esticado, Lucas se abaixou um pouco, mas ergueu o rosto, mantendo uma interação face-a-face com Luis Guilherme (Fig.3, D). Pela terceira vez, os dois repetiram os mesmos movimentos: Luis Guilherme esticou os braços por cima da grade do berço e Lucas também se aproximou, contribuindo para que o parceiro conseguisse tocar sua cabeça (Fig.3, E). Ao perder a sustentação sobre o travesseiro, Lucas encolheu o corpo e virou-se para o lado direito. Mas agora, erguendo as mãos, conseguiu segurar na mão de Luis Guilherme, que por sua vez sorriu (Fig.3, F). Por instantes, Luis Guilherme se distraiu com algo a sua frente enquanto Lucas também voltou a se deitar, mas sem deixar de olhar para o outro menino. Em seguida, mais uma vez, Lucas se levantou, aproximou-se de Luis Guilherme, o qual esticou os braços sobre o berço e passou a mão em sua cabeça (Fig.3, G). Nesse momento, Luis Guilherme sorriu para Lucas e este se deitou de novo, mas não sem estender uma última vez os braços em direção a Luis Guilherme (Fig.3, H).

 

DISCUSSÃO

Com base nos resultados do presente estudo, a partir da análise do direcionamento de recursos expressivos de bebês; da existência de responsividade, seletividade e parcerias preferenciais; e, considerando a organização do ambiente físico e social, é possível discutir alguns aspectos psicossociais constituintes da sociabilidade infantil, particularmente nas interações das crianças acolhidas. Embora se tenha selecionado como foco principal apenas um caso particular - as experiências vivenciadas pelo bebê Luis Guilherme na instituição de acolhida, o que inviabiliza generalizações estatísticas, ainda assim, sob uma perspectiva sóciointeracionista15, compreende-se que o social e o cultural estão atravessados no individual; ou, que um recorte da realidade abrange aspectos condizentes com o contexto mais amplo12,20.

Nesse sentido, um dos resultados que se destacou foi o fato de que o bebê L. Guilherme passou a maior parte do tempo das videogravações em atividades individuais, sozinho. Quando manifestou comportamentos sociais (ou seja, ações reguladas em função de um parceiro social), estes foram dirigidos com maior frequência aos adultos. Inclusive, foi elevado seu índice de responsividade frente aos comportamentos dos adultos dirigidos a ele. Contudo, embora o contato com outras crianças tenha ocorrido com menor frequência, foi nestes encontros que mais se observou a ocorrência de trocas sociais, isto é, de comportamentos sociais reciprocamente orientados (co-regulados)17. As demais crianças também se mostraram parceiros sociais mais responsivos do que os adultos. E, mais ainda, as outras crianças acolhidas dirigiram a Luis Guilherme um número de comportamentos equivalente à dos adultos. Portanto, embora Luis Guilherme buscasse, constantemente, estabelecer e manter o contato com os adultos responsáveis pelos seus cuidados foi suas interações com outras crianças que mais se efetivaram e resultaram em responsividade, reciprocidade e compartilhamentos.

Este conjunto de resultados abre caminho para diferentes reflexões e discussões. Primeiramente, analisando as interações entre bebê e cuidadores, os resultados corroboram outros achados da literatura que indicam a baixa ocorrência de interações entre adultos e bebês nas instituições de acolhimento12,13,21, com poucas respostas sensíveis e contingentes do cuidador ao bebê, muitas delas representando cuidados impessoais e ritualizados, pautados no mínimo diálogo, demarcando um "estilo institucional de cuidar"22. Tais resultados preocupam uma vez que - considerando as interações sociais como pilares sobre os quais se estruturam e se desenvolvem complexas funções do psiquismo humano -, a baixa ocorrência de interações bebê-cuidador pode se constituir em entrave para experiências fundantes, alijando a criança de formas mais complexas de sociabilidade e de imersão no universo semiótico de nossa cultura12.

