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Journal of Human Growth and Development

Print version ISSN 0104-1282On-line version ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.30 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.v30.9971 

ARTIGO ORIGINAL

 

A sala de recepção do ambiente socioeducativo de regime fechado na perspectiva da psicologia ambiental

 

 

Maria Eniana Araujo Gomes PachecoI; Karla Patrícia Martins FerreiraII; José Airton Nascimento Diógenes BaquitIII

IDoutora em Psicologia, Universidade de Fortaleza - UNIFOR, Brasil
IIDoutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará - UFC, Brasil
IIIDoutorando em Psicologia pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: A sala de recepção visa atendimento técnico, psicossocial e médico, durante a chegada do adolescente no ambiente Socioeducativo de regime fechado, após sentença. Esse ambiente, guiado pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, deve assumir uma política integrada com ações conjuntas de responsabilização, educação, saúde e assistência social, no contexto do desenvolvimento humano das medidas socioeducativas
OBJETIVO: Descrever os vestígios ambientais deixados pelos adolescentes, durante pós-ocupação na sala de recepção, dos Centros Socioeducacionais de internação, no Estado do Ceará
MÉTODO: A investigação deteve-se à sala de recepção durante pós-ocupação, através da abordagem descritivo-qualitativa, com corte transversal. Os dados foram coletados pela observação sistemática com utilização do diário de campo e discussão direcionada pela análise de conteúdo
RESULTADOS: Os vestígios ambientais se associaram às experiências anteriores e atuais dos adolescentes, através das práticas de apropriação do espaço, na sala de recepção do Centro Socioeducacional, configurada enquanto um lugar de permanência, movimento ou passagem em constante articulação com os fatores sociais, culturais, econômicos, políticos, históricos e psicológicos
CONCLUSÃO: A sala de recepção das medidas socioeducativas, no Estado do Ceará, enquanto um espaço de longa permanência para o atendimento psicossocial e médico, viola os direitos básicos da atenção integral aos adolescentes. Essa realidade, aponta indicativo de vulnerabilidade dos adolescentes ao serem expostos às estruturas físicas insalubres, e tenciona para a necessidade de estudos que aprofundem as discussões na perspectiva da inter-relação pessoa-ambiente

Palavras-chave: adolescente, ambiente socioeducacional, psicologia ambiental, vestígios-ambientais, sala de recepção, territorialidade.


 

 

Síntese dos autores

Por que este estudo foi feito?

Parte-se da concepção de que registros da ação humana podem ocorrer após a inter-relação pessoa-ambiente. Assim, nesse estudo, buscamos descrever os vestígios ambientais deixados pelos adolescentes, durante pós-ocupação na sala de recepção, dos Centros Socioeducacionais de internação, no Estado do Ceará, Brasil.

O que os pesquisadores fizeram e encontraram?

Foi realizado uma pesquisa qualitativa, de corte transversal observacional e descritiva, com utilização do diário de campo. Encontramos que os vestígios ambientais se associam às experiências anteriores e atuais dos adolescentes, através das práticas de apropriação do espaço, na sala de recepção do Centro Socioeducacional, configurada como um lugar de permanência, movimento ou passagem, em constante articulação com os fatores sociais, culturais, econômicos, políticos, históricos e psicológicos.

O que essas descobertas significam?

A sala de recepção das medidas socioeducativas, no Estado do Ceará, Brasil, enquanto um espaço de longa permanência para o atendimento psicossocial e médico, viola os direitos básicos da atenção integral aos adolescentes. Essa realidade, aponta indicativo de vulnerabilidade dos adolescentes ao serem expostos às estruturas físicas insalubres e tenciona para a necessidade de estudos que aprofundem as discussões sobre território na perspectiva da inter-relação pessoa-ambiente com privação de liberdade.

