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Mudanças

versão impressa ISSN 0104-3269versão On-line ISSN 2176-1019

Mudanças vol.27 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

 

ARTIGOS

 

Revisitando o feminino: pelo avesso da cultura

 

Revisiting the feminine: inside out of culture

 

 

Maria Emilia Sousa Almeida

Psicanalista, Psicóloga Clínica, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP

 

 


RESUMO

Este artigo visa discutir aspectos psíquicos e culturais relativos ao feminino, a partir da relação entre o inconsciente e o imaginário cultural. A princípio, a ideia de feminino é tratada em seu aspecto linguístico. A seguir, o método bibliográfico permite recorrer à teoria psicanalítica em duas etapas. A primeira enfoca figuras femininas míticas relevantes nas culturas judaica, cristã e grega, enquanto a segunda apresenta questões inconscientes e conscientes acerca do feminino. Observam-se mudanças da concepção falocêntrica sobre o feminino para outra mais contemporânea e mais independente do masculino como padrão de maior valor na psique e na cultura.

Palavras-chave: representações, afetos, feminino, psiquismo, cultura.


ABSTRACT

This article aims to discuss some psychic and cultural aspects of feminine, from the relation between unconscious and cultural imaginary. At first, feminine is studied in its linguistic aspect. Afterwards, the bibliographic method allows to use psychoanalytic theory in two phases. Firstly, some mythical feminine figures from Judaic, Christian and Greek cultures are examined; next, some unconscious and conscious ideas about feminine are presented. Some changes from phallocentric approach about feminine to more contemporary and more independent from masculine as a value pattern in psyche and culture can be observed.

Key-words- representation, affects, feminine, psyche, culture


 

 

Introdução

O que quer, realmente, a mulher?
Ser senhora da própria vida.

Rei Arthur

Este artigo visa discutir aspectos psíquicos e culturais relativos ao feminino, a partir da relação entre o inconsciente e o imaginário cultural. De início, a noção de feminino é tratada em seu aspecto linguístico. A seguir, a recorrência à teoria psicanalítica, de modo prevalente, se faz em duas etapas. A primeira enfoca figuras femininas míticas relevantes nas culturas judaica, cristã e grega, enquanto a segunda apresenta uma trajetória de ideias psicanalíticas acerca do feminino. No que concerne ao estudo dessas figuras, recorre-se, ainda, a um pensador junguiano, cujas considerações acerca delas aproximam-se das psicanalíticas.

Um olhar mais atento à história da civilização leva à constatação de que a mulher e, mais precisamente, a figura feminina mereceram um lugar pouco lisonjeiro na cultura ocidental. Herdeira do patrimônio greco-judaico-cristão, a cultura ocidental primou pela desvalorização da figura feminina no panorama da história oficial. Vetores dessa herança, o imaginário e o inconsciente se presentificam na cultura por meio de lendas, mitos, folclore, ditos populares, entre outros. Com relação a isso, Freud (1905) ressalta a imbricação entre as produções do inconsciente e as construções simbólico-culturais presentes na cultura.

Nessa medida, articulam-se o inconsciente - abordado pela psicanálise - e o imaginário - estudado pela antropologia.

Segundo Durand (1997), o imaginário é o conjunto de imagens e de relações de imagens, que constitui o capital do 'homo sapiens'. É o denominador fundamental, no qual se fundam os procedimentos do espírito humano. Há uma incessante troca ao nível do imaginário entre as pulsões inconscientes subjetivas e as intimações objetivas, oriundas do meio cósmico e social. O imaginário se articula a alguns esquemas míticos. O esquema heróico deriva da postura de levantar-se, colocar-se de pé, da visão, da luz. São imagens masculinas baseadas em imagens fálicas: a flecha, o cetro, as armas. O esquema místico remete às imagens do feminino como profundidade, interioridade, intimidade e continente, incluindo cavernas, taças, cofres.

Cabe acrescentar que esse conjunto de imagens vai sendo construído ao longo do tempo mediante a cultura, as artes, a história, a mitologia de um povo, entre outros. A partir disso, aponta-se uma forte relação entre o imaginário - de caráter coletivo e cultural - e o inconsciente - de natureza individual e familiar.

Ao se inscrever no inconsciente, essa herança cultural acerca do feminino oriunda do imaginário humano se revela mediante questões, que muito interessam à psicanálise. Esse legado cultural se inscreve no inconsciente, sob a forma de representações psíquicas e afetos, que constituem a seara desse campo do saber.

No contexto cultural - em seu veio linguístico - por feminino tende-se a designar uma gama de características psicológicas atribuídas à figura feminina, a saber: docilidade, delicadeza, sutileza, subserviência, fraqueza, entre outras. Todavia, elas não são apanágio exclusivamente feminino, não se justificando caracterizá-lo como único depositário desses aspectos psicológicos, do ponto de vista lógico. Todavia, esses atributos psíquicos de menor destaque na cultura são associados ao feminino.

Ainda no campo da linguagem, o Novo Dicionário Aurélio (1986) revela a discriminação histórico-cultural da mulher. A designação mais geral de homem remete a 'qualquer indivíduo pertencente à espécie animal, que apresenta o maior grau na escala evolutiva', enquanto a de mulher refere-se ao 'ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos'. Grande parte dos verbetes relativos à mulher designa a condição de meretriz, apontando para sua discriminação do ponto de vista moral. Assim, encontra-se nele: mulher à toa, de zona, de comércio, de rua, da vida, de amor, de má nota, do fandango, do mundo, do fado, fatal, perdida, vadia, pública.

