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Mudanças

versão impressa ISSN 0104-3269versão On-line ISSN 2176-1019

Mudanças vol.28 no.1 São Paulo jan./jun. 2020

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

 

A religiosidade/espiritualidade no contexto hospitalar: reflexões e dilemas a partir da prática profissional

 

Religiosity/spirituality in the hospital context: reflections and dilemmas from professional practice

 

 

Deise Coelho de SouzaI; Patrícia Paiva CarvalhoII; Fabio Scorsolini-CominIII

IPsicóloga, Mestre e Doutoranda em Enfermagem Psiquiátrica pela EERP-USP
IIPsicóloga, Mestre e Doutoranda em Enfermagem Psiquiátrica pela EER-USP
IIIPsicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia e Professor do Departamento de enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da EER-USP

 

 


RESUMO

Incorporar religiosidade/espiritualidade (R/E) ao cuidado em saúde tem sido um desafio para diferentes profissionais, entre eles o psicólogo. Este estudo apresenta um relato de experiência profissional acerca do modo como a R/E foi experienciada em atendimentos psicológicos no contexto hospitalar. Os resultados observados foram: concepção de R/E para o paciente e seus familiares e os impactos do adoecimento em suas crenças; percepção do limiar entre o respeito e o acolhimento do profissional relacionado à R/E do paciente; percepção dos profissionais da saúde sobre a R/E na equipe; reflexos da vivência no hospital para a R/E do psicólogo. Existem dilemas e angústias enfrentados pelos profissionais da saúde quanto à postura adequada na abordagem aos pacientes em relação à R/E, o que pode resultar em um acolhimento superficial que não tem abarcado as demandas dos sujeitos em atendimento hospitalar, nem pressupostos da Organização Mundial da Saúde acerca da atenção nesse campo.

Palavras-chave: espiritualidade, psicoterapia, hospitais.


ABSTRACT

Incorporating religiosity / spirituality (R / E) into health care has been a challenge for different professionals, including the psychologist. This study presents a report of professional experience about how the R / E was experienced in psychological care in the hospital context. The results observed were: conception of R / E for the patient and his family and the impacts of the illness on their beliefs; perception of the threshold between the respect and the user embracement of the professional related to the patient's R / E; perception of health professionals about the R / E in the team; reflexes of the hospital experience for the psychologist's R / E. There are dilemmas and anxieties faced by health professionals regarding the proper posture in approaching patients in relation to R / E, which may result in a superficial user embracement that has not encompassed the demands of subjects in hospital care, nor the assumptions of the World Health Organization. Health about care in this field.

Keywords: spirituality, psychotherapy, hospitals.


 

 

Introdução

Em contextos de saúde é fundamental perceber o ser humano a partir de sua integralidade, em aspectos de sua individualidade, relações sociais e com o meio. Essa visão global permite enriquecimento da relação entre profissionais e pacientes, propiciando cuidados preventivos, diagnósticos e terapêuticos. Embora essa noção de cuidado holístico e integral esteja presente na maioria dos atuais protocolos de cuidado em saúde, nem sempre todos os vértices desse cuidado podem ser plenamente atendidos, promovendo uma atenção que não se constitui, de fato, como uma escuta integral ao sujeito (Castro & Remor, 2018; Ramezani, Ahmadi, Mohammadi, & Kazemnejad, 2014; Rudnicki & Sanchez, 2014; Straub, 2014).

Uma das vertentes a ser considerada pelas equipes de saúde é a atenção à religiosidade/espiritualidade (R/E) que, no contexto de adoecimento, pode se estender a uma busca de significado acerca do propósito da vida e a conexão com o sagrado pessoal de cada indivíduo, processo esse potencializado pelo advento da doença e do possível sofrimento relacionado a esse evento, o que afeta não apenas a pessoa adoecida, mas todo o seu entorno, sobretudo a família e a rede de apoio mais próxima (Précoma, Oliveira, Simão, Dutra, Coelho & Izar, 2019).

