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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.30 no.3 São Paulo set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.v30.11107 

ARTIGO ORIGINAL

 

Aspectos subjetivos da imagem corporal em mulheres com fibromialgia

 

 

Rodrigo Sanches PeresI; Sofia de Freitas CostaII; Manoel Antônio dos SantosIII

IDoutor em Psicologia. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Professor Associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) - Uberlândia - MG
IIPsicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) - Uberlândia - MG
IIIDoutor em Psicologia Clínica. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Professor Titular da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) - Ribeirão Preto - SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: A imagem corporal se refere à figuração do corpo na mente, possui uma forte vertente experiencial e é perpassada por aspectos subjetivos
OBJETIVO: Analisar aspectos subjetivos da imagem corporal em mulheres com fibromialgia
MÉTODO: Trata-se de um estudo observacional de corte transversal. Participaram 16 mulheres com diagnóstico confirmado havia, no mínimo, seis meses. O instrumento empregado foi o Desenho da Figura Humana (DFH), técnica projetiva de uso exclusivo de psicólogos, seguindo os procedimentos estabelecidos na literatura especializada. O exame do material foi realizado de maneira independente por dois avaliadores especialistas, que utilizaram critérios de atribuição de significados estabelecidos em publicações clássicas da área de avaliação psicológica
RESULTADOS: Destacou-se a ocorrência dos seguintes indicadores nos desenhos das participantes: traço médio e contínuo, tamanho pequeno, localização no quarto quadrante, presença de reforços e representações de articulações, figuras com postura corporal estática e traços faciais simplificados. Esses indicadores foram interpretados como sinais sugestivos de passividade, insegurança, inibição, sentimento de inferioridade, conflitos relativos a dificuldades de contato, propensão ao refúgio na fantasia, à idealização, à regressão e a tentativas de controle onipotente, rigidez psíquica e desvitalização. Portanto, a imagem corporal das participantes parece ser determinada por representações mentais que incluem o corpo, mas não se restringem às suas dimensões biológicas ou às limitações físicas decorrentes das manifestações sintomáticas da fibromialgia
CONCLUSÃO: A imagem corporal das participantes apresenta uma valência essencialmente negativa, uma vez que é moldada subjetivamente por concepções internalizadas e inconscientes pouco favoráveis sobre si mesmas

Palavras-chave: imagem corporal, fibromialgia, saúde mental, saúde da mulher.


 

 

Síntese dos autores

Por que este estudo foi feito?

A compreensão psicodinâmica da imagem corporal de mulheres com fibromialgia tende a fornecer elementos relevantes para o planejamento da assistência em saúde oferecida a tal público, mas são escassas as pesquisas sobre o assunto.

O que os pesquisadores fizeram e encontraram?

Avaliou-se a imagem corporal de 16 mulheres com diagnóstico de fibromialgia por meio do Desenho da Figura Humana (DFH), instrumento que possibilita a exploração das concepções internalizadas e inconscientes que cada pessoa tem acerca de si mesma. Foram identificados nos desenhos sinais sugestivos de rigidez psíquica, passividade, insegurança, inibição, sentimento de inferioridade e dificuldades de contato.

O que essas descobertas significam?

A imagem corporal das participantes apresenta uma valência essencialmente negativa, cuja intensidade ultrapassa significativamente aquela que seria esperada se fossem levadas em conta objetivamente apenas as repercussões físicas da fibromialgia.

 

INTRODUÇÃO

Nos anos 1930, Schilder1 estabeleceu as bases teóricas que viriam a fundamentar uma parcela expressiva dos estudos sobre a imagem corporal, inclusive daqueles desenvolvidos na atualidade. O autor inovou ao definir tal conceito, basicamente, como a figuração do corpo na mente. E acrescentou que a imagem corporal começa a ser construída no início da vida, mas é reconstruída incessantemente como resultado de um complexo processo norteado pelas vivências ulteriores do sujeito, tanto corporais quanto psíquicas. Sob essa perspectiva, a imagem corporal pode ser qualificada como um fenômeno de interface, na medida em que é, ao mesmo tempo, representação e experiência2.

