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Journal of Human Growth and Development

Print version ISSN 0104-1282On-line version ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.30 no.2 São Paulo May/Aug. 2020

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.v30.10382 

ARTIGO ORIGINAL

 

A influência da via de parto no desenvolvimento infantil: uma comparação por meio da Bayley-III

 

 

Ana Paula Magosso CavaggioniI; Maria do Carmo Fernandes MartinsII; Miria Benincasa BenincasaII

IDoutoranda pela Universidade Metodista de São Paulo - Programa de Pós- graduação em Psicologia da Saúde - São Bernardo do Campo - SP
IIProfa. Dra. Programa de Pós-graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo - São Bernardo do Campo/SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: A cesárea eletiva está associada a diversos prejuízos à saúde do recém-nascido, como problemas respiratórios, gastrointestinais e diabetes, que perduram ao longo da vida. No entanto, poucos estudos discutem os aspectos relacionados ao desenvolvimento psicológico
OBJETIVO: Investigar o desenvolvimento de crianças brasileiras segundo a via de parto e a idade gestacional nos domínios cognitivo, linguagem, motor, socioemocional e comportamento adaptativo
MÉTODO: Trata-se de um estudo exploratório-descritivo, transversal, realizado no município de São Bernardo do Campo, entre junho de 2016 e março de 2017. A população foi composta por 400 crianças até 42 meses de idade. Para coleta de dados foram aplicados questionário sociodemográfico e Escala Bayley-III. Foi utilizada para análise estatística tanto a normatização oferecida pela Escala Bayley (norte-americana) quanto a normatização referente à amostra estudada, por meio do SPSS version 21, utilizando o teste estatístico do Qui-Quadrado de Pearson, critérios de significância p<0,05
RESULTADOS: Observou-se diferença significativa (p<0,005), com maior risco de problemas no desenvolvimento motor fino e na linguagem expressiva em crianças nascidas a termo precoce (37 a<39 semanas) quando comparadas às nascidas a termo (=39 a <41 semanas). Diferença significativa (p<0,005) também foi observada no processamento sensorial e comportamento adaptativo, com maior prejuízo observado nas crianças nascidas via CE em comparação às nascidas de parto vaginal
CONCLUSÃO: Este estudo evidencia o aumento de riscos psicológicos em crianças nascidas via cesárea eletiva quando comparadas com as nascidas por parto vaginal nos aspectos relacionados ao processamento sensorial, motricidade fina, linguagem expressiva e emissão de comportamentos adaptativos

Palavras-chave: desenvolvimento infantil; cesárea; parto normal; Bayley-III; prematuridade.


 

 

Síntese dos autores

Por que este estudo foi feito?

Este estudo foi parte da dissertação de mestrado da autora no Programa de Pós Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo. O tema foi decorrência da observação da autora, ao longo de sua atuação clínica, da crescente incidência de crianças nascidas via cesárea eletiva com problemas em seu desenvolvimento psicológico.

O que os pesquisadores fizeram e encontraram?

Por meio da aplicação de questionário sociodemográfico e da Escala de Desenvolvimento Infantil Bayley-III foi realizada a avaliação de 400 crianças entre 15 dias e 42 meses e 15 dias de idade nos Centros de Educação Infantil do município de São Bernardo do Campo para investigar a relação entre via de parto e desenvolvimento infantil. Foi observada maior incidência de atrasos no desenvolvimento nas crianças nascidas via cesárea eletiva em comparação ao parto vaginal, bem como naquelas nascidas a termo precoce, em relação às nascidas a termo.

O que essas descobertas significam?

Essas descobertas significam a necessidade de conscientização acerca da escolha da via de parto, uma vez que as crianças nascidas via CE ficam expostas à prematuridade iatrogênica e maior risco de enfrentar dificuldades em seu desenvolvimento global, que podem perdurar ao longo da vida.

