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Journal of Human Growth and Development

versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598

J. Hum. Growth Dev. vol.32 no.2 Santo André maio/ago. 2022

http://dx.doi.org/10.36311/jhgd.v32.10856 

ARTIGO ORIGINAL

 

Percepções de profissionais do sexo sobre o cuidado recebido no contexto assistencial à saúde

 

 

Beatriz Guerta PastoriI; Andrei Biliato ColmanettiII; Claudia de Azevedo AguiarIII

IUniversidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil
IIUniversidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil
IIIDepartamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), Uberaba, MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: as profissionais do sexo se configuram como um grupo historicamente marginalizado por se desviarem do padrão de comportamento moral e social ditado pelos dogmas conservadores sobre os quais o Brasil foi erguido. Tal exclusão está expressa também nas políticas públicas de saúde, nas quais o grupo é citado apenas em ações e programas voltados às infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), o que fere os princípios doutrinários e organizativos propostos pelo SUS. O presente trabalho objetiva analisar o cuidado recebido no contexto assistencial à saúde a partir da ótica das profissionais do sexo
MÉTODO: Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, de abordagem qualitativa, que teve como referencial de análise o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), construído a partir de entrevista semiestruturada realizada com o grupo em questão. O DSC é um método que reúne as opiniões e expressões individuais semelhantes em um depoimento único, redigido em primeira pessoa do singular, que dá voz a essa coletividade. A coleta foi auxiliada pelos agentes comunitários de saúde (ACS) da Unidade de Saúde da Família que abrange o território das casas de prostituição do município
RESULTADOS E DISCUSSÃO: Foram entrevistadas 22 prostitutas, sendo 19 mulheres cis e 3 mulheres trans ou travestis, as quais, em sua maioria, encontravam-se em situação de vulnerabilidade social - raça preta ou parda, pouca escolaridade e baixa renda. Identificou-se nos discursos a existência de uma assistência em saúde que não atende as demandas específicas dessa população, além da presença de um cuidado fragmentado e centrado na saúde sexual e ginecológica. As entrevistadas trans ou travestis relataram, além disso, forte resistência quanto à identidade de gênero e respeito ao nome social por parte da equipe. Ademais, houve expressões de medo em revelar a profissão durante as consultas, devido ao estigma e preconceito recaídos sobre elas. Ainda assim, essas profissionais entendem que suas necessidades em saúde são supridas no SUS, o que conota uma visão resignada frente às lacunas da rede de atenção, requerendo ações, programas e políticas de saúde voltadas a esta população
CONSIDERAÇÕES FINAIS: As profissionais do sexo fazem parte de um recorte da sociedade que sofre diariamente com estigma sobre seu padrão de comportamento sexual, vivendo em importante condição de vulnerabilidade social. Isto se reflete em medo de buscar atendimento médico e de revelar a profissão, acarretando lacunas no acesso e direito à saúde desta população. Faz-se necessário, portanto, criação de programas e políticas de saúde específicas e (re)qualificação das equipes de saúde para o manejo destas pacientes

Palavras-chave: profissionais do sexo, assistência à saúde, sistema único de saúde, discurso do sujeito coletivo.


 

 

Síntese dos autores

Por que este estudo foi feito?

Este estudo foi idealizado e executado a partir da inquietação dos autores acerca das condições de saúde de profissionais do sexo de um município no interior de Minas Gerais. Pretendia-se compreender, a partir da perspectiva dessas profissionais, como ocorre o acesso aos serviços da rede de atenção e como se dá o cuidado à saúde dessas mulheres vulneráveis e alvo de grande estigma social.

O que os pesquisadores fizeram e encontraram?

Foram feitas entrevistas com profissionais do sexo, em seus locais de trabalho (casas de prostituição da cidade), por meio de um instrumento contendo questões sobre o acesso aos serviços de saúde e suas percepções sobre o cuidado recebido. A partir da análise dos dados, por meio do Discurso do Sujeito Coletivo, foi identificada a presença de uma assistência em saúde que não atende as demandas específicas das profissionais do sexo, além da presença de um cuidado fragmentado e centrado apenas em sua saúde sexual e ginecológica.