Tais formulações realçam que a imagem corporal possui uma forte vertente experiencial, a qual determina seu caráter dinâmico, bem como é perpassada por componentes objetivos e subjetivos, conscientes e inconscientes. Aprofundando essa linha de raciocínio, Schilder1 propôs que certas vicissitudes naturais da existência humana, dentre as quais destacou a dor física, tendem a repercutir na imagem corporal, mas não seria possível determinar a priori exatamente como isso ocorreria.

A fibromialgia é uma síndrome de etiologia multifatorial, prevalente em mulheres de meia-idade, cujo quadro clínico se caracteriza, principalmente, pela ocorrência de dor física crônica desvinculada de lesões orgânicas e pela presença de alterações no humor, na memória e no sono3,4. Logo, pode-se presumir, a partir dos desenvolvimentos teóricos propostos por Schilder1, que mulheres com fibromialgia apresentarão uma imagem corporal influenciada pelo modo como se relacionam com seu corpo, vivido como fonte de dor persistente e vetor de insatisfação e desprazer.

É possível postular que a compreensão psicodinâmica da imagem corporal de mulheres com fibromialgia tende a fornecer elementos relevantes para a assistência em saúde oferecida a tal público, a qual, de acordo com as diretrizes vigentes, deve ser multidisciplinar e planejada face às especificidades de cada caso5,6. Portanto, os tratamentos devem levar em consideração aspectos subjetivos das pacientes. O mesmo se aplica, em certo sentido, ao diagnóstico. Afinal, a confirmação de um caso demanda um julgamento clínico em relação às queixas relatadas pelas pacientes, pois a fibromialgia não provoca deformidades físicas e tampouco possui marcadores objetivos decorrentes da realização de exames médicos7.

Todavia, ainda são escassas as pesquisas voltadas à exploração das facetas subjetivas da fibromialgia e, especificamente, aquelas que contemplam a avaliação da imagem corporal das pacientes. No âmbito da literatura internacional, dois estudos desenvolvidos na última década8,9 configuram exceções, sendo que em ambos se constatou que perturbações da imagem corporal são frequentes em mulheres acometidas pela síndrome. E em uma única pesquisa brasileira desenvolvida junto a essa população clínica, publicada nos anos 1990, também se observou que a maioria das participantes apresentou imagem corporal afetada negativamente pela dor física crônica10.

Embora relevantes, tais pesquisas não esgotam o assunto, uma vez que enfatizam componentes da imagem corporal que se situam, sobretudo, no nível da consciência. Assim, o objetivo é analisar aspectos subjetivos da imagem corporal em mulheres com diagnóstico de fibromialgia.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo observacional de corte transversal, delineamento utilizado principalmente em pesquisas iniciais, voltadas à descrição de um fenômeno tal como o mesmo ocorre espontaneamente em um dado momento11. Dessa maneira, o pesquisador obtém uma "fotografia" das variáveis de interesse, mas não avalia evoluções e mudanças ao longo do tempo.

Participaram 16 mulheres com diagnóstico de fibromialgia, recrutadas junto a uma organização não-governamental especializada, as quais constituíram uma amostra de conveniência. Os critérios de inclusão foram: ter idade igual ou superior a 18 anos e apresentar diagnóstico de fibromialgia confirmado havia, no mínimo, seis meses. Já os critérios de exclusão foram: apresentar dificuldades de compreensão quanto às instruções do instrumento ou de execução da tarefa proposta, perceptíveis por meio de contato inicial, e ter comorbidade com doenças físicas que oferecem risco à continuidade da vida.