 

INTRODUÇÃO

O período da adolescência quando atravessado pela escassez de bens e serviços, fragilidade moral e insegurança quanto ao futuro, por ausência de oportunidades aos desfavorecidos socioeconomicamente, terá na criminalidade uma alternativa promissora para inserção no grupo social o qual pertença1.

No Brasil, ao adolescente que se envolve em ato infracional, é assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente2, medidas socioeducativas orientadas por programas pedagógicos sistematizados, no âmbito das atividades de educação escolar, profissionalização, esporte, artes e saúde, objetivando o retorno saudável ao ambiente sociofamiliar.

Apesar disso, Estevam et al.3, ao discutirem sobre esses programas pedagógicos, verificaram práticas coniventes com a desagregação social, instigante à autodefesa, que distancia da intervenção socioeducativa o seu objetivo de ressocialização, causando aos adolescentes prejuízos nos seus direitos fundamentais.

As práticas socioeducativas de regime fechado em Centro Socioeducacional iniciam durante a recepção que implica atendimento técnico durante a chegada do adolescente no Centro de Socioeducação. Durante recepção, o adolescente que adentrar a unidade deverá ter conferência de documentos e pertences guardados em local reservado, devendo ser encaminhamento para banho, refeição, atendimento técnico, exame médico e acomodação para alojamento4.

Considerando que a recepção com atendimento técnico em Centro Socioeducacional de regime fechado, varia de dois a cinco dias, conforme pesquisa de doutorado em andamento, intitulada "O adolescente em privação de liberdade: a violência ambiental simbólica nos centros socioeducacionais".

O objetivo desse estudo é descrever os vestígios ambientais deixados pelos adolescentes, durante pós-ocupação na sala de recepção, dos Centros Socioeducacionais de internação, no Estado do Ceará.

 

MÉTODO

Esse estudo com abordagem qualitativa, de corte transversal observacional e descritivo, para o levantamento das ações realizadas na pós-ocupação da sala de recepção, foi realizado em três salas, situadas no Centro Socioeducacional 1 (CS1) e Centro Socioeducacional 2 (CS2), ambos de internação, após sentença, no Estado do Ceará. A observação se deteve nesses dois centros por serem os únicos que comportam a medida socioeducativa de internação, após sentença, para todo o Estado.

Esse tipo de abordagem para a observação das variáveis no espaço físico foi realizado pelo recorte de um único momento, permitindo a observação direta dos vestígios ambientais enquanto um fenômeno a ser pesquisado. A coleta de dados foi realizada em um intervalo temporal curto, sem necessariamente ser preciso o acompanhamento posterior aos adolescentes que deixaram seus vestígios no ambiente socioeducacional. Durante a observação, não foi possível delimitar a periodicidade das marcas, assim como, certificar de que todas foram feitas pelos adolescentes. A pesquisa de corte transversal favoreceu às discussões de um determinado fenômeno, sendo este causa ou consequência, ou os dois, para a amostra estabelecida. A amostra de conveniência, mediante os poucos elementos de referência, limitou a interpretação dos resultados para a generalização de suas conclusões, porém não inviabilizou a realização da pesquisa durante coleta de dados5.

Os dados foram coletados através do diário de campo com observação sistemática, sem horário rígido, durante dois dias, em turnos matutinos, nos respectivos Centros destinados ao público masculino. Em CS1, a observação foi realizada no mês de setembro, em 2018. Já em CS2, os dois espaços observados, aconteceu no mês de novembro, em 2018.

Foi utilizado como instrumento de investigação socioambiental, na pós-ocupação da sala de recepção, o diário de campo, não estabelecendo horários rígidos para observação dos vestígios ambientais, deixados pelos adolescentes, durante período de permanência. Os elementos de referência da observação foram às condições ambientais e as marcas deixadas nas paredes, por serem locais de maior prevalência.

O treinamento do olhar deteve-se aos resíduos comportamentais presentes no ambiente, na busca por explicar fatos da inter-relação pessoa-ambiente6. A observação totalizou oito horas, fracionados durante cinco dias de visita institucional, em cada centro socioeducacional.