O que essas descobertas significam?

Os resultados apontam para a emergente necessidade de serem implementadas políticas de saúde específicas aos profissionais do sexo, bem como a (re)qualificação das equipes de saúde e gestão dos serviços para o atendimento humanizado e integral dessa população.

 

INTRODUÇÃO

Profissionais do sexo constituem um grupo historicamente estigmatizado e discriminado por se desviarem do modelo padrão de comportamento social e moralmente estabelecido. Julgadas como pervertidas, usuárias de drogas, preguiçosas e disseminadoras de doenças, as prostitutas são colocadas às margens da sociedade e das ações do Estado, tais como as políticas de saúde1,2.

Em grande parte do século XX, as ações em saúde direcionadas às mulheres mantiveram o foco na atenção materno-infantil. Em 1984, com a criação do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), houve a ampliação do conceito de atenção à saúde, mas permaneceram invisíveis alguns grupos populacionais femininos, como é o caso das prostitutas. Duas décadas depois, houve a implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), que apesar de ter ampliado suas ações a diversos grupos antes excluídos, como o de mulheres em privação de liberdade, negras e lésbicas, permaneceram ocultas as necessidades em saúde específicas das profissionais do sexo3-5.

Essa ausência de políticas públicas de saúde voltadas às profissionais do sexo reflete negativamente sobre a equidade em saúde, sem a qual não se pode assegurar os outros dois princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS): a integralidade e a universalidade. Este fato, segundo Villela e Monteiro6, evidencia uma postura de laissez-faire do Estado Brasileiro, ou seja, "sob a aparência de que se respeita o direito da mulher se prostituir, ocorre uma desassistência a suas necessidades de conforto e segurança no trabalho", contribuindo ainda mais para a marginalização do grupo.

Por outro lado, a despeito de não existirem políticas de saúde próprias e que visem a atenção integral das profissionais do sexo, estas são sempre lembradas e citadas em ações e programas voltados ao controle de doenças infecciosas, como o Programa Nacional de DST/Aids, contribuindo, assim, para a construção da visão fragmentada de que a prostituta é apenas um "corpo da cintura pra baixo"7.

Mesmo na atenção à saúde ginecológica e obstétrica, tem-se observado obstáculos no acesso aos serviços e no cuidado voltado às prostitutas. No estudo de Szwarcwald8, cerca de 20% das profissionais do sexo não realizaram exame ginecológico nos últimos três anos e, destas, a metade nunca foi ao ginecologista. Além disso, aproximadamente 40% das mulheres entrevistadas não procuraram atendimento na última vez que tiveram algum problema de saúde sexual.

No tocante à assistência, o estudo de Villela e Monteiro6 demonstra que a inexistência de adaptações dos serviços de saúde à realidade dessas mulheres, tais como o horário de funcionamento das unidades básicas, associada ao medo de serem mal atendidas, afastam as prostitutas da rede de atenção. Esse distanciamento, entretanto, pode aumentar os riscos de morbidades como depressão, doenças crônicas não transmissíveis, complicações relativas a abortamento induzido e outras.

Desta forma, questiona-se o quanto a procura pelos serviços de saúde, a qualidade da assistência recebida e o vínculo com a equipe são influenciados pelo estigma social edificado sobre as prostitutas. Busca-se analisar, portanto, como se dá a assistência em serviços de saúde a partir da percepção destes atores sociais.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, de abordagem qualitativa, que tem como referencial de análise o método do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), idealizado por Lefevre e Lefevre9,10.