A R/E é uma dimensão que vem sendo cada vez mais evocada nos protocolos de saúde, embora a sua implementação ainda seja permeada por questionamentos, notadamente por parte dos profissionais de saúde. No contexto brasileiro, a R/E ganha especial destaque, haja vista o modo como essa dimensão está relacionada à nossa cultura. De acordo com Moreira-Almeida, Pinsky, Zaleski e Laranjeira (2010), em um estudo a respeito da representatividade religiosa da população brasileira, 83% dos participantes destacaram que a religião é muito importante em suas vidas, sendo que 37% relataram assiduidade em serviços religiosos semanalmente. Esses dados foram corroborados pelo estudo de Bezerra, Souza, Barbosa e Souza (2018), ao salientarem sobre como a vida das pessoas em situação de adoecimento e/ou morte podem ter aspectos religiosos e espirituais exercendo influência durante os cuidados oferecidos e o percurso vivenciado em função da doença. Esses dados evidenciam a necessidade de diminuir cada vez mais as limitações que dificultam o tratamento adequado de todas as demandas do paciente a partir de um modelo biopsicossocial e espiritual (Büssing & Koenig, 2010). Essas concepções justificam a relevância de ampliar o conhecimento científico no campo da religiosidade e da espiritualidade associados aos processos de saúde e doença (Cunha & Scorsolini-Comin, 2019a).

O caráter conceitual de religião é apresentado como um sistema de práticas e crenças sobre o sagrado e o Divino organizado de forma estruturada por valores e rituais religiosos, sendo que seus praticantes podem aderir de forma frequente e formal, ou não (Freitas, 2014). Já o conceito de espiritualidade é compreendido pela busca do sagrado, relacionado a valores, fé e transcendência de forma mais aberta e livre, independentemente de fatores culturais ou sociais. Ainda que exista distinção entre as terminologias, é comum a sobreposição entre as duas definições, uma vez que se referem a inclinações muitas vezes semelhantes e de difícil diferenciação (Marques, 2010). Por esse motivo, este estudo, em consonância com a literatura no campo da saúde (Cunha & Scorsolini-Comin, 2019a), empregará a terminologia combinada, religiosidade/espiritualidade ou R/E.

Estudos têm associado a R/E à saúde mental, demonstrando uma relação positiva entre maior disponibilidade de recursos para enfrentamento de situações estressantes e ter uma R/E. Em contrapartida, aqueles que não possuíam crenças de R/E vivenciavam de forma mais negativa e emocionalmente adoecedoras as situações de vulnerabilidade decorrentes do adoecimento (Koenig, 2012). Tendo em vista a relação entre R/E e saúde mental, Cunha e Scorsolini-Comin (2019a) pontuam a respeito da relevância de profissionais que atuam na área de saúde emocional, como os psicólogos, em inserirem fatores relacionados à compreensão e acolhimento sobre a R/E de seus pacientes em contexto clínico, além dos profissionais se prepararem mais para esse tipo de abordagem.

Existe uma falha na formação dos psicólogos que, em sua maioria, não recebem uma preparação adequada para lidar com a R/E dos pacientes/clientes. Isso ocorre pela ausência de reconhecimento dos psicólogos quanto às práticas espirituais como parte integrante de indivíduo e de sua ontologia própria. Outro dado é a dificuldade dos psicólogos em se perceberem também dentro dessa caracterização de pessoa que possui crenças próprias a respeito da R/E. A percepção da própria subjetividade do psicólogo faz-se relevante no estudo da espiritualidade para possibilitar o rompimento das separações preconizadas pelo projeto moderno de ciência que intensifica a ruptura entre seus estudos e o campo da R/E (Neubern, 2013).

Uma possibilidade de propiciar maior abertura dos psicólogos para lidarem com o processo de R/E é tornar-se disponível, mergulhar no espírito daquele que mostra seu sagrado com perspectivas concretas, presentes e futuras. Se abrir totalmente ao invés de seguir o padrão de formação que seria se apressar para dar significados, embasados em sua individualidade e interpretações. Ele deve apenas se entregar e compartilhar a experiência espiritual do sujeito de quem "cuida" Essa atitude sustentada envolve a necessidade de que o profissional de dispa de alguns pressupostos relacionados à pretensa neutralidade do psicólogo, o que, frequentemente, é fortalecido durante a graduação. Essa busca por neutralidade e isenção seria a responsável, muitas vezes, pelo afastamento desses profissionais dessa dimensão. O efeito desse afastamento é justamente a exclusão da R/E dos contextos de atenção do profissional de Psicologia, aspecto este que também atravessa a formação e a atenção promovida por outros profissionais de saúde (Neubern, 2013).

