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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.30 no.3 São Paulo set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.7322/jhgd.v30.11111 

ARTIGO ORIGINAL

 

Punição física em casa e reprovação escolar relacionadas ao bullying

 

 

Marcela Almeida ZequinãoI; Wanderlei Abadio de OliveiraII; Pâmella de MedeirosIII; Paola CidadeIV; Beatriz PereiraV; Fernando Luiz CardosoVI

IProfessora Doutora da Universidade do Estado de Santa Catarina, Departamento de Educação Física (UDESC/ CEFID), Florianópolis, SC 88080- 350, Brasil
IIProfessor Doutor do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Campinas, SP 13060-904, Brasil
IIIProfessora Doutora da Universidade do Estado de Santa Catarina, Departamento de Educação Física (UDESC/ CEFID), Florianópolis, SC 88080- 350, Brasil
IVMestranda Programa de Pós-graduação em Ciências do Movimento Humano. Departamento de Ciências da Saúde da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, Coqueiros - Florianópolis. Brasil
VProfessora Catedrática do Instituto de Educação da Universidade do Minho e Pesquisadora do Centro de Investigação em Estudos da Criança, Braga, 4710-070, Portugal
VIProfessor Doutor dos Programas de Pós-graduação em Ciências do Movimento Humano e do programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina. Departamento de Ciências da Saúde. Coqueiros - Florianópolis. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: Várias situações podem afetar o desenvolvimento e a saúde de crianças e adolescentes em idade escolar. O bullying, que se caracteriza por um conjunto de comportamentos agressivos, intencionais e repetitivos, marcado pelo desequilíbrio de poder entre vítimas e agressores, é uma das mais graves problemáticas nesse sentido, pois ocorre em um contexto em que se pressupõe segurança e o desenvolvimento da sociabilidade. Por isso esse estudo foi desenvolvido, para ampliar a compreensão sobre esse fenômeno, contemplando variáveis ignoradas em muitos estudos (interações familiares, modos de disciplina e fracasso escolar
OBJETIVO: Analisar a participação de estudantes em situações de bullying e suas experiências de vulnerabilidade "apanhar em casa" e "reprovação escolar"
MÉTODO: Participaram do estudo 409 estudantes, entre 8 e 16 anos, do 3º ao 7º ano do Ensino Fundamental de duas escolas públicas. Os dados foram coletados por meio de um questionário com perguntas estruturadas com finalidade de descrever os possíveis papéis de participação no bullying e caracterizar os estudantes quanto ao contexto de vulnerabilidade social em que se encontravam. Foram considerados como indicadores de vulnerabilidade: renda per capita, escolaridade da população adulta, condições de moradia e índices de criminalidade/violência. Duas escolas foram cenário da pesquisa. Os dados foram analisados por meio de estatística inferencial com o uso dos testes Qui-quadrado, para verificar a associação entre as variáveis, U de Mann-Whitney e Kruskal Wallis para comparação entre grupos
RESULTADOS: Encontrou-se que apanhar em casa foi associado ao envolvimento dos estudantes em situações de bullying como vítimas, vítimas-agressoras e agressores. Esses estudantes também se diferenciaram em relação aos anos de reprovação escolar e frequência de punição física quando comparados com estudantes não envolvidos em situações de bullying. Estudantes classificados como vítimas-agressoras demonstraram maior vulnerabilidade em relação às variáveis investigadas. Não houve diferenças significativas na comparação entre o sexo dos participantes e o envolvimento em situações de bullying
CONCLUSÃO: Observou-se que a punição física utilizada como estratégia de disciplina em casa e a reprovação escolar são fatores que aumentam a vulnerabilidade dos estudantes em relação à prática do bullying ou à vitimização. Os dados sinalizam que é necessário incluir as famílias nas ações de intervenção antibullying. Ao mesmo tempo, é preciso considerar que essa inclusão não deve ficar restrita ao campo da educação ou da escola. É preciso pensar de forma intersetorial, principalmente incluindo as equipes de saúde da família que possuem momentos junto às famílias e que podem ser utilizados para pensar as técnicas de disciplina e o modo como os filhos, crianças e adolescentes são disciplinados em casa

Palavras-chave: vulnerabilidade social, violência, bullying.