O olhar sob os resíduos comportamentais em Psicologia Ambiental é direcionado, conforme Günther et al.7, aos "efeitos das condições do ambiente sobre os comportamentos individuais tanto quanto como o indivíduo percebe e atua em seu entorno". Cada indivíduo vive e habita em um local onde produz suas próprias identificações, modo de ser e agir, vinculando-se afetivamente de modo positivo ou negativo com o lugar.

A análise de conteúdo, em Bardin8, encaminhou as discussões conforme a categoria analítica: o espaço da sala de recepção: a personificação do ambiente pela apropriação do espaço.

 

RESULTADOS

O espaço de primeira permanência da recepção em CS1 caracteriza-se pela porta de entrada composta por um portão com grades de ferro, localizado em frente a um corredor de pouca iluminação natural. Esse espaço possui uma área interna com duas camas de alvenaria sem colchão, um banheiro, em que o controle da descarga e a liberação para o banho é feito pelo socioeducador.

Há uma janela de grades com dois metros de distância do chão por onde passa ventilação e iluminação, permitindo visibilidade aos jardins, localizados no centro da área circular por onde profissionais e adolescentes passam enquanto caminham para as salas de aula. Por essa janela é possível observar a dinâmica da rotina de atividades dos demais adolescentes que são acompanhados por socioeducadores enquanto transitam para salas de aula, bem como conversam com os demais que frequentam o curso de culinária, localizado na sala ao lado.

Os espaços de primeira permanência em CS2 são situados um ao lado do outro. A porta de entrada é composta por um portão com grades de ferro, localizado em frente ao corredor com boa iluminação natural. Na área interna, não possui cama de alvenaria com colchão e nem banheiro. Por esse corredor transitam os adolescentes, funcionários da limpeza, socioeducadores, profissionais da área de saúde e social.

As salas possuem uma janela com grades a dois metros de distância do chão; uma das janelas fica entre os dois espaços e a outra permite visualizar pequena área sem teto e areia no chão, seguida por um muro branco com extensão de aproximadamente quatro metros, estrutura que permite captação da iluminação e ventilação naturais.

Desse modo, uma sala possui iluminação e ventilação, enquanto que a outra não. Nessas salas têm muito mosquito no teto durante o dia que em contato com a pele causa desconforto, além de propagar doenças ao ser picado. Foi observado ausência de banheiro para atendimento das necessidades básicas da higiene corporal. Para repouso e acomodações durante a alimentação é utilizado o chão.

Esses espaços possuem marcas nas paredes deixadas pelos adolescentes que se utilizam de materiais cortantes como restos do reboco de cimento, pedrinha e unhas. Além desses materiais comuns, em CS1, foi observado o uso do creme dental e a lâmina do aparelho de barbear descartável. Já em CS2, a sujeira contida nos pés dos adolescentes que chegam sem chinelos e se apoiam, marcam paredes próximas as grades das janelas.

O creme dental e a lâmina do aparelho de barbear descartável que permitiu marcas mais profundas nas paredes esteve presente somente no CS1 porque os adolescentes logo ao chegar na instituição, recebem kit de higiene (sabonete, aparelho de barbear descartável, shampoo, condicionador, escova, creme dental, toalha, calção, cueca, camisa e chinelo) enquanto aguardam encaminhamento para os respectivos dormitórios e construção do Plano Individual de Atendimento (PIA). O PIA é um instrumento pedagógico que visa o estabelecimento da equidade entre os adolescentes em medida socioeducativa nas atividades escolares e de assistência à saúde.

Esses espaços específicos descritos a cima, conforme observação, foram caracterizados por possuírem mal cheiro e uma aparência limítrofe em relação aos cuidados de proteção integral a adolescentes em cumprimento de sentença, após ato infracional.