 

INTRODUÇÃO

Observa-se, em diversos países do mundo, taxas de realização de cesárea significativamente acima do recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que afirma não haver justificativa para índices superiores à 15%1. A literatura nacional e internacional aponta prejuízos significativos para o recém-nascido (RN) associados à realização de cesárea eletiva (CE), em função da prematuridade associada a esta intervenção cirúrgica, fato agravado pela imprecisão no cálculo da idade gestacional2.

O Brasil é considerado o país com uma das piores realidades obstétricas do cenário mundial. Apesar de apenas 24% das mulheres desejarem inicialmente parto cirúrgico, observou-se índice de 52% de cesáreas, chegando a 90% na assistência privada, sendo cerca de 50% realizadas entre a 37ª e 38ª semana gestacional. Esses dados indicam o uso indiscriminado deste procedimento, gerando consequências negativas tanto para a mãe como para o RN2, mesmo quando realizada após a 39ª semana gestacional3.

A literatura evidencia que a CE apresenta maior risco de morbidade2,3, admissão em UTI neonatal, internação hospitalar e complicações respiratórias2. Dentre os efeitos a longo prazo conhecidos ressalta-se maior risco de doenças imunológicas, a maior ocorrência de síndrome metabólica, asma, dislipidemia, doença cardiovascular, problemas gastrointestinais, obesidade2, e maior risco de hipertensão arterial na juventude e vida adulta4.

Frente a essa realidade, em 2016, o Conselho Federal de Medicina (CFM) vetou a realização de CE antes da 39ª semana gestacional, prática frequente até então, garantindo à gestante o direito de optar pela via de parto5. Porém, esta é, normalmente, imposta pelo médico, sendo fundamental a disponibilidade de informações sobre as consequências da via de parto para a mãe e o bebê de forma confiável6. Assim, é urgente a realização de estudos exploratórios sobre os riscos e benefícios da CE, que amparem a decisão das gestantes e da classe médica.

Apesar das evidências em relação ao prejuízo na saúde física do recém-nascido via CE, que podem perdurar até a vida adulta2-4, há uma lacuna no conhecimento acerca do impacto da via de parto no desenvolvimento psicológico. Sabe-se que o desenvolvimento infantil ocorre de forma integrada, sendo os aspectos físicos, psicológicos e ambientais indissociáveis7. Portanto, uma vez que a via de parto impacta sobre os aspectos físicos do desenvolvimento infantil, é necessário investigar seu efeito sobre as demais áreas do desenvolvimento.

Na literatura, são reduzidos os estudos que abordem outros aspectos do desenvolvimento infantil segundo o tipo de parto, alguns com resultados inconsistentes8. Porém, indicam associação entre CE e atraso na aquisição dos marcos neuropsicomotores9,10. Observa-se ainda menor índice de competências locomotoras, manipulativas, visuais, de fala e linguagem e de autonomia pessoal comparativamente aos de parto vaginal11.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) incentiva a realização de pesquisas que estudem o vínculo mãe-bebê, a saúde mental da mulher, o bem-estar do recém-nascido, a amamentação e os aspectos psicológicos e sociais relacionados ao tipo de parto1. A urgência na realização de estudos que investiguem os possíveis efeitos da cesárea eletiva sobre o desenvolvimento psicológico infantil, a curto, médio e longo prazo, nos mais diversos domínios que o compõem, motivou a realização deste trabalho.

Assim, o objetivo deste estudo foi investigar o desenvolvimento psicológico de crianças entre 15 dias e 42 meses e 15 dias, segundo a via de parto e a idade gestacional ao nascer.

 

MÉTODO

Tipo de estudo e amostra

Este estudo caracterizou-se por ser transversal, exploratório e descritivo, utilizando variáveis quantitativas. A amostra compreendeu 400 crianças com faixa etária entre 15 dias a 42 meses e 15 dias de idade, matriculadas e frequentes nos Centros de Educação Infantil (CEIs) do município de São Bernardo do Campo. Tratou-se de amostra não probabilística e por conveniência.