O instrumento empregado para a coleta de dados foi o Desenho da Figura Humana (DFH), técnica projetiva sistematizada originalmente por Machover12 nos anos 1940. As técnicas projetivas constituem instrumentos de uso exclusivo de psicólogos nos termos da legislação vigente no Brasil13 e se caracterizam pela apresentação de estímulos pouco estruturados, aos quais o sujeito pode responder de diferentes maneiras, com ampla liberdade de expressão14. Justamente por essa razão, esses instrumentos demandam intenso grau de criação e elaboração pessoal, e desencadeiam no sujeito operações mentais que possibilitam a circunscrição de conteúdos psíquicos que não se situam no nível da consciência15.

Mais precisamente, o DFH pode ser classificado como uma técnica projetiva de produção gráfica e oral. Ocorre que a atividade consiste em: (1) solicitar ao sujeito a produção do desenho de uma figura humana e, em seguida, a produção do desenho de uma figura humana do sexo oposto em relação à primeira e (2) aplicar um inquérito oral, por meio do qual o sujeito é convidado a esclarecer determinadas características de seus desenhos12. Embora subsidie a exploração da personalidade em um sentido mais amplo, o DFH coloca em relevo a projeção de aspectos subjetivos da imagem corporal, pois a tarefa proposta remete às concepções internalizadas e inconscientes que o sujeito tem de si mesmo16,17.

Justamente por essa razão tal instrumento foi privilegiado no presente estudo. Para além disso, o DFH é uma técnica projetiva consagrada e que apresenta vantagens em comparação com questionários, inventários e outros instrumentos de natureza mais objetiva voltados à avaliação da imagem corporal. Uma de suas especificidades reside no fato de que o DFH enfatiza a comunicação gráfica, notavelmente menos suscetível à ação de mecanismos de defesa passíveis de controle racional pelo sujeito do que a linguagem verbal, quer seja oral ou escrita12,16. Outra vantagem diz respeito à boa aceitação da tarefa proposta, já que o tema da figura humana é universalmente familiar e, ao mesmo tempo, pouco específico17. Sendo assim, o DFH tem sido amplamente utilizado em muitos países, junto a diferentes públicos ao longo de décadas18-21.

Seguindo os procedimentos preconizados por Machover12, as instruções apresentadas às participantes foram, basicamente, as seguintes: (1) "Por favor, desenhe uma figura humana"; (2) "Por favor, desenhe agora uma figura humana do sexo oposto ao daquela que você acabou de desenhar" e (3) "Agora, por favor, responda a algumas perguntas". Após esta terceira instrução, foram utilizadas, a propósito da primeira figura humana desenhada, as perguntas que se referem mais diretamente à imagem corporal, dentre aquelas que constituem o inquérito oral elaborado para a população brasileira por van Kolck17.

Mais especificamente, foram utilizadas as seguintes perguntas: (1) "O que essa pessoa está fazendo"?; (2) "Que idade ela tem?"; (3) "Com quem ela vive"?; (4) "Ela trabalha ou estuda?"; (5) "O que ela quer?"; (6) "O que ela está pensando?"; (7) "O que ela está sentindo?"; (8) "Qual é a melhor parte do corpo dela? Por quê?"; (9) "Qual é a pior parte do corpo dela? Por quê?"; (10) "Quais são as maiores qualidades dela?"; (11) "Quais são os maiores defeitos dela?"; (12) "Com quem ela se parece"? e (13) "Você gostaria de ser como ela?". Além disso, quando o sexo da primeira figura humana não era óbvio, foi feita uma pergunta a respeito no início do inquérito oral.

Os materiais empregados para a realização dos desenhos foram folhas de papel em branco e lápis grafite preto no 2. Já no momento da aplicação do inquérito oral recorreu-se, com o devido consentimento das participantes, a um gravador digital para o registro em áudio das respostas. As folhas de papel foram posicionadas verticalmente diante das participantes, sendo que as mesmas executaram os desenhos sobre uma mesa que permitia que a tarefa proposta fosse concluída de maneira confortável.

Não foram observadas recusas frente às instruções, sendo que as resistências iniciais quanto à execução das tarefas foram mínimas, sempre superadas após o esclarecimento de que nenhuma habilidade artística seria necessária ou avaliada. Cabe esclarecer também que a coleta de dados foi conduzida individualmente em uma sala reservada da organização não-governamental a qual as participantes se encontravam vinculadas, respeitando-se as condições de privacidade e sigilo.

