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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.30 no.1 São Paulo jan./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.v30.9977 

ARTIGO ORIGINAL

 

Cannabis: de planta condenada pelo preconceito a uma das grandes opções terapêuticas do século

 

 

Adriana F. Grosso

Especialista em Pesquisa Clínica e Medical Afairs pela Santa Casa de SP Doutora em Cardiologia pelo Incor FMUSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A cannabis sativa tem uma história fascinante e é utilizada pela humanidade há milênios. Muitas sociedades como a grega, a romana, a chinesa, a africana, indiana e árabe aproveitaram as qualidades da planta, fosse ela consumida como alimento, medicina, combustível, fibras ou fumo. A primeira referência encontrada relativa à utilização terapêutica da planta data de 2700 a.C. e está presente na farmacopeia do Imperador chinês Shen-Nung, onde esta planta era recomendada no tratamento da malária, de dores reumáticas, nos ciclos menstruais irregulares e dolorosos. O livro "De Matéria Médica", escrito pelo médico Pedânio Dioscórides considerado o fundador da farmacologia, traz a Cannabis como uma das substâncias naturais que podem aliviar dores de origem inflamatória. No Brasil, a Cannabis foi trazida por escravos africanos no período colonial, por volta de 1549. Em seguida, o seu uso disseminou-se rapidamente entre os negros escravos e índios, que passaram a cultivá-la. Devido à popularização da planta dentre intelectuais franceses e médicos ingleses do exército imperial da Índia, ela passou a ser considerada em nosso meio como excelente medicamento para muitos males, até ser reprimida pelas autoridades policiais na década de 1930. Descobertas importantes foram destaque no campo da Cannabis somente 60 anos depois com o Sistema Endocanabinoide e seus receptores, neurotransmissores como a anandamida e o 2-AG, revolucionando o entendimento da sinalização molecular que modula dor e analgesia, inflamação, apetite, motilidade gastrointestinal e ciclos de sono, atividade de células imunes, hormônios e muito mais. Estamos diante de uma enorme revolução na área terapêutica em que os fitocanabinoides representam uma das grandes opções terapêuticas do século. Precisamos de uma divulgação ampla de que o CBD não é maconha e que o uso recreativo da maconha nada tem a ver com o uso da Cannabis medicinal, que as pesquisas científicas estão seriamente empenhadas em estabelecer a eficácia da substância em várias patologias. O papel da informação é absoluto e se constitui na principal ferramenta para esclarecer a sociedade.

Palavras-chave: Cannabis sativa, canabinoides, Sistema Endocanabinoide, CBD, opção terapêutica.


 

 

Síntese dos autores

Por que este estudo foi feito?

Pa

O que os pesquisadores fizeram e encontraram?

Es

O que essas descobertas significam?

A in

 

INTRODUÇÃO

A cannabis sativa, nome científico da planta herbácea mais discutida nas mídias nos dias de hoje tem uma história fascinante e é utilizada pela humanidade há milênios. A planta está presente na evolução da civilização humana sendo utilizada pelo homem como fonte de fibras para peças de vestuário pelos chineses e gregos e em cordoaria pelos romanos. Outras sociedades como os africanos, indianos e árabes também aproveitaram as qualidades da planta, fosse ela consumida como alimento, medicina, combustível, fibras ou fumo. Entre os anos de 1000 a.C. até meados do século XIX, a maconha e o cânhamo produziam a maior parte dos papéis, combustíveis e artigos têxteis. Sua grande importância histórica se deve ao fato do cânhamo ter a fibra natural mais resistente e forte do que todas as outras, podendo ser cultivada em praticamente qualquer tipo de solo1,2.

A primeira referência encontrada relativa à utilização terapêutica da planta data de 2700 a.C. e está presente na farmacopeia do Imperador chinês Shen-Nung, onde esta planta era recomendada no tratamento da malária, de dores reumáticas, nos ciclos menstruais irregulares e dolorosos. O livro "De Matéria Médica", escrito pelo médico Pedânio Dioscórides3 - considerado o fundador da farmacologia, traz a Cannabis como uma das substâncias naturais que podem aliviar dores. Na obra, a planta é atribuída à melhora de dores articulares e inflamações. Do século I até o século XVIII, o livro se tornou referência no tema.

No Brasil, estima-se que a Cannabis tenha sido trazida por escravos africanos no período colonial, por volta de 1549. Em seguida, o seu uso disseminou-se rapidamente entre os negros escravos e índios, que passaram a cultivá-la. Devido à popularização da planta dentre intelectuais franceses e médicos ingleses do exército imperial da Índia, ela passou a ser considerada em nosso meio como excelente medicamento para muitos males. Foi na década de 30 que a repressão ao uso da maconha ganhou força no Brasil, embora permanecesse sendo citada nos compêndios médicos e suas propriedades terapêuticas reconhecidas4.