A partir desses elementos aqui sumarizados e considerando que a incorporação da R/E no cuidado em saúde, embora seja um reconhecido vértice do cuidado, tem promovido questionamentos e impasses em termos da atuação profissional (Freitas, 2014; Ramezani, Ahmadi, Mohammadi & Kazemnejad, 2014), este relato de experiência profissional visa a contribuir empiricamente para essa discussão. O presente estudo apresenta um relato de experiência profissional acerca do modo como a R/E foi experienciada em atendimentos psicológicos realizados no contexto hospitalar. A partir da inserção prática de uma profissional de Psicologia em um hospital de médio porte, buscou-se compreender as especificidades do trabalho clínico nesse contexto.

 

Método

O presente estudo trata-se de um relato de experiência profissional (Tosta, Silva, & Scorsolini-Comin, 2016). As vivências aqui discutidas foram extraídas a partir da prática ao longo de quatro anos em um hospital de médio porte, localizado na região do Triângulo Mineiro, Estado de Minas Gerais. A pesquisa foi sendo construída a partir da intervenção realizada, de modo dinâmico, processual e incorporando os desafios que foram emergindo com o tempo (Scorsolini-Comin, 2015). Tais vivências foram registradas em diários de campo ao longo desse tempo e discutidas em supervisão, o que orientou as principais reflexões reunidas no presente relato, a fim de atender aos objetivos do estudo, ou seja, com foco na dimensão da R/E.

Desse modo, o relato aqui apresentado possui essa especificidade, destacando a possibilidade de releituras com vistas ao aperfeiçoamento e possível ampliação dessa experiência, bem como sua replicação em outros contextos semelhantes. Questionamentos analisados a respeito da experiência no contexto hospitalar foram organizados a partir de quatro núcleos temáticos que sumarizam tal experiência em tela: (1) A concepção de R/E para o paciente e seus familiares e os impactos do adoecimento nessas crenças; (2) Qual o limiar entre o respeito e o acolhimento do profissional a respeito da R/E do paciente, (3) Qual a percepção dos profissionais da saúde sobre a R/E entre a equipe e (4) Os reflexos da vivência no hospital para a R/E do psicólogo.

 

Resultados e Discussão

A intervenção clínica realizada no hospital, alvo do presente relato, ocorreu em uma instituição de referência, no início de 2015 até início de 2019. A psicóloga responsável pelo setor de Psicologia Hospitalar deste equipamento realizava atendimentos psicoterápicos na Unidade de Tratamento Intensivo - Adulto (UTI-A), Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal e Pediátrico (UTIN), enfermarias e pronto socorro. Além disso, acompanhava as visitas e boletins médicos oferecidos aos familiares e acompanhantes e realizava acolhimentos em sala de espera dos setores fechados.

A concepção de R/E para o paciente e seus familiares e os impactos do adoecimento nessas crenças

O trabalho no ambiente hospitalar permitiu a convivência com um perfil diversificado de pessoas de distintos níveis socioeconômicos, culturais, intelectuais e religiosos. Foi possível perceber como cada paciente-familiar vivenciava e se comportava de maneiras completamente distintas frente ao processo de adoecimento.

Em relação à R/E percebeu-se o dilema enfrentado pelos familiares com sua relação religiosa/espiritual. Diante desta vivência alguns intensificavam sua espiritualidade promovendo uma ampliação da crença e aqueles que não possuíam nenhuma crença afirmavam "agora eu realmente confirmei que não existe nada". No entanto, também ocorriam situações em que "descrentes" passavam a acreditar no Divino. Um perceptível dilema era percebido a partir do que os pacientes e familiares julgavam resultados, ou ausência dele, em suas orações. Havia o comportamento daqueles que tiveram "suas preces atendidas" versus aqueles que não foram "ouvidos", não obtendo a cura da doença diagnosticada ou que o paciente foi a óbito. Assim, eles questionavam os resultados de suas vivências de adoecimento e a "resposta" oferecida pelo sagrado frente a essa vivência.