 

 

Síntese dos autores

Por que este estudo foi feito?

Várias situações podem afetar o desenvolvimento e a saúde de crianças e adolescentes em idade escolar. O bullying é uma das mais graves problemáticas nesse sentido, pois ocorre em um contexto em que se pressupõe segurança e o desenvolvimento da sociabilidade. Por isso esse estudo foi desenvolvido, para ampliar a compreensão sobre esse fenômeno, contemplando variáveis ignoradas em muitos estudos (interações familiares, modos de disciplina e fracasso escolar).

O que os pesquisadores fizeram e encontraram?

Foi desenvolver essa pesquisa foram coletados dados por meio de questionários. Os alunos respondiam a questionários de perguntas estruturadas. O principal resultado do estudo se refere à indicação de que métodos de disciplina severos aumentam a chance dos estudantes se tornarem agressores, vítimas ou vítimas-agressoras no contexto escolar.

O que essas descobertas significam?

Os dados sinalizam que é necessário incluir as famílias nas ações de intervenção antibullying. Ao mesmo tempo, é preciso considerar que essa inclusão não deve ficar restrita ao campo da educação ou da escola. É preciso pensar de forma intersetorial, principalmente incluindo as equipes de saúde da família que possuem momentos junto às famílias e que podem ser utilizados para pensar as técnicas de disciplina e o modo como os filhos, crianças e adolescentes são disciplinados em casa.

 

INTRODUÇÃO

O bullying escolar é considerado um conjunto de comportamentos agressivos, intencionais e repetitivos, marcado pelo desequilíbrio de poder entre vítimas e agressores1. O fenômeno, em geral, não possui motivação evidente e causa dor, angústia e sofrimento às vítimas, refletindo negativamente no estado emocional e psicológico dos envolvidos2. Esse tipo de violência não possui ampla visibilidade no cenário escolar, pois ele pode se manifestar de forma sigilosa ou despercebida (insultos, apelidos, fofocas ou isolamento, por exemplo), não apenas em suas formas explícitas ou diretas (como as agressões físicas, por exemplo) que podem ser facilmente identificadas3. Esse aspecto faz com que a vítima não receba ajuda ou procure suporte para lidar com a situação, uma vez que a relação com os pares agressores é marcada por um desequilíbrio simbólico de poder.

Segundo a literatura especializada, o bullying ocorre, principalmente, nos anos escolares iniciais, sendo mais prevalente entre os alunos mais jovens que são, significativamente, mais envolvidos nos comportamentos de vitimização e de duplo envolvimento (vítimas-agressoras)4. Os momentos de transição escolar, de um ciclo pedagógico para outro também são considerados como de maior possibilidade para ocorrência do fenômeno2. Por outro lado, os meninos se envolvem em maior número nos comportamentos de bullying escolar quando comparados às meninas5.

No Brasil, as taxas de prevalência do bullying são altas. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), em suas três edições (2009, 2012 e 2015) e desenvolvida com mais de 100.000 estudantes do 9º ano de todo país, a taxa de vitimização é de 7% e a de prática de bullying é de 20%, em média6. Em outros estudos nacionais, na capilaridade das regiões e capitais, índices de prevalência altos e variáveis foram identificados7, o que é justificado pelas questões sociais e culturais de cada região. Esses dados são corroborados por estudos internacionais que analisam aspectos relacionados às taxas de ocorrência do fenômeno8.

Percebe-se, dessa forma, que o envolvimento nesse tipo de violência pode se diferenciar de acordo com as experiências, os papéis sociais e as práticas de relacionamento interpessoal modeladas pela cultura dos sujeitos9. Assim sendo, como ocorre em todo fenômeno social e de grupo, o bullying se configura como problemática complexa, o que exige investigações mais abrangentes e aprofundadas a respeito não apenas de variáveis relacionadas ao contexto escolar, mas incluindo variáveis de família, sociais, comunitárias e culturais. O estudo relacionado às diferentes nuances que ele pode apresentar nas múltiplas realidades socioculturais são de fundamental importância para a sua prevenção e enfrentamento10.