Contudo, mesmo diante das restrições ocupacionais que o espaço oferece, devido ausência de mobília, ventilação e iluminação adequada, foi possível se investigar vestígios comportamentais da interação pessoa-ambiente pós-ocupação, no âmbito da Psicologia Ambiental, no contexto das práticas socioeducativas presentes nas fases de atendimento ao adolescente em conflito com a lei durante entrada no Centro de Socioeducação.

 

DISCUSSÃO

O espaço da sala de recepção: a personificação do ambiente pela apropriação do espaço

O espaço na Psicologia Ambiental existe para além de sua estrutura física porque enquanto um ambiente, configura-se dentro da esfera social, cultural e histórica. Nessa área do conhecimento, se concebe a estrutura física não reduzida em si mesmo, mas conectada ao comportamento humano com experiências atuais e sensações pregressas7,9,10.

Desse modo, o ambiente é o meio social visível e real que existe tal qual é manifestado. É a experiência concreta e projetada da pessoa em desenvolvimento que se apropria do espaço ao deixar suas marcas. Nessa perspectiva, estudos do ambiente socioeducativo, na perspectiva da Psicologia Ambiental, podem contribuir na observação do comportamento no ambiente construído ou natural, seja em espaços coletivos ou singulares.

De tal modo, a sala de espera dos Centros Socioeducacionais existe como um ambiente dinâmico que durante a apropriação do espaço exige uma reelaboração constante, caracterizando movimento e temporalidade próprios.

Pol11 ao discutir o conceito de apropriação do espaço, afirma que em sua constituição há a existência de dois processos circulares: um de ação-transformação e outro de identificação simbólica. Esses dois processos podem não ocorrer de forma conjunta. A ação-transformação, oriunda de atividade comportamental, modifica o espaço e promove um significado para o sujeito, compartilhado ou não pela coletividade. Já na identificação simbólica ocorre a construção de significados causadora da formação de identidade social urbana e de lugar, onde o espaço apropriado favorece a manutenção de um referencial, espacial e simbólico.

Para Bomfim9 apropriar-se é "identificar-se e transformar-se a si mesmo, a coletividade e o entorno. Isto quer dizer que o que cada um de nós é inclui, de maneira determinante, os lugares que temos sido e os lugares que somos".

Acerca desses lugares que fomos e somos, compreende-se a apropriação do espaço numa perspectiva sócio-histórica. O bairro onde moramos ou grupo no qual pertencemos nos representam, sendo gatilhos simbólicos e de sentidos à nossa existência, ao reconhecermo-nos em diferentes espaços que ocupamos.

No caso do espaço de permanência da sala de recepção, durante pós-ocupação foram observadas, nas paredes, como demarcações representativas de território: os bairros Dias Macêdo, Parque Dois Irmãos e Bela Vista, situados no município de Fortaleza, bem como demais municípios do Estado do Ceará como Croatá, Pajuçara, Sobral, Riacho; e como grupos pertencentes ou afiliados o Comando Vermelho (CV), Guardiões do Estado (GDE), Primeiro Comando da Capital (PCC), Família do Norte (FDN).

Essas (de)marcações observadas dão indícios de onde se vem e os grupos que se apoiam na busca por processos de identificação representativa do poder e da resistência durante adaptação a uma nova conjectura de interação institucional. A identificação (de)marcada por experiências anteriores, acompanha o adolescente no seu processo de ingresso institucional mediante a interpretações diversas, durante permanência no ambiente socioeducacional em regime fechado, após sentença.

Pol11 afirma que o sujeito deixa suas marcas personificando seu ambiente ao estabelecer atividades de interação com o espaço, transformando-o conforme as suas necessidades pessoais. Daí esses espaços serem carregados de significados e sentidos, simbolizando aspectos subjetivos da vida a partir do modo como vão sendo dispostos os objetos.

A personificação dos lugares nos centros socioeducativos em regime fechado constitui uma tentativa de ornamentar os espaços institucionais a partir dos objetos carregados de simbolismo e sentido, entre o lugar atual e àqueles deixados para trás.