Em contrapartida, depara-se com: homem da lei, de ação, de bem, de Deus, de letras, de pulso, de palavra, do povo, de letras, dos sete instrumentos, pública.

Como contraponto a isso, apontam-se as conotações de homem e mulher no Dicionário Aurélio Online (2018). Neste, quanto à definição de homem encontra-se: mamífero primata, bípede, com capacidade de fala e que constitui o gênero humano, indivíduo masculino do gênero humano, humanidade, gênero humano, cônjuge do sexo masculino com quem se mantém uma relação sentimental e/ou sexual, pessoa do sexo masculino que demonstra força, coragem ou vigor e, ainda, há as expressões: homem de Deus- bom homem, homem público- aquele que desempenha funções de interesse público, na política ou na administração de um país. Por outro lado, quanto à definição de mulher há: pessoa adulta do sexo feminino, cônjuge do sexo feminino com quem se mantém uma relação sentimental e/ou sexual e, ainda, há a expressão: mulher pública- meretriz.

Com algumas mudanças, a antiga discriminação da mulher continua presente nesse material contemporâneo, que fornece referências sobre o mundo, em geral. É o caso da profunda diferença entre homem público e mulher pública.

Posto isso, a inserção do feminino nos três sustentáculos da cultura ocidental - cultura judaica, cristã e grega - é examinada a seguir.

 

Representações psíquicas da figura feminina nas culturas greco-judaico-cristãs

Desvendar, segundo a ótica psicanalítica, a multifacetada trama das representações simbólico-culturais acerca da figura feminina - na psique e nas referidas culturas - implica trazer à luz ideias de diversos autores. Porquanto, em torno de certas figuras femininas míticas reuniram-se representações psíquicas, construções simbólico-culturais e afetos relativos ao feminino.

No tocante a isso, Sicuteri (1986) parte do campo do sagrado para discutir os desdobramentos profanos do feminino. Ele considera que Lilith e seus avatares representam o medo humano diante de forças internas potentes e incontroláveis, que geram o conflito psíquico. Assim, a mitologia do feminino denuncia o conflito contra os instintos sexuais e sua repressão no sujeito e na cultura. Outros autores complementam suas ideias acerca das figuras femininas.

Na cultura judaica, destaca-se a raridade de divindades femininas. Consta que nos livros judaicos há referência a três delas: Asherah, Shechinah e Chokmah. Asherah foi consorte de Javeh, anterior à supremacia do monoteísmo, segundo fontes bíblicas e arqueológicas. Shechinah é considerada a Divina Presença, a faceta da revelação divina aos homens: sua face feminina e materna, de acordo com a tradição rabínica. Chokmah é a deusa hebraica da sabedoria e da verdade, conforme a Cabala. Entretanto, estabelecida a posterior hegemonia de Javeh no judaísmo, a referência às divindades femininas se esvaneceu (Cordeiro, 2009).

Consoante o Talmud - livro sagrado dos judeus - Lilith foi a primeira esposa de Adão e mãe de demônios, na versão rabínica que precede a versão bíblica. Ela era uma entidade 'cheia de saliva e sangue', sendo a saliva ligada a libido e o sangue à menstruação. Esta se vincula à carnalidade, à vitalidade e à instintividade da mulher. Havia a interdição ao coito no período menstrual, assim como outras proibições e estigmas ligados à menstruação. Para o judaísmo, a mulher é impura e culpabilizada pelo pecado de homens justos e de alma nobre (Monteiro, 1990).

Lilith - símbolo do desejo humano - teria uma natureza demoníaca, não tendo se submetido a Adão e à Lei do Pai. A partir daí, equacionou-se serpente-demônio-mulher. Ao se insurgir-se contra a posição 'natural' do coito, Lilith se rebelou contra os papéis dominador-dominado, outorgados por Deus. Então, Lilith fugiu para junto de demônios, sendo identificada como o demoníaco (Sicuteri, 1986). No que concerne a esse ponto, Paiva (1993) propõe que as particularidades do feminino foram projetadas e perseguidas, dado seu potencial demoníaco. Assim, o mito de Lilith absorveu a representação do impuro, do poluído, do demoníaco reprimido e do destrutivo.

No Antigo Testamento, à Eva se associou a pecha do pecado e da transgressão da norma divina, bem como a ela se vinculou a submissão humana ao sacrifício e ao suor do próprio rosto, à perda do paraíso e à condenação à morte, disseminados para os filhos do homem. O castigo de Eva passa pelo parto com dor, numa retaliação ao ato sexual sujo e proibido (Sicuteri,1986). Eva é responsabilizada pela queda do homem, sendo considerada a instigadora do mal. Este estigma, propagado por todo o sexo feminino, se traduz na perseguição histórico-cultural implacável ao corpo da mulher, considerado como fonte de inúmeros malefícios (Alves; Pitanguy, 1991).

Outra representação do feminino no Antigo Testamento é Astarte - deusa-mãe-prostituta-devoradora de hebreus, cananeus e fenícios (Paiva, 1993). Mezan (1986) aponta as facetas de sedução e de devoração, ligadas à figura materna e à figura feminina. Mitos representativos do feminino também são abordados por Brill (1984) como relativos à sedução, devoração e obscuridade noturna. Como avalia Leite (1991, p. 117): 'Essa vinculação da mulher com forças ocultas, perigosas e obscuras, sempre esteve presente nas tradições de quase todas as culturas'.