Além disso, a responsividade tem sido fator altamente correlacionado com a qualidade dos cuidados ofertados aos bebês. O cuidado sensível e comprometido, envolvendo sensibilidade, sincronia e responsividade têm frequentemente aparecido na literatura científica como associados ao melhor ajustamento social e emocional da criança acolhida23. Por isso, no presente estudo, também preocupa a baixa responsividade dos adultos cuidadores, sendo este aspecto relacionado a padrões de apego inseguro e a prejuízos no desenvolvimento socioemocional e cognitivo24. Por outro lado, apesar desta baixa responsividade, o bebê Luis Guilherme não deixou de buscar proximidade e de dirigir comportamentos sociais aos seus cuidadores. Este resultado evidencia o papel do adulto na estruturação das atividades infantis, especialmente de bebês tão pequenos e dependentes15. Mesmo quando não está interagindo diretamente com a criança, o cuidador regula suas ações, inclusive pela forma como organiza os espaços, se posiciona e posiciona a criança nele15.

Neste mesmo contexto, as outras crianças se mostraram parceiras privilegiados de trocas interativas. Ainda que pouco frequentes, as interações bebê-bebê/crianças pequenas destacaram-se como ricas experiências de socialização emocional, tal como evidenciou o Episódio "Luis Guilherme e Beatriz: Um caso de empatia". Neste recorte das videogravações, representativo do cotidiano dos bebês acolhidos, observou-se o quanto a presença da cuidadora Luzia regulou os comportamentos de Luis Guilherme e o esforço do bebê na busca pelo contato com ela. Na varanda - onde várias crianças brincavam, gritavam e corriam, enquanto Luis Guilherme as observava -, a aproximação da cuidadora mostrou-se um atrativo para o bebê que, revelando preferência e seletividade, logo passou a segui-la por meio do andador. Entretanto, enquanto a cuidadora se manteve atenta aos seus afazeres (colocando roupa para lavar), sem se direcionar a Luis Guilherme, Beatriz (bebê de apenas 18 meses) dirigiu-lhe comportamentos diferentes: arrastou e virou seu andador, e tentou atrair a atenção de seu colega para junto das crianças que brincavam ali. À despeito disso, Luis Guilherme continuou a maior parte do tempo buscando a proximidade da cuidadora Luzia, até que ela entrou em outro cômodo e fechou a porta atrás de si, deixando o bebê sozinho em um corredor escuro. Observando a situação, Beatriz voltou a arrastá-lo, colocando-o diante de um brinquedo que antes o interessara; ainda, dirigiu-lhe um gesto, passando a mão em seu cabelo.

Estes resultados contribuem para a reflexão e discussão sobre os conteúdos que podem constituir as interações entre bebês e crianças pequenas; o quanto estes encontros interativos podem promover habilidades socioemocionais, regulação e socialização das emoções e ricas experiências do ponto de vista do desenvolvimento sócio-afetivo. Como discutem Liddle et al.11, a competência socioemocional infantil, em especial da primeira infância, foi historicamente subestimada. Os bebês eram descritos como naturalmente egocêntricos; incapazes de identificar, compartilhar e responder adequadamente ao estado afetivo do outro social; sem uma consciência acerca da mente, de intenções e do estado subjetivo das pessoas ao seu redor. A partir da década de 1970, tais pressupostos são seriamente questionados, por exemplo pelos notórios estudos de Trevarthen25, que afirma a existência de uma intersubjetividade desde o início da vida. O autor discute a capacidade que as crianças pequenas desenvolvem de compreender os pensamentos e sentimentos dos outros, ligando-se e se ajustando a estados e expressões afetivas, o que permite intercâmbios muito ricos nas interações dos bebês com seus parceiros, envolvendo capacidades de se sintonizar, engajar-se e se comunicar. Desde então, pesquisadores têm se dedicado ao estudo de comportamentos pró-sociais em crianças pequenas, demonstrando e discutindo a "tendência para um compartilhamento interacional básico desde o nascimento, que incluiria sincronizações, igualações e padrões empáticos"26.

O Episódio entre Luis Guilherme e Beatriz também chama a atenção para estes padrões empáticos presentes nas interações de crianças pequenas. Ou, pelo menos, permite levantar a questão: "a vivência de Luis Guilherme - diante de uma cuidadora que o ignorava - teria repercutido em Beatriz a ponto de levá-la a agir com empatia?". Inúmeros estudos empíricos que reúnem registros fotográficos e observacionais de diferentes culturas retratam a ocorrência deste tipo de comportamento entre crianças pequenas26. Nestes estudos a empatia é usualmente descrita como a capacidade de compreender e compartilhar o estado emocional do outro11, apresentando uma resposta afetiva em função do que o outro sente1,10.