Neste ponto, um primeiro aspecto a ser discutido refere-se à experiência da R/E como efeito dos resultados de uma determinada terapêutica. Assim, o maior ou o menor engajamento religioso-espiritual parece estar associado aos desfechos em saúde, balizando a aproximação ou o distanciamento de pacientes e familiares em termos dessa dimensão. Um primeiro movimento deflagrado a partir desse relato, portanto, envolve a emergência da R/E como resposta aos desfechos de determinado tratamento, podendo ser evocada ora para justificar esses efeitos, ora para dar significado a essas experiências que podem envolver dor, sofrimento e mesmo a cura. Auxiliando assim no cuidado em saúde, adesão ao tratamento e, em alguns casos, até mesmo no prognóstico do paciente (Novaes, Peixoto, Santos Júnior, Santos, Moura & Rodrigues, 2019).

Também havia um comportamento distinto em relação à tríade paciente-família-equipe a partir do local em que cada indivíduo vivenciava sua internação. Eram diferenciados os casos acompanhados no setor de UTIN daqueles da UTI-adulto, apenas para citar um exemplo. Na primeira havia um forte questionamento sobre "o porquê" dessas vivências, enquanto no segundo, ainda que também houvesse um sofrimento considerável, era perceptível na fala dos envolvidos maior aceitação, como um processo natural da vida. No caso de idosos, como era comum terem passado pela maioria dos itens do relógio social ao longo de sua vida, os profissionais percebiam que era "compreensível" e esperado, não gerando tantos questionamentos. No entanto, quando crianças, adolescentes e jovens adultos recebiam algum diagnóstico ou iam a óbito era mais difícil para a equipe aceitar os fatos (Lima & Silva, 2019; Spies Subutzki, Lomba, & Backes, 2018). Além dessas diferentes repercussões para a equipe profissional, pode-se destacar que esse movimento também recupera, de certo modo, uma tendência quando são analisadas as repercussões desses processos de adoecimento e de morte nos familiares cuidadores. De modo que o impacto pela morte de um filho, parece ser referida como mais dolorosa se comparada à morte de uma pessoa mais idosa (Morelli & Scorsolini-Comin, 2016). Assim, a morte acaba sendo associada, historicamente e também no cuidado em saúde, como um evento ligado ao desfecho de uma vida que, de certo modo, já esgotou suas possibilidades, o que não ocorreria com crianças e adolescentes. Ou seja, que estão no início do ciclo vital (Ariès, 2014).

Tendo em vista essas questões e as subjetividades da vivência para cada paciente e familiar, é fundamental que ocorra uma interpretação sobre a R/E que seja oferecida pelo próprio paciente e não interpretada apressadamente pelo psicólogo, uma vez que, ao longo de seu processo de adoecimento, o importante são os recursos que pacientes e familiares encontram e utilizam para lidar com essa vivência de adoecimento e finitude. Assim, recomenda-se que o profissional de saúde, no caso o psicólogo, possa abrir-se à escuta desses pacientes e familiares, buscando também fazer esclarecimentos sobre essas vivências tomando por base o modo como, histórica e socialmente essa questão tem se apresentado. Essas informações podem promover nessas pessoas, alvos do cuidado, a sensação de que essas experiências são também compartilhadas e fazem parte da própria condição humana, o que pode legitimar essas percepções e favorecer a adoção de posturas mais amadurecidas a partir dessa clarificação.

Qual o limiar entre o respeito e o acolhimento do profissional acerca da R/E do paciente?

