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Journal of Human Growth and Development

Print version ISSN 0104-1282On-line version ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.30 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.v30.9974 

ARTIGO ORIGINAL

 

Orientações e práticas na alimentação de crianças com Paralisia Cerebral

 

 

Luiza MaggioniI, II, III; Cláudia Marina Tavares de AraújoI

IPrograma de Pós-Graduação em Saúde da Criança e do Adolescente, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - Recife (PE), Brasil
IIInstituto de Medicina Integrada Professor Fernando Figueira (IMIP) - Recife (PE), Brasil
IIIReal Hospital Português (RHP) - Recife (PE), Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: Paralisia Cerebral refere-se a distúrbios no desenvolvimento com repercussão direta no controle da postura e na motricidade. De caráter não progressivo, acontece por insulto em um cérebro ainda em desenvolvimento. Crianças com Paralisia Cerebral (PC) apresentam alterações nas funções orais, que torna o alimentar difícil, podendo trazer graves consequências para saúde, como desnutrição e pneumonia. O cuidador é presença essencial na alimentação dessas crianças, de modo que precisa conhecer e praticar meios para oferecer uma alimentação de forma segura. A fim de evitar complicações e reduzir estresse de cuidador e criança, orientações de práticas e cuidados alimentares são essenciais e precisam ser satisfatórias e efetivas. O fonoaudiólogo é o profissional habilitado na assistência e na intervenção das dificuldades alimentares das crianças e na orientação do cuidador. Todavia, orientações fornecidas nem sempre são incorporadas à prática diária, sendo necessário conhecer essa realidade mais de perto
OBJETIVO: Analisar a qualidade das orientações recebidas e as práticas alimentares de mães/cuidadores de crianças com paralisia cerebral
MÉTODO: Trata-se de um estudo exploratório, transversal, envolvendo 59 cuidadores principais de crianças com paralisia cerebral de um a 10 anos de idade, classificadas com nível IV ou V no Sistema de Classificação da Função Grosso Motora (GMFCS), com controle cervical ausente ou por compensação e que se alimentavam por via oral. Coleta de dados realizada através de entrevista com questões relacionadas à caracterização da amostra, qualidade das orientações recebidas quanto aos cuidados na alimentação e prática desses cuidados. Os dados foram digitados, pré-codificados e processados pelo programa Epi-info 3.5.4, utilizando o teste exato de Fisher para comparação de variáveis categóricas
RESULTADOS: Do total da amostra, 52 participantes já haviam recebido orientações fonoaudiológicas quanto aos cuidados na alimentação. Dessas, 76,9% foram classificadas como orientações satisfatórias. O aspecto mais enfatizado relaciona-se à postura, enquanto que sinais de risco de broncoaspiração foram os menos orientados. O utensílio utilizado na oferta demonstrou maior inadequação na prática, como também maior divergência entre conhecimento e prática. A qualidade das orientações esteve relacionada com consistência segura, utensílios inadequados e realização de manobras facilitadoras durante a alimentação das crianças
CONCLUSÃO: Os achados revelam que orientações fonoaudiológicas são oferecidas aos cuidadores não havendo, no entanto, acompanhamento periódico e sistemático do que é oferecido ao que é de fato incorporado à prática alimentar das crianças com paralisia cerebral, demonstra assim, lacuna na eficácia de ação, principalmente no que concerne a medidas protetivas às vias respiratórias inferiores

Palavras-chave: Paralisia Cerebral, alimentação, cuidadores, transtornos de deglutição, cuidado da criança.


 

 

Síntese dos autores

Por que este estudo foi feito?

As crianças com Paralisia Cerebral (PC) apresentam alterações nas funções orais, o que dificulta a alimentação e pode trazer sérias conseqüências à saúde, como desnutrição e pneumonia. O cuidador desempenha um papel essencial na dieta dessas crianças, portanto, eles precisam saber como implementar as melhores práticas para alimentar de forma segura. As diretrizes para uma boa qualidade do cuidado alimentar são essenciais e precisam ser eficazes e seguras para evitar complicações e reduzir o estresse do cuidador e da criança com PC.

O que os pesquisadores fizeram e encontraram?