No Brasil, especificamente, várias cidades metropolitanas apresentam crianças e adolescentes que vivem em condições e contextos sociais desfavoráveis. Níveis elevados de desigualdade social e de acesso a serviços públicos com menor qualidade colocam essa população em situação de vulnerabilidade social e programática. Essa vulnerabilidade é complexa, multifacetada, ultrapassa as questões da saúde, da vida social, dos contextos educativos, das organizações simbólicas, das questões étnicas, dos campos de trabalho, bem como das políticas públicas em geral, no que se refere às condições de vida e suportes sociais, que são fragilizados1. Quando aliada às difíceis condições socioeconômicas, ela proporciona grande tensão entre os jovens, o que dificulta os processos de integração social, fomentando o aumento da violência, o que pode repercutir nas relações entre pares nas escolas.

Nesse debate, é relevante considerar que punições físicas empregadas por pais, responsáveis ou cuidadores na disciplina de crianças e adolescentes ampliam a vulnerabilidade dos estudantes para a vitimização ou a prática de bullying na escola11. O mesmo pode ser compreendido sobre as situações de fracasso escolar que são medidas, sobremaneira, pelas experiências de reprovação (retenção em um determinado ano de ensino)12. Essas duas variáveis (punição física e reprovação escolar) podem ser consideradas como situações de vulnerabilidade social, pois são reflexo dos processos sociais relacionados à tolerância à violência ao aos modelos pedagógicos pautados apenas na lógica conteudista e não no desempenho particular de cada estudante.

Assim sendo, considerando que o envolvimento nas situações de bullying tem uma tendência de crescimento quando se aumentam os fatores de vulnerabilidade que afetam as crianças e adolescentes para além dos muros da escola1 se projetou esse estudo. Assim, o objetivo é analisar a participação de estudantes em situações de bullying e suas experiências de vulnerabilidade "apanhar em casa" e "reprovação escolar".

 

MÉTODO

Desenho da Pesquisa

Trata-se de um estudo com amostragem intencional (estratos/escolas), observacional e com desenho transversal, cujo objetivo é obter dados fidedignos que ao final da pesquisa irão permitir elaborar conclusões confiáveis, robustas, além de gerar novas hipóteses. Esse desenho, possui como vantagem o fato de permitir a observação direta pelo pesquisador dos fenômenos a pesquisar, em realizar a coleta de dados em curto espaço de tempo, sem a necessidade de acompanhamento dos participantes, produzindo mais rapidamente os resultados, sendo úteis para estudar prevalências13.

Local e Período do Estudo

Este estudo foi realizado na região metropolitana de Florianópolis, Santa Catarina, entre os meses de fevereiro e dezembro de 2012. A seleção das escolas participantes foi intencional e atendeu às indicações da Secretaria de Educação do município sobre aquelas que estavam inseridas em regiões de maior vulnerabilidade social. Foram considerados como indicadores de vulnerabilidade: renda per capita, escolaridade da população adulta, condições de moradia e índices de criminalidade/violência. Duas escolas foram cenário da pesquisa.

População do Estudo e Critérios de Inclusão

Após a seleção das escolas, todos os alunos do 3º ao 7º ano do Ensino Fundamental foram convidados para participarem do estudo. A literatura científica justificou a escolha desses anos escolares, pois há uma maior ocorrência do bullying nos anos iniciais, além de nesses períodos os estudantes apresentarem capacidade para responderem o instrumento de coleta de dados. O único critério de exclusão adotado no recrutamento dos participantes foi: apresentar alguma deficiência intelectual que impedisse a compreensão e o manejo do instrumento autoaplicável. A partir do número de alunos matriculados nas escolas e de um cálculo amostral que assumiu alfa de 0.5 e poder de 50%, esperava-se o mínimo de 316 participantes. O tamanho da amostra final foi de 409 estudantes, embora em algumas tabelas o número de participantes se mostre inferior em função dos mesmos deixarem de responder determinadas questões que foram considerados como "missing" nas análises.