No Novo Testamento, encontra-se sua contrapartida, mediante a redenção de Eva e, por conseguinte, da humanidade. Trata-se de Maria, mulher imaculada e capaz de gerar o filho de Deus, visto ser intocada pela mão do homem e, portanto, capaz de redimir os pecados da humanidade. Esse fato é representado simbolicamente pelo esmagamento da serpente sob seus pés. Assim, a sexualidade - com sua carga de sujeira, de pecado e de abominação - estabelece o divisor de águas entre Eva e Maria, na iconografia cristã. Ademais, a trindade Pai-Filho-Espírito Santo configura a supremacia do patriarcado, no qual a figura de Maria é diluída (Sicuteri,1986).

Arremata-se outra malha do Imaginário judaico-cristão relativo ao feminino, ao se enunciar alguns trechos da Bíblia:

'Não há pior veneno do que o das serpentes, não há pior ira do que a da mulher. Seria mais agradável estar com um leão ou com um dragão do que morar com uma mulher má' (Eclesiástico 25,14-15).

'(...) a mulher é mais amarga que a morte porque é uma armadilha, seu coração uma cilada, suas mãos cadeias; quem ama a Deus foge dela, quem é pecador é capturado por ela (Provérbios 7, 25-27).

'O homem, nascido de mulher, tem vida curta e cheia de tormentos' (Jó 14,1).

'Como pode o homem ser puro ou inocente, o nascido de mulher? Quem fará o puro sair do impuro? Ninguém' (Jó 14,4).

Na cultura grega, Lilith se apresentou sob a forma de entidades femininas maléficas, enquanto a expressão da paixão turva da sexualidade desenfreada, que pode insidiar e submeter o homem. A figura de Lilith gerou o mito da Lua Negra - 'demônio da obscuridade' responsável pela esterilidade da terra. A lua é a depositária da projeção coletiva inconsciente a respeito do feminino (Sicuteri, 1986).

Personificações mitológicas gregas como Hécate, Empusa, Fúrias ou Erínias, Lâmias, Hárpias e Górgones teriam aparência aterrorizante, muito embora, algumas pudessem se tornar belas. Seriam entidades dotadas de terríveis poderes e causadoras de malefícios tremendos. Essas personagens do panteão grego exemplificam o lado obscuro, maléfico e tenebroso vinculado à figura feminina. Desse modo, elas constituem figurações do feminino demoníaco, do feminino negro (Sicuteri, 1986).

Da mitologia grega, ressalta-se ainda Pandora. Sua curiosidade a leva a espalhar todos os males pela humanidade, a qual resta tão somente a esperança. As Amazonas e as Danaides condensariam a rebeldia e a independência femininas quanto ao domínio masculino. Circe, em sua feminilidade e sensualidade, se vincularia a aspectos sedutores e devoradores. Por sua vez, as Moiras fiavam, dobravam e cortavam o fio da vida (Guimarães, 1986).

Nova incursão no panteão grego permite examinar outras questões acerca do feminino, nessa cultura, com base na disputa entre a deusa Palas Atena e a mortal Aracne - ambas tecelãs e fiandeiras. Aracne - com sua vaidade e sua arrogância - é condenada por Palas Atena a viver enquanto aranha. Assim sendo, ela fica presa a seu próprio fio, por ser incapaz de tecer relações com amor. Outro paradigma para se pensar o feminino é aquele de Eros e Psiquê. Ao ser investigado por ela, Eros se afasta e ela precisa reconquistar seu amor (Guimarães, 1986).

Essas figurações do feminino apontariam a relação da mulher com o masculino e o feminino. Com sua teia que enreda a presa, Aracne pode ser associada à mulher que devora o homem pós-cópula, à sedução como armadilha para capturar o masculino e à dificuldade do encontro masculino-feminino. Palas Atena, alegoricamente, afirmaria a possibilidade de doação e do encontro masculino-feminino com base no fio de ligação afetiva entre eles. Em alguns casos, à mulher cabe elaborar a desconfiança, o medo e a possível inveja do masculino, para integrá-lo ao seu psiquismo.

Na Idade Média, as bruxas reeditam as mazelas associadas à figura feminina na cultura ocidental. Segundo o Malleus Maleficarum - tratado de bruxaria e demonologia - a perseguição e a queima das bruxas se deveram ao fato de elas serem mulheres. Estas deteriam uma voracidade carnal inexaurível. Com isso, creditou-se ao homem a transcendência, enquanto que à mulher filiou-se a carnalidade, a inferioridade e a periculosidade. No Canon Episcopi - livro da Igreja - ao se vincular desgraças às bruxas, atribuiu-se um poder maléfico às mulheres (Sicuteri,1986).

A bruxa encarnou um poder perigoso e benéfico, sob a forma de curandeirismo, à margem dos poderes e saberes oficiais. Tal poder lhe foi conferido pelo diabo associado ao feminino - em suas facetas de sedutor, tentador e promotor de criação - ao se compactuar com ele, como em Fausto. Para a mentalidade da época, o diabólico remetia a aquilo intuído como incontrolável, fosse externo - epidemias, calamidades climáticas - fosse interno - desejos e imagens interditados, que irrompiam da psique à revelia do sujeito. Portanto, a bruxa se movia no campo do desconhecido, do indeterminado, do incontrolável. A ela, se atribuíam malefícios como: impotência, frigidez, morte, oferta de bebês ao diabo, esterilidade, doenças, loucura, problemas com a colheita e o gado. Logo, o ideário medieval fez dela, a responsável pelos sofrimentos e horrores humanos. Ao se exterminá-la, outras mulheres foram coibidas em sua independência, não se rebelando contra homens (Mezan,1986).