O DSC é um método de resgate de representações sociais em pesquisas empíricas, caracterizando-se por preservar a sua dimensão individual, articulando-se com sua dimensão coletiva. As representações sociais estão sempre presentes dentro de posicionamentos, opiniões e posturas de indivíduos em suas vidas cotidianas, porém, mesmo sendo individuais, podem ser agrupadas e categorizadas dentro de categorias semânticas gerais. Metodologicamente, o DSC agrupa conteúdos de opiniões de sentidos semelhantes dentro de diferentes depoimentos, formando um depoimento síntese redigido na primeira pessoa do singular e tratando-se, portanto, de uma coletividade falando como um indivíduo9,10.

Distante da empiria, os DSC são abstrações concretas, já que a sua construção se dá em cima de conteúdos e argumentos 'minerados' nos depoimentos individuais e abstraídos na categoria que os unifica, permanecendo no sentido abstrato, mas passando pelo crivo analítico do pesquisador10. Por fim, temos como resultante final de uma pesquisa com DSC um "constructo, um artefato, uma descrição sistemática da realidade e uma reconstrução do pensamento coletivo como produto científico", segundo Lefevre e Lefevre10.

Participaram do estudo profissionais do sexo atuantes no município de Uberaba/MG, maiores de 18 anos. O tamanho da amostra foi definido na medida em que, na análise inicial das transcrições das entrevistas, foram identificados pontos convergentes passíveis de compor um DSC.

Para a coleta de dados, utilizou-se um questionário semiestruturado, contendo dados socioeconômico-demográficos e questões abertas sobre o cuidado recebido em saúde. A coleta ocorreu em 2019 e foi feita em parceria com os agentes comunitários de saúde (ACS) da Unidade de Saúde da Família responsável pela cobertura do território onde se encontram casas de prostituição da cidade. Em dia oportuno ao ACS e aos entrevistadores, foram visitadas estas casas e uma primeira leva de entrevistas fora realizada com os profissionais do sexo que consentiram sua participação no estudo. Nas demais entrevistas, utilizou-se o método "bola de neve", que consiste na indicação de amigos e/ou conhecidos que se encaixam nos critérios de elegibilidade do estudo. Tal escolha deveu-se a dificuldade em acessar esta população.

As entrevistas foram áudio-gravadas, com autorização dos participantes, e transcritas na íntegra para posterior construção do DSC.

O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição proponente, conforme CAAE n° 04476218.0.0000.5154.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Conforme tabela 1, participaram da pesquisa 22 profissionais do sexo, todas do gênero feminino, sendo 86,4% mulheres cis e 13,6% mulheres trans; a maioria delas declarou-se parda (72,7%), em contraste com 18,2% brancas; a média de idade encontrada foi de 31,2 anos, oscilando entre 20 a 59 anos (desvio padrão 10,0). Eram elas majoritariamente solteiras (90,9%) e com uma média de 1,8 filhos por profissional (desvio padrão 1,8). Quanto à escolaridade, 31,8% tinham o Ensino Fundamental incompleto, 40,9% com Ensino Médio (EM) incompleto e 4,6% havia completado o EM. Em contrapartida, 13,6% tinham ensino superior. A prostituição era a ocupação exclusiva de 50% das entrevistadas, enquanto a outra metade atuava também em outra profissão, como doceira ou cabeleireira. Em relação à situação habitacional, 59% disseram morar em casa alugada e 31,8% em casa própria, enquanto 4,6% viviam em casa cedida e 4,6% não tinham moradia. A renda foi um quesito muito variável, evidenciando contrastes e oscilando entre R$ 500,00 e R$ 15.000,00 por mês. A resposta encontrada quando questionadas sobre religião foi bastante plural, predominando o catolicismo (27,3%) e aquelas que disseram não ter ou não frequentar nenhum tipo de culto (36,4%).

A tabela revela um perfil de vulnerabilidades dessas mulheres, que são majoritariamente de raça/etnia parda, com pouca escolaridade e baixa renda. Tais características vão ao encontro de dados encontrados em outros estudos sobre o tema. Lima11, por exemplo, constatou um perfil de profissionais do sexo em sua pesquisa que, em sua maioria, se autorreferiu como parda ou preta, jovem, solteira, com pouca ou nenhuma formação acadêmica e baixo poder aquisitivo.