Foi aplicado um questionário a 59 cuidadores de crianças com Paralisia Cerebral, com o objetivo de investigar a qualidade das orientações recebidas sobre cuidados na alimentação de crianças com paralisia cerebral e suas práticas. Do total da amostra, 52 participantes já haviam recebido orientações do fonoaudiólogo sobre os cuidados com a alimentação. Desses, 76,9% classificaram as diretrizes como satisfatórias. O aspecto mais enfatizado está relacionado à postura durante as refeições, enquanto os sinais de risco de broncoaspiração foram os menos orientados.

O que essas descobertas significam?

Embora a maioria dos cuidadores tenha recebido sobre práticas de segurança na alimentação de crianças com PC, existe a necessidade de um monitoramento periódico e sistemático sobre o que é realmente incorporado à prática alimentar. Isso pode sugerir uma lacuna potencial entre as orientações recebidas pelos cuidadores e a eficácia de sua prática diária.

 

INTRODUÇÃO

Paralisia Cerebral (PC) é definida1 como um grupo de desordens permanentes no desenvolvimento da postura e do movimento, atribuídas à lesão não progressiva no período precoce do desenvolvimento cerebral. Pode apresentar alterações sensoriais, de percepção, cognição, comunicação e comportamento que ocorrem tanto em função do dano primário, quanto como consequência secundária das limitações que restringem o aprendizado e experiências do desenvolvimento perceptual. Logo, atividades como andar, alimentar-se, deglutir e falar estão frequentemente comprometidas1.

Assim, crianças com PC podem desenvolver movimentos atípicos e compensatórios durante o funcionamento oral evidenciados na dificuldade em coordenar deglutição e respiração, como também em realizar movimentos orais dissociados, determinando distúrbios na alimentação, que afetam diversos aspectos da vida da criança2. O grau de dificuldade relacionado à alimentação que criança e cuidador vivenciam são determinados, principalmente, pelo tipo de paralisia, grau de comprometimento psicomotor e características econômicas e socioculturais3,4.

Habitualmente, as mães assumem a função de alimentar seus filhos com PC, referindo ser cansativo, desagradável e de estresse para ela e criança. Esse relato se deve pelo fato de seus filhos não conseguirem suprir sua necessidade (fome) de forma prazerosa, eficaz e positiva. Logo, tosse, engasgos, instabilidade respiratória e regurgitação durante a alimentação são frequentes, além do tempo desprendido nessa atividade e necessidade de cardápio exclusivo5-7.

Por outro lado, quando a família é orientada sobre diagnóstico, tratamento e prognóstico, além das potencialidades da criança e possibilidades terapêuticas, sente-se mais preparada para tomar decisões, repercutindo diretamente na diminuição do estresse8. Desse modo, o apoio de profissionais qualificados torna-se essencial na saúde, na superação das dificuldades e na melhoria da qualidade de vida da criança e seus familiares4,9. O cuidado à criança com PC deve ser abrangente, com participação da equipe de saúde e família10.

Na equipe de saúde, o fonoaudiólogo é responsável por avaliar a função de alimentação, contribuir no diagnóstico e etiologia da disfagia, avaliar a capacidade de proteção do sistema respiratório e indicar vias alternativas de alimentação. Do mesmo modo, realiza intervenção direta e indireta com o paciente, além de nortear equipe e família em relação a melhores atitudes acerca da alimentação11. Esse profissional orienta quanto à forma, temperatura e consistência ideais dos alimentos, utensílios, posturas e comportamentos facilitadores da oferta oral, a fim de promover segurança na alimentação e, consequentemente, na saúde e qualidade de vida12,13.

Ainda que dificuldade de alimentação seja frequente na paralisia cerebral e, portanto, bem conhecida, é possível que orientações focadas na alimentação não sejam realizadas de forma efetiva às mães e cuidadores que, desse modo, constroem conceitos e práticas a respeito dos cuidados na alimentação e nutrição, baseando-se em experiências próprias e diárias3.

Assim, o objetivo é analisar a qualidade das orientações recebidas e as práticas alimentares de mães/cuidadores de crianças com PC.