Como encarnação do mal, a bruxa concentrou os enigmas e os mistérios da sedução e da sexualidade - no aspecto incontrolável do desejo. A partir da identificação entre desejo-mulher-demônio, a equação desejo-feminino-mal foi maximizada em sua faceta de realização de desejos sexuais. Vinculou-se mulher-desejo-descontrole, à medida que naquela se consubstanciou o desejo. Para a inquisição, a mulher se tornaria bruxa mediante o sexo maléfico e impuro. A bruxa testemunhava a perversidade da natureza feminina, pois exercia malefícios próprios à mulher de per si. Os cânones da época não permitiam à mulher, o desejo e o fascínio sexuais, bem como a posse de sua alma. Portanto, a Igreja promoveu a divinização e a entronização do feminino, sob a vertente da pureza sexual e da maternidade. No pensamento teológico medieval, Maria remetia às narrativas de repúdio à 'mulher-demônio' e de exaltação à 'mulher-anjo' - parte da dualidade que a Igreja impôs ao ocidente. A categoria de anjo reservada à mulher calca-se na ausência da sexualidade feminina ou na de seu exercício. Dada sua condição de objeto do desejo, ela foi vista como digna de temor - ao ser sobreposta à imagem do diabo (Leite, 1991).

No imaginário medieval sobre o corpo da mulher - possuída pelo demônio - se instalou a arena de combate entre o exorcista e o diabo. A possessão demoníaca era uma despossessão do feminino - ativo e diferente do masculino, fonte de movimentos próprios e sem correspondente no corpo e na psique do homem (Mezan, 1986). Quanto a isso, a mulher foi ligada aos ciclos da natureza, dada a periodicidade da menstruação - quando sofria uma despossessão de seu controle. Sua despossessão de seu corpo se deve a seu atravessamento pelas forças da natureza ou do demônio. Seu corpo seria um manancial indomável de desejos. Logo, a mulher seria prostituta por natureza, presa de um desejo insaciável. É o perigo da indiferenciação voraz, que uma tradição de barbárie conjurou sob a forma de mutilação de seus órgãos, que veiculam o incontrolável. Há relação entre a capacidade feminina de gerar vida e o desejo humano - fonte de vida, de criação e de potência, não domesticável (Swain, 1986).

No plano da vida e da criação, Mezan (1986) aponta nas representações da figura materna a enorme carga fantasmática ligada aos aspectos obscuros e acolhedores de seu ventre. À medida que ela foi despojada de seu poder de criação, este foi cristalizado no diabo. Então, ele é o depositário da potência noturna e difusa, associada ao ventre materno. Quanto à proximidade das representações do diabo e da figura materna, ele vive no centro da terra - figuração do ventre materno - associa-se ao fogo e a odores fortes. Estes remetem aos utensílios da cozinha e a atividades femininas, em que se pica, despedaça e espeta, simbolizando os tormentos infernais. Além do mais, o diabo moraria num reino obscuro evidenciando seu parentesco com o ventre materno.

Então, os contrários nas representações da mãe - fada-bruxa, mãe-madrasta - estão cindidos no imaginário, ajudando a lidar com angústias relativas ao desejo por ela. Ele se traduz como desejo e temor de voltar ao ventre, lugar da indistinção identitária. A configuração materna se liga à capacidade de absorção e de devoração, enquanto que ao pai se vincula a separação, necessária à diferenciação criança-mãe. Há, no pensamento freudiano, a intersecção dos conceitos de mãe, natureza, morte e feminino. Ligadas à imagem da mãe, há: a mãe em si; a amada, cuja escolha se pauta na mãe e a mãe-terra, que recebe o sujeito na morte (Mezan,1986).

Nessa mesma trilha de raciocínio, Campbell (1990) aponta que nas sociedades primitivas - baseadas na colheita - se cultuavam os poderes de fertilidade e de criação da mãe, em alusão à mãe-terra. Ademais, a dominação da mulher - para os ocidentais - derivou da Bíblia, na qual a fêmea - como epítome do sexo - é um ser corruptor.

Nela, a vida é corrupta e o impulso natural é pecaminoso. Com isso, a identificação da mulher e da vida com o pecado é um desvio imposto à criação. Nessa linha de raciocínio, Capra (1983) assimila a ideia de natureza à mulher. Ele aponta as imagens violentas da natureza como fêmea, cujos segredos são arrancados sob cruel tortura, que sugerem a tortura das mulheres nos julgamentos das bruxas.

Configurando uma relação de poder, a bruxa deteria conhecimentos, que afrontavam a hegemonia masculina. Assim, o discurso médico defendia o monopólio do saber e do poder de cura masculina - por meio da proibição dos tratamentos com ervas, feitos pelas mulheres e de sua atuação nos partos. Depois, surgiram enfermeiras quase-anjos, desde que elas se subordinassem ao poder do médico/homem. Outra vez, o temor ao poder feminino salientou-se ao longo da civilização (Alves; Pitanguy, 1991). Nesse âmbito, desde que se instituiu a civilização humana, os homens foram investidos do poder curativo: magos, alquimistas, pajés, feiticeiros e médicos. Em contrapartida, os poderes maléficos foram radicados na mulher. Logo, ela podia ministrar cuidados, mas não ser responsável pela cura, pois poderia prejudicar os enfermos (Monteiro, 1990).

Ainda nesse campo de investigação, Mulvey (2009) pontua que o horror ao feminino se manifesta por meio da bruxa, da mãe arcaica, do útero monstruoso, da vagina dentada, da mulher castrada, da mãe castradora e da mãe fálica.

 

Psicopatologia dos aspectos culturais relativos ao feminino

A seguir, busca-se uma aproximação aos processos psíquico-culturais patológicos, mediante os quais tais representações recaíram sobre o feminino.