É importante que o profissional de Psicologia se recorde sempre que o hospital é um ambiente que permite a interação de diversos perfis de pessoas, cada um com suas próprias crenças de R/E. Dessa forma, é um campo amplo, que possibilita muito aprendizado quando à abertura por parte do profissional. Percepção esta que é corroborada pelo estudo de Neubern (2013), ao sublinhar e relevância do psicólogo buscar compreender o universo espiritual de cada paciente a partir, unicamente, do encontro vivenciado em cada momento, ao invés de focar em gerar interpretações e leituras referentes a desdobramentos de personalidade, processos dissociativos ou sintomas de psicopatologias. Na prática, isso equivale a permitir que a R/E como vértice de cuidado possa se expressar no momento da oferta do cuidado, por exemplo. Assim, mais importante do que possuir um protocolo avaliativo acerca da R/E do paciente é desenvolver uma postura de abertura a essa dimensão, compreendendo os sentidos expressos e avaliando se e de que forma essas percepções podem atravessar os processos de saúde e de doença. A interpretação, nesse contexto, deve limitar-se aos possíveis efeitos dessa R/E nesse processo, não cabendo considerações clínicas que, muitas vezes, distanciam o profissional de seu paciente.

De acordo com Cunha e Scorsolini-Comin (2019b), os psicoterapeutas consideram a R/E de forma integrada ao cuidado à saúde do paciente, uma vez que esta dimensão constitui uma variável significativa do processo cultural dos indivíduos. Portanto, a R/E deve ser valorizada e investigada, podendo auxiliar em uma maior compreensão sobre comportamentos, qualidade de vida e estratégias de manejo utilizadas para lidar com as situações adversas e potencialmente mobilizadoras do ponto de vista emocional, com nos processos de adoecimento e de internação prolongada, por exemplo. Outra possibilidade é a compreensão de como a R/E, para determinados pacientes, podem se constituir como recursos de enfrentamento (coping), evocando potencialidades diante de uma situação de maior vulnerabilidade, comum no cenário hospitalar. Portanto, esses autores concluíram que os psicólogos, para alcançarem uma escuta verdadeira e que busca compreender as demandas dos pacientes, devem utilizar como estratégias básicas o respeito e o acolhimento na relação paciente-psicólogo.

Para alcançar uma relação aberta com o paciente-família sobre a R/E é fundamental que o psicólogo não realize julgamentos de valor para, assim, ter condições de lidar com esse contexto e respeitar o paciente-familiar. Além disso, não permitir que o seu medo e a sua insegurança interfiram na postura adequada e que o limitem para lidar com a R/E do paciente. Aqui cabe um esclarecimento sobre essas posturas, de medo e de insegurança ao explorar a dimensão da R/E. Esse movimento, muitas vezes, pode ser derivado de uma formação que não foi sensível a essa dimensão ou que não abriu espaço para que tal reflexão fosse realizada (Cunha & Scorsolini-Comin, 2019c; Freitas & Piasson, 2017). Assim, esses profissionais podem estar despreparados do ponto de vista instrumental para promoverem esse cuidado espiritual. Para além disso, a herança histórica da Psicologia como ciência, afastando esses conteúdos da formação desses profissionais, pode explicar o distanciamento desses profissionais dessas questões que, contemporaneamente, têm recebido um olhar mais cuidadoso nos ambientes hospitalares. Também esse distanciamento epistemológico pode ser derivado do próprio desconhecimento acerca da história da Psicologia, haja vista que um dos maiores autores da Psicologia da Religião, William James, foi um dos precursores da Psicologia científica (Borges, Almeida, & Freitas, 2012; James, 2017).

Qual a percepção dos profissionais da saúde sobre a R/E entre a equipe?

Foi possível perceber que a morte era um processo mais automatizado, até mesmo banalizado, no ambiente de Unidade de Terapia Intensiva Adulto quando em comparação à percepção dos profissionais e familiares que presenciavam ou vivenciavam perdas na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal e Infantil. Percepção esta que foi coletada a partir da observação dos comportamentos da equipe e dos demais familiares com pacientes que seguiam no setor, após o falecimento de algum outro paciente da UTIN. Era perceptível o quanto os profissionais e demais familiares se mantinham em processo de "luto" após o falecimento de algum paciente do setor, sendo que alguns enviavam coroas de flores para o local do velório, compareciam às missas, cultos e demais celebrações religiosas e, até mesmo, participavam do enterro. De acordo com Spies Subutzki, Lomba e Backes (2018) em um grupo focal realizado com equipe multiprofissional de uma UTI neonatal apontaram, por meio da análise dos dados, quatro categorias temáticas em relação a percepção da equipe sobre a morte de pacientes do setor. As categorias foram a respeito da morte como um processo de interrupção da ordem natural, como um processo complexo para o qual não se tem respostas, como um despertar para um novo estado de vida e morte e também como um processo que leva a potencialização da espiritualidade.

