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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.17 no.1 São Paulo  2009

 

SEÇÃO TEMÁTICA: A família na sociedade pós-moderna: o recorte psicodramático

 

Famílias homoafetivas

 

Homoaffective families

 

 

Maria Regina Castanho França*

Pontífica Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora problematiza a questão das famílias homoafetivas, discutindo a homossexualidade nas famílias de origem dos indivíduos, a tentativa de assumir esta condição para aos pais, aos irmãos e à sociedade em geral. Foca a homofobia, os problemas advindos das parcerias homoafetivas na sociedade, assim como a questão da adoção de filhos, mostrando as implicações destas escolhas em uma sociedade heterocêntrica. Enfatiza a importância das redes sociais de apoio.

Palavras chave: Famílias homoafetivas, homofobia, heterocentrismo, identidade de gênero, redes sociais de apoio.


ABSTRACT

The author reflects on the issue of homoaffective families, considering homosexuality within the family of origin of individuals, and their attempt to assume homosexuality in front of their parents, siblings and the wider society. The paper looks at homophobia, and the issues that homoaffective partnerships face in relation to society, as well as the issue of child adoption, presenting the implications of these choices in a mainly heterosexual society. The author also emphasises the importance of supportive social networks.

Keywords: Homoaffective families, homophobia, heterocentrism, gender identity, supportive social networks.


 

 

"Mãe: qual a pior coisa que um filho poderia dizer pra você?"
"Que ele é bandido, drogado ou homossexual!"
"Então, mãe..."

Assim Ana Paula contou para sua mãe, aos 15 anos, que estava apaixonada por uma menina... E desta forma se iniciou uma história familiar de desentendimentos, preconceito e proibições. O relacionamento familiar foi deteriorando, com muito choro, brigas terríveis e até ameaças de morte; quando a situação ficou insustentável, os pais, num último recurso, procuraram terapia familiar.

O interesse pela homossexualidade e pelas relações homoafetivas1 vem aumentando significativamente no decorrer dos últimos anos. Em 2003, quando escrevi o artigo Terapia de casais do mesmo sexo, publicado no livro Laços Amorosos (2004), este era um tema pouco abordado na literatura sobre casal e família; encontrava-se pouco material sobre a homossexualidade e, especialmente, sobre o relacionamento entre dois homens ou duas mulheres e a prática terapêutica com casais e famílias homoafetivas.

Embora a reflexão sobre questões e dificuldades enfrentadas especificamente por essa população - um dos grupos mais marginalizados da sociedade - me parecesse essencial, eu me via como uma das poucas vozes nesse período a enfocar esse tema em palestras ou seminários. Pensava, acho que com certa razão – ou talvez com certa pretensão – que, por não ser homossexual, poderia ser mais ouvida ou levada a sério do que se um gay ou uma lésbica estivesse levantando "questões polêmicas, mais provavelmente em causa própria". Apesar de estarmos iniciando o século XXI, o preconceito ainda é tão forte e disseminado que, mesmo em nosso meio profissional, um homossexual tem dificuldade em se expor e lutar por sua causa, temendo a desqualificação do seu discurso e outras reações negativas.

Ao longo do tempo a homoafetividade foi se tornando cada vez mais visível na sociedade, e também mais aceita entre profissionais. No último Congresso Brasileiro de Terapia Familiar (Gramado - agosto/2008) foram apresentados 08 trabalhos tendo como tema a homoafetividade, com grande participação/interatividade do público presente. A discussão que se seguiu a cada apresentação mostrou, por um lado, um grande interesse e envolvimento dos terapeutas com a questão da homossexualidade, mas, por outro, ainda um grande desconhecimento sobre esse mundo "tão diferente".

As questões mais levantadas nas diversas apresentações foram:

• Quais as causas da homossexualidade?

• A homossexualidade é uma opção, uma escolha, ou se refere à orientação sexual (e,... o que é mesmo isso?) ?

• Dois homens ou duas mulheres formam um casal ou um par?

• O que é a bissexualidade? Quais as semelhanças; quais as diferenças?

• Alguns grupos de adolescentes, supostamente heterossexuais (especialmente garotas) vêm desenvolvendo o hábito de beijar suas amigas na boca e eventualmente "ficam" com elas; determinaria isso uma inclinação homossexual?

• Como as famílias se manifestam atualmente quando um filho ou filha se declara interessado em alguém do mesmo sexo: existe aceitação? Não existe? Como ajudar tais famílias?

• Como vive uma criança ou adolescente numa família homoafetiva, isto é, com dois pais ou duas mães? Como lidam com essa realidade? Como ficam as funções parentais?

• O que significa o desejo de adoção cada vez mais presente em casais do mesmo sexo? Que tipo de danos e/ou problemas teria uma criança criada em famílias homoafetivas?