 

MÉTODO

Estudo exploratório, tipo transversal14, realizado com 59 cuidadores principais de crianças com PC de um a 10 anos, atendidas no ambulatório ou enfermaria pediátrica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco e do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP). Foram considerados critérios de inclusão, crianças com controle cervical compensatório ou ausente, ser classificadas através do Sistema de Classificação da Função Motora Grossa (GMFCS) em nível IV ou V e receber dieta por via oral (mista ou exclusiva). Foram excluídos cuidadores de crianças traqueostomizadas.

Após aprovação do Comitê de ética e Pesquisa do IMIP, sob protocolo nº 50807815.2.0000.5201, iniciou-se a verificação do instrumento e operacionalidade, com ajustes necessários, e, então, iniciada a coleta.

Crianças e cuidadores eram identificados nos dias de atendimento médico , selecionados segundo os critérios de inclusão. Com a anuência firmada através da leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o formulário era preenchido. Destaca-se que o questionário de coleta foi construído pelas pesquisadoras, baseado nos estudos de Araújo15 e Quadro10, sendo composto por questões relacionadas à caracterização da amostra, aos fatores referentes à qualidade das orientações recebidas sobre os cuidados na alimentação e à prática dos cuidados.

A variável dependente "qualidade das orientações" foi estabelecida através da avaliação de dois aspectos, a saber: a forma como foram realizadas as orientações e o conteúdo orientado. Assim, pôde ser classificado em não orientado, satisfatório e insatisfatório.

- Não orientado: quando o cuidador referiu não ter recebido orientações relacionadas aos cuidados na alimentação da criança com paralisia cerebral.

- Satisfatória: quando preencheu 50% ou mais dos aspectos de cada categoria abaixo;

- Insatisfatória: quando preencheu menos de 50% dos quesitos de uma das categorias abaixo;

Forma como foram realizadas as orientações:

Sessão individual;

Demonstração de como a mãe/cuidador deve proceder;

Intervenção e ajuste por fonoaudiólogo, no momento em que a mãe/cuidador alimentava a criança.

Frequência mínima de três vezes no último semestre.

Conteúdo orientado:

Postura adequada da criança para a alimentação.

Consistência alimentar mais segura para a criança.

Utensílios ideais na oferta do alimento à criança.

Sinais de risco para a aspiração traqueal.

As variáveis independentes foram referentes à caracterização das crianças (idade, sexo, tipo de PC, acompanhamentos profissionais realizados, tempo e frequência de acompanhamento fonoaudiológico); à caracterização dos cuidadores (idade, sexo, grau de parentesco com a criança, renda e ocupação); à alimentação e prática dos cuidados (sinais de risco, tempo de refeição, estresse, consistência, postura, utensílios, manobras facilitadoras, segurança do cuidador ao alimentar a criança e dificuldades na oferta).

A variável "utensílio" foi posteriormente categorizada em adequado e inadequado. Classificou-se como inadequado o uso de mamadeira e/ou seringa na alimentação da criança. Os demais utensílios foram classificados como adequado.

O mesmo aconteceu com a variável "posição". Foi classificada como adequada, a posição sentada com a cabeça alinhada, as demais foram classificadas como inadequada.

Os dados foram pré-codificados e processados pelo programa Epi-info 3.5.4, no modo WINDOWS. Foi realizada dupla-entrada dos dados a fim de checar eventuais erros de digitação. O teste exato de Fisher foi utilizado para comparar variáveis categóricas, buscando proporções e inferindo associações. A significância estatística foi assumida quando p<0,05.

 

RESULTADOS

Todas as entrevistadas eram do sexo feminino, sendo 88,1% (n=52) as próprias mães. O recurso financeiro da família era composto predominantemente do benefício recebido pela criança. A Tabela 1 demonstra as características das cuidadoras.

Em relação às crianças participantes, ressalta-se que o nível V de GMFCS foi representado por 78,0% (n=46) das crianças. Apenas 10,2% (n=6) realizavam dieta mista, ou seja, por gastrostomia e por via oral (Tabela 2).

Registrou-se que 57,6% (n=34) das crianças participantes estavam em acompanhamento fonoaudiológico no momento da entrevista.