No que tange ao feminino, Leite (1991) considera que o próprio desejo seria temível, representado pela mulher identificada ao demônio, produzindo razões objetivas para o medo no mundo exterior. Com relação a isso, Delumeau (1989) advoga que a angústia intensa gera criações fantasmáticas no imaginário, demandando defesas psíquicas arcaicas - que fragmentam a angústia, sob a forma de medos específicos. Assim, se formou o medo ao sexo, à mulher, às feiticeiras e ao diabo. Como alívio para essa angústia relativa a impulsos sexuais, as feiticeiras foram executadas.

Nessa via, Sicuteri (1986) defende que, na Idade Média, as interpretações do feminino nasceram de impulsos agressivos inconscientes do homem, contra seus impulsos sexuais. A caça às bruxas deveu-se ao ódio masculino para com tais instintos, projetados na mulher. Essa defesa psíquica é uma reação à angústia. Os homens, escravos dos preceitos da Igreja, tinham medo da mulher sexualmente atraente - tornando-se sádicos. Assim, generalizou-se o medo e o ódio às mulheres, cuja sexualidade exultava ou cujo ódio ao homem-dominador era exacerbado. Em específico, Monteiro (1990) destaca o poder feminino de criação, que se tenta sequestrar na cultura. O homem projeta o medo de sua destrutividade sobre a mulher. Considera-a perigosa, à medida que ela, capaz de gerar a vida, seria também responsável pela morte.

Ainda de acordo com Mezan (1986), Freud (1930) aponta que a natureza é fonte de ameaças ao homem, dada a 'força de seus elementos'. Ela configura os aspectos atemorizadores, violentos e destrutivos ligados à potência materna.

A civilização busca se proteger do poder de destruição da natureza-mãe e das ameaças obscuras do feminino. Com isso, o poder feminino de criação é negado por meio de sua conotação maléfica. Para Mezan (p. 536): 'O feminino aparece como aquilo contra o que a civilização protege, num nível mais radical que o da agressividade'.

Destaca-se, com isso, a longa cadeia de significados e afetos negativos - subliminar, mas decisivamente - aplicados ao feminino. Enfim, tem-se uma perspectiva de todo o ódio, o horror e a desvalorização outorgados ao feminino e à mulher.

A seguir, dá-se a conhecer o percurso psicanalítico sobre o feminino.

 

Primeiras investigações em psicanálise relativas ao feminino

Ao perscrutar a mente humana em meio ao contexto vitoriano, Freud (1905) construiu um arcabouço teórico de cunho falocêntrico. Porquanto, o enigma do feminino também o atingiu, obscurecendo sua perspicácia. Em sua teorização, utiliza os conceitos de pênis e de falo, enquanto eixos teóricos da questão da sexualidade. Nessa medida, a mulher é vista sob a ótica de um homem castrado, com sua inveja do pênis. A sexualidade das meninas é de caráter masculino-ativo, sendo que o clitóris seria um órgão masculino. Na fase fálica, meninos e meninas teriam um pênis, inclusive a mãe, segundo as teorias sexuais infantis. Todavia, o autor tenta desvelar o mistério do feminino, ao longo de sua obra (Freud, 1905)

Em 1922, a cabeça da Medusa é teorizada como substituta da genitália feminina, causando horror. Com isso, revelar-se-ia uma metáfora do horror ao feminino, ao ponto da petrificação de quem a olha. Freud (1926) caracterizou a feminilidade e a vida sexual das mulheres adultas como o continente negro da psicanalise.

Pouco depois, conforme Freud (1931), a trajetória da mulher em direção à feminilidade adulta constituiria uma vivência bastante difícil, pois além da mudança de objeto libidinal - da mãe para o pai - demandaria uma mudança de zona erógena - do clitóris para a vagina. Igualmente, as diferenças sexuais anatômicas - centradas no pênis - teriam profundas repercussões no Édipo.

Nessa época, o tema que fomentava debates no meio psicanalítico era: o que é uma mulher e o que quer uma mulher. Seu foco era: a mulher nasce mulher ou é feita/construída como mulher? Quanto a isso, Freud (1932) e Jones (1933) divergiam a respeito da natureza da feminilidade. Para Jones (1933), as mulheres eram seres born, ao passo que elas eram seres made, de acordo com Freud (1932).

Freud (1937) diz que o repúdio à feminilidade é uma característica da vida psíquica dos seres humanos e o ponto de virada no final da análise. No tocante ao rochedo da castração, o homem se depara com a luta contra a atitude passivo-feminina para com outro homem, enquanto que a mulher enfrenta a inveja do pênis.

De modo geral, a sexualidade feminina constituiu para ele, um continente negro (Gay, 1989), dada a obscuridade do tema (Herrmann; Lima, 1982). Não obstante, ele apresentou formulações inovadoras quanto à feminilidade, tendo, ainda, acolhido as contribuições de analistas mulheres, bem como as de suas pacientes.

Dessas propostas, advém a ideia de que a constituição da identidade feminina pode demandar uma árdua elaboração. Esta se torna tanto mais difícil e gera maior sofrimento psíquico na mulher, quanto mais sua família e o imaginário de sua época a desvalorizam e essa desvalorização se infiltra em seu inconsciente.

 

Outros prismas do caleidoscópio psicanalítico sobre o feminino

Logo se afiguraram dissensões da comunidade psicanalítica com relação às posições de Freud sobre o feminino.

