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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.17 no.1 São Paulo  2009

 

SEÇÃO TEMÁTICA: A família na sociedade pós-moderna: o recorte psicodramático

 

Valorização dos Avós na Matriz de Identidade

 

The grandparents in the Matrix of Identity

 

 

Marcia Almeida Batista1

Pontífica Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do atendimento clínico, a autora apresenta as vantagens de incluir na pesquisa da matriz de identidade a figura dos avós. Isto permite ver de forma clara a mudança do discurso social através dos tempos, a ideologia presente em determinados papéis e sua influência nas questões atuais trazidas pelos clientes, além de criar um campo mais relaxado do que a abordagem direta das relações pais e filhos.

Palavras chave: Avós, matriz de identidade, papéis, inversão de papéis, coinconsciente, ideologia.


ABSTRACT

Based on her clinical experiences, the author presents the advantages of including grandparental figures in the exploration of the matrix of identity. Beyond allowing more flexibility than the direct investigation of parents-children relationships, this approach also gives us a clearer understanding of the changes that occur over time in social communication, of the ideology that is present in certain roles and how this influences the issues that clients bring to their therapy.

Keywords: Grandparents, matrix of identity, roles, role-reversal, co-unconscious, ideology.


 

 

Em minha experiência profissional, verifiquei que existia uma influência dos avós nas questões trazidas por meus clientes, mesmo não havendo convivência entre ambos, ou mesmo quando os avós já haviam falecido antes do nascimento dos netos. Buscando bibliografia sobre o assunto, encontrei vários textos tratando da relação dos netos com os avós, em sua maioria enfocando a sua presença como substitutos temporários ou permanentes das figuras parentais. Ou, ainda, a possibilidade de que o contato com os avós trata de desmistificar a velhice e a morte.

Bosi (1987), que discute a valorização dos velhos na sociedade, afirma que são eles que trazem na socialização das crianças a relação entre o passado e o futuro, transmitindo certa clareza da ideologia veiculada pelos adultos, por apresentarem, através de suas histórias, a noção de que estes valores se constituem num contexto histórico.

Além disto, quando se incluem os avós na compreensão das questões familiares saímos de uma relação de "sou assim por causa dos meus pais" e passamos a nos perceber como parte de um continuum familiar sem culpados. A inversão de papéis incluindo mais de uma geração pode permitir uma saída para a questão da culpa através de uma compreensão do processo de transmissão de cultura, de crenças e formas de relacionar-se.

Em psicodrama, dois autores tratam do tema: Naffah Neto (1980) discute o que chama de "drama familial", tal qual ocorre nas famílias de pequena e média burguesia. Afirma que há casos de pacientes em que o psicodrama traz à tona personagens de segunda e terceira geração. Para ele, em alguns casos, esta é a única "possibilidade de reescrever-se o drama". Já Reis (1992) trata da transmissão da ideologia através da instituição familiar. Ele usa o referencial psicodramático e utiliza-se das técnicas psicodramáticas para investigá-la.

Refletindo sobre como acontecia a transmissão da ideologia, através de gerações, notei que a mudança das ideias é mais rápida que a mudança dos indivíduos, ou seja, socialmente os valores mudam na fala e não necessariamente na ação, havendo portanto uma diferença entre o que se fala e o que se faz; assim, entendi este trabalho como a possibilidade de ajudar os clientes a localizarem as suas falas internas nos tempos históricos dos personagens que o habitam. Poderia a compreensão da posição dos pais como intersecção entre avós e netos abrir a possibilidade da liberdade diante das armadilhas da ideologia?

Meu intento não era entender a família como realidade factual, mas psíquica, podendo também ser trabalhada numa perspectiva trigeracional. Vi esta possibilidade como um entendimento ampliado da Matriz de Identidade, que em muitos artigos em psicodrama é utilizada como sinônimo da família nuclear.

Haley (1967) considera que a influência intergeracional repercute na comunicação do conjunto mais vasto da família, qualquer que seja a distância geográfica que separa seus membros. Já Boszormenyi-Nagi (1983) e Bowen (1976), na década de 70, passam a incluir os avós nas terapias familiares, deixando de centrar apenas no intrapsíquico, para valorizar também no relacional e no interpsíquico.