Foram excluídas da pesquisa as crianças cujas famílias não assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE); os nascidos clinicamente prematuros (antes da 37ª semana); nas CE, presença de trabalho de parto; cesárea de urgência; síndromes, más-formações e gestação de risco. Foram excluídos, também, 9 bebês com idades entre 15 dias à 6 meses e 15 dias pela impossibilidade de realizar o cálculo estatístico de percentil por faixa etária com amostragem tão reduzida.

A amostra final foi composta de 263 sujeitos do sexo feminino (n=122) e masculino (n=141); via vaginal (n=103) e CE (n=160); nascidas a termo precoce (370/7-386/7 semanas) (n=104), a termo (390/7-416/7 semanas) (n=148) e pós-termo (>420/7 semanas) (n=11). Em relação à etnia, a maior parte da amostra foi de indivíduos brancos (48,3%) e pardos (37,6%). Mais da metade das mães terminaram o ensino médio (51,7%) e 37,7% tem ensino superior. Quanto à idade materna, 19,8% das mães tinha entre 21 e 25 anos; 24,7% entre 26 e 30; 26,2% entre 31 e 35; 20,9% entre 36 e 40. Em relação à renda familiar, 62,8% pertencia à classe média baixa.

Instrumentos e procedimentos

A coleta de dados foi iniciada após anuência prévia da Secretaria de Educação de São Bernardo do Campo e dos dirigentes dos CEIs. O convite para participação no estudo incluiu todos os alunos das instituições participantes, dentro da faixa etária estipulada, sendo realizada dentro do período letivo. A aplicação foi realizada de forma individualizada, com duração entre 60 e 90 minutos.

Foram utilizados dois instrumentos: Questionário Sociodemográfico, que forneceu as informações referentes às variáveis independentes - via de parto e idade gestacional ao nascer, uma vez que a literatura associa a CE a sinais de prematuridade3 e a Escala Bayley de Desenvolvimento Infantil12 (Bayley III), a partir da qual foram mensuradas as 11 variáveis dependentes deste estudo.

A Bayley III avalia o desenvolvimento infantil por meio da observação direta e interação com a criança em relação aos domínios/variáveis dependentes: cognitivo (COG), linguagem expressiva (LE) e receptiva (LR), motricidade fina (MF) e grossa (MG). Avalia, ainda, por meio de questionário realizado com os pais, dois outros domínios: comportamento adaptativo (CA) e socioemocional (SE). As análises disponibilizadas por estes domínios compuseram outras 6 variáveis dependentes desta pesquisa: Comportamento Adaptativo Global (GAC), Prático (PRA), Conceitual (CON), Social (SO), Socioemocional (SE) e processamento sensorial (PS).

Apesar da Bayley III não possuir padronização ou normatização para a população brasileira, é comumente utilizada em inúmeras pesquisas, nacionais e internacionais, com base nos dados normativos norte-americanos oferecidos pela própria escala. Para minimizar possível interferência na confiabilidade dos dados encontrados, foi realizada sua tradução da versão inglesa para o português, a qual foi submetida a três revisões e análises semânticas por equipes interdisciplinares constituídas por profissionais da área da saúde do município, da Universidade Federal de Uberlândia, MG/ Brasil (UFU) e da Universidade Federal do Pará/Brasil (UFPA), usuários deste instrumento.

Os procedimentos de aplicação da escala foram padronizados por meio de curso de capacitação para sua aplicação, com 24 horas teóricas e 20 horas de prática supervisionada, garantindo uniformidade dos procedimentos de aplicação do teste. Também foi realizada a comparação dos dados obtidos a partir de dois dados normativos: norte-americano e local (obtidos a partir da amostra deste estudo). Apesar das limitações deste tipo de análise, trata-se de um recurso ético e válido na utilização de instrumentos que não possuem normatização para a população em questão13.

Na primeira análise, a pontuação bruta obtida foi convertida em escore normativo ponderado - para as variáveis dependentes COG, LE, LR, MF e MG - e composto - para as variáveis dependentes GAC, CON, PRA, SO, SE e OS - segundo a tabela de conversão disponível no manual da escala12. A normatização da Bayley III para a população local foi realizada por meio do cálculo de percentil, que permitiu a interpretação e comparação dos resultados do indivíduo nos diferentes domínios avaliados, além de apontar a posição do indivíduo na amostra normativa.