Os participantes apresentaram idade compreendida entre 8 e 16 anos, com média de 11,1 anos para os meninos (n=207) e 10,9 anos para as meninas (n=202). A mobilidade escolar dos participantes se mostrou equivalente para ambos os sexos, com frequência média de 2,5 escolas para os meninos e 2,4 escolas para as meninas. As mudanças de residência também apresentaram semelhanças com uma média de 1,8 mudanças para ambos os sexos. Em relação à cor da pele, os meninos se autodeclararam caucasianos (68,6%), morenos (15,9%), pretos (9,7%) e pardos (5,8%); enquanto as meninas se autodeclararam caucasianas (73,3%), morenas (15,8%), pretas (8,9%) e pardas (2,0%).

Coleta de Dados

Primeiramente a Secretaria de Educação do munícipio de Florianópolis foi contata para seleção das escolas inseridas em contextos de vulnerabilidade social. Selecionadas as escolas, os diretores foram convidados para aderirem à pesquisa. Os participantes foram devidamente esclarecidos sobre a pesquisa e explicitaram seu consentimento em participar da pesquisa por meio do Termo de Assentimento (TA), o qual foi elaborado em linguagem clara e acessível para os menores de idade. Posteriormente, pais/responsáveis/cuidadores e estudantes receberam informações sobre os objetivos e métodos do estudo. Por fim, após recolhimento dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido assinados por pais, responsáveis ou cuidadores, os estudantes responderam de forma voluntária e coletivamente o instrumento de auto relato na coleta de dados14. A aplicação do questionário foi conduzida por dois pesquisadores treinados e durava, em média, 40 minutos.

Utilizou-se um instrumento para descrever os possíveis papéis de participação no bullying e caracterizar os estudantes quanto ao contexto de vulnerabilidade social em que se encontravam. Esse instrumento foi baseado em questões do Questionário de Olweus15. Sobre o bullying, perguntava-se aos estudantes quantas vezes, nos últimos três meses de aula, eles tinham sido vítima ou agressor de bullying escolar. Assim, os participantes foram classificados em 4 grupos: "não participante", "vítima", "agressor" e "vítima-agressora". As variáveis relacionadas à vulnerabilidade foram: experiência de apanhar em casa e reprovar de ano na escola (frequências desse episódio). As seguintes perguntas foram realizadas: Você já apanhou em casa?, com opção de resposta dicotômica "sim" ou "não"; Com que frequência isso acontece?, com opções em sistema Likert de cinco pontos (1 = nunca, 2 = pouco, 3 = às vezes, 4 = frequentemente, 5 = sempre); Você já reprovou de ano na escola alguma vez?, com opção de resposta dicotômica "sim" ou "não"; e Quantos anos?, com opção de resposta aberta.

Analise dos dados

Inicialmente utilizou-se o teste de normalidade de Kolmogorov Smirnov para verificar se os mesmos atendiam os pressupostos paramétricos. Como a distribuição dos dados não foi normal se empregou na análise estatística descritiva e estatística inferencial por meio dos testes Qui-quadrado, para verificar a associação entre as variáveis, U de Mann-Whitney e Kruskal Wallis para comparação entre grupos.

Os dados da pesquisa foram tabulados e analisados no programa Statistical Package for the Social Science (SPSS for Windows) versão 20.0, e foi adotado um intervalo de confiança de 95% (p<0,05).

Aspectos Éticos e Legais da Pesquisa

Em relação as questões éticas, a pesquisa foi aprovada por um Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos de uma universidade pública do Estado de Santa Catarina (Parecer 5439/2011).

 

RESULTADOS

Verificou-se que as meninas eram mais vítimas (19,5%) e vítimas-agressoras (5,6%) quando comparadas aos meninos (14,6% e 4,1% respectivamente). Entretanto os meninos tiveram maior percentual (10,6%) do que as meninas (5,6%) no que se refere à prática do bullying. Todavia, embora existam essas diferenças nos percentuais, não se verificou associação entre os sexos e os papéis no bullying em termos de vítima, agressor ou vítima-agressora, indicando uma homogeneidade destes comportamentos entre meninos e meninas (Tabela 1).

Aproximadamente 63,0% tanto dos meninos quanto das meninas responderam que já haviam apanhado em casa, porém a maioria respondeu que isso ocorria pouco no momento da coleta de dados. Por outro lado, 48,5% dos meninos e 40,0% das meninas relataram já ter vivenciado experiências de reprovação escolar. Esses dados podem ser conferidos na Tabela 2.