Hankel et al.,12 relataram que a identidade étnico-racial é determinante na forma como a mulher irá se relacionar com seu trabalho. Destacam que as mulheres negras estão mais propensas a trabalharem para cafetões e enfrentarem agressões físicas e o tráfico sexual em sua profissão. Além disso, afirmam que o racismo estrutural e o sexismo são determinantes para justificar a maior parcela de mulheres afro-americanas em trabalhos como prostituição de rua, do que em locais fechados com alguma salubridade e segurança. Clarke et al.,13 também mostraram uma relação entre raça e a idade de início do trabalho como profissional do sexo, expondo que mulheres afro-americanas têm as maiores taxas de entrada na profissão durante a juventude.

A seguir, apresentaremos as ideias centrais e os trechos do DSC relativos à percepção das profissionais do sexo acerca do impacto de sua profissão sobre a atenção e o cuidado que recebem em saúde:

O quadro 1 apresenta uma forte relação entre entrada no ramo da prostituição com desemprego e dificuldade financeira. Tal associação, somada à baixa escolaridade, representa os principais fatores que fazem com que o mercado sexual seja, para essas mulheres, um caminho possível de ser trilhado. Apesar de mal paga e estigmatizada, a prostituição apresenta-se mais rentável e ao alcance de mulheres pobres com pouca ou nenhuma formação profissional14. Além disso, as barreiras sociais que vulnerabilizam impedem tanto a saída dessas profissionais do sistema de venda e exploração de seus corpos, quanto a sua entrada no mercado de trabalho formal15.

Juliano14 reitera que o preconceito social mais forte se dá sobre aquelas que estiverem com maiores dificuldades financeiras, e que se agrava se houver outros elementos, como pertencer a uma minoria étnica, ser imigrante ou ter pele preta ou parda.

Para Figueiredo e Peixoto16, a prostituição é resultado de explorações legitimadas por elites e governantes e de tabus envolvendo a sexualidade expressa fora dos padrões. Assim, essas mulheres são relegadas à marginalidade e impelidas à desproteção e a situações de agravo. Cruz et al.17, em consonância, evidenciam que a prostituta ocupa um espaço de intensa vulnerabilidade social, estando mais suscetível a diversos tipos de violência, condições precárias de trabalho, uso de drogas, risco de doenças ginecológicas e/ou IST's, gravidez indesejada, discriminação e estigma. É ainda o preconceito profundo depositado sobre elas que faz com que evitem os serviços de saúde, impossibilitando um cuidado holístico, como é proposto pelas leis orgânicas do SUS.

No que se refere à atenção à saúde, a grande maioria das profissionais do sexo entrevistadas (90,9%) é de usuárias exclusivas do SUS. Evidencia-se, conforme DSC do quadro 2, que a busca de atendimento médico, quando feita, é predominantemente em relação à saúde sexual e exames para IST's, devido tanto ao risco laboral quanto à falta de atenção integral nas outras especialidades.

Entretanto, a inexistência de adaptações à realidade e particularidades desse grupo, como o caráter itinerante da profissão e a ausência de tempo, aliada ao medo de serem mal atendidas em função do estigma sobre sua profissão, distanciam as prostitutas dos serviços de saúde, como reiterado por outros estudos científicos.

Villela e Monteiro6, por exemplo, pontuam que em função das lacunas em sucessivas políticas voltadas às mulheres, as quais deixaram de considerar as necessidades específicas das profissionais do sexo (a exemplo do modelo de assistência materno-infantil pré-SUS, o PAISM e a PNAISM), existe uma falta de adaptabilidade do sistema de saúde que afasta as prostitutas do serviço. Apontam, também, como o sistema de saúde brasileiro restringe a prostituta a aspectos estritamente sexuais, ignorando que a condição de precariedade em que seu serviço é prestado está diretamente relacionada com o surgimento de agravos, como infecções crônicas não transmissíveis e depressão, por exemplo. Já Platt et al.,18, através de uma metanálise, reiteram e confirmam os mesmos pontos no contexto internacional.