O corpus teórico kleiniano imprimiu novo enfoque às questões femininas. Klein (1932) afirma que as pesquisas psicanalíticas foram parciais em relação à mulher, visto terem estendido, a ela, as descobertas sobre a psicopatologia masculina. Como crítica a isso, ela enfatiza que é ao seio da mãe, ao interior de seu corpo e seus conteúdos, à sua capacidade de gerar bebês, que se dirigem os primeiros impulsos, fantasias, angústias e defesas infantis. O corpo feminino adquire, então, novo estatuto: depositário dos mais primitivos impulsos do bebê. O corpo materno é o primeiro representante do mundo externo, propiciando uma relação simbólica com os objetos. O caráter continente de seu corpo - receptáculo de leite, bebês e conteúdos bons - funda os significados do corpo feminino e se associa à identidade sexual da mulher. Ademais, há fantasias associadas aos impulsos e às sensações vaginais em meninas pequenas. Em meio a isso, a inveja do pênis é uma possível vicissitude das identificações das meninas. Formar uma imagem unificada da sexualidade feminina requer um longo percurso.

O corpo materno em união com o paterno aparece nas teorias sexuais infantis. Sobre a phantasia dos pais combinados numa relação sexual são projetados ataques sádicos e destruidores; desdobramentos dessas teorias sexuais precoces são encontrados nos mitos e no folclore dos povos. A concepção de uma mulher-vampiro, que suga o homem até à morte, retrata o horror gerado pelas phantasias sobre a união dos pais.

Ela não encara o masoquismo como constitutivo da sexualidade feminina, mas como decorrente de uma imago predominante do mau pênis. Os estratagemas utilizados pela mulher decorrem da organização de seu mundo interno, no qual reina a angústia. Seus valores morais não são menos firmes que os do homem, tampouco seu superego é mais frágil que o dele. Os homens têm fantasias e impulsos de admiração e de inveja quanto à mulher, no sentido de conter o bebê e de alimentá-lo com seu corpo de homem.

Digna de nota, uma reelaboração do universo psíquico feminino fez-se presente em psicanálise, antes tão oculto em face do masculino. A ênfase no falo é relativizada em sua obra. Assim, redimensionam-se as representações psíquicas votadas ao feminino, agora situadas para além do falo. Inclusive, a questão do horror não incide mais tão somente sobre o feminino - tal como nos textos freudianos.

Porém, a teoria kleiniana comporta excessiva maternalização da sexualidade feminina (HERRMANN; LIMA, 1982, p.20). Para eles: 'Liberadas do anátema freudiano de castradas, as mulheres passaram a usufruir de um estatuto paralelo de identidade sexual, consagrado à maternidade, força organizadora de seu impulso sexual'.

Nessa esteira de ideias, Horney (1990) entende que a feminilidade não deriva da renúncia a traços masculinos. Opôs-se à ideia de um masoquismo natural na mulher e ao repúdio de sua natureza feminina, por parte dela. A maternidade configurava uma superioridade feminina que geraria a inveja masculina. Assim, a inveja do pênis não introduz ao amor edipiano, mas é uma defesa contra ele.

 

Outras leituras psicanalíticas acerca do feminino

Enveredando por outra perspectiva psicanalítica, há que se acercar dos construtos lacanianos no que concerne ao feminino, com base em André (1987).

Para ele, o trabalho da psicanálise deve consistir não em descrever o que é a mulher - tarefa insolúvel - mas em pesquisar como a menina se torna uma mulher. Assim, a feminilidade se apresenta como um vir a ser e não como um ser, de modo que a mulher deve ser praticamente fabricada, por meio de um longo trabalho psíquico.

Dentre as turbulências nas primeiras relações, a criança real é confrontada com a criança imaginária, moldada segundo as fantasias da mãe. Dessa dialética, ela precisa formar sua própria identidade. Na menina, esse percurso é complexo: da primária fusão com a mãe, rompida a partir da interdição paterna, ela deve retornar à identificação com sua mãe e investir seu pai, como objeto. Segundo o autor, Freud atribui ao filho o significante da identidade feminina, enquanto em Lacan não existe o significante da identidade feminina. Essa falta remarca a castração feminina e faz dela uma falta abissal com relação à castração masculina. Assim, a falta da mãe quanto à filha consiste numa dupla falta: falta do significante da identidade feminina e falta do falo. Essa frustração da menina fá-la voltar-se para o pai e para seu desejo de ser mãe.

Outras proposições do autor atenuam a falta abissal atribuída ao feminino, pois o inconsciente e a psicanálise, outrossim, tem que lidar com a falta, o furo, o não-todo. Para o André (1987, p. 13): 'A psicanálise não permite saber tudo, pois o inconsciente não diz tudo' e 'A psicanálise permite saber o não-todo, porque o inconsciente diz não todo, em face do impossível de dizer o que o sexo feminino encarna' (André, 1987, p.38). E, ainda, o feminino se situa 'na categoria do inominável, revelando a impotência do saber, para nomeá-lo como tal'(p.39). A psicanálise opera com um saber furado - com base na falta, no furo do inconsciente - e seu estatuto de verdade se coloca como semidizer. Cabe ao feminino o lugar reservado ao mistério, ao enigma, ao desconhecido encarnado.

Examinados em perspectiva, os referenciais freudianos centrais - acerca do masculino e do feminino - são mantidos na abordagem lacaniana. Ainda assim, são questionáveis as ideias de que a identidade feminina se baseia no desejo de ser mãe e as afirmações freudo-lacanianas acerca do valor fálico. O inconsciente e a psicanálise operam com um saber furado e seu estatuto de verdade se apresenta como semidizer.