A empatia envolve componentes afetivos e cognitivos que conduzem o sujeito a fazer pelo outro o que gostariam para elas mesmas26. E, de fato, ao se manter regulada pelo seu colega, observando-o, Beatriz parece perceber sua intenção ("ele quer proximidade e contato com a cuidadora"); e também parece perceber que, apesar do seu esforço, Luis Guilherme não encontra reciprocidade e atenção da cuidadora. Tal situação a mobiliza a ponto de ela mesma lhe oferecer uma resposta que ele não estava obtendo da outra pessoa: tenta integrá-lo ao grupo; tenta distrai-lo com um brinquedo e lhe dirige um gesto afetuoso.

Esse conjunto de comportamento de Beatriz não significa e nem implica que ela estava agindo com uma intencionalidade consciente, como tradicionalmente no campo se discute10. Mas podem ser decorrentes de um nível de percepção interpessoal, em sintonia com suas próprias vivências corporificadas naquele ambiente, tal como discutem Amorim e Rossetti-Ferreira27. Portanto, com estas reflexões, entende-se que Beatriz demonstra capacidade de experimentar e compreender a vivência emocional do outro e responder de forma ajustada, com engajamento e comportamento pró-sociais. Assim como em outros estudos sobre práticas de cuidado entre crianças10,13, Beatriz revela padrões comportamentais que mimetizam o cuidado típico do adulto, como ensinar, ajudar, entreter, confortar, oferecer, tocar afetuosamente, dentre outros que usualmente aparecem ao longo segundo ano de vida26.

Finalmente, ainda no que se refere ao Episódio "Um caso de empatia", cabe uma outra questão: "se as re(ações) de Beatriz podem ser discutidas à luz dos estudos sobre competências socioemocionais e empatia, quais seriam os efeitos dessas (inter)ações para Luis Guilherme?" Conforme destaca Bussab26, além da possibilidade de ambos os bebês desenvolverem processos relacionados à autoconsciência, igualações recíprocas, sincronia e intencionalidade, essa interação também permite a Luis Guilherme perceber que suas ações repercutem no outro (ainda que não seja o adulto); um outro que lhe atende, que lhe responde, que lhe conforta, contribuindo para sua regulação emocional.

Neste episódio de compartilhamento básico (pois se tratam de emoções sendo compartilhadas), com possibilidade de conforto emocional, Beatriz e Luis Guilherme vão significando um ao outro como parceiros de referência, algo que os próprios resultados confirmaram, demonstrando a frequência diferenciada de interações e trocas sociais entre eles. Portanto, os bebês se envolvem em um contexto socioafetivo que está intimamente relacionado com o processo de construção de vínculos26, entendendo que a vinculação afetiva se desenvolve em um contexto interacional com trocas ajustadas em resposta aos sinais do outro, implicando uma individualização deste outro: "sei quem você é e o que fizemos juntos"10. Nesses termos, a interação entre os bebês instiga a pensar no interessante e pouco estudado processo de (trans)formação de vínculos entre crianças tão pequenas.

Muitos destes apontamentos acerca dos processos constituídos e constituintes da intersubjetividade infantil também podem ser observados no outro episódio descrito ("Um envolvente encontro"), no qual Luis Guilherme (12 meses) interagiu com o bebê Lucas (9 meses). Separados pelas grades dos respectivos berços, mas através de olhares, sorrisos, gestos, posturas e movimentos reciprocamente orientados, engajados na busca pelo contato físico, pelo toque e pela proximidade com o outro, os bebês traçaram um enredo interativo no qual predominam as co-regulações, os comportamentos sincronizados, a sensibilidade aos sutis sinais mútuos e as ações coordenadas cooperativas, aspectos também já observados nas interações de pares de bebês, em estudos anteriores realizados em creches1,2,6,8,10,28-30.

Tal como descrito no estudo de Viana e Pedrosa29, o esforço empreendido por ambos bebês em um objetivo comum (aproximarem-se, tocarem-se) revela o desenvolvimento da habilidade de coordenar ações cooperativas em função de intenções e metas compartilhadas. Interações desta natureza promovem o desenvolvimento de habilidades cognitivas importantes para o reconhecimento do outro e de si como um agente intencional, além de promover a aquisição de novos recursos e colocar em teste seus limites. Nessa linha, Costa e Amorim28, discutem a relevância da ocorrência de sincronização e coordenação entre bebês tão pequenos, uma vez que para alguns teóricos, a coordenação de crianças de um ano de idade parecia ser coincidência, e que só poderia se estabelecer a partir dos três anos.