A Tabela 3 demonstra que 88,1% (n=52) participantes relataram ter recebido orientações quanto aos cuidados na alimentação por fonoaudiólogo. Porém, cerca de 50,0% afirmaram que tais orientações foram efetivadas menos de três vezes, no último semestre.

Em relação aos cuidados orientados, "postura correta no momento da alimentação" foi o aspecto mais frequente (86,4%). O menos presente foi com referência aos sinais de broncoaspiração (64,4%).

Das 52 cuidadoras que afirmaram ter recebido orientações, 23,1% (n=12) tiveram orientações classificadas como insatisfatórias e 76,9% (n=40) como satisfatórias. Quando relacionado acompanhamento fonoaudiológico à qualidade das orientações, mesmo sem apresentar diferença estatisticamente significante, é possível observar que menor porcentagem de cuidadoras de crianças que realizam acompanhamento recebeu orientações insatisfatórias.

Pelo menos um sinal de risco para a broncoaspiração (tosse, engasgo, choro, entalo e/ou reflexo nauseoso) na alimentação esteve presente em 83,1% (n=49) das crianças. Dentre esses, tosse foi o mais frequente (66,1%). A duração média de uma refeição foi superior a 30 minutos para 37,3% (n=22) das crianças participantes. Além disso, 42,4% (n=25) referiu o momento de alimentar a criança como de estresse e/ou nervosismo.

A Tabela 4 demonstra as práticas dos cuidados na alimentação em relação a postura habitual das crianças durante a refeição, consistências ofertadas, utensílios e manobras utilizadas. Destaca-se que a maioria das crianças recebia dieta sentada com a cabeça alinhada, definida como postura adequada. Ainda que não tenha diferença estatisticamente significante, registra-se que 84,3% das cuidadoras orientadas posicionam corretamente a criança para alimentação, enquanto tal postura é realizada por 75,0% das não orientadas.

As consistências alimentares mais frequentes na dieta das crianças com PC foram líquida (84,7%) e pastosa fina (liquidificada) (74,6%). A oferta de dietas liquidificadas foi mais frequente entre as cuidadoras não orientadas, enquanto que para as que receberam orientação, a consistência pastosa grossa foi assumida como a ideal ou mais apropriada.

Colher (91,5%) e copo (74,6%) foram os utensílios mais utilizados na oferta. Registra-se, no entanto, que 49,2% referiram o uso de utensílios inadequados, como mamadeira e seringa, na oferta dos alimentos às crianças. Independente de não ser estatisticamente significante, observa-se porcentagem maior de cuidadoras orientadas que utilizam os utensílios adequados quando comparadas com não orientadas.

Cerca de 80,0% das cuidadoras realizavam pelo menos alguma manobra auxiliar na deglutição, sendo mais evidenciado o comando verbal. Contudo, foi mais frequente a utilização dessas manobras entre as participantes orientadas.

A relação entre qualidade das orientações e prática dos cuidados na alimentação está exposta na Tabela 5. Não houve diferença estatisticamente significante entre cuidadoras que receberam orientações satisfatórias e àquelas que receberam orientações insatisfatórias, todavia é possível observar que o primeiro grupo tende a ofertar mais alimentos pastosos. Além disso, a porcentagem do uso de utensílios adequados e de realização de manobras auxiliares foi maior quando comparado ao grupo que recebeu orientações insatisfatórias.

Das participantes, 74,6% (n=44) relataram dificuldades para alimentar a criança com PC. Organizar a postura da criança foi a principal dificuldade das participantes (31,8%); em seguida, registra-se a aceitação da dieta (18,2%). Consistência do alimento, velocidade de oferta, presença de tosse e/ou engasgos durante a alimentação, entre outros, também foram citados como dificuldades encontradas pelas cuidadoras no alimentar da criança. Não obstante, 84,7% refere segurança em executar essa tarefa.

 

DISCUSSÃO

Grande parte das participantes eram as próprias mães, corroborando Dantas et al.16 que descrevem o cuidar como tarefa culturalmente ligada à mulher. Assim, é possível inferir que a mãe é o principal ator nos cuidados da criança, recebendo ajuda da mãe e do marido.