Contrapõem-se a isso, as próximas proposições - referidas ao momento atual.

Chauí (1991) defende que a 'inveja do pênis' nas mulheres e a 'inveja do útero' nos homens não se baseiam na anatomia. Fundamentam-se no bojo da cultura, a partir de seu processo de representação e simbolização da diferença sexual. Nessa simbolização, a sexualidade se desvela como desejo, carência, plenitude e criação.

Cecarelli (2002) pontua que a chamada 'crise da masculinidade' e o 'declínio do poder paterno' remetem ao declínio do patriarcado, devido às variadas transformações, que produziram o homem moderno. Na verdade, essa crise se dirige à referência ao pai, como única possibilidade de subjetivação, desde tempos imemoriais. Nesse prisma, conforme Tort (2016), a psicanálise integrou - aos seus conceitos - uma parte notável das construções sociais dominantes relativas ao sexo, ao gênero, ao parentesco e à filiação - solidárias com a ordem patriarcal. Isso inclui as fantasias vinculadas à psicossexualidade tais como: a suposta superioridade dos homens ligada a seu falo e a inferioridade das mulheres vinculada a sua falta de pênis. Critica a psicanálise - que se assenta sobre o modo patriarcal da falicidade e do repúdio ao feminino - assim como as conclusões de que o poder será sempre masculino e que ao feminino sempre se associará o hor ror feminae. O repúdio ao feminino é uma configuração sintomática do patriarcado. Grande parte dessas teorias se constitui com base na 'solução paterna' - fantasia de salvação pelo pai - como resolução do Édipo.

A solução paterna é uma formação inconsciente, determinante nas religiões e central na teoria freudiana. Assim, enuncia-se o conflito aberto - desde 1980 - entre a psicanálise patriarcal e as transformações sociais atuais.

Desse modo, a 'crise da masculinidade' parece consistir em um reflexo de uma crise mais profunda: a da atribuição fálica como organizador social.

 

Discussão

Além das ideias dos teóricos quanto às figuras míticas femininas complementarem-se entre si, algumas questões são centrais para todos. Neles, destacam-se alguns pontos fulcrais: o mal e a figura do diabo associados ao desejo humano, ao corpo e à sexualidade da mulher, bem como o poder de criação e de destruição concentrados na figura feminina.

Discutir as representações simbólico-culturais acerca da figura feminina - na psique e nas três culturas - implica trazer à luz as consonâncias e as dissonâncias entre as ideias dos vários autores. Contudo, há tão somente a consonância de ideias entre eles.

Na cultura judaico-cristã, Lilith e Eva - com seu teor de sexualidade maléfica - são contrapostas à Maria - consagrada por sua pureza ao ser isenta de sexualidade (Sicuteri, 1986; Leite, 1991). Além do mais, a descrição de Astarte como 'deusa-mãe-prostituta-devoradora' por Paiva (1993) é ratificada por Brill (1984) quanto aos mitos representativos do feminino evocarem sedução, devoração e obscuridade noturna. Ademais, Mezan (1986) aponta as facetas de sedução e de devoração - ligadas à figura materna e à feminina. Leite (1991) aborda a vinculação da mulher com forças ocultas, perigosas e obscuras, nas tradições de quase todas as culturas.

Oriundas da cultura grega, as personificações do feminino negro deitaram suas raízes até as bruxas. A esterilidade articulada às bruxas e ao demônio é destacada por Leite (1991) e por Mezan (1986). A figura de Lilith/Lua Negra - 'demônio da obscuridade' seria responsável pela esterilidade da terra e das pessoas (Sicuteri,1986).

Freud (1926) - ao considerar a feminilidade e a sexualidade feminina como o continente negro da psicanálise - parece exemplificar o feminino negro (Sicuteri, 1986), bem como sua obscuridade conforme Brill (1984), Sicuteri (1986) e Leite (1991).

No âmbito psicopatológico da formação dessas figuras, Sicuteri (1986) diz que as interpretações do feminino na época medieval nasceram de impulsos agressivos inconscientes do homem, contra seus impulsos sexuais. A caça às bruxas deveu-se ao ódio masculino para com tais instintos, projetados na mulher. Sentiam medo e ódio das mulheres, com sexualidade exuberante ou com intenso ódio ao homem dominador. Ratificando essas ideias, Delumeau (1989) aponta o medo ao sexo, à mulher, às feiticeiras e ao diabo. A execução de mulheres-feiticeiras aliviou a angústia relativa a impulsos sexuais inaceitáveis. O ódio e a hostilidade do homem contra a mulher são, igualmente, apontados por Monteiro (1990) e por Leite (1991).

Além do mais, o feminino foi equacionado à desapropriação de si, de seu desejo, de seu poder e de sua autonomia. Quanto a isso, a falta da posse da mulher sobre si mesma é apontada por Mezan (1986) e Swain (1986). A faceta incontrolável do desejo feminino encontra-se em Mezan (1986) e Leite (1991). O caráter imperioso de satisfação dos desejos vinculado ao feminino está relatado em Swain (1986) e Leite (1991). A 'força própria à vida' explicitada por Swain (1986) tem relação com o 'poder de criação' da mulher, em Mezan (1986), em Monteiro (1990) e em Campbell (1990). O 'perigo da indiferenciação voraz' sediado no corpo da mulher - portador de um desejo insaciável e incontrolável - apontado por Swain (1986) tem ressonância com os perigos da fusão com a figura materna, segundo Mezan (1986).

Quanto à proximidade das representações do diabo e da figura materna (Mezan, 1986), as fantasias sádicas envolvem picar, despedaçar, queimar, entre outros, como movimentos psíquicos primitivos dirigidos à figura materna (Klein,1932).