Conceitualizando a família como um grupo humano rodeado por uma rede complexa de obrigações e lealdades que exigem cumprimento, mas, ao mesmo tempo, protegem o conjunto familiar, Boszormenyi-Nagi (1983) enfatiza a transmissão, entre gerações, de obrigações e lealdades. Para ele, por mais que se queira desprender das cargas do passado, a estrutura básica da existência de pais e filhos está determinada, pelo menos parcialmente, pelas contas não saldadas das gerações passadas.

Bowen (1976) afirma que o processo emocional mostra o modo como a indiferenciação dos pais, vivida nas experiências com as suas famílias de origem, é expresso na sua própria relação familiar. O processo de transmissão multigeracional postula a passagem do processo de projeção familiar de geração para geração, que fica explicitado por frases como: "ele tem o gênio do avô", "ela é vaidosa como os Almeida" etc. Esse processo de projeção familiar aplica-se em maior ou menor grau de flexibilidade, impedindo movimentos de mudança pessoal.

Macedo (1991) refere que repetições que aparecem nas relações das famílias com os jovens e a alternância destas repetições trigeracionais, por exemplo, entre avós e netos, são elementos muito esclarecedores de alguns comportamentos de jovens tidos como inexplicáveis, incompreensíveis pela família nuclear. Esta mesma perspectiva está presente em comportamentos inexplicáveis de alguns pacientes.

A dramatização permite trazer o mundo psíquico do indivíduo, com seus diferentes personagens internos em aberto na cena dramática. Podese fazer com que esse, ao assumir diferentes papéis, possa aperceber-se dos nós geracionais presentes em si, ou seja, o psicodrama permite o acesso a esses avós, quando, no "como se", o cliente entra no papel de avós internalizados. No psicodrama o recurso da auto-apresentação, em que o indivíduo constrói com objetos ou pessoas seu átomo familiar, o indivíduo se coloca no lugar do outro e pode-se ter acesso à sua construção pessoal a respeito daqueles que compõem a sua família. Nele, como diz Moreno (1972), o indivíduo representa a sua própria pessoa e suas relações subjetivas, da maneira unilateral com que as vê e não como realmente são. Porém, à medida que assume os diferentes papéis presentes no átomo, sua percepção vai se ampliando a partir de diferentes focos vividos.

Ao pesquisar o átomo não nos restringimos às relações do paciente com os elementos presentes, pois as relações dos integrantes do átomo entre si também são exploradas. É neste momento que a possibilidade da exploração trigeracional pode aparecer, ou ser favorecida.

Matriz de identidade - conceito relacional e aberto - refere-se ao primeiro átomo social do indivíduo em que este se diferencia do mundo que o rodeia nos primeiros anos de vida. Daí, em nossa sociedade, ser muitas vezes tomado como a família nuclear. No entanto, é formado da multiplicidade de papéis oferecidos pelos que cercam o indivíduo nos seus primeiros anos de vida, e é através deles, na relação com os que o cercam, que se estrutura como sujeito.

Aguiar (1990) afirma que quando se aprende um papel, assimila-se o todo que o constitui, um conjunto, e não apenas uma parte. Isto é o papel e seu contrapapel, elementos que se intercomplementam de forma individida. Na construção da identidade está, portanto, presente não só o papel, mas sua complementaridade, que permite a inversão destes. O átomo social dos indivíduos não são estruturas fechadas, sofre constantes mudanças e pressões de seu meio social e cultural, influenciando e sendo por ele influenciado.

Nas famílias, que podem ou não se igualar ao átomo social de um indivíduo, no momento em que a tensão entre os conceitos familiares e sociais é maior, pode produzir modificações no indivíduo, sua forma de pensar e encarar a vida. Estas, porém podem se fazer apenas ao nível racional, não sendo necessariamente acompanhada de mudança emocional. Esta mudança ocorre nos papéis em que o indivíduo atua, pois é através destes que ele se relaciona; porém nem todos os papéis são igualmente desenvolvidos.

Moreno (1975) ensina que o processo de desenvolvimento de um novo papel passa por três fases distintas: role-taking – tomada ou adoção do papel, que consiste em simplesmente imitá-lo, a partir dos modelos disponíveis; role-playing - jogar o papel, explorando simbolicamente suas possibilidades de representação; role-creating – desempenho do papel de forma espontânea e criativa.

Poder inverter papéis com o outro significa não só ter posse de uma percepção deste, como também deixar fluir na ação uma forma criativa de desempenhar o papel deste outro. Portanto, a inversão de papéis é prérequisito para que a fase de role-creating possa ocorrer.