Outra característica comum era a necessidade que a equipe possuía de que a Psicologia conseguisse "fazer com que os familiares entendessem" a perda, a gravidade da situação e não sofressem "além do esperado". Percebia-se que esse comportamento da equipe era um reflexo de sua própria dificuldade em presenciar junto ao outro esses sofrimentos resultantes de diagnósticos difíceis e frente a algum processo iminente de finitude. Essa dificuldade aparentava dificuldade dos profissionais em lidarem com sua própria ansiedade e angústia, intensificados pelo sentimento de impotência, desejando ser capaz de acolher de uma maneira efetiva, mas apresentando dificuldade quanto a essa questão por "não saber o que dizer ou fazer". Assim, é possível sublinhar que os profissionais de saúde reconhecem a necessidade de desenvolverem habilidades para lidar com o processo de finitude, tanto de formas pessoais como funções técnicas que os auxiliem nestas vivências (Spies Subutzki, Lomba, & Backes, 2018).

A percepção é de que eram momentos em que deveria ser possível acolher e diminuir a intensidade da dor dos pacientes ou familiares, mas a ausência de uma rápida resposta gerava muita angústia. Veras, Menezes, Guerrero-Castañeda, Soares, Anton Neto e Pereira (2019) pontuam a respeito da necessidade de maior reflexão e ampliação dos conhecimentos em relação à dimensão da R/E entre os enfermeiros. Salientam, ainda, a importância de investimentos dispensados durante o processo de formação dos profissionais de enfermagem, de forma que estes tenham condições de acolher adequadamente os pacientes ao longo do processo de adoecimento, promovendo assim mais bem estar e melhoria da qualidade de vida. Essa dificuldade também é apontada em relação à formação do profissional de Psicologia (Borges, Almeida & Freitas, 2012; Cunha & Scorsolini-Comin, 2019a).

Os reflexos da vivência no hospital para a R/E do psicólogo

Estar em um ambiente como o hospital, no qual se encontra todo momento tanto dor e sofrimento devido às vicissitudes da vida convida os profissionais que diariamente frequentam e trabalham neste tipo de instituição a questionar a vida, seus porquês, a forma como lidamos com nosso cotidiano e as consequências dessas escolhas. Dessa forma, não refletir a respeito de crenças pessoais, a existência ou não de um Divino e a própria R/E no sentido trabalhado neste relato é praticamente impossível. Isso porque vivências tão intensas e complexas, ocorrendo diariamente, geram angústias, ansiedades e também uma ressignificação da forma de ver o mundo desses profissionais.

Por meio do lugar oferecido pela Psicologia como profissional referência sobre o cuidado com a saúde mental no hospital, o psicólogo acaba por conviver com pessoas de distintas crenças quanto à dimensão da R/E. Assim, consegue aprender e ampliar seus conhecimentos não apenas por meio de teorias filosóficas e teológicas, mas também por vivenciar ao lado de pacientes e familiares a forma pessoal de cada um praticar e experienciar a R/E ao longo do processo de adoecimento. Vivência partilhada que convida o psicólogo a amadurecer sua própria percepção acerca da R/E, embora esse espaço seja tradicionalmente negado a esse profissional (Cunha & Scorsolini-Comin, 2019a).

Além disso, também é relevante o cuidado com algumas crenças pessoais e comportamentos como: "acolhimento desacolhedor", acreditar que "ciência e religião não se misturam" (Neubern, 2012) e agir como se esta crença fosse um fato, resultando na busca da manutenção de sua "fantasia de neutralidade", o que pode interferir em seu vínculo com o paciente. Tais posturas podem conduzir o profissional a se esconder atrás de sua cientificidade, gerando distância do paciente. O acolhimento desacolhedor postulado por Neubern retrata um movimento que parece ser costumeiro ao abordarmos a R/E: pelo profissional não se sentir seguro ao explorar essa dimensão, acaba fazendo questionamentos superficiais, por exemplo, acerca da R/E do paciente, não se aprofundando nessa temática mesmo quando o paciente sinaliza esse desejo ou essa necessidade. Essa superficialidade também pode ocorrer em relação à própria R/E do profissional, havendo a concepção de que este questionamento pessoal não se revela importante para a sua atuação.