A clivagem dessa imago põe em destaque seus aspectos de calor, cuidado e proteção, bem como seus poderes obscuros e ameaçadores. Nessa medida, perfila-se o caráter ambivalente das fantasias relativas a ela. Complementando essas ideias, Monteiro (1990) considera que a inveja da feminilidade, da gestação e do seio forjam-se nas feridas narcísicas do bebê em suas vivências arcaicas com a mãe. Nesse sentido, Klein (1932) aponta a inveja masculina dos processos da mulher que geram a vida, forjada a partir da relação com a figura materna. Quanto a isso, Mezan (1986) propõe que a fusão desejada, mas temida com a mãe precipitaria o sujeito na inexistência como ser individualizado. Sendo assim, a fusão pode ser a base para o repúdio à feminilidade ou o horror ao feminino (Freud, 1937). Nessa medida, a figura materna parece prover as raízes representativo-afetivas, que se desdobram nas várias versões da figura feminina encontradas nas três culturas.

No campo psicanalítico, construído em meio às referidas culturas, as perspectivas falocêntricas de Freud (1905) e André (1987) acerca do feminino passaram por algumas alterações feitas pelos próprios autores, experimentaram modificações significativas a partir de Klein (1932) e Horney (1990) até chegar aos enfoques desmistificadores de Chauí (1991), Cecarelli (2002) e Tort (2016).

No bojo das três culturas e em momentos histórico-culturais diversos, os meandros do feminino incluíram forças ocultas e perigosas. Assim, o horror ao feminino infiltrou suas raízes na mentalidade dos povos em diferentes épocas e lugares. Todavia, algumas rupturas teóricas em psicanálise - e noutras abordagens - e mudanças histórico-sociais têm aberto novos caminhos para o feminino.

 

Considerações finais

Cinco mil anos de civilização ocidental trazem em seu bojo um incomensurável legado cultural. Ao longo dessa trajetória, o imaginário greco-judaico-cristão foi povoado por uma ampla gama de mitologias, cosmogonias, folclore popular, entre outros. A posição e o valor da mulher e do homem em meio a esse circuito cultural acabaram sendo expressos através desses mitos, lendas, seres do folclore, inscritos no imaginário. A história das mentalidades e a história cultural permitem resgatar esse mundo desconhecido e, por vezes, tão povoado de trevas e obscurantismo, que, ainda, incidem sobre o feminino.

Fruto dessa transmissão cultural, as figuras femininas míticas são referências para se captar seu lugar na mentalidade dos povos, pois suas encarnações foram envoltas sob certos véus, que as desfiguraram. Na tentativa de desvelá-las, os conceitos acerca do esquema místico não se aplicaram às figuras femininas estudadas.

A psicanálise, em sua tentativa de desvelar o inconsciente, também trilhou alguns caminhos com relação ao feminino, desde a referência freudiana à sua obscuridade até suas tentativas de examinar o que constitui o feminino. Enquanto para Freud, a mulher constituiu um continente negro e pouco explorado, outros psicanalistas tentaram trazer mais luz à questão. Em especial, algumas psicanalistas dispuseram o feminino, sob um prisma diferenciado do freudiano. Outros psicanalistas têm apontado que os pilares da psicanálise são o falocentrismo e a função paterna: quiçá formas de desvalorização do feminino.

Complementando suas proposições, outros psicanalistas estudaram figuras míticas femininas e apresentaram contribuições relevantes quanto a elas. No tocante ao feminino mítico, ressaltam-se: a força das imagens e das fantasias de destruição e morte associadas a ele e a inveja masculina do poder de criação e de geração da vida pela mulher, bem como o desejo de fusão com a figura materna e sua associação com os poderes de criação da natureza. No avesso da cultura, a figura materna parece constituir o primeiro polo relacional capaz de engendrar representações e afetos, matriz das concepções culturais do feminino.

Na mulher, o reconhecimento de sua existência enquanto sujeito feminino pode demandar o enfrentamento de alguns percalços advindos dessa herança: o horror ao feminino, a identidade mulher-vida-morte-mal-destruição - no inconsciente - e imbricada ao imaginário cultural, a falta substantivada na mulher. Todavia, a despeito de um saber psicanalítico faltoso, pode se chegar à elaboração da falta, viabilizando as condições para toda a feminilidade possível.

Dada a intersecção entre o imaginário cultural e o inconsciente, faz-se uma aproximação a esse último em análise. Nesta, as personificações do feminino - santa, prostituta, fada, bruxa, deusa, demônio, dentre outras - tendem a ser revistas por ambos os sexos. A ampliação do conceito de poder e de prestígio concentrados no masculino, o trabalho com a identidade feminina, a elaboração da possível inveja feminina ao masculino e da possível inveja masculina ao feminino permitem reorganizar o desejo. Dos inúmeros fios da tessitura do imaginário, há que se refazer sua trama e chegar a uma nova disposição do feminino face ao masculino - no psiquismo e na cultura. Caracteriza-se, assim, o trabalho da psicanálise com o inconsciente em sua imbricação com o imaginário.

Em nossos dias, ressaltam-se as mudanças da concepção falocêntrica sobre o feminino para outras mais contemporâneas e mais independentes do masculino como paradigma de maior valor na psique e na cultura ocidental. Dessa maneira, o ódio, o horror e a desvalorização do feminino podem, então, ceder espaço para o amor, o encanto e a valorização de suas recônditas riquezas.

 

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Submetido em: 3-8-2018
Aceito em: 18-7-2018

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