Palavras escritas na parede, tais como satanás, crime, ida, volta, e códigos, em letras grandes desenhadas, anunciam experiências que marcaram o adolescente e ainda se fazem presentes, paralelo ao simbolismo das imagens de palhaço e revólver; além dos seus próprios nomes, apelidos, bairros e grupos de facções.

A imagem do palhaço observada em CS1 existe como uma (de)marcação metafórica feita com pasta de dente, assume representatividade funcional da ação-transformação enquanto interação entre um público específico, quando usado, apreciado ou recriado somente por quem conhecer o seu significado. Essa imagem é representativa de que por ali já esteve alguém cumprindo medida socioeducacional de regime fechado pelo motivo de ter matado um policial.

O código representativo de ser do grupo Comando Vermelho é 321, Guardiões do Estado é 75, Primeiro Comando da Capital é 1533, Família do Norte é 6413, ou seja, é feito uma correlação entre o alfabeto e númerais na ordem crescente, ou seja, A=1, b=2, c=3, d=4, e=5, f=6, g=7, h=8, i=9, j=10, l=11, m=12, n=13, o=14, p=15, q=16, r=17, s=18, t=19, u=20, v=21, x=22, z=23.

Esses códigos representam que ao se pisar pela primeira vez em um espaço, ocorrem instantaneamente manifestações físicas (corporal), metafísicas (transcendente) e metafóricas (simbólico), conscientes ou inconscientes. Portanto, há uma influência mútua entre ambiente e comportamento humano ao longo do tempo vivido e percebido dentro de uma perspectiva dinâmica e transformadora, cujos resultados são psico-socio-ambientais13.

Nos outros dois espaços de permanência em CS2 estão presentes marcas de mãos e pés na tentativa de ver o que existe para além das grades. Um espaço inicialmente desconhecido, cercado de incertezas onde não se sabe ao certo quanto tempo irá passar; quem irá encontrar; as rotinas que deve assumir. Nesses espaços não foi identificado (de)marcações por pasta de dente e sim algo pontiagudo ou substância sólida da cor branca, característicos dos resíduos de construção, pegues durante deslocamento.

Há muito mosquito pelas paredes e teto, durante o dia; pouca ventilação e iluminação, com um piso sujo, anunciando descuido acerca da limpeza no local. Trata-se de um local que não atende as necessidades básicas de permanência com conforto, mas apresenta gravado nas paredes nomes de bairros, municípios e grupos de facção representativo, vinculados aos lugares por onde os adolescentes passaram e foi significativo.

Em Psicologia Ambiental o local significativo denota ser um lugar de parada, resultante dos processos de ação-transformação, percepções e funcionalidade mediante os aspectos físicos do espaço que carrega um significado e valor emocional, sintetizando as experiências públicas e íntimas das pessoas.

Isso significa dizer, por exemplo, que um espaço de permanência na sala de recepção não se resume a um cômodo da instituição onde ocorre a espera para atendimento em saúde ou assistência e posterior encaminhamento ao devido dormitório. Esse espaço pode assumir um lugar de troca experiencial significativa e interacional pelas (de)marcações deixadas, ou um marasmo que inquieta os ânimos na busca pela liberdade.

O espaço de permanência na sala da recepção é um lugar onde o adolescente com experiências e sensações singulares pode identificar-se ou não com algumas das marcas deixadas pelas paredes, bem como criar a sua própria (de)marcação. Desse modo, o espaço apropriado é um espaço criado ou recriado, concreto e simbólico que imprime a logomarca do sujeito, passível de a qualquer momento ser modificado, ou seja, o fenômeno de apropriação é um processo bidirecional e dinâmico da ação-transformação entre território e sujeito.

Conforme Gonçalves12, a apropriação possui uma dinâmica em dois sentidos: um guiado para a conquista do espaço e outro para si. Isso permite que o sujeito adapte o espaço às suas próprias necessidades. Cada sujeito se apropria do lugar de forma diferenciada, a depender dos modelos culturais, sociais e estilo de vida já vivenciados.