Estudos de Trevarthen25 sobre a intersubjetividade infantil, focados na interação diádica mãe-bebê, já reconheciam a capacidade dos bebês de se engajarem em repertórios expressivos efetivamente coordenados com um adulto sensivelmente sintonizado11. Indo além, as evidências empíricas do presente estudo demonstram que tal habilidade pode ocorrer e se desenvolver nas interações de pares. Ainda que a imaturidade motora e a ausência da linguagem verbal sejam fato, isso não impede a fluidez da interação e a busca pelo (toque do) outro. Portanto, a interação entre L. Guilherme e Lucas revela uma experiência de engajamento interpessoal onde operam processos atencionais, emocionais e motivacionais fundamentais para o desenvolvimento infantil10.

Não menos importantes são os aspectos afetivos dessa interação. O olhar e o sorriso se revelam potentes recursos comunicativos que garantem a manutenção da atenção e o engajamento mútuo. Como mostrou Dentz30, em estudo em creches, os sorrisos promoviam mais repercussões e reações entre pares de bebês do que o choro; e os bebês não apenas sorriam aos pares, como dos pares e com os pares. Verifica-se, assim, como que por meio de recursos expressivos e comunicativos variados (incluindo emoções, vocalizações, gestos e movimentos), que os bebês se direcionam a e (co)respondem de forma diferenciada a parceiros específicos1,8.

Para além das parcerias preferencias, o mapeamento geral das interações permitiu observar que o comportamento mais relevante de Luis Guilherme direcionado a outras crianças foi o olhar, a orientação da atenção. Isto chama a atenção, pois, tradicionalmente, o olhar tem sido considerado pela literatura como ação passiva, indicativa de que a criança não se engaja em atividades e relações6. Contudo, estudos empíricos têm revelado o contrário, demonstrando que a noção de atividade dos bebês deve se ampliar para além de movimentos corporais, deslocamentos e gestos1. O olhar tem sido um dos recursos comunicativos mais observados nas interações de bebês, pois, para além da visão, o olhar envolve uma esfera relacional, que possibilita ações de seguir, acompanhar, (co)responder e alternar, comunicando ao outro seus interesses, atenções e preferências. Também desencadeia ações no coetâneo, que ao se deparar com o olhar do outro, vocaliza, aproxima-se ou se afasta, sorri, oferece um objeto6, etc.

Portanto, os bebês aprendem observando e experimentando as ações de outras crianças1,6,7. Considerando a aprendizagem não como sinônimo de aquisição (um produto final alcançado), mas como um processo dinâmico de percepção-ação28 que envolve imitações, confrontações e reconhecimentos, a observação possibilita ao bebê perceber, por exemplo, que determinada ação do par sobre um objeto resulta em um efeito específico (soa um barulho, algo se move, uma porta se abre, muda-se de cor, etc.). Nesses momentos, novas possibilidades de atuação se abrem, como é o caso da imitação, reproduzindo um resultado.

Via imitação, os bebês retomam elementos anteriormente observados, vivenciados e negociados nas interações com os pares1. A imitação é gatilho para a ocorrência de ações coordenadas, pois ao imitar o comportamento do parceiro, mesmo sem intencionalidade consciente, a criança sinaliza a intenção de brincar junto29. Estes estudos mostram que o olhar, a orientação da atenção e a observação são atividades típicas dessa etapa da vida, que possibilitam a codificação espacial, a percepção e a participação no ambiente, por meio das quais os bebês aprendem sobre si e sobre o outro, na sua relação com o outro social.

No presente estudo, o olhar e a atenção às ações/atividades dos pares frequentemente desdobraram-se em deslocamentos. Isto é, na medida em que se desenvolvem as habilidades motoras de Luis Guilherme, ele passou a se deslocar em função da cuidadora e de outras crianças, tanto aproximando-se quanto afastando-se, a depender da familiaridade e dos elementos compartilhados com determinados pares. Resultado similar foi encontrado na análise de interações de pares de bebês em creches28, nas quais se verificou que o desenvolvimento de capacidades exploratórias e locomotoras coincidiu com o aumento na frequência de contatos físicos e nas possibilidades de ocorrência de trocas sociais, pois as crianças podiam se mover e alcançar outras crianças.

É válido destacar o papel dos objetos nesses processos, que são atrativos que despertam o interesse dos bebês, ainda mais quando estão nas mãos da outra criança, a qual, ao chacoalhar, jogar, bater, mover ou lançar, lhes dão movimento e vida1,8.