A análise de dados foi realizada de maneira independente por dois avaliadores, psicólogos especialistas no DFH, e pautou-se em dois procedimentos distintos, porém complementares. O primeiro procedimento, de natureza sistemática, se desmembrou em duas etapas: (a) o exame dos desenhos executados em primeiro lugar pelas participantes, efetuado com base em indicadores concernentes a seus aspectos gerais, tamanho e proporcionalidade, os quais se referem mais diretamente à imagem corporal22; e (b) a interpretação dos achados obtidos com tal expediente a partir dos critérios de atribuição de significados estabelecidos em publicações clássicas da área de avaliação psicológica12,16,17,23-26.

Já o segundo procedimento, de natureza não-sistemática, consistiu no exame dos desenhos executados em primeiro lugar pelas participantes com base na impressão global despertada pelos mesmos. Tal exame depende diretamente da experiência dos avaliadores, mas é considerado imprescindível para a captação de certas nuances dos desenhos que poderiam passar despercebidas se apenas indicadores específicos fossem observados17. Divergências pontuais quanto à análise de dados realizada independentemente pelos avaliadores foram resolvidas após discussões, a fim de obter a validação por consenso entre ambos.

Os desenhos executados em segundo lugar pelas participantes foram empregados para a avaliação do tratamento diferencial das duas figuras produzidas. As transcrições das respostas apresentadas pelas participantes no momento da realização do inquérito oral foram consideradas na análise de dados pontualmente, tendo, assim, constituído material empírico complementar, como é comum nas pesquisas envolvendo o DFH. E, para a operacionalização do segundo procedimento de análise, os avaliadores assumiram uma postura correspondente àquela adotada pelos psicanalistas no setting clínico, pautada na atenção flutuante27, a fim de obter subsídios para associar livremente visando à demarcação de significações latentes dos desenhos das respostas apresentadas ao inquérito oral.

É valido ressaltar que o presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE 50132215.8.0000.5152 / Parecer 1.414.551) da instituição de filiação dos autores, de modo que todos os cuidados éticos foram observados.

 

RESULTADOS

Inicialmente, é preciso esclarecer que, conforme a Tabela 1, no momento da coleta de dados a maioria das participantes era casada e menos de metade delas se encontrava ativa no que se refere à situação ocupacional. Na Tabela 1 ainda se pode observar que a idade das participantes variou entre 41 e 60 anos (M=53,50), o nível de escolaridade predominante foi o Ensino Fundamental incompleto e o tempo de diagnóstico foi heterogêneo, variando de um a 20 anos (M=7,37).

As Tabelas 2 e 3 apresentam os resultados derivados do primeiro procedimento de análise empregado. Quanto aos aspectos gerais dos desenhos, destacou-se a utilização de traço médio e contínuo e a localização no quarto quadrante, como exemplifica a Figura 1. Também foi recorrente a presença de reforços e de representações de articulações, principalmente mediante a execução de figuras com ombros grandes e em linha reta, conforme se vê na Figura 2.

 

 

 

 

Quanto ao tamanho e à proporcionalidade, observou-se a predominância de figuras humanas pequenas, com cabeça grande e pernas finas, em consonância com a Tabela 2. Muitas delas também apresentavam pescoço comprido e fino, bem como cintura demarcada por linha horizontal, a exemplo das Figuras 3 e 4.

 

 

 

 

Já no tocante ao segundo procedimento de análise empregado, pautado na impressão global dos desenhos, o que mais chamou a atenção dos avaliadores foi a postura corporal estática e os traços faciais simplificados. As Figuras 3, 4 e 5 são emblemáticas quanto a essas características.