Até o final dos anos 80, as citações sobre Cannabis permaneceram no campo mais esotérico envolvendo um pequeno número de cientistas nos Estados Unidos e outros países. Algumas poucas pesquisas eram subsidiadas pelo Instituto Nacional de Abuso de Drogas Americano (NIDA), que intencionava provar os efeitos deletérios da Cannabis enquanto bloqueava investigações acerca de seus benefícios potenciais. Foi então que uma série de descobertas sobre o funcionamento do cérebro humano ocorreu. Nas duas décadas seguintes à identificação e síntese de Tetrahidrocanabinol (THC) por Mechoulam e seu colega Y. Gaoni em Israel em 19645, os cientistas aprenderam muito sobre a farmacologia, bioquímica e efeitos clínicos da Cannabis. Seguiram-se as descobertas de receptores no sistema nervoso central (SNC) onde substâncias opioides (tais como a morfina e a heroína) se ligavam, foram descobertos os abundantes receptores canabinoides (CB1 e CB2) espalhados pelo corpo e houve o mapeamento das suas localizações em tecido cerebral até a sua clonagem genética, facilitando a descoberta de substâncias agonistas e antagonistas que poderiam "ligar" e "desligar" as atividades em determinadas regiões cerebrais6-10. Na década de 1990, Mechoulam et al.11 descreveram o primeiro neurotransmissor cuja molécula se assemelhava muito ao THC e se associava aos receptores onde o próprio THC se ligava. Essa molécula foi denominada de anandamida (palavra que, em sânscrito, significa "felicidade"). Anos após viria a descoberta da segunda molécula, o 2-arachidonoylglycerol, or "2-AG" cuja interação se dá entre os receptores canabinoides CB1 e CB211.

Ao traçar as vias metabólicas do THC, os cientistas identificaram um esquema de sinalização molecular envolvido na regulação de uma ampla gama de funções biológicas, o que foi chamado de Sistema Endocanabinoide, em referência à planta que levou à sua descoberta. Esse sistema dotado de receptores e neurotransmissores específicos foi identificado em inúmeras espécies de minhocas, sanguessugas, peixes, répteis, anfíbios, mamíferos, incluindo o homem, supostamente um sistema de sinais tão antigo na história evolutiva que deve servir a funções importantes e básicas na fisiologia. Hoje se sabe que a sinalização gerada da associação entre receptor e uma substância canabinoide é capaz de modular dor e analgesia, inflamação, apetite, motilidade gastrointestinal e ciclos de sono, juntamente com a atividade de células imunes, hormônios e outros neurotransmissores que alteram o humor, como serotonina, dopamina e glutamato. Os receptores CB1 e CB2 são capazes de reconhecer e responder a três tipos de agonistas canabinoides: canabinóides de ácidos graxos endógenos; os fitocanabinoides concentrados na resina oleosa dos brotos e folhas da planta de maconha e canabinoides sintéticos comercializados como medicamentos10,11.

Falhas na atividade do Sistema Endocanabinoide leva à doenças importantes, por isso as atenções atuais estão voltadas para produtos de Cannabis ricos em Canabidiol (CBD) com ou sem THC12,13.

O CBD é o principal componente não psicotrópico da Cannabis sativa e atraiu o interesse por seu potencial terapêutico em vários estados de doença investigados em modelos animais e em humanos14-16. Tem poder ansiolítico, antidepressivo, antipsicótico, anticonvulsivante, anti-náusea, antioxidante, anti-inflamatório, antiartrítico e antineoplásico. Dentro do SNC, o CBD é protetor em modelos animais de epilepsia, ansiedade, psicose e doenças dos núcleos da base, como as doenças de Parkinson e Huntington17-22. O CBD não provoca o "tetrad" clássico mediado pelo CB1 de hipolocomoção, analgesia, catalepsia e hipotermia, de acordo com sua baixa afinidade pelos receptores CB1.

A liberação dos produtos à base de cannabis para fins medicinais no Brasil e em outros países ocorre em momento de acentuação do conservadorismo no País. Ainda assim, esse pode ser considerado o primeiro passo para a ampliação dos usos da Cannabis. Precisamos de uma divulgação ampla de que o CBD não é maconha e que o uso recreativo da maconha nada tem a ver com o uso da Cannabis medicinal, que as pesquisas científicas estão seriamente empenhadas em estabelecer a eficácia da substância em várias patologias, incluindo-se tumores. A cannabis medicinal pode ser utilizada em vários distúrbios neuropsiquiátricos como ansiedade e depressão, pois atua aumentando a produção de neurotransmissores. Esse é o principal foco de estudos atuais.

O papel da informação é absoluto e se constitui na principal ferramenta para esclarecer a sociedade. Conhecer os produtos derivados da cannabis, diferenciando o CBD, que não é psicoativo do THC, que, como vimos, também tem efeitos terapêuticos e concentração elevada na maconha, diferentemente das outras variedades da planta como o cânhamo. Somente com a divulgação da imprensa, dos cientistas e médicos, essas informações podem alcançar a população como um todo.

 

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Endereço para correspondência:
adriana.grosso@hempmedsbr.com

Manuscrito recebido: Setembro 2019
Manuscrito aceito: Fevereiro 2020
Versão online: Março 2020

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