Todas estas considerações acerca do papel da observação, da imitação, da locomoção e dos objetos nos processos interativos de bebês são evidenciadas no relatado episódio envolvendo Luis Guilherme, Beatriz e a pequena bola verde. Como referido nos Resultados, L. Guilherme observava atento à brincadeira de Beatriz com a bola, até que sua atenção se desdobrou na atração e deslocamento em direção à díade bebê-objeto. Uma hipótese é de que Beatriz, ao perceber a aproximação do colega, afastou-se, mas não de modo a evitá-lo, e sim de modo a integrar à brincadeira esse ciclo de aproximações-afastamentos que se repetiu algumas vezes. Quando Luis Guilherme parou de segui-la, ela fez um novo uso do mesmo objeto (bola), lançando-o para longe, aparentemente de modo a chamar de novo a atenção de Luis Guilherme. Assim, Beatriz, que antes mantinha a posse do objeto, inverteu a brincadeira, colocando-se à distância dele e buscando reaproximar-se. Luis Guilherme, observando a novidade, também se recolocou em direção ao objeto, não mais apenas se aproximando de Beatriz, mas ao lado/junto dela, em um movimento coordenado, ambos compartilhando o mesmo movimento e o mesmo foco de atenção em direção à bola.

Analisando situação semelhante, Costa e Amorim28 discutem como a aquisição da capacidade de deslocamento figura-se não só como um marco no desenvolvimento motor, mas também social e cognitivo. A locomoção vai sendo co-contruída na interação, podendo promover/inibir (des)continuidade e (re)arranjos nos processos interativos. Assim, para além do aspecto maturacional, o desenvolvimento motor se constitui e se inter-relaciona com aspectos relacionais, contextuais e culturais. Nesse contexto, papéis vão sendo atribuídos numa interação que dinamicamente se modifica a cada gesto, a cada movimento1,8,28.

Portanto, conforme enfatiza a perspectiva da Rede de Significações15, as transformações nas atividades infantis não ocorrem de modo isolado, em decorrência exclusiva de processos maturacionais, pois a própria biologia é socialmente orientada. As interações com o outro (no caso, com o par) figuram-se como arena e motor desses processos desenvolvimentais, onde múltiplos elementos se inter-relacionam. Por isso, o episódio entre Luis Guilherme e Beatriz com a bola verde mostra que, para além da possibilidade de aproximar-se ou distanciar-se do par/objeto de interesse, o desenvolvimento motor relaciona-se também com as posições sociais e as redes de significações construídas no bojo desses encontros3.

Estas considerações ficam mais evidenciadas quando se analisa um outro resultado: as transformações posturais de Luis Guilherme (mais especificamente, a aquisição da postura bípede seguida do andar sem apoio e da liberação das mãos) refletiram diretamente na forma como ele se posicionava na relação com o outro e como era significado nas interações com os pares. De bebê "bonzinho", que evitava confrontos e disputas com outras crianças, L. Guilherme passou a se reposicionar frente ao par na medida em que conseguia se manter em pé, negociando os espaços, as distâncias/aproximações e os brinquedos. Estes aspectos também estão ilustrados no episódio em que Luis Guilherme, por meio de gestos, (im)posições corporais e vocalizações, impede Eduardo de tocar em um objeto que ele estava manipulando.

Todo este percurso traçado até aqui fala de como as transformações de Luis Guilherme dinamicamente se refletiram na (re)configuração das interações com seus pares. Seu posicionamento no campo interativo foi se transformando e, conjuntamente, as significações de si mesmo, do outro e do ambiente ao redor15. Mais ainda, evidencia-se o modo como novos recursos foram exigidos diante dos desafios que as crianças mutuamente se impuseram (ao não saírem do caminho, ao puxarem, ao empurrarem etc.), contribuindo para a co-construção de novas habilidades28. Contudo, falta um elemento importante nessa discussão: a participação do adulto cuidador nas interações das crianças.

A literatura sobre interações de bebês evidencia o suporte do adulto e seu papel mediador nas trocas sociais, inclusive dos pares. "Ele acompanha e ajuda a significar a situação de um encontro que se efetiva pela própria ação das crianças"1. Bebês de seis meses costumam reagir a seus pares, mas precisam do apoio materno para continuar a interação, evidenciando como as mães contribuem para o engajamento social infantil11. O suporte do adulto também auxilia a criança a coordenar a atenção conjunta com outras crianças e está relacionado ao aumento de ofertas comunicativas nestes encontros4.