Independentemente dessa ajuda, quase todas as participantes não trabalhavam fora, como no estudo de Carvalho et al.17, em que 90,0% dos cuidadores de criança com PC não exerciam atividade profissional. Esse fato é compreensível, haja vista que crianças com PC demandam atenção e cuidados especiais. Dessa forma, as mães tendem a abdicar de sua profissão para atenderem às necessidades de seus filhos. Essa postura materna foi respaldada por Perez18 que relata a importância de o cuidador ser membro da família, visando atuação mais natural, afetiva, carinhosa, com maior nível de tolerância e facilidade de compreensão, mesmo não verbal.

Alguns aspectos socioeconômicos foram investigados. De forma geral, a população tinha condições socioeconômicas precárias, com baixa renda. A maioria interrompeu os estudos no ensino fundamental ou médio, apenas 11,9% cursaram ensino profissionalizante ou superior. Esses aspectos podem repercutir tanto na frequência de paralisia cerebral como na forma de cuidado das crianças. Nas situações de pobreza, questões relacionadas às dificuldades na alimentação são exacerbadas devido a recursos limitados, principalmente no que concerne à aquisição de alimentos nutritivos, utensílios ou outros materiais. Além de maior dificuldade no acesso à reabilitação e serviços de saúde10.

Crianças com PC precisam de acompanhamento multidisciplinar para auxiliar o seu desenvolvimento9. Neste trabalho, 57,6% recebiam acompanhamento fonoaudiológico. Dessas, apenas 17,6% realizavam fonoterapia duas ou mais vezes por semana. Independente, do número de atendimentos semanal oferecido, a assiduidade ao tratamento muitas vezes é difícil, principalmente, pela realidade dos serviços públicos, somada à dependência de transporte, incompatibilidade de horários do cuidador e da criança com diversos tratamentos e a própria locomoção da criança12. Observa-se na prática, a dificuldade no transporte dessas crianças, que muitas vezes moram no interior do estado e precisam se deslocar até outras cidades para a fonoterapia e demais tratamentos. Além disso, a grande demanda de pacientes encaminhados à fonoaudiologia, somada à escassez desse profissional na rede pública faz com que haja distorções entre demanda e oferta, não sendo capaz de atender toda a população que carece de tratamento fonoaudiológico.

Neste estudo, 88,1% das participantes referiram receber orientações fonoaudiológicas quanto aos cuidados na alimentação. Contudo, 23,1% das orientações eram insatisfatórias, por falha na forma ou no conteúdo dessas recomendações. A atuação fonoaudiológica adequada inclui ações educativas voltadas aos cuidadores de pacientes disfágicos, associadas ao processo terapêutico. Deve englobar a sensibilização e capacitação desses cuidadores, preparando-os para lidar com questões referentes a postura da criança, utensílios e consistências seguras para a alimentação, além de sinais de riscos para aspiração, importância da tosse e estratégias/manobras compensatórias. Tais orientações são necessárias desde o início da reabilitação e visam garantir a continuidade dos cuidados e tratamento em casa10,11.

Silva19 observou o conhecimento, atitudes e práticas de cuidadores de pacientes com disfagia neurogênica e encontrou pouco conhecimento em relação aos riscos da disfagia, à importância da tosse e aos cuidados com a consistência do alimento oferecido, incluindo utensílios e postura segura para a alimentação.

Carvalho et al.17 em estudo com cuidadores de crianças com PC, também relataram que o conhecimento quanto aos aspectos relacionados às dificuldades na alimentação foi restrito, 66,6% da amostra desconheciam a definição de aspiração.

Enquanto isso, Zapata e Mesa3 em estudo qualitativo realizado na Colômbia, concluíram que cuidados com a alimentação e nutrição de crianças com PC eram construção própria das mães através das experiências diárias, insinuando que não recebem orientações profissionais, fato que vai de encontro ao achado no presente estudo.

Registrou-se que a maioria das cuidadoras recebeu orientações sobre os cuidados na alimentação. Ressalta-se, que 71,2% referiram já ter recebido orientações quanto aos sinais de risco de broncoaspiração, corroborando estudos citados anteriormente. A despeito desse registro, esse fato é preocupante, principalmente pelo agravo e frequência desses eventos em crianças com PC. Uma vez que nesta população, quase todas as crianças apresentavam algum sinal de risco para broncoaspiração, como tosse, engasgo, sensação de sufocamento, choro ou reflexo nauseoso, além de estresse no momento da alimentação e tempo prolongado para essa função.