Foram realizados cruzamentos entre as variáveis do estudo e encontrou-se que a variável "apanhar em casa" se associou significativamente entre todos os grupos de estudantes. Aqueles que não participaram de situações de bullying foram os que menos apanharam (57,8%), seguidos das vítimas (67,2%), dos agressores (71,9%) e por último, pelas vítimas-agressoras (94,7%), conforme se verifica na Tabela 3.

Encontrou-se ainda que os papéis de participação no bullying se diferenciaram significativamente em relação à idade, anos de reprovação na escola e a frequência que se apanhava em casa. Verificou-se que as vítimas eram significativamente mais novas do que as vítimas-agressoras. Por fim, aqueles que não participam do bullying foram os que menos reprovaram e que não apanharam ou apanharam com menor frequência em casa. As vítimas-agressoras foram as que mais vivenciaram essas situações. Esses dados estão apresentados na Tabela 4.

 

DISCUSSÃO

Esse estudo objetivou analisar a participação de estudantes em situações de bullying e as experiências de vulnerabilidade "apanhar em casa" e "reprovação escolar", em escolas da região metropolitana de Florianópolis. Identificou-se uma prevalência de aproximadamente 30,0% dos participantes envolvidos em alguma situação de bullying escolar, bem como alta prevalência de relatos de apanhar em casa pelo menos uma vez e reprovação escolar. Além disso, apanhar em casa foi associado aos papéis de participação no bullying, principalmente em relação as vítimas-agressoras. Da mesma forma, verificou-se que quando comparados os grupos, as vítimas-agressoras foram as que mais apresentaram fatores vulnerabilizantes no que tange às experiências de punição física e reprovação.

Nota-se que em relação ao envolvimento dos participantes em situações bullying escolar, identificou-se número de envolvidos superiores aos dados encontrados no cenário nacional, conforme documentado pela Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar6. A prevalência encontrada ainda foi maior do que as encontradas em estudos nos EUA, Inglaterra, Japão, Irlanda, Austrália e Canadá, que ficaram entre 15,0% e 20,0%16.

Um dos fatores que pode ter contribuído para essa maior prevalência de participação no bullying em relação aos estudos citados é a banalização que a violência possui em comunidades marcadas pela vulnerabilidade social. Esse cenário faz com que os envolvidos neste fenômeno tenham uma percepção deturpada sobre violência interpessoal, descrevendo comportamentos violentos como aceitáveis, mesmo quando estes são intensos e frequentes, considerando somente atos violentos aqueles que causam danos físicos graves aos outros17.

Salienta-se, assim, que o bullying escolar não deve ser considerado uma característica típica do desenvolvimento de crianças e adolescentes, e sim um fator de risco para o abandono escolar e para a adoção de comportamentos violentos e de delinquência em outros momentos do ciclo vital2. Nos países em desenvolvimento, segundo a literatura científica, essa realidade parece se agravar, não somente no que se refere aos níveis e taxas de ocorrência do fenômeno bullying, mas também pela baixa incorporação da temática nas políticas públicas, em práticas curriculares transversais e mesmo pelo campo da ciência18. No caso do Brasil, por exemplo, desde 201519 está sancionada a lei que preconiza o enfrentamento da questão, mas ainda não foram divulgadas iniciativas antibullying com real impacto na realidade das escolas.

Em outra perspectiva, quando os dados são comparados com outros estudos regionais ou locais, percebe-se um cenário semelhante ao encontrado por essa pesquisa. Por exemplo, em um levantamento feito por Lopes Neto e Saavedra20, verificou-se que dos 40,5% de uma amostra de 5.500 estudantes que estavam envolvidos em situações de bullying sendo que 16,9% eram vítimas, 12,7% eram agressores e 10,9% eram vítimas/agressoras. No que tange as vítimas, embora o número encontrado seja equivalente aos achados no estudo desenvolvido pela ABRAPIA no Rio de Janeiro20, é inferior aos achados de Carvalhosa et al.21, em que 24,1% dos participantes foram classificados como vítimas e superior aos de Freire, Simão e Ferreira22 em que apenas 4,5% dos alunos encontravam-se nessa condição.