As (de)marcações identificadas, nos registros em diário de campo, pelos vestígios ambientais observados, no espaço de permanência da sala de recepção, estão ligadas a um significado pessoal ou funcional com o lugar. Dessa forma, cada adolescente ocupou seu espaço, de acordo com seus vínculos afetivos deixados para trás, atribuindo-lhes significados com base nas lembranças ainda vívidas em suas memórias, para não se esquecerem daquilo que viveram e de quem já foram um dia.

Assim, espaço é o meio social visível e real que existe tal qual é manifestado; e o ambiente socioeducativo é a experiência concreta e projetada da pessoa em desenvolvimento durante permanência institucional.

O adolescente constrói e ressignifica seus espaços, podendo abrir-se para uma relação com os demais ou fechar-se num mundo que é só dele. Esse espaço ressignificado, então, deixa de ser vago e abandonado, passando a ter sentido e valor, ou seja, o espaço adquire status de lugar, no qual o sujeito projeta suas características pessoais, à medida que ocorre a permanência.

Os espaços uma vez apropriados contam uma história particular quantas vezes for necessário, embora possa ter sido vivida no meio social sem a privação da liberdade. O sujeito se projeta sobre o espaço apropriado (re)criando uma identificação com o ambiente de modo a revelar-se nele com base numa interação recíproca entre sujeito e entorno sociofisico.

 

CONCLUSÃO

A investigação socioambiental, após ocupação do espaço de permanência na sala de recepção, é um grande desafio em meio ao sistema socioeducacional de regime fechado após sentença, onde se predomina o discurso conservador de padronização dos comportamentos voltado a manutenção da ordem, segurança e garantia dos direitos básicos resguardados pela tutela de agentes institucionais, representantes do Estado em território cearense.

Nos espaços institucionais socioeducativos dessa pesquisa, os adolescentes enquanto sujeitos sociais e culturais inscrevem suas marcas, desenvolvem e (re)constroem histórias num processo ativo, característico da apropriação do espaço. Daí estes, não simplesmente se adaptam ou se projetam no ambiente, mas se apropriam ou não, conforme sua individualidade e aquilo que lhe é oferecido ou dado como possibilidade de ressocialização e/ou ressignificação do contexto social, cultural, histórico e afetivo, apreendido no processo dinâmico do ser, sentir e agir da inter-relação com o ambiente.

Portanto, pode-se pensar a instituição socioeducativa de regime fechado a partir de suas dimensões sociais, culturais, concretas e simbólicas; como também, um espaço vazio de significados, alheio às reais necessidades dos sujeitos. Em outras palavras, o espaço do ambiente socioeducativo pode ser um espaço que contem chão, parede, teto e grades; mas também pode ser um ambiente em que se projeta e se reinventa o jeito de ser, sentir e atuar com fins a um processo de ressocialização que deve considerar as necessidades reais dos adolescentes em cumprimento de medida judicial, durante permanência em regime fechado após sentença. É questionável o caráter ressocializador da instituição, mediante as restrições ocupacionais e higienização precária, observadas durante a pesquisa.

Desse modo, a compreensão dos vestígios ambientais no processo de apropriação do espaço desponta-se conectada à produção dos sentidos, em que cada (de)marcação singular pode se conectar à significados coletivos. O sentido de pertencer a um grupo de facção ou a uma delimitação territorial, demarcados pelos vestígios ambientais nas paredes, pode assumir diferentes significados a depender de qual contexto o adolescente esteja inserido.

Agradecimentos

Agradecemos à Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo apoio financeiro disponibilizado para a realização dessa pesquisa.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
enianaagp@yahoo.com.br

Manuscrito recebido: Junho 2019
Manuscrito aceito: Setembro 2019
Versão online: Março 2020

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