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Journal of Human Growth and Development

Print version ISSN 0104-1282On-line version ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.30 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.v30.9970 

ARTIGO ORIGINAL

 

Autopercepção corporal em crianças com Síndrome de Down (SD) em idade escolar

 

 

Dayse Karoline Santos da SilvaI; Larissy Alves CotonhotoII; Mariane Lima de SouzaIII

IMestre em Psicologia - Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo
IIPós-doutoranda em Psicologia - *Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo
IIIProfessora doutora em Psicologia -*Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: A noção de corpo ou percepção corporal está estreitamente relacionada ao desenvolvimento da motricidade e, por conseguinte, da funcionalidade. Em situações de desenvolvimento atípico, como no caso da Síndrome de Down (SD) há um atraso no desenvolvimento e as aquisições motoras são comprometidas, o que possivelmente reflete-se na qualidade da autopercepção corporal de crianças com SD
OBJETIVO: Avaliar as características da autopercepção corporal em crianças com Síndrome de Down
MÉTODO: Trata-se de um estudo exploratório e descritivo, abrangendo 10 crianças com idades entre sete e nove anos. Para a avaliação da percepção corporal, utilizou-se o fator Noção de corpo da Bateria Psicomotora (BPM). A análise dos dados foi realizada qualitativa e quantitativamente de acordo com os critérios estabelecidos pelos instrumentos e pelos pesquisadores
RESULTADOS: O desempenho dos participantes quanto à noção de corpo não apresentou relação com sua idade. A capacidade de discriminação de direita e esquerda foi o subfator de noção de corpo com o pior desempenho e a autoimagem, o subfator no qual os participantes tiveram o melhor desempenho. Os desenhos da figura humana dividiram-se em duas categorias: irreconhecíveis (classe A, n= 8) e reconhecíveis (classe B, n=2
CONCLUSÃO: A autopercepção corporal das crianças com Síndrome de Down apresenta relação com os estímulos corporais e ambientais em conjunto com o desenvolvimento psicomotor e cognitivo, que, no entanto, não coincide com o desenvolvimento que ocorre cronologicamente

Palavras-chave: Síndrome de Down, autopercepção corporal, criança, desenho.


 

 

Síntese dos autores

Por que este estudo foi feito?

This study was done to assess the aspects of the body self-perception in children with Down Syndrome.

O que os pesquisadores fizeram e encontraram?

Researchers analyzed the body self- perception of 10 children aged between seven and nine years through the factor 'Body Notion' from the Psychomotor Battery (BPM). Findings indicated the participants' performance regarding the body notion is not related to their age. The right and left discrimination capability was the body notion sub-factor with the worst performance and the self-image was the sub-factor with the best performance, although only two participants have drawn recognizable human figures.

O que essas descobertas significam?

These findings mean that self-perception of children with DS has a strong relationship with the body and environmental stimuli together with psychomotor and cognitive development. However, psychomotor and cognitive development does not seem to coincide with their chronological age.

 

INTRODUÇÃO

O movimento do corpo acompanha o ser humano desde o período pré-natal e, para que este seja aperfeiçoado e especializado, é preciso estar em pleno funcionamento um sistema multifatorial que abrange as respostas corporais e a capacidade de percepção. Apesar de ser uma característica inerente à vida humana, o movimento necessita de uma base, que é a percepção do próprio corpo, e das possibilidades de movimento a partir da noção do corpo.

O desenvolvimento psicomotor na infância caracteriza-se pela aquisição de habilidades motoras, neurológicas e psíquicas que garantem à criança amplo domínio de seu corpo e as diversas possibilidades de movimento e interação com o meio. Habilidades básicas como andar, correr e manipular objetos são necessárias ao direcionamento de rotinas diárias, características do desenvolvimento e da maturação da criança1.

Como consequência da integração e amadurecimento dessas habilidades, ocorrem tonicidade, equilibração, lateralização, estruturação espaço-temporal, praxia e noção de corpo. A psicomotricidade desenvolve-se temporalmente, desde as mais simples até as mais refinadas e específicas habilidades motoras. Atrasos ou déficit podem ser observados quando essa integração não é feita no tempo correto ou inadequadamente2.