O trecho do DCS "...procuro me consultar mais com o ginecologista, pois além da demora, as outras especialidades médicas não me atendem direito e sequer me olham...", evidencia o que Brito-Silva et al.,19 discorreram sobre o direito compartimentado ser antagônico ao princípio da integralidade do SUS em seus diferentes sentidos. Ou seja, como o direito à saúde no país é pensado em uma perspectiva da integralidade, atender parcialmente os usuários do sistema é uma evidente inobservância dos serviços.

Em contraponto, a maioria das participantes disse que o SUS, a despeito da demora e da característica dos atendimentos, consegue suprir suas necessidades; sentem-se incluídas no sistema de saúde. Esse resultado é similar ao encontrado por Paiva20, onde as profissionais do sexo estudadas avaliaram de maneira positiva o atendimento prestado, apesar de não realizarem acompanhamento regular com os profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF).

Entretanto, tal como observado no trecho "...eu acredito que as minhas demandas de saúde são supridas pelo SUS", percebe-se um discurso resignado das profissionais do sexo, ou seja, apesar de encontrarem dificuldades e entraves para o cuidado médico a outros aspectos de sua saúde, que não os sexuais e reprodutivos, concluem que a assistência recebida atende ao que procuram. Ora, se existe um sistema que as exclui desse cuidado integral, seja pela demora no agendamento de consultas em outras especialidades médicas, seja porque os profissionais de saúde destas especialidades não oferecem uma assistência digna por preconceito ou estigma, como podem as profissionais do sexo qualificar a assistência em todas as suas dimensões? Fica fácil compreender as razões pelas quais se sentem satisfeitas com a parte (ou o pouco) que recebem. Sobre isto, Peres da Silva21 diz que "o entendimento do SUS como uma política criada para garantir o direito à saúde é substituído pela ideia de concessão do Estado. No imaginário do usuário, o SUS é um sistema carente e não está associado à sua capacidade de exercer o direito adquirido".

O medo de julgamento por parte dos profissionais de saúde é um fator decisivo para as prostitutas não procurarem atendimento médico ou, quando buscam, a não revelar a profissão22. O estudo de Bungay et al.,23 aponta que as profissionais do sexo não revelam o que fazem em consultórios por medo de julgamentos, discriminação devido a sua posição social ou por receio da consulta se resumir às IST's, diminuindo o foco em problemas de saúde não relacionados à sexualidade. Em contrapartida, esta omissão de informação durante a anamnese também pode acarretar um atendimento incompleto ou pouco eficiente, por se tratar de um dado de interesse clínico.

Apesar dessa insegurança, é relatado no DSC do quadro 3 que a discriminação durante o atendimento nem sempre está presente entre as mulheres cis; já para as mulheres transgênero, existe diferença no tratamento, principalmente no que se refere ao uso do nome social. A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais foi integrada ao SUS em 2011, tendo como objetivo geral promover a saúde e olhar holístico sobre a população LGBT+, fomentando meios para redução de desigualdades e preconceito institucional, visto que orientação sexual e identidade de gênero incidem diretamente no processo de determinação social e estado de saúde, através do preconceito e estigma sofrido24.

A política surgiu como meio para consolidação dos pilares de equidade, integralidade e universalidade do SUS, porém apresenta fragilidades em sua implementação, como a resistência que a comunidade médica tem em respeitar esta população dentro da prática assistencial. Essa dificuldade é demonstrada pelo quadro 3 e reforçada por outros estudos, como em Ferreira et al.,25.