Os papéis sociais desempenhados podem então estar em qualquer uma dessas fases, o que mostra o grau de desenvolvimento de um papel. O mesmo acontece com os papéis sociais que se aprende a jogar na Matriz de identidade. Quando um sujeito, por razões várias, não consegue desenvolver os papéis, irá atuar em relação a seu filho de maneira cristalizada também no papel de pai, exigindo que o outro se mantenha dentro das prescrições sociais do mesmo. É possível que determinados papéis, na fase de role-taking, sejam assim transmitidos de pais para filhos. Em outras palavras, criam-se atores capazes apenas de representar personagens tais quais são descritos pelo autor. O sujeito, não podendo criar seu próprio script, o representa sempre da mesma maneira.

Este script estará presente no que Moreno denominou de coinconsciente, conteúdos que pertencem a dois ou mais indivíduos e que se formam a partir do estabelecimento de vínculos íntimos e duradouros. Para Volpe (1986) o coinconsciente inclui a percepção ligada a um modo relacional, incluindo formações fantasmáticas, oriundas dos antepassados, e que atravessam gerações. Essas pautas relacionais podem ser acessadas através da técnica de inversão de papéis.

Entrevistar a mãe e ou o pai internalizados e, a partir disto, favorecer que o cliente tome o papel de avô ou avó, permite uma ampliação da trama dramática, a compreensão de seu script e a noção de sua circunscrição histórica. Além disto, ao colocar estes conteúdos de forma viva no contexto dramático, o que está no passado transforma-se em percepçãoação no presente, o que permite, além de ser entendido, ser vivenciado de forma diferente.

A partir de sessões de seis sujeitos, com idades variando entre 23 e 42 anos, em terapia, todos com nível superior, sendo três homens e três mulheres, e apenas um em terapia de grupo, somente um dos homens tendo tido convívio com seus avós, apresento alguns conteúdos surgidos que corroboram o apresentado até aqui.

Nessas sessões revelam-se conceitos cristalizados sobre o que é ser homem e mulher, com pautas em conflito entre o que se espera socialmente hoje, e o que foi vivido por pais e avós em outras épocas.

Walter mostra que seu avô faz parte de seu mundo externo e, ao tomar seu papel, compreende o momento histórico em que ser homem é ser duro, inflexível; sensibilidade e cumplicidade com mulheres é coisa de "gay". Também compreende a postura artificial do pai, que não consegue se relacionar de forma afetiva nem mesmo com o filho. Ao assumir o script de homem durão, afasta-se de seus sentimentos e, por consequência, de seu filho, de forma cristalizada e distante do contexto em que esta pauta emergiu. Isto libera Walter para uma relação mais afetiva com a namorada e restabelece seu diálogo com a mãe.

Artur também se percebe desta forma e teme a chegada do filho. Ao assumir o papel do avô se dá conta do quanto as falas de seu pai estão presas aos padrões ditados por seu avô, e o que este aprisionamento do pai impediu-o de crescer profissionalmente. Ao tomar o papel do avô percebe o quanto este dependia de seu pai, e escondia isto sob uma atitude autoritária, o que o pai de Artur repete com ele. Ao contextualizar estas falas, pode entender e modificar sua própria opinião sobre o que está vivendo, e pode se permitir não ter que continuar gerenciando os negócios do pai, que pode escolher seu próprio caminho profissional.

Fernando também tem questões sobre a vida profissional, espelha-se no avô materno, que soube crescer na empresa em que sempre trabalhou, recusa-se a se parecer com o pai, que vê como fracassado. Construindo seu átomo familiar, incluída a figura dos avós, pode entender o que ocorre com seu pai, circular entre os homens de seu átomo e compreender qualidades e defeitos presentes em todos eles.

Letícia traz questões quanto a ter filhos, não quer abdicar de sua vida, o que de fato ocorreu, quando sua avó engravidou, e com sua mãe, que enviuvou com filhos ainda pequenos. Apesar de sua avó ter tido uma atitude bastante avançada em sua época, pois se separou do marido unindose a outro homem, transferiu à filha o julgamento de "puta" infligido a si própria pela sociedade. Compreender esta história liberta Letícia para viver sua sexualidade. Não mais se prende ao ditado feito pela mãe, "A mulher é como um cristal, uma vez quebrado não tem conserto". Também a valorização da mulher a partir da presença ou ausência de um homem em sua vida começa a ser questionada.