A noção de corpo ou percepção corporal tem grande importância no desenvolvimento da motricidade e, por conseguinte, da funcionalidade. A percepção corporal caracteriza-se por um engendramento de conteúdos sensoriais que começam a se associar na infância. Poderia, então, ser definida como uma tomada de consciência do corpo a partir de multimodalidades sensoriais3. Nesse sentido, as impressões sensoriais, isto é, os resultados dos estímulos sensoriais, são importantes para o desenvolvimento da consciência que a criança tem do próprio corpo. Se uma dessas experiências é prejudicada, ela pode influenciar negativamente o desenvolvimento pleno da consciência do corpo. Os distúrbios motores estão agregados aos caracteres da corporeidade, de modo que a sincronia entre desenvolvimento motor e o desenvolvimento do esquema e consciência corporal é crucial para o desenvolvimento típico4.

Por outro lado, sabe-se que em situações de desenvolvimento atípico o comprometimento da motricidade e funcionalidade é uma constante. Entre as diversas causas de desenvolvimento atípico em crianças, a Síndrome de Down (SD) é a mais frequente entre os casos de malformações genéticas. A SD é uma das disfunções genéticas mais frequentes em todo o mundo, é a causa mais comum de deficiência intelectual5 e é decorrente de um erro no par de cromossomos 21 - no qual normalmente deveria haver dois pares de células, mas existem três. Por isso, também essa síndrome é denominada Trissomia do 21 e caracteriza-se por apresentar frouxidão ligamentar generalizada, hipotonia, instabilidade atlanto-axial e hipermobilidade articular, crânio pequeno e redondo com região occipital achatada, pescoço curto e largo (com excesso de pele nucal), orelhas pequenas e malformadas, boca pequena com língua grande e geralmente protusa6 e déficits em funções cognitivas como de atenção, memória, linguagem e pensamento abstrato7.

As crianças com Síndrome de Down apresentam um atraso no desenvolvimento e as aquisições motoras são comprometidas, podendo ser conquistadas em até o dobro do tempo de uma criança com desenvolvimento típico. Além do atraso, tanto a falta de experiências físicas com o meio quanto o déficit de integração sensorial perceptivo de si mesmo podem interferir no processo de desenvolvimento cognitivo e gerar dificuldade na realização de atividades de vida diária8.

A habilidade motora de crianças com Síndrome de Down caracteriza-se por descoordenação, lentidão, variabilidade e hesitação, além da dificuldade de responder às mudanças do meio9. Mediante métodos diferentes e abordagens diversas, estudos mostram que crianças com Síndrome de Down apresentam desvantagem em relação às crianças típicas. Na Grécia, pesquisadores avaliaram crianças típicas e com SD quanto à motricidade grossa e função executiva e observaram que, em ambos os aspectos, as crianças com SD pontuaram significativamente menos que as crianças típicas10. Em outro estudo que avaliou as aquisições motoras em lactentes com SD e crianças típicas, observou-se diferença de idade de aquisição de habilidade motora em todas as tarefas entre o grupo típico e o grupo com SD11.

A despeito desses estudos sobre a habilidade motora, a noção de percepção corporal em crianças com SD ainda é pouco estudada. As publicações existentes focalizam autoconceito e autopercepção relacionada à motricidade: no primeiro caso, um estudo utilizando o autorrelato sugere que, na percepção das próprias crianças com SD, elas têm uma vida plena e feliz12; no segundo, tema de investigação, dois estudos independentes indicam que há um atraso nesse acoplamento de percepção da ação e ação nas crianças com SD13,14.

No que concerne à avaliação da percepção corporal, os testes disponíveis são normalmente parte de uma bateria complexa, desenvolvida para a observação de fatores de psicomotricidade de forma geral. Em tais baterias, a percepção corporal é avaliada por meio do desenho do corpo15,16. Do ponto de vista da psicologia do desenvolvimento, o desenho da criança expressa sua evolução mental e, por consequência, o processo de tomada de consciência de si mesmo e do mundo, isto é, um processo de conhecimento representado graficamente. O grafismo infantil é resultante das lembranças sobre um objeto, que pode ser o próprio corpo, e é acurado por motricidade e cognição17.

Este estudo parte do entendimento de que a diferença do desenvolvimento motor típico para o desenvolvimento motor de uma criança com SD esteja relacionada com a experiência corporal e, para que esta seja realizada com mestria, perceber o próprio corpo e explorar sua capacidade são processos imprescindíveis.

Assim, o objetivo é analisar a autopercepção corporal em indivíduos com Síndrome de Down.