Arvendson20 afirma que refeições que duram mais de 30 minutos e estresse parental na alimentação da criança são sinais de alerta para broncoaspiração e desnutrição. No presente estudo, 37,3% das cuidadoras referiram investir mais de 30 minutos para oferecer uma refeição à criança e 42,4% enfatizaram ser momento de estresse e/ou nervosismo, sugerindo a necessidade de apoio e atenção de profissionais nessa função.

Ademais, sabe-se que mais de 50% das crianças com paralisia cerebral apresentam algum tipo de transtorno para se alimentar ou ser alimentado, com comportamentos, refletindo em riscos a sua saúde, que vão desde aspectos nutricionais a questões respiratórias, normalmente caracterizadas por broncoaspiração de alimento e ou da própria saliva21.

A postura e alinhamento corporais são aspectos importantes no processo de alimentação, sendo ideal ter o corpo alinhado e a cabeça ligeiramente flexionada22,23. No entanto, anormalidades posturais são comuns em crianças com Paralisia Cerebral, destacando-se a hiperextensão de pescoço que promove abertura de vias aéreas, o que prejudica a dinâmica da deglutição e, principalmente, a proteção das vias aéreas inferiores. Posicionar adequadamente a criança pode ser tarefa difícil, porém, imprescindível para deglutição segura e eficaz24.

Os achados dessa pesquisa corroboram outros estudos12,23 na medida em que registra a importância da postura da criança no momento da alimentação no elenco de orientações recebidas.

Outro aspecto importante a ser avaliado e orientado no acompanhamento de crianças neurológicas é a consistência do alimento oferecido, que depende das dificuldades e potencialidades da criança. Os alimentos pastosos homogêneos são mais fáceis na aceitação e deglutição12, fato registrado neste estudo. As consistências líquida e pastosa foram as mais oferecidas às crianças. Benfer et al.25 encontraram que 79,2% dos pais de crianças com PC referiram dificuldade na oferta de líquido e sólido, havendo similaridade na dificuldade encontrada com alimentos sólidos.

As propriedades organolépticas dos alimentos não se restringem à consistência e vão além de preferência ou paladar. Respeitando-se o aspecto nutricional prescrito, a dieta deve ser oferecida na forma orientada pelo fonoaudiólogo, a depender da necessidade de cada caso. No que se refere à consistência, a indicação sempre é para a que menos risco à saúde da criança. Normalmente, pastosos e líquidos espessados, porém pode variar conforme a capacidade individual. Por isso, quando comparadas as consistências utilizadas por cuidadoras orientadas e não orientadas quanto a consistência ideal, não houve diferença significante.

A partir do desenvolvimento motor oral, aos 12 meses de idade, o copo e a colher são os utensílios que devem ser utilizados para a alimentação26. Ao considerar a idade das crianças participantes e essa referência, o uso de copo e colher foram definidos como adequados. A maioria das participantes (76,3%) referiram receber orientações relacionadas aos utensílios ideais. Entretanto, registra-se que grande parte (49,2%) de cuidadoras utilizava mamadeira ou seringa na oferta, artefatos prejudiciais ao desenvolvimento orofacial, além de não oferecerem segurança no manuseio. Constata-se nesse aspecto, divergência entre orientação e prática, provavelmente a ansiedade da cuidadora em obter aporte nutricional adequado, fez com que preterisse o utensílio que melhor lhe conviesse ou mesmo facilitasse a oferta. O que nem sempre é o que traz maior segurança à deglutição.

Crianças com PC se beneficiam de manobras para facilitação da deglutição, que devem ser orientadas à mãe ou cuidadora23. A realização de pelo menos umas das manobras facilitadores foi referendada por 79,7% das entrevistadas. Enfatiza-se, no entanto, que dentre essas manobras, o comando verbal, recurso recomendado e benéfico, foi a facilitação mais utilizada, provavelmente por ser algo instintivo de quem alimenta, mesmo sem refletir o recebimento de orientações. A realização das demais manobras que são orientadas normalmente por fonoaudiólogo, esteve mais presente entre as cuidadoras que receberam orientações.