Este último tema está presente nas sessões de Lenita, que, apesar de um discurso feminista, não se sente capaz de levar a vida sem um homem a seu lado, o que torna também suas relações com as mulheres bastante distantes. As mulheres desta família não se valorizam. No entanto, ao assumir o papel da avó, dá-se conta de que esta criou sozinha seus filhos enquanto o marido bebia, e do que leva sua mãe a uma incessante busca de um homem que a sustente.

Já Mara busca ser escritora e muda-se de sua cidade no interior para a cidade de São Paulo, porém não realiza sua vocação, algo a impede de ir em frente. Entrando no papel do avô, se dá conta de uma história que havia esquecido: seu avô paterno contava que um homem de caráter deve sustentar sua família e não se preocupar com frescuras como literatura, o que parece ser o desejo de seu filho, o pai de Mara. Ela acabou compreendendo seus entraves, mudou-se de São Paulo e hoje colabora com o jornal da cidade em que reside com crônicas diárias.

Ao analisar as sessões destes clientes pude observar que, ao referiremse à família, tinham agora uma sensação de pertinência, e não mais justificavam suas dificuldades através da culpabilização de seus pais, melhorando a relação com eles. Trabalhar numa perspectiva trigeracional permitiu ver como os valores permanecem nos indivíduos, através da transmissão familiar, mesmo quando o discurso social já apregoa mudanças. Em todos estes clientes encontrei semelhanças entre os papéis de mulheres e os de homem de uma mesma geração, mostrando as contradições vividas no contexto social atual. Ao aprender um papel, assimilaram o conjunto da relação, ou seja, o papel e seu contra-papel, o que os tornava ainda mais impermeáveis à mudança.

Trabalhar com a figura dos avós também permitiu estar num campo mais relaxado, com uma carga emocional menos tensa do que quando se abordam as relações paternas. Perceber a determinação histórica da construção do papel relativiza o estabelecido e permite viver o presente de forma espontânea e criativa.

 

Referencias

AGUIAR, M. Teatro da anarquia. Um resgate do psicodrama. Campinas: Papirus, 1988.         [ Links ]

BOSI, E. Lembranças de velhos. São Paulo: Edusp, 1987.         [ Links ]

BOSZORMENYI-NAGI, I. e SAPRK, G.M. Lealtades invisibles. Buenos Aires: s/ed, 1983.         [ Links ]

BOWEN, M. Theorie in the practice of therapy, in: GUERIM, P.J. Family Therapy: Theory and Practice. New York: Gardner Press, 1976.         [ Links ]

HALEY, J. Techniques of family therapy, in: HALEY, J. e HOFFMAN, L. Basic books. New York, 1967.         [ Links ]

MACEDO, R. M. S. O jovem na família, in: Terceiro Simpósio Brasileiro de Pesquisa Científica, Águas de São Pedro, 1990. Anais, São Paulo, 1991.         [ Links ]

MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1975.         [ Links ]

NAFFAH NETO, A. Psicodramatizar. São Paulo: Ágora,1980.         [ Links ]

REIS, J. R. T. Cenas familiares. Psicodrama e Ideologia. São Paulo: Ágora, 1992.         [ Links ]

VOLPE, J. A. Édipo: Psicodrama do Destino. São Paulo: Ágora, 1990.         [ Links ]

 

OBRAS CONSULTADAS

AGUIAR, M. Teatro terapêutico: escritos psicodramáticos. Campinas: Papirus, 1990.

___________Psicodrama e rematrização ideológica. Revista da Febrap, ano 7, n. 1, 1984.

DIAS, C. M. B. Interação familiar – Influência dos avós sobre a família nuclear- Estudo de caso. Dissertação de Mestrado – Departamento de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasilia, 1983.

MORENO, J. L. Psicoterapia de grupo e psicodrama. São Paulo: Mestre Jou, 1974.

___________ Quem sobreviverá? – Fundamentos da sociometria, psicoterapia de grupo e psicodrama. Goiânia: Dimensão, 1992.

SEIXAS, M. R. Sociodrama familiar sistêmico. São Paulo, 1993. Tese de Doutorado PUCSP.

 

 

Endereço para correspondência
Rua Guarará, 529 – cj 65
São Paulo – SP
e-mail: mabatista@pucp.br

 

 

1 Vice-presidente da Febrap (2007-08), diretora de ensino e ciência (2007-08), professora de psicologia PUCSP, terapeuta didata e professora supervisora pela Febrap, coordenadora, professora e supervisora do curso de psicodrama do convênio SOPSP/ PUCSP federada Delphos