 

MÉTODO

Delineamento

Trata-se de estudo exploratório e descritivo, de abordagem mista com análise de dados quantitativa e qualitativa18. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFES - Campus Goiabeiras, com registro e aceite sob o n° 1.629.376.

Participantes

Participaram do estudo dez crianças com Síndrome de Down, com idades entre sete e nove anos, de ambos os sexos, frequentadoras de instituições de ensino especializado da Grande Vitória-ES. Foram adotados os seguintes critérios de inclusão: haver possibilidade de comunicação, ser estudante regular e assíduo das instituições. A imobilidade de um ou mais membros foi considerada critério de exclusão. Para preservar a identidade das crianças, os nomes reais foram trocados por nomes fictícios.

Instrumentos

Para avaliar a percepção corporal, utilizou-se um instrumento quantitativo, o fator Noção de corpo da Bateria Psicomotora (BPM) de Vitor da Fonseca19. A BPM é um instrumento baseado em um conjunto de tarefas que permite detectar déficits funcionais em termos psicomotores, cobrindo a integração sensorial e perceptiva que se relaciona com o potencial de aprendizagem da criança. Para o estudo, utilizamos apenas o Fator Noção de Corpo que contém cinco subfatores, os quais se caracterizam pelas seguintes tarefas: (1) Fator cinestésico: a criança deve nomear 16 pontos do corpo tocados pelo avaliador; (2) Diferenciação Direita e Esquerda (D-E): a criança deve realizar oito tarefas com o próprio corpo diferenciando D e E, como cruzar a perna direita por cima do joelho esquerdo; (3) Autoimagem: a criança deve levar o dedo ao nariz quatro vezes, duas em cada mão; (4) Imitação de gestos: a criança deve imitar os gestos feitos pelo avaliador com o dedo no ar; (5) Desenho do corpo: a criança deve desenhar a si mesma, o melhor que sabe. Cada subfator apresenta como pontuação máxima quatro (4) e mínima um (1). Quanto maior a pontuação obtida, melhor o desempenho nas tarefas executadas. A pontuação mínima obtida no fator é de cinco (5) pontos e a máxima vinte (20) pontos.

Para a avaliação qualitativa do conhecimento da criança acerca do próprio corpo, os desenhos obtidos no subfator desenho do corpo da BPM foram avaliados de acordo com parâmetros referentes ao nível de detalhamento dos pormenores anatômicos, estabelecidos pelos autores.

Procedimentos de coleta e análise dos dados

Primeiramente, no contato com as instituições de ensino especializadas, foram esclarecidos os objetivos e procedimentos da pesquisa. Com a autorização das instituições e ciência dos responsáveis, as crianças foram recrutadas de acordo com os critérios de inclusão e faixa etária. As crianças selecionadas foram avaliadas no âmbito da própria instituição, numa sala reservada. Antes das avaliações, foi realizado um processo de ambientação e vinculação da criança à pesquisadora com brincadeiras com massa de modelar. Cada avaliação teve duração média de 20 minutos.

Após a coleta, os dados fornecidos pelo instrumento e pelo desenho foram tabulados e avaliados. A aplicação do fator Noção de corpo foi feita por uma pesquisadora treinada e a pontuação total obtida no fator foi calculada pela soma dos valores obtidos nos subfatores. A média da pontuação no fator noção de corpo foi calculada para a amostra.

Os desenhos foram classificados quanto ao contorno, traço e presença de partes do corpo delimitadas. Nos desenhos em que a figura humana é reconhecida, foram observados estes caracteres: 1. Presença de cabeça: tamanho (grande, pequena adequada para o resto do corpo), forma (quadrada, redonda, disforme), contorno (regular ou irregular) e traço (contínuo ou interrompido); 1.1 Presença do rosto: olhos (tamanho, simetria, contorno e traço), nariz (tamanho, simetria, contorno e traço), boca (tamanho, simetria, contorno e traço) e distribuição desses no rosto; 2. Presença de pernas (unidas ao tronco, à cabeça), unidas simetricamente de ambos os lados (direita-esquerda), linha de contorno (regular ou irregular); 2.1 Presença de mãos: contorno, forma, traço e simetria e presença de dedos definidos; 3. Presença de braços (unidos ao tronco, à cabeça), unidos simetricamente de ambos os lado (direita-esquerda), linha de contorno (regular ou irregular); 3.1 Presença de pés: contorno, forma, traço e simetria e presença de dedos definidos; 4. Tronco: tamanho (grande, pequeno, adequado para o resto do corpo) e forma (quadrado, redondo, triangular) contorno (regular ou irregular), traço (contínuo ou interrompido); 5. Presença de pescoço: tamanho (grande, pequeno, adequado para o resto do corpo), contorno (regular ou irregular), traço (contínuo ou interrompido); 6. Cabelos: tamanho e forma.