Esta pesquisa ainda comparou a qualidade das orientações recebidas nos cuidados na alimentação com a prática desses cuidados. É importante registrar ser comum encontrar cuidadoras que ofertam alimentos às crianças neurológicas em postura, utensílio e consistência inadequados, mesmo estando em acompanhamento fonoaudiológico ou já orientadas.

Em relação à qualidade das orientações, as participantes orientadas de forma satisfatória ofertavam mais alimentos pastosos e menos alimentos sólidos. Já que os alimentos pastosos são bastante orientados devido ao menor risco de broncoaspiração. Também mostraram utilizar menos mamadeira e seringa, além de realizar mais manobras facilitadoras durante a alimentação.

Tais achados permitem inferir que orientação satisfatória que transforme a prática dos cuidadores, principalmente em relação a consistência, utensílios e manobras, deve ser realizada: de forma individual, com sistematicidade, a terapeuta demonstrando e observando a prática dos cuidados, além de incluir aspectos importantes da alimentação como postura, utensílios, consistências e, sinais de risco para a broncoaspiração.

Holanda e Andrade27 relatam que as dificuldades mais citadas por mães na alimentação de seus filhos com PC consistem em conseguir o posicionamento da criança, a aceitação; além do aumento do trânsito oral, demonstrado em refeições de longa duração e presença de sinais de risco para broncoaspiração, percebidos através de tosse e engasgos frequentes. Achados que corroboram os presentes nesse estudo, em que a dificuldade mais citada foi em relação à postura da criança (31,8%), seguida de aceitação, consistência da dieta, velocidade de oferta e presença de tosse/engasgos na alimentação.

Entretanto, a maioria (84,7%) afirmou segurança em alimentar as crianças, compatível àquelas que receberam orientações fonoaudiológicas quanto aos cuidados na orientação (88,1%).

Como em outros estudos, neste também foram observadas algumas limitações durante o seu planejamento e desenvolvimento. Dentre as dificuldades encontradas registra-se o recrutamento dos sujeitos, visto que a maioria das crianças que preenchia os critérios de inclusão não pôde participar do estudo, pelo fato de usarem via alternativa exclusiva de alimentação.

Outro aspecto importante consiste no fato de não se poder garantir a veracidade dos dados relatados pelas entrevistadas, impossibilitando a total confiabilidade dos resultados. Para amenizar esse viés, houve a preocupação de esclarecer e explicar minunciosamente cada questão contida do protocolo de coleta.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar as orientações recebidas e as práticas alimentares das mães/cuidadores de crianças com paralisia cerebral, observou-se que os utensílios utilizados na oferta do alimento às crianças foram considerados o aspecto com maior inadequação. Não obstante, foi o que apresentou maior divergência entre conhecimento e prática, o que pode refletir em falhas nas orientações prestadas. A qualidade das orientações em relação a consistência mais apropriada, utensílios a serem utilizados na oferta e uso de manobras facilitadoras da deglutição foram bem genéricas e pouco específicas às crianças alvo do estudo. Esses achados sugerem que quando a orientação se faz de forma frequente, individual, consistente em seu conteúdo, demonstrando e observando a prática, há maiores chances da transposição desse aprendizado para a prática diária ocorrer de forma correta, corroborando sobremaneira no processo terapêutico da criança.

Ressalta-se que comportamentos que refletem risco de broncoaspiração foram um dos aspectos menos citado no relato das mães/cuidadores participantes. Achado preocupante, haja vista a alta prevalência de disfagia em crianças com paralisia cerebral.

Pesquisas com foco no cuidador se fazem necessárias, já que este é peça fundamental na continuidade dos cuidados e, assim, na manutenção da saúde e desenvolvimento das crianças com lesões neurológicas.

 

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Endereço para correspondência:
lu_maggioni@hotmail.com

Manuscrito recebido: Agosto 2019
Manuscrito aceito: Novembro 2019
Versão online: Março 2020

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