No estudo de Muller e Knauth26, os autores relatam que o preconceito sofrido pelas travestis e transsexuais e o desrespeito ao seu nome social são fatores que as afastam do atendimento médico e, muitas vezes, contruibuem para o agravamento de doenças gerais nessa população. Além disso, afirmam que a linguagem utilizada pelos profissionais de saúde, bastante distante de seu próprio dialeto, podem culminar na não adesão da paciente ao enfrentamento de seus problemas de saúde.

Integralidade engloba o significado de uma atuação profissional que compreenda o indivíduo em seu aspecto biopsicossocial27. Percebe-se que, no modelo atual de assistência, esse princípio é desrespeitado e as profissionais do sexo são reduzidas a uma pequena dimensão de suas vidas, contribuindo para a formação de lacunas no cuidado e para a perpetuação dos estigmas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Profissionais do sexo são estigmatizadas pela sociedade por se distanciarem do padrão de comportamento sexual historicamente aceito. Constituem-se, em função disto, enquanto minoria social de expressiva vulnerabilidade (mulheres pardas ou pretas, sem moradia própria, sem salário fixo e com baixa escolaridade), fato que repercute direta e negativamente sobre sua saúde. Além disso, percebe-se que fatores como insegurança e medo de julgamentos, aliados à falta de atendimento especializado, influenciam e definem como essas mulheres se relacionam e acessam os dispositivos de saúde.

Um dos principais desaguadouros desse contexto é o medo de buscar atendimento médico, de revelar a própria profissão quando atendida ou de ser reduzida a seus riscos ocupacionais, e, por conseguinte, o acesso à saúde, o vínculo com a equipe médica e a garantia do direito à saúde tornam-se difíceis de serem alcançados. Apesar disso, o atendimento foi avaliado, grande parte das vezes, como satisfatório, ainda que focado na saúde sexual e apesar da baixa frequência das consultas. Isto evidencia a fragilidade, também nesta população, do reconhecimento da saúde enquanto direito constitucional, o que resulta em um comportamento de conformidade diante das lacunas na rede de atenção à saúde.

No que se refere às travestis e transexuais, observou-se a presença de um preconceito relacionado principalmente ao gênero e não à profissão, caracterizando um exemplo de desrespeito às políticas de saúde direcionadas para este público e de outro preconceito enraizado na cultura heteronormativa predominante.

Por fim, entende-se que a criação de programas e ações de saúde voltados especificamente a esse grupo populacional é de suma importância para garantir que os princípios da equidade e da integralidade sejam respeitados. Mostra-se necessário, ainda, a (re)qualificação das equipes de saúde para o contato com as profissionais do sexo, com busca ativa, acolhimento, treinamento para o manejo adequado, sendo este despido de julgamentos e respeitando a singularidade de cada pessoa. Tais iniciativas têm o pontencial de desconstruir os estigmas e os preconceitos que permeiam a vida dessas mulheres e perpetuam sua condição de vulnerabilidade também nos serviços de saúde.

Author Contributions

Beatriz Guerta Pastori: Participou da elaboração do projeto de pesquisa, realizou a coleta e digitação dos dados. Auxiliou na análise e discussão dos resultados. Escreveu e realizou revisão final no texto; Andrei Biliato Colmanetti: Participou da elaboração do projeto de pesquisa, realizou a coleta e digitação dos dados. Auxiliou na análise e discussão dos resultados. Escreveu e realizou revisão final no texto; Claudia de Azevedo Aguiar: Orientou a pesquisa, revisou o projeto de pesquisa e submeteu-o ao comitê de ética em pesquisa da UFTM. Ajudou nas análises, descreveu e discutiu os resultados. Realizou revisão final no texto bem como sua tradução para o inglês. Revisou o artigo e aprovou a versão que foi submetida.

Apoio Financeiro

A pesquisa foi realizada sem apoio financeiro.

Conflito de interesse

Os autores não possuem nenhum tipo de conflito de interesse.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Beatriz Guerta Pastori
biapastori@hotmail.com

Manuscrito recebido: maio 2021
Manuscrito aceito: dezembro 2021
Versão online: junho 2022

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