 

 

DISCUSSÃO

A interpretação de indicadores específicos à luz dos critérios de atribuição de significados estabelecidos em publicações clássicas da área de avaliação psicológica sugere que a localização dos desenhos, por ter sido predominante no quarto quadrante, reflete tendência à passividade, inibição e propensão ao refúgio na fantasia12,17. A mesma interpretação se aplica à prevalência do tamanho pequeno dos desenhos como um todo e, em especial, do tórax das figuras, resultados que também denotam sentimento de inferioridade por parte das participantes, não apenas quanto aos próprios atributos físicos.

O traço médio e contínuo observado na maioria dos desenhos consubstancia a linha de raciocínio precedente, pois foi operacionalizado à custa de reforços nos limites corporais das figuras, sendo que esse expediente é reconhecido como típico de pessoas inseguras24. Considerando-se o tamanho proporcionalmente grande da cabeça das figuras produzidas por algumas participantes, pode-se cogitar, acompanhando van Kolck17, que elas inconscientemente recorrem com frequência à idealização como mecanismo de defesa face à insegurança e à imaturidade que caracterizam sua personalidade.

Em outras palavras, para se protegerem de uma imagem corporal que não lhes oferece o apoio necessário para se relacionarem com o mundo da maneira como gostariam, algumas participantes parecem buscar conforto na representação mental de um "corpo perfeito", do qual, contudo, acabam se sentindo afastadas, o que resulta em sofrimento psíquico. Além disso, o fato de a maioria das participantes ter desenhado figuras femininas mais jovens denota tendência à fixação em uma etapa anterior do desenvolvimento emocional, a qual possivelmente foi promovida por um movimento regressivo motivado por acentuada dificuldade de ajustamento às transições e crises normativas do ciclo vital17.

Tal movimento regressivo é consistente com a propensão ao refúgio na fantasia sugerida pela localização dos desenhos no quarto quadrante, assim como pelo tamanho relativamente grande da cabeça das figuras25. E a presença de representações de articulações na maioria dos desenhos sugere uma rigidez física que, para Levy25, é correlativa de uma rigidez psíquica no que concerne ao manejo de conflitos internos, o que leva a tentativas compensatórias de controle onipotente.

Essa interpretação está em sintonia com aquela defendida por van Kolck17 a propósito da ocorrência de figuras com pescoço comprido e fino, e cintura demarcada com uma linha horizontal. E é oportuno salientar que os conflitos psíquicos aparentemente vivenciados pelas participantes remetem à dificuldade de contato, tanto consigo mesmas quanto com outras pessoas, a julgar pela predominância de figuras com pernas finas e pela ausência de mãos em uma parcela expressiva delas.

Em suma, a efetivação das duas etapas do primeiro procedimento de análise indica que emergiram nos desenhos sinais sugestivos de passividade, insegurança, inibição, sentimento de inferioridade e conflitos relativos a dificuldades de contato, sendo que, nesse cenário, ao serem expostas a situações estressantes e que suscitam frustração, as participantes aparentemente tendem a buscar refúgio na fantasia, recorrendo ainda à regressão, à idealização e a tentativas de controle onipotente. E deve-se ressaltar que a maior parte das características psicológicas referidas não foi associada a mulheres acometidas pela síndrome em pesquisas anteriores.

Além disso, esse conjunto de resultados revela que a imagem corporal das participantes é atravessada por aspectos subjetivos que lhe conferem uma valência essencialmente negativa. Tal valência, ao que tudo indica, é determinada por representações mentais que incluem o corpo, mas não se restringem às suas dimensões biológicas ou às limitações físicas decorrentes das manifestações sintomáticas da fibromialgia.

Consequentemente, parece razoável cogitar que a imagem corporal das participantes, na qualidade de fenômeno de interface, dificilmente funcionará como uma "base de operações" segura para o estabelecimento de relações saudáveis com o próprio corpo, com o outro e com o mundo circundante, o que pode levar à baixa adesão aos tratamentos. Assim, recomenda-se que os profissionais de saúde valorizem a imagem corporal de mulheres com fibromialgia como um dos fatores capazes de influenciar a efetividade da assistência em saúde ofertada a esse público.