 

RESULTADOS

Do total de crianças avaliadas, seis eram meninos e quatro meninas, com idades entre sete anos e um mês e nove anos e sete meses. Os resultados das avaliações indicaram um desempenho moderadamente melhor no subfator autoimagem e na imitação de gestos. O pior desempenho ocorreu no subfator reconhecimento D-E (Tabela 1).

Os resultados da soma do fator Noção de corpo variaram independentemente da idade. Crianças com a mesma idade (Júlio e Ramom) obtiveram a menor e a maior pontuação, respectivamente (Figura 1). A média das somas da amostra foi de 6,7 e está abaixo da média esperada numa criança com desenvolvimento típico da mesma idade. No fator Noção de corpo da BPM, 10 é a pontuação considerada satisfatória, quando a criança realiza as tarefas, mas com dificuldade; 15 é a pontuação considerada boa e a criança realiza as tarefas adequadamente; e 20 caracteriza uma pontuação excelente, quando a criança realiza as tarefas com mestria, sem nenhuma dificuldade.

Os resultados da análise dos desenhos das crianças com SD indicaram duas classes (A e B), respectivamente, figura humana irreconhecível e figura humana reconhecível. A classe A subdivide-se em classe A1, que contém apenas rabiscos casuais e incontrolados (Figura 2) e classe A2, que contém desenhos com linhas pouco controladas, que parecem toscas linhas geométricas ou remetem a formas geométricas (Figura 3). A classe B representa os desenhos em que a figura humana foi reconhecida (Figura 4).

A média de idade das crianças com desenhos classe A foi 7,5 anos. E, nos desenhos dessas crianças, nessa amostra, não foi possível reconhecer a figura humana. Já na classe B, a média de idade foi 9,25 anos e, nos desenhos das crianças dessa classe, foi possível reconhecer a figura humana.

Os desenhos classe B, nos quais corpo é apresentado com mais detalhes e maior discriminação de pormenores anatômicos, foram feitos pelas crianças que obtiveram as maiores pontuações do fator Noção de corpo. As crianças com mais idade apresentaram maior detalhamento nos seus desenhos, entretanto nem todas as crianças com mais idade apresentaram maior detalhamento, caracterizados pela presença de partes do corpo, como cabeça e membros. Apesar dessa disparidade, nos desenhos das crianças com idades abaixo de oito (8) anos, não foi reconhecida a figura humana.

 

DISCUSSÃO

Os resultados apresentados neste estudo sugerem que a percepção corporal dessa amostra de crianças com SD está alterada, com especial relevância na diminuição do sentido cinestésico e no déficit no reconhecimento D-E. É possível que essas alterações ocorram devido a fatores que impliquem o atraso do desenvolvimento psicomotor e cognitivo das crianças com a síndrome. O atraso no desenvolvimento motor em crianças com SD vem sendo bem documentado na literatura científica, e dentre os principais fatores que causam esse atraso, está a hipotonia, falta de equilíbrio e deficit cognitivo20,21.

Do ponto de vista psicomotor, há uma relação entre o desenvolvimento da percepção do corpo com o estímulo dado à criança, ao desenvolver-se. O processo de desenvolvimento está intimamente ligado ao processo de vivenciar sensações corporais. Para que uma pessoa tenha um desenvolvimento satisfatório de sua imagem corporal, ela tem que experimentar seus movimentos, a fim de direcionar suas ações no mundo e ter consciência de suas limitações e possibilidade quanto ao corpo. Esse processo pode ser facilitado ou dificultado por diversos fatores, como idade, traumas, deficiência física ou cognitiva, fatores ambientais e biológicos e intervenções pedagógicas e terapêuticas22. De fato, o desenvolvimento de um indivíduo com SD é equivalente ao de crianças típicas, resultando, assim, de influências culturais, sociais, ambientais e genética23.