Mas diferente destes estudos acima, as observações da presente pesquisa evidenciaram que, frequentemente, as crianças acolhidas interagiam entre si na ausência da mediação das cuidadoras. Este dado possivelmente tem um viés, que é a presença da pesquisadora sendo interpretada pela equipe como um elemento de segurança para as crianças. Este viés não influencia os resultados da pesquisa, nem altera suas conclusões, uma vez que o objetivo do estudo não era descrever as formas e práticas de mediação do adulto nas interações entre pares - ainda que se discuta a importância desse processo. Mesmo assim, na maioria das interações dos pares em que as cuidadoras estiveram presentes, estas se posicionaram como expectadoras, buscando garantir a segurança e integridade física dos pequenos. Porém, não tiveram um papel de ativa e diretamente interagir com as crianças, de responder a elas quando buscadas e nem de incentivá-las nesse encontro com o par, não apresentando uma atuação orientada para a promoção de experiências variadas, de aprendizagens e significações.

Se, por um lado, os adultos não estiveram usualmente presentes nas interações das crianças acolhidas, por outro lado se fizeram presentes na forma como o ambiente era estruturado. Ampliando o foco de análise, verifica-se que o adulto pode promover ou desencorajar encontros entre os pares a partir do modo como organiza o ambiente de cuidado, ou seja, mesmo que não esteja diretamente presente nos episódios interativos "sua mediação enquanto prática pedagógica é materializada na organização do ambiente com implicações nas (re)(inter)ações das crianças"28.

Como mostram os estudos de Campos-de-Carvalho31, que se dedicou à análise do papel dos arranjos espaciais em creches e discutiu o planejamento de ambientes infantis coletivos, as crianças pequenas tendem a buscar mais proximidade do adulto cuidador, usando mais frequentemente a área ao redor dele e aglomerando-se em torno dele, quando os espaços são mais vazios de objetos ou quando os móveis e equipamentos de uma sala estão encostados na parede, formando um espaço central vazio.

Este tipo de estruturação foi apontado como o arranjo mais comum nas creches brasileiras à época (e mostra-se semelhante ao arranjo desta instituição investigada, a varanda contando apenas com a estrutura física das grades e paredes, não havendo brinquedos e nenhum mobiliário disponível). Por outro lado, Campos-de-Carvalho31 também discute que quando o arranjo espacial oferece diversas zonas circunscritas, formadas por pequenas áreas, delimitadas por barreiras baixas (como móveis, paredes, estantes baixas com superfície de apoio, desnível do solo, objetos altos e baixos, caixas, dentre outras diferentes texturas e formas), tende-se a aumentar o número de agrupamentos de crianças, com maior ocorrência de comportamentos socialmente dirigidos entre elas31.

Nesse sentido, o arranjo espacial mostra-se um importante circunscritor do desenvolvimento, podendo favorecer ou dificultar certas interações, atividades, jogos, papéis e posições, propiciando determinadas significações. O arranjo espacial é a base sob a qual se organizam as interações bebê-ambiente, bebê-coetâneos e bebê-educadores. Determinadas posições, determinados ângulos de visão delimitam a experiência e o processo de constituição das crianças. Com base nessa perspectiva e analisando os elementos característicos do ambiente físico institucional do estudo de caso em questão - no qual se destacou a presença marcante de grades, berços, carrinhos e andadores, dificultando a aproximação e o contato físico entre as crianças -, compreende-se como o próprio arranjo espacial se constituía enquanto um entrave para maior ocorrência de encontros entre as crianças28,31.

Esses objetos, materiais e móveis são elementos pertencentes à matriz sócio-histórica que se materializam na organização do espaço físico, das rotinas e práticas, circunscrevendo as (im)possibilidades de interações entre as crianças3,27. Este aspecto pode ser observado pela forma como a configuração espacial da instituição continha elementos semelhantes a uma enfermaria pediátrica (com fileiras de berços dispostos lado-a-lado e com turnos de trabalho das funcionárias de 12/36 horas) e um presídio (grades de ferro e cadeados), remetendo-se aos antigos orfanatos de séculos passados e indicando a presença de circunscritores historicamente dados12.