Para o cálculo de percentil, considerou-se o critério estatístico de um desvio-padrão (DP) e distribuição normal padrão. Este critério viabiliza a comparação de valores tanto de amostras diferentes quanto de uma mesma amostra, na qual aproximadamente 68% dos valores encontram-se num intervalo de um DP (negativo e positivo) a partir da média.

Análise estatística

Recorreu-se a análise estatística não-paramétrica por meio do Statistical Package for the Social Sciences Version 21- SPSS. Foi utilizado o teste estatístico do Qui-Quadrado de Pearson, critérios de significância p<0,05. Foram realizadas comparações entre os achados, buscando diferenças e semelhanças entre os grupos em cada uma das áreas do desenvolvimento psicológico - cognitivo, motor, linguístico, socioemocional e comportamento adaptativo - considerando a via de parto e a Idade Gestacional. Foi levantada a ocorrência de cada variável dependente em números brutos bem como sua frequência em porcentagem.

Aspectos éticos

Este estudo contemplou os aspectos éticos da Declaração de Helsinque e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-UMESP) sob o parecer de número 1.339.889 na Plataforma Brasil. Após a aprovação, foi submetido para apreciação da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP, que financiou a pesquisa, juntamente com a CAPES. Todos os participantes assinaram previamente o TCLE.

 

RESULTADOS

Observou-se, nas comparações realizadas com base na normatização norte-americana diferença significativa (p<0,05) na LE quando considerada a variável idade gestacional, e em habilidades do CA, quando considerada a via de parto. Também, nas comparações realizadas com base na normatização obtida a partir da amostra local observou-se diferença significativa (p<0,05) no MF quando considerada a variável idade gestacional e no PS quando considerada a via de parto. Estes resultados evidenciam sinais da associação relatada na literatura entre a CE e a prematuridade. Os resultados gerais encontrados são apresentados na Tabela 1.

Comparações com base na normatização realizada a partir da própria amostra

Considerando a frequência de incidência de resultados deficitários em relação ao PS, observou-se que as crianças nascidas via CE possuem 3 vezes mais risco de apresentarem atrasos nesta área em comparação com aquelas nascidas via vaginal, conforme mostra a figura 1.

Os resultados apontaram, ainda, que crianças nascidas a termo precoce apresentam incidência 1,2 vezes maior de atrasos em seu desenvolvimento MF em relação àquelas nascidas a termo, conforme mostra a figura 2.

Comparações com base na normatização norte americana

Nas habilidades referentes ao CA, foram encontradas diferenças estatisticamente significativas (p=0,05) na composição de habilidades CON (p=0,020) e PRA (p= 0,018) em relação à amostra americana, conforme a figura 3. Observou-se que as crianças nascidas via CE apresentaram risco 4 vezes maior de déficits nas habilidades Práticas do CA, e risco 2.5 vezes maior de déficits nas habilidades Conceituais.

Porém, ao correlacionar a variável idade gestacional ao nascer com a LE, a partir dos dados normativos norte-americanos, observou-se diferença significativa (p<0,05) nesta área do desenvolvimento. As crianças nascidas a termo precoce apresentaram risco 2 vezes maior de atrasos na LE em relação aos nascidos a termo, conforme mostra a figura 4.

 

DISCUSSÃO

Neste estudo transversal, descritivo e exploratório constatou-se diferença significativa (p<0,005) no desenvolvimento das crianças avaliadas segundo a via de parto e a idade gestacional ao nascer em algumas áreas. Na comparação com a população norte-americana, crianças nascidas via CE apresentaram 2,5 e 4 vezes mais prejuízos nos subdomínios CON e PRA, respectivamente, em relação às nascidas de parto vaginal. Já na comparação com a padronização realizada a partir da própria amostra, observou-se incidência 3 vezes maior de prejuízos no PS entre os nascidos via CE.