Com o intuito de evitar condições de superficialidade no manejo da R/E é recomendável se permitir em profundidade essas experiências em seu ambiente de trabalho, sendo imprescindível que o psicólogo se posicione, respeite e valide sua própria R/E. Dessa maneira ele se torna mais preparado e aberto para lidar com possíveis discrepâncias de opiniões e crenças, mas sempre priorizando e valorizando uma postura de acolhimento, respeito e ética. A importância deste posicionamento é salientada por Cunha e Scorsolini-Comin (2019b) e Neubern (2012) ao pontuarem que o psicólogo deve tentar lidar com suas dificuldades e desconhecimentos frente ao desafio que é realizar a junção entre a ciência que é passada ao longo da formação, mas também sobre como esse posicionamento de abertura pode estabelecer uma relação mais genuína com sua própria R/E e, consequentemente, com o acolhimento oferecido ao paciente. Uma vez que só é possível ver da perspectiva do outro se o profissional estiver, de fato, neste lugar que lhe pertence.

 

Considerações Finais

Ao longo deste relato foi possível perceber os desafios e dilemas vivenciados pelos profissionais de saúde a respeito de qual a postura adequada, o momento de se abordar, e perceber o limite sobre até que ponto questionar a respeito da R/E dos pacientes e seus familiares. Por meio da experiência relatada e da literatura utilizada para ampliar o conhecimento sobre essa temática forma-se a hipótese de que essa dificuldade pode ser resultante de uma falta de preparo ao longo da formação desses profissionais. Além disso, também pode estar relacionada a crenças pessoais e dificuldades em realizar uma união entre a ciência e as técnicas "pregadas" ao longo do período de graduação.

Percebeu-se que, muitas vezes, os profissionais possuem dificuldades semelhantes em vivenciar as perdas ocorridas em seus respectivos setores. Um exemplo é o fato de demonstrarem tanta dificuldade em lidar com perda de crianças, quanto os familiares. Até mesmo buscando em sua própria R/E compreender essas experiências. Assim, buscam uma transcendência por meio de vivências espiritualizadas, uma transcendência no processo de adoecimento, até mesmo como forma de tentarem ir além, encontrar o que não pode ser explicado.

Portanto, é fundamental que o psicólogo tenha cuidado quanto à R/E do paciente, para não se relacionar de forma superficial e/ou realizar um acolhimento raso e, por receio de perder o controle do atendimento, não permitir que o paciente se aprofunde em suas demandas a respeito desta temática. Dessa forma, a principal conclusão sobre o posicionamento do psicólogo quanto a R/E no ambiente hospitalar é priorizar sempre o respeito e a abertura ao olhar do outro.

Por fim, há que se destacar que, embora os relatos de experiência profissional não componham evidências científicas para a prática quando se apresentam de modo dissociado de pesquisas, deve-se ampliar o espaço para que tais relatos possam ser compartilhados, ampliando as vozes que se avolumam na defesa de um cuidado mais integral e que, portanto, integre a R/E, e também como forma de desmistificar essa temática, possibilitando a reconexão do sujeito psicólogo com as epistemologias que embasaram a sua atuação, o que não deixa de se alinhar aos pressupostos da cientificidade e da ética que balizam sua atuação. Este desafio, aqui problematizado, pode dar origem a práticas mais acolhedoras e humanizadas, conferindo à R/E não um espaço de especificidade, mas de pertencimento ao sujeito. Naturalizando a R/E como dimensão constitutiva, espera-se promover práticas que a acolham de modo igualmente natural, humanizando a sua expressão e, consequentemente, o cuidado em saúde.

 

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Submetido em: 6-4-2020
Aceito em: 13-12-2020

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