Já os achados oriundos da impressão global dos desenhos conduzem a insights adicionais, pois realçam a aparente rigidez, física e psíquica, das participantes, bem como permitem associar tal atributo a um processo de desvitalização. Essa interpretação se ancora na associação livre suscitada pela atenção flutuante mantida pelos avaliadores durante o exame do material, a qual remeteu os mesmos a uma obra do pintor alemão Lucian Freud, neto do criador da Psicanálise, Sigmund Freud. O artista é considerado um dos mais influentes mestres contemporâneos do realismo nas artes plásticas e, como bem observou Smee28, notabilizou-se por retratar corpos humanos em estado de repouso.

Porém, corpos animais, igualmente em estado de repouso, também foram tematizados por Lucian Freud. E é justamente de um desses corpos animais em repouso, por mais inusitado que possa parecer a princípio, que os avaliadores se recordaram ao examinar os desenhos das participantes sem imputar previamente importância particular a indicadores específicos. O corpo animal em pauta foi retratado na tela Dead heron, fruto de um estágio inicial da carreira do artista. Nela se vê, sobre uma bancada, uma ave parcialmente depenada, em rigor mortis. A rigidez física, no caso, é determinada pela contração muscular extrema decorrente do modo como se dá o sacrifício da ave.

Ressalte-se que, ao ser martirizado, qualquer ser vivo tende a contrair-se em um espasmo que representa seu último ato de resistência frente à morte inevitável. Em Dead heron, o artista parece ter buscado captar esse gesto de despedida, congelando seu teor dramático e perenizando esse momento para conferir visibilidade plena ao último brilho do olhar do animal antes de ser submetido ao aniquilamento.

Já em relação aos desenhos das participantes, parece razoável conjecturar que a rigidez física e psíquica resultaria da perda da vitalidade associada, de uma forma ou de outra, à fibromialgia e, em especial à dor física crônica que ocupa lugar central na composição de seu quadro clínico. Tal linha de raciocínio encontra respaldo nas formulações de Le Breton29, autor que, a partir de uma leitura antropológica, afirmou que a dor física equivale a uma incrustação da morte na existência. Ou seja, tanto os desenhos das participantes quanto a tela de Lucian Freud revelariam, com certas especificidades, matizes da condição mortal que ronda os seres vivos, inapelavelmente fadados à deterioração orgânica e ao desenlace da finitude.

Aprofundando essa linha de raciocínio, cabe enfatizar que a dor física, em especial quando se torna crônica e mesmo que não esteja associada a uma condição fatal, como ocorre na fibromialgia, aprisiona o indivíduo em uma espécie de armadura de um corpo ainda vivo e pulsante, cuja relação com a totalidade de seu mundo, contudo, é drasticamente desvitalizada. Assim, a mortificação do corpo produzida pela dor física se afiguraria, segundo Le Breton29, como uma espécie de possessão corrosiva e devoradora.

O autor propôs outra comparação entre a dor física e a morte ao enquadrá-las como as experiências humanas mais compartilhadas, já que ninguém pode escapar tanto de uma quanto da outra por toda a vida. Não obstante, um esclarecimento se faz necessário: a rigidez física e psíquica atribuída às participantes não parece decorrer de uma suposta morbidez, entendida como fixação psíquica ao tema da morte, mas, sim, de uma ampla gama de características psicológicas que determinam a valência negativa com que a imagem corporal é investida por essas mulheres.

Diante do exposto, nota-se que tanto o primeiro quanto o segundo procedimento de análise empregados permitem sustentar que, em contraste com o que uma leitura mais superficial poderia levar a crer, não seria o caso de se afirmar que as participantes apresentam uma imagem corporal distorcida. Fazê-lo implicaria em rejeitar o papel de elementos subjetivos no complexo e dinâmico processo de criação e recriação da imagem corporal ao longo do ciclo vital, como se essas vicissitudes pudessem ser pautadas apenas em elementos objetivos.