Considerando a idade gestacional ao nascer, também houveram diferenças na comparação realizada com cada população. Observou-se incidência 1,2 vezes maior de prejuízos na MF, na comparação com a normatização realizada a partir da própria amostra, entre os nascidos a termo precoce. Estes também apresentaram, na comparação com a norma norte-americana, incidência 2 vezes maior de atraso no desenvolvimento da LE. Estes resultados são importantes para auxiliar na reflexão de médicos e gestantes acerca da escolha da via de parto, tendo em vista as altas taxas de realização de CE no país2,3.

Porém, este estudo apresenta limitações importantes a serem consideradas. Uma delas é a escolha de um instrumento não validado para a população brasileira. Optou-se pela Bayley III em função da importância do uso de medidas internacionalmente padronizadas para garantir a possibilidade de comparações dos resultados entre diferentes países. Esta é uma escala reconhecida internacionalmente e amplamente utilizada em pesquisas científicas ao redor do mundo a partir dos escores normatizados com bebês e crianças pequenas nos Estados Unidos14.

Apesar da padronização da aplicação do teste, sabe-se que hábitos culturais, dentre outros fatores, influenciam o desenvolvimento infantil7 e podem interferir na fidelidade dos resultados comparados com população diferente, sendo necessária cautela. Na literatura, há estudos que sugerem segurança no uso da norma americana em outras populações15, outros, por sua vez, apontam diferenças16.

Por esta razão, recorreu-se à normatização a partir dos dados da própria amostra, apesar das limitações deste tipo de análise13. Assim, ficou garantida a possibilidade de comparar os resultados encontrados segundo as diferenças socioculturais que poderiam influenciar na classificação das crianças em estudo.

Esta estratégia possibilitou verificar aspectos de convergência e divergência quando comparados os resultados com cada uma das normas estabelecidas que, caso contrário, passariam despercebidas. Ressalta-se a importância da padronização e normatização do instrumento em estudos posteriores a partir de amostra representativa da realidade nacional para uma medida mais fidedigna.

Outra limitação importante deste estudo foi o reduzido tamanho da amostra e sua homogeneidade que se, por um lado, minimiza algumas variações ambientais que influenciam no desenvolvimento infantil; por outro, não permite a generalização dos resultados. Estudos abarcando uma amostra mais numerosa, poderiam consolidar, refutar ou ampliar os resultados deste trabalho, tornando-os mais suscetíveis de generalização.

Considerando as limitações citadas, os resultados deste estudo vão ao encontro das evidências atuais sobre a associação relatada na literatura entre a CE e a prematuridade, que apontam a idade gestacional ao nascer e a via de parto como importantes fatores de risco tanto para o desenvolvimento infantil quanto para os desfechos ao longo dos primeiros anos de vida2,3. Assim, a forma e o momento de nascer fazem parte dos múltiplos fatores determinantes do desenvolvimento infantil, que depende parcialmente da bagagem genética e dos acontecimentos e experiências afetivas, sensoriais e sociais vivenciadas na primeira infância.

Via de parto

Considerando a via de parto, observou-se prejuízo no PS em 12% das crianças nascidas via CE neste estudo, na comparação com a amostra local. O PS é um mecanismo neurofisiológico responsável por filtrar, interpretar e organizar estímulos importantes recebidos a partir do ambiente. Consiste numa habilidade inata do sistema nervoso central que permite à criança emitir um comportamento apropriado e adaptado ao entorno17.

O não funcionamento integrado dos sistemas sensoriais nos primeiros meses de vida reconhecidamente afeta o desenvolvimento e planejamento motor, coordenação visomotora, interação social e aprendizagem, bem como o desenvolvimento emocional e o comportamento18. A possível imaturidade dos sistemas corticais do cérebro envolvidos no PS17, decorrentes da prematuridade iatrogênica associada à CE, pode estar relacionada a maior incidência de prejuízo no PS dentre os nascidos via CE conforme os resultados apontados.