Embora as legislações e diretrizes em vigor já preconizassem o planejamento de ambientes de acolhimento de modo a garantir uma atmosfera familiar, aconchegante, com ênfase no atendimento personalizado, estimulando a troca social e a construção de vínculos32, ainda assim vem se identificando no contato com essas instituições aspectos herdados de outros tempos históricos, perpetuando na prática cotidiana um estilo institucional de cuidar e de se relacionar22,33. O passado se encontra atualizado por meio dos significados inscritos nos tipos de organização espacial, nas práticas discursivas, nas formas de relações, evocando, atuando e contribuindo de um modo criador para configurar o aqui-agora15.

Apesar dessa estruturação, tendo em vista a potencialidade da capacidade intersubjetiva do ser humano e desde muito precocemente das crianças pequenas, compreende-se que ainda com limitações de ocorrências, as interações dos bebês com outras crianças acolhidas lhes possibilitam desenvolver habilidades, competências e capacidades fundantes. Ainda que estes encontros muitas vezes sejam breves e fortuitos, marcados pelo desajeitamento característico da maturidade neuromotora de bebês, as experiências que vivenciam são corporificadas e (trans)formam continuamente suas significações acerca de si mesmo, do outro e do mundo1,2,15,27.

Por isso, é fundamental que a promoção das trocas sociais entre as próprias crianças esteja na agenda das políticas e dos serviços de proteção especial, contribuindo para a qualificação do cuidado de crianças acolhidas. Na pauta das discussões sobre os projetos político-pedagógicos e planos de atendimento dos programas de acolhimento à primeira infância, deve-se considerar o papel mediador do adulto na organização dos espaços, e a importância do ambiente de cuidado ser desafiador, criativo e estimulante, com obstáculos, cantos e objetos que permitem interações e experiências variadas34. Com a presença constante do cuidador e estruturando zonas de movimento, oferece-se um ambiente acolhedor, seguro e protegido, onde as crianças possam explorar conjuntamente, deslocar-se e ter contato não só com o adulto, mas com o par, junto com o qual também constrói seus conhecimentos, sua linguagem, cultura e a si próprio como sujeito1,20.

Ademais, partindo de uma perspectiva histórico-cultural, e mais especificamente da Rede de Significações15 - que discute o caráter complexo dos processos desenvolvimentais, situando-os não de modo isolado na pessoa, mas sim nas e através das relações e contextos culturalmente dados -, o presente estudo discutiu aspectos psicossociais característicos da sociabilidade infantil, em especial no que tange às experiências de bebês acolhidos.

Ampliando o foco para além do bebê (indivíduo) ou da díade bebê-adulto, outros elementos do processo interativo foram considerados, como: as posições dos diversos atores sociais; a organização do ambiente infantil; a presença de aspectos da matriz sócio-histórica; e, as configurações das redes de significações. Em diálogo com a literatura, observa-se como todos estes aspectos estão dialeticamente inter-relacionados, possuindo concretude no aqui-e-agora das situações, contribuindo para constituir (ou não) campos interativos e experiências socioemocionais, no bojo das quais bebês interagem inclusive com bebês e outras crianças, e nesse processo se (trans)formam e constituem a própria subjetividade3.

Nesse sentido, o presente estudo contribui com a apresentação e discussão de dados empíricos sobre interações de bebês em contexto diverso do tradicionalmente estudado. À luz de estudos e conhecimentos do âmbito do desenvolvimento humano, buscou-se ressaltar alguns dos processos básicos na constituição de importantes habilidades e competências infantis, contribuindo para que aspectos e características cruciais destes processos sejam intencionalmente perseguidos na qualificação do atendimento à criança e, em particular, à criança em situação de vulnerabilidade.

Como limitações deste trabalho, destaca-se o pequeno número de participantes acompanhados em um único contexto de acolhimento, não ensejando amplas generalizações estatísticas dos resultados. Apesar desse limite, entende-se que enquanto Estudo Observacional, de caráter descritivo-exploratório14, abre-se a processos sociais pouco conhecidos, referente a grupos particulares, propiciando a construção de novas hipóteses, e de indicadores qualitativos e quantitativos que possam ampliar a revisão de conceitos e categorias.

Agradecimentos

À FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processos nº 2010/01919-0; e 2009/53488-5); e, ao CNPq processo no. 303767/2009-0.

 

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Endereço para correspondência:
gabigmoura@yahoo.com.br

Manuscrito recebido: Setembro 2019
Manuscrito aceito: Novembro 2019
Versão online: Março 2020

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