O resultado comum e baixo para a tarefa de discriminação de direita e esquerda é uma resposta coerente com a literatura na área, visto que é preciso que haja consciência do seu corpo, para que este possa ser diferenciado em direita e esquerda para o sujeito. Lateralidade é resultado de experiências dos segmentos corporais das duas metades do corpo ao longo da vida, ou seja, ela necessita de certo grau de consciência corporal para que se desenvolva24. A consciência de que existe lado direito e esquerdo é essencial também para que a criança perceba seu movimento no tempo e no espaço25. Em um estudo que teve por objetivo detectar a preferência podal em crianças com Síndrome de Down, os pesquisadores concluíram que a dificuldade de percepção do peso adicional pelos receptores presentes nos fusos musculares e tendões influencia na formação do esquema corporal e lateralidade26. O estudo comparou um grupo com SD e outro sem SD no desempenho em uma tarefa: de mover um móbile com os pés, inicialmente sem carga e depois com uma carga de um terço do peso das pernas. Nas crianças com SD, o peso adicional não influenciou na preferência podal.

A pontuação mais alta no subfator de autoimagem pode ter ocorrido porque as instruções para a realização da tarefa eram realizadas também pelo examinador, para que o participante visualizasse o que deveria ser feito. Dessa forma, é possível que, ao ter a possibilidade de imitar a ação, o participante teve mais chance de se sair bem na tarefa. Ou seja, a realização da tarefa pelo examinador pode ter servido como feedback visual. Os dados encontrados apontam a importância da imitação para o desenvolvimento infantil.

De fato, a importância da imitação no desenvolvimento das representações mentais tem sido indicada em mais de um modelo teórico do desenvolvimento cognitivo que segue duas principais perspectivas: a abordagem clássica da teoria piagetiana e a abordagem resultante da pesquisa empírica mais atual. Para a primeira, a imitação precede as representações mentais; ela sofre um processo de transformação ao longo de seis estádios do período sensório-motor, indo dos exercícios reflexos à imitação representativa e à imitação diferida27. Para a segunda, um pouco mais recente em psicologia do desenvolvimento28,29, essa aquisição ocorre numa ordem inversa, isto é, a capacidade de representação é condição necessária para haver imitação. Dessa forma, o processo de imitação torna-se imprescindível no processo de representação; neste caso, representação do próprio corpo30. Nesse sentido, é viável supor que a imitação e, por conseguinte, a representação do próprio corpo em crianças com Síndrome de Down se apresentam defasadas, visto que essas aquisições em crianças típicas ocorrem geralmente entre os seis primeiros anos de vida.

Em relação à autopercepção corporal das crianças avaliadas, não houve variação quanto à idade, isto é, crianças de idades diferentes tiveram desempenho semelhante, obtendo a mesma pontuação. Esse resultado pode ser explicado pela individualidade de cada criança, ou seja, pela capacidade de reação e subjetividade inerente a cada um e pelo nível de estimulação e oportunidades oferecidas. Esse resultado indica que aquisições de habilidades motoras mais apuradas e maior percepção do próprio corpo numa representação mental (conduta complexa que antecede a linguagem) dependem não somente da idade cronológica e que, em crianças com SD, o desenvolvimento parece não seguir a ordem cronológica fixa das aquisições previstas no desenvolvimento típico. Ou seja, a autopercepção corporal parece depender muito mais do desenvolvimento de habilidades psicomotoras do que do passar do tempo8.

Os resultados das avaliações qualitativas dos desenhos das crianças com SD neste estudo podem ser explicados com base na literatura sobre o desenvolvimento do grafismo. Nos desenhos da classe A, as figuras representadas com rabiscos e formas geométricas grotescas evidenciam o estágio de desenvolvimento do grafismo denominado de garatujas, caracterizados por rabiscos ao acaso e efetuados por crianças com idades entre dois e quatro anos, com desenvolvimento típico31. Em crianças com SD, a aquisição de habilidade motora ocorre com atraso e, portanto, mesmo com sete e nove anos de idades, não é totalmente estranho que seus desenhos se assemelhem, em termos gráficos, aos de crianças com quatro anos ou mais novas.

Os desenhos do tipo classe B representam a figura humana em estágios diferentes. Nesses casos, há a intenção do desenho, mas nem sempre a representação gráfica corresponde ao real. Essa capacidade, determinada pela coordenação motora e limitada pelos movimentos gráficos manuais, vai aperfeiçoando-se desde a prática e amadurecimento da criança32. Dessa forma, é compreensível que as crianças com SD desta amostra, com idades entre sete anos e um mês (7a1m) e nove anos e sete meses (9a7m), demonstrem motricidade fina e habilidades motoras em processo de aprimoramento.