Não se encontra na literatura estudos que investiguem a associação entre processamento sensorial e CE, e são poucos que o fazem em relação à idade gestacional ao nascer, considerando nascimentos a termo e termo precoce. A maioria compara prematuros e nascidos a termo19. Uma pesquisa prospectiva, com 157 crianças aos 12 meses de idade, com prematuros tardios e a termo, identificou que os prematuros tardios constituem um grupo de risco para distúrbio de modulação sensorial20. Tendo em vista possíveis erros no cálculo da idade gestacional2, esta pode ser a realidade de algumas crianças nascidas via CE.

Uma revisão de literatura apontou a relação da integridade do PS com o processo de aprendizagem e as respostas comportamentais da criança, levantando possíveis relações com o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade21. Sabe-se que os sistemas sensoriais dão suporte às respostas e à adaptação do sujeito às exigências ambientais18, com potencial de interferência em habilidades do CA, o que não foi constatado nos resultados desta pesquisa, na comparação com a norma local mas mostrou-se presente na comparação com a amostra norte-americana.

As alterações do PS podem dificultar a adaptação do sujeito ao meio17,18 e, assim, seria esperado encontrar esta diferença como decorrência na comparação com a mostra local. Porém, esta hipótese não se confirmou na presente pesquisa, sendo que essa diferença ocorreu na comparação com a norma norte-americana.

O CA diz respeito às habilidades da criança em se adaptar a várias demandas da rotina de vida diária. Refere-se à utilização da experiência prévia na solução de novos problemas, o que garante o aperfeiçoamento cognitivo, desenvolvimento da autonomia, independência e habilidades comunicativas e sociais12. A variável CON envolve habilidades comunicativas e pré-acadêmicas. Observou-se incidência 2,5 vezes maior de atraso no subdomínio CON dentre os nascidos via CE.

Na variável PRA, por sua vez, observou-se incidência 4 vezes maior de prejuízos nas crianças nascidas via CE quando comparadas às nascidas via vaginal. Esta variável envolve a verificação de habilidades relacionadas a autonomia e independência12.

Um estudo recente, observacional e transversal, com 400 díades, investigou diferenças significativas no desenvolvimento de competências aos 2 anos de idade, entre os nascidos de parto normal e CE, utilizando a Escala de Avaliação das Competências no Desenvolvimento Infantil II. Os nascidos via CE mostraram-se abaixo do esperado em competências manipulativas, visuais, de fala e linguagem, e de autonomia pessoal11.

Outro estudo, longitudinal22, conduzido com 11134 sujeitos, investigou o impacto da via de parto no desenvolvimento infantil. Foi aplicado o Ages and Stages Questionnaire junto aos pais, e verificou-se maior risco de atraso no neurodesenvolvimento nos nascidos via CE aos 9 meses de idade, especialmente nos domínios pessoal-social, que inclui as habilidades de autoajuda utilizadas pela criança em suas interações com o outro22 e motricidade grossa.

Apesar dos dois estudos11,22 utilizarem métodos distintos, ambos constataram prejuízos em habilidades do CA relacionados à CE, corroborando os achados deste estudo. Porém, a presente pesquisa não verificou, como os demais, prejuízos na motricidade grossa22 ou fina11 associada ao tipo de parto, mas à idade gestacional ao nascer, com prejuízos significativos nos nascidos a termo precoce. A característica multifacetada da relação entre a via de parto e o desenvolvimento infantil faz necessária a realização de outros estudos populacionais para verificar a consistência dos resultados22.

Os autores levantaram, ainda, possíveis mecanismos psicológicos e biológicos envolvidos nas alterações encontradas, dentre eles, ausência de trabalho de parto e a maior frequência de complicações pós-parto, que podem interferir na interação precoce mãe-RN22 e afetar tanto o PS como o CA17,18. É importante considerar que fatores associados à CE limitam e interferem nas primeiras relações do recém-nascido com o meio, tanto no que se refere ao aparato orgânico que o recém-nascido dispõe ao nascer2 quanto ao meio com o qual este se defronta.