Com relação aos agressores, este estudo apresentou dados superiores aos de Freire et al.22, que relataram apenas 2,5% dos participantes desempenhando tal papel, mas inferiores aos de Carvalhosa et al.21. e Lopes Neto e Saavedra20, que encontraram 10,2% e 12,7% respectivamente. Quando analisados os casos de duplo envolvimento, o número foi bastante inferior ao encontrado nos estudos da ABRAPIA20, que revelaram 10,9% dos participantes nesta situação.

Quando separados por sexos, as prevalências encontradas em relação às vítimas e aos agressores também apresentaram semelhanças e divergências em relação a outros estudos divulgados. Em relação às vítimas, 14,5% dos meninos e 19,5% das meninas assumiram este papel no presente estudo, enquanto no estudo de Carvalhosa et al.21, foi encontrado um número superior para os meninos vitimizados, referente a 23,6% dos mesmos, tendo as meninas um valor igual ao do presente estudo. No que tange o número de agressores, encontrou-se um valor de 10,6% para os meninos e 5,6% para as meninas. Este dado foi inferior ao estudo de Carvalhosa et al.21 para ambos os sexos, no qual 11,2% dos meninos e 9,2% das meninas relataram serem agressores.

Ainda em relação aos papéis no bullying, verificou-se que embora algumas diferenças nas frequências de participação no bullying entre meninos e meninas tenham sido encontradas não houve associação entre as variáveis "papéis de participação no bullying" e "sexo", indicando uma homogeneidade entre os participantes independentemente de serem meninos ou meninas. Contudo, a maior participação numérica dos meninos vai de encontro a diversos estudos que vêm apontando os meninos como os mais envolvidos no bullying5. Isso pode ser explicado pelas características sociais e culturais que tendem a associar o masculino à maior expressão de comportamentos agressivos ou de violência23.

Neste contexto, as variáveis analisadas, apanhar em casa e reprovação escolar, apresentaram altas prevalências. Quando feitas inferências sobre essas variáveis, confirmou-se que os indivíduos que não participam do bullying são os que menos as apresentaram, enquanto as vítimas-agressoras foram as que mais as apresentaram. Assim sendo, o bullying, enquanto um fenômeno composto por múltiplas dimensões, precisa ser avaliado na comunidade interna e externa ao contexto escolar, procurando compreender também as estruturas familiares.

Essas características encontradas neste estudo ainda assinalam um fenômeno denominado violência doméstica que, segundo o Ministério da Saúde e a Fundação Oswaldo Cruz, é definido como maneiras agressivas e violentas da família se relacionar, solucionar conflitos ou educar, além da falta de cuidados básicos com os filhos e a exposição dos mesmos a situações violentas em casa, na escola, na comunidade ou na rua. Nossos achados também vão ao encontro do estudo de Gabatz, Neves, Beuter e Padoin24, nos quais estimaram-se que 600 mil crianças e adolescentes são vítimas de diversas formas de violência doméstica e/ou intrafamiliar. Essas crianças e adolescentes acabam tornando-se mais propensos a prejuízos no desenvolvimento, a serem mais agressivos ou se tornarem vítimas de abuso na escola, repetindo e externalizando a agressividade vivenciada na família25.

Esse processo pode ser explicado pela Teoria da Aprendizagem Social. Segundo essa teoria, a observação ou a vivência de situações conflituosas/violentas na família promovem aprendizados por imitação e se constituem como modelos de padrões cognitivos e de condutas que são reproduzidos em outros ambientes26. Nesses casos, a violência passa a ser considerada uma maneira adequada para resolver conflitos e, por exemplo, até 70% dos agressores de bullying escolar provavelmente cometerão ato criminoso na idade adulta, em função dos problemas de conduta decorrentes da reprodução e repetição de comportamentos violentos que foram internalizados25. Essa lógica reforça a ideia difundida por diversos estudos que consideram os lares violentos como fatores de risco para o desenvolvimento de comportamentos inadequados como o bullying27.

Sobre o alto índice de reprovação escolar, literatura aponta uma forte relação entre envolvimento no bullying e fracasso escolar, na qual ambas as situações podem ser causa ou consequência. Estudantes com menor desempenho acadêmico e altas taxas de reprovação apresentam maiores chances de desvinculação escolar, evasão e manifestação de problemas comportamentais, que se dão principalmente em função da frustração em relação à capacidade para a aprendizagem, podendo contribuir fortemente para a ocorrência de bullying na escola1.