Com relação aos resultados das crianças para o fator Noção de corpo, foi possível observar algumas condutas que pressupõem a função simbólica, entre as quais estão a imitação diferida, imagem mental além da capacidade de dissociar o próprio corpo do objeto externo - percepção do próprio corpo, característica que se inicia no estádio sensório motor e se amplia ao longo do desenvolvimento. Conforme Piaget, a criança desenvolve a função simbólica desde condutas que aparecem quase simultaneamente, mas que se sobrepõem em nível de complexidade. Em nível crescente de complexidade, elas englobam imitação diferida, jogo simbólico, desenho, imagem mental e linguagem. Essa função surge desde o estádio sensório-motor (0 a 2 anos) e se desenvolve no estádio seguinte, denominado pré-operatório (2 a 6-7 anos). Assim, pode-se sugerir que as crianças deste estudo, com idades entre sete e nove anos apresentam características dos estádios sensório-motor e pré-operatório. Pode-se sugerir, ainda, que as crianças com SD desta amostra têm a intenção de desenhar-se, desenhando o que sabem antes de exprimir, no seu desenho, o que veem27. Para Luquet, citado em Piaget27, o desenho da criança até os 8-9 anos de idade é essencialmente realista na intenção, mas inicialmente a criança desenha o que sabe de um personagem ou objeto, e só mais tarde exprime graficamente o que nele vê.

Os desenhos de Juliano, Francisco e Ramom ilustram muito adequadamente as três fases importantes do realismo no desenho: o "realismo fortuito", no qual podem ser alocados os desenhos de garatujas, está bem caracterizado no desenho de Juliano; o "realismo falhado", no qual os elementos estão justapostos, podendo ser representados pelos "badamecos", é muito bem caracterizado pelo desenho de Francisco; e a fase de "realismo intelectual" (evolução gráfica da fase anterior), que apresenta essencialmente os atributos conceituais do modelo, sem preocupação com as perspectivas visuais, bem caracterizado pelo desenho de Ramom. É importante notar que a evolução do desenho acontece concomitantemente à estruturação do espaço, conforme os diferentes estádios do desenvolvimento. Desta forma, é possível inferir a partir dos desenhos apresentados que é necessária a colaboração dos aspectos cognitivos, motores e perceptuais para que a imagem mental do próprio corpo seja exteriorizada graficamente31.

O estudo apresentado utilizou parte de um instrumento de avaliação para mensuração da autopercepção corporal, o fator Noção de corpo da Bateria Psicomotora, o que foi uma limitação metodológica. Contudo, a combinação de dados quantitativos com uma análise descritiva e qualitativa dos desenhos ampliou a discussão quanto a essa característica. Além disso, por se tratar de um estudo exploratório, os resultados sugerem hipóteses interessantes a serem testadas em estudos futuros. Por exemplo, os achados sobre uma autopercepção corporal diminuída nas crianças com Síndrome de Down deste estudo possivelmente sugiram uma tendência de que a habilidade de se perceber pode necessitar de um tempo maior para desenvolver-se nessa população. Portanto, enfatizam a autopercepção corporal como um atributo importante a ser considerado na estimulação do desenvolvimento das crianças com Síndrome de Down.

No âmbito da saúde e da reabilitação, inserir a autopercepção corporal como variável no contexto de avaliação do desenvolvimento em crianças com Síndrome de Down pode trazer importantes benefícios aos usuários desses serviços. Tendo em vista a possível relação entre a autopercepção e funções motoras e cognitivas básicas, a avaliação da autopercepção corporal maximiza as possibilidades de condutas terapêuticas, podendo determinar uma melhoria significativa no atendimento de crianças com Síndrome de Down por diferentes profissionais de saúde.

Em conclusão, a autopercepção corporal das crianças com Síndrome de Down, apresentam relação com os estímulos corporais e ambientais em conjunto com o desenvolvimento psicomotor e cognitivo, que, no entanto, não coincide com o desenvolvimento que ocorre cronologicamente.

Agradecimentos

Agradecemos o apoio e incentivo da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo - FAPES (processo:70224617) e à professora Claudia Broetto Rossetti, pelo apoio e suporte dado a esta pesquisa.

 

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Endereço para correspondência:
daysekaroline@hotmail.com

Manuscrito recebido: Agosto 2019
Manuscrito aceito: Outubro 2019
Versão online: Março 2020

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