Tanto fatores associados às condições da mulher11 e do bebê antes, durante e após o parto como aspectos biológicos e ambientais certamente estão envolvidos nas diferenças encontradas no desenvolvimento psicológico da criança nascida via CE. Porém, estudos consistentes, preferencialmente longitudinais e multicêntricos, são necessários para se obter maior clareza destes eventos e suas causas.

Idade gestacional

Considerando a idade gestacional ao nascer, mais uma vez observou-se discrepância nas comparações com as normas norte-americanas, e aquelas derivadas da própria amostra. Também são escassos os estudos que comparam os efeitos da idade gestacional ao nascer, ou do tipo de parto, com o desenvolvimento MF ou da LE.

Um estudo, documental, com amostra de 38802 mil bebes nascidos prematuros tardios, termos precoces e termo, indicou resultados adversos no desenvolvimento neurológico a longo prazo, e maior risco de atraso de linguagem nos dois primeiros23. Este dado corrobora os resultados deste trabalho, que constatou risco 2 vezes maior no desenvolvimento da LE na comparação com a amostra norte-americana, que pode ser decorrente das diferenças na estrutura linguística, como observado no caso de outros países23.

Uma pesquisa transversal, nacional, avaliou a influência de variáveis sociodemográficas, obstétricas e neonatais no desenvolvimento neuropsicomotor por meio do Instrumento de Vigilância do Desenvolvimento, constatando que a cesárea está associada a maior ocorrência de atraso no desenvolvimento10. Porém, também não refere a influência da idade gestacional ao nascer, a partir da qual constatou-se a incidência 1,2 vezes maior de prejuízos no desenvolvimento MF nas crianças nascidas a termo precoce em relação às nascidas a termo do presente estudo.

Mesmo sendo escassa a literatura científica sobre os aspectos do desenvolvimento relacionados ao nascimento a termo precoce, há indícios que as dificuldades motoras e de linguagem são duas manifestações de vulnerabilidades subjacentes ao desenvolvimento neurológico e fortemente relacionadas entre si11. Assim, pode-se inferir que pequenas diferenças na idade gestacional podem interferir no desenvolvimento dessas habilidades.

Apesar de muitos bebês nascidos a termo precoce apresentarem um curso neonatal sem complicações, quando comparados com os nascidos entre 39 e 41 semanas, sua probabilidade de sofrer algum tipo de morbidade a curto e longo prazo já é comprovadamente maior11,12. As publicações disponíveis, sugerem que se encontram em significativo risco de apresentarem dificuldades em seu crescimento, bem como alterações nos aspectos neuropsicológicos, educacionais e comportamentais, ao contrário do que acontece com os nascidos a termo12.

Ignorar as influências da via de parto e da idade gestacional ao nascer no desenvolvimento infantil é negligenciar os cuidados preventivos e a promoção da saúde que podem colaborar para diminuir os problemas de desenvolvimento e outras psicopatologias da infância e adolescência. Identificar vulnerabilidades antecipadamente significa reduzir o risco de possíveis dificuldades que possam se agravar ao longo da vida. Este estudo indica que a CE pode ser considerada um sinal de vulnerabilidade na história da criança.

Em suma, apesar de suas limitações e das discrepâncias apontadas, esta pesquisa indicou potenciais prejuízos no desenvolvimento psicológico de crianças nascidas via CE e a termo precoce. Esses achados devem não somente incentivar a realização de novos estudos que venham expandir seus resultados em outras populações e explorar os potenciais mecanismos biológicos envolvidos, mas também subsidiar a discussão entre gestantes e médicos sobre os riscos a curto, médio e longo prazo associados à CE. Desta forma, permite um passo no sentido da prevenção primaria da saúde da criança.

 

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Endereço para correspondência:
anapaulamagosso@gmail.com

Manuscrito recebido: Setembro 2019
Manuscrito aceito: Janeiro 2020
Versão online: Maio 2020

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