Além disso, como propôs Casetto3 ao ensaiar uma ampliação das formulações de Schilder1, talvez a imagem corporal seja mais do que uma figuração do corpo na mente. Para o autor, seria razoável, enquanto fenômeno de interface, considerar a imagem corporal uma espécie de corporificação do psiquismo. Os resultados obtidos no presente estudo fornecem substrato empírico que reforçam essa hipótese, porém são necessárias novas pesquisas para que se possa corroborar tal proposição.

Por fim, consubstanciando a originalidade dos achados aqui reportados, proceder-se-á ao cotejamento entre os mesmos e aqueles provenientes de pesquisas prévias, consagradas especificamente à imagem corporal de mulheres com fibromialgia. Em uma dessas pesquisas, desenvolvida no contexto brasileiro por Mello e Marques10, verificou-se a recorrência de distúrbios da imagem corporal que se mostraram derivados da dor física e de alterações posturais. No presente estudo, em contrapartida, os traços depreciativos da imagem corporal das participantes parecem ter como origem primária conteúdos psíquicos, em especial inconscientes.

Há que se observar ainda que o instrumento utilizado por Mello e Marques10 foi o Teste de Askevold. Assim, a tarefa proposta às participantes foi registrar, em uma folha de papel fixada na parede, a localização de uma série de pontos anatômicos à medida que eles eram tocados pelas pesquisadoras. Logo, a folha de papel deveria ser tomada como um espelho proprioceptivo. O referido instrumento, portanto, parece mais voltado à avaliação da percepção do esquema corporal do que da imagem corporal.

O presente estudo também se distingue das pesquisas desenvolvidas por Boyington, Schoster e Callahan8 nos Estados Unidos e por Akkaya et al.9 na Turquia, ambas com a participação de mulheres com fibromialgia. Na primeira, o instrumento utilizado foi uma entrevista semiestruturada conduzida por telefone e direcionada a elementos perceptuais da imagem corporal. Na segunda, empregou-se a Body Image Scale (BIS), uma escala que privilegia a avaliação da satisfação corporal, considerada um aspecto atitudinal da imagem corporal.

Dessa forma, tanto Boyington, Schoster e Callahan8 quanto Akkaya et al.9 constataram que perturbações da imagem corporal são frequentes nesse público e estariam diretamente relacionadas ao impacto da síndrome conforme estimado por parâmetros, sobretudo físicos, que podem ser avaliados mais objetivamente. O presente estudo, por outro lado, se concentrou em aspectos subjetivos da imagem corporal. Tal fato limita o alcance de comparações entre as referidas pesquisas e o presente estudo em termos de seus resultados.

Deve-se sublinhar que o presente estudo possui limitações. Devido à ausência de um grupo-controle e, em especial, à utilização de uma amostra de conveniência, os resultados obtidos não se prestam a generalizações estatísticas. Ademais, como em qualquer estudo observacional de corte transversal, os achados retratam a situação de um grupo de pessoas quanto às variáveis de interesse em um momento específico. Não obstante, do presente estudo é possível extrair a hipótese, a ser testada em pesquisas futuras, de que a imagem corporal de mulheres com fibromialgia não corresponde diretamente às sensações corporais despertadas conscientemente pela síndrome.

Em conclusão, a imagem corporal das participantes apresenta uma valência essencialmente negativa, uma vez que é moldada subjetivamente por concepções internalizadas e inconscientes pouco favoráveis sobre si mesmas. Na maioria dos casos, a intensidade de tal valência negativa ultrapassa significativamente aquela que seria esperada se fossem levadas em conta objetivamente apenas as repercussões físicas da fibromialgia.

Agradecimentos

À Associação dos Reumáticos de Uberlândia e Região (ARUR), pela colaboração indispensável à realização do presente estudo.

Financiamento

FAPEMIG (Processo PPM-00290-18) e CNPq (Processo 307100/2016-2).

 

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Endereço para correspondência:
rodrigosanchesperes@yahoo.com.br

Recebido: Março 2019
Analisado: Outubro 2019
Aceito: Setembro 2020

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