Em contrapartida, um bom desempenho ou o sucesso escolar pode exercer efeito protetivo, dimunuindo o surgimento de problemas de ordem psicossociais e comportamentais, por acrescentar à experiência educacional elementos positivos, como o interesse pelos conteúdos aprendidos ou pela relação com os pares. Por outro lado, no que se refere especificamente ao processo ensino-aprendizagem, os estudantes envolvidos no bullying podem apresentar fracasso, reprovação ou abandono escolar, assim como episódios de indisciplina28.

Por fim, embora reconhecendo que esse estudo contribui para ampliar o debate sobre o bullying escolar e algumas variáveis contextuais a ele relacionadas, seus resultados devem ser interpretados à luz de suas principais limitações. Em primeiro lugar, o delineamento transversal impede a realização de inferências sobre direção das relações identificadas, não permitindo o estabelecimento de causalidades. Novos estudos podem adotar delineamento longitudinal, possibilitando assim, o acompanhamento de alterações ocorridas ao longo do tempo, identificando os efeitos exercidos por diferentes variáveis em situações de bullying. Outra limitação se refere à avaliação da situação de vulnerabilidade social dos participantes que não foi realizada de forma direta. Da mesma forma, não foram coletados dados de outros grupos de estudantes que não apresentassem vulnerabilidade social, o que limita a interpretação dos resultados em termos comparativos. Outras pesquisas podem incluir grupos de comparação entre diferentes realidades sociais e a partir do estabelecimento direto do perfil de vulnerabilidade social dos estudantes.

 

CONCLUSÃO

Salienta-se que, ao objetivar analisar a participação de estudantes em situações de bullying e suas experiências de vulnerabilidade "apanhar em casa" e "reprovação escolar", esse estudo revelou que os estudantes sem envolvimento com as situações de violência na escola relataram menos experiências de punição física e reprovação escolar. Tal resultado permite inferir, inversamente, que práticas de disciplina parental adequadas e o sucesso escolar são fatores protetivos em relação ao bullying. A situação das vítimas-agressoras se destacou nesse cenário, exigindo maior atenção desse grupo por outros estudos e estratégias de intervenção antibullying. Ao mesmo tempo, outras variáveis relacionadas ao sexo e que impactam na dinâmica do bullying devem ser exploradas por outros estudos, pois os dados apresentados não são conclusivos.

Esses resultados têm implicações para o campo da saúde e para o campo da educação. Como houve uma alta taxa de prevalência de bullying os programas de intervenção devem ser intersetoriais, focalizados na melhora do desempenho acadêmico dos estudantes, bem como no desenvolvimento de sentimentos de empatia e solidariedade, por exemplo, que podem diminuir a ocorrência do fenômeno. As equipes de saúde, sobretudo na atenção primária, podem auxiliar as famílias no fortalecimento de vínculos e na adoção de práticas de disciplinas mais positivas ou dialógicas. Os programas de intervenção devem também visar o fortalecimento das relações entre pares para promover um sistema de apoio social nas escolas. Isso pode ser realizado pelos profissionais da educação e equipes de saúde que desempenhem ações vinculadas ao Programa Saúde na Escola.

Contribuições dos autores

Marcela Almeida Zequinão: Delineamento do estudo, tabulação dos dados, análise estatística, preparação e redação do manuscrito.

Wanderlei Abadio de Oliveira: Delineamento do estudo e redação do manuscrito.

Pâmella de Medeiros: Coleta de dados, tabulação dos dados e redação do manuscrito.

Paola Cidade Cordeiro: Coleta de dados, tabulação dos dados e preparação do manuscrito.

Beatriz Pereira: Orientação do projeto e descrição.

Fernando Luiz Cardoso: Orientação do projeto, supervisão e revisão do manuscrito.

Financiamento

Este estudo foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, PNPD / CAPES nº. 1663167. UNIEDU - Programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina.

Agradecimentos

Agradecemos o apoio de todas as escolas participantes desta pesquisa.

Conflitos de interesse

Não há conflitos de interesse.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Marcela Almeida Zequinão
marcelazequinao@gmail.com

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