• O que é necessário conhecer para ser um melhor terapeuta para essas pessoas, casais e famílias?

 

BREVÍSSIMO HISTÓRICO (PARA NÃO REPETIR À EXAUSTÃO O QUE IMAGINA SER DO CONHECIMENTO DE TODOS):

Diversos estudos antropológicos mostram que a homossexualidade existiu desde os primórdios da humanidade, em diferentes culturas, sendo considerada em muitas sociedades uma forma normal de vínculo amoroso. Em um tempo mais recente, a partir da segunda metade do século XIX, o homoerotismo foi condenado por razões variadas, sendo considerado crime, depois doença, desvio da norma, perversão sexual...

Em 1948, com a divulgação do Relatório Kinsey, uma extensa pesquisa sobre a sexualidade de homens e mulheres, realizada nos Estados Unidos, foi constatado um universo de aproximadamente 10% da população com alguma experiência homossexual.2

25 anos mais tarde, em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria retirou o "Homossexualismo" da sua lista de distúrbios psiquiátricos; entretanto, apenas em 1995 a OMS – Organização Mundial da Saúde - deixou de considerar a homossexualidade uma doença3. Abriram-se então as portas para o indivíduo que tem relações afetivas e sexuais com um outro do mesmo sexo passar a ser visto apenas como alguém com uma orientação sexual diferente da maioria, o que vem acontecendo muito lentamente.

 

HOMOFOBIA??? HETEROSSEXISMO?? QUE PALAVRÕES SÃO ESSES? (A QUESTÃO DA HOMOFOBIA E DO HETEROSSEXISMO)

No entanto,

continuamos com uma cultura homofóbica, com a constante manifestação de sentimentos negativos em relação aos homossexuais, explícitos ou não. Vivemos numa sociedade heterocêntrica, que parte do princípio assumido como verdadeiro que os seres humanos são naturalmente heterossexuais e que o estilo de vida heterossexual é o padrão normal e deveria ser o único. Este princípio determina uma atitude inconsciente, não intencional, de marginalização e exclusão de qualquer pessoa que fuja às normas (França, 2004).

Alguns homossexuais afirmam que só é capaz de entender os meandros psicológicos pelos quais passaram, uma pessoa que tenha crescido como gay ou lésbica no nosso mundo heterossexual. Argumentam que em outros grupos pertencentes às minorias (raciais ou religiosos, por exemplo), as crianças podem se identificar com seus pais, observálos e aprender com eles a lidar com atos discriminatórios presentes no dia a dia. Pais e filhos constroem uma forte identificação como grupo minoritário e estão do mesmo lado contra a discriminação. Isso não acontece com homossexuais, que não pertencem ao mesmo grupo que seus pais, não podem aprender com eles como lidar com a homofobia e frequentemente são discriminados, rejeitados e oprimidos pela própria família (França, 2004).

Nunca é demais relembrar o aspecto central que a homofobia exerce em todos nós, inclusive nos próprios homossexuais.

"O preconceito e a pressão invisível são tão constantes que o próprio indivíduo homossexual, impregnado por nossa cultura heterocêntrica, acaba por internalizar a homofobia, dirigindo essa atitude negativa contra si mesmo, negando ou reprimindo seus próprios desejos e experiências afetivas. A homofobia internalizada provoca uma expectativa negativa inconsciente a respeito de seus próprios relacionamentos, distorcendo o potencial para se ter um vínculo adulto satisfatório, podendo causar um boicote inconsciente à própria relação" (França, 2004).

Podemos supor que todo homossexual assumido teve que enfrentar sua própria homofobia internalizada de alguma forma, uma vez que para desenvolver um vínculo amoroso com alguém do mesmo sexo é imprescindível adquirir algum nível de auto-aceitação.

 

"QUEM SOU EU?" (IDENTIDADE DE GENÊRO E ORIENTAÇÃO SEXUAL)

Auto-imagem e auto-estima referem-se à maneira como o indivíduo se percebe, como está constituída sua identidade e de que forma ele valoriza ou desmerece a si próprio.

Uma criança, assim que nasce, recebe imediatamente o rótulo de menino ou menina, associado à sua genitália externa, o que dá a ela uma identidade genital.

A maneira como a criança é vista e tratada como ser sexuado, em sua matriz de identidade, por volta dos dois anos e meio forma sua identidade de gênero, ou a sensação interna de pertencer ao gênero masculino ou feminino. Na nossa cultura, meninas em geral recebem mais contato físico e cuidados afetivos, sendo mais estimuladas quanto à vaidade e a comportamentos de dependência; meninos, por sua vez, recebem um tratamento mais duro, que os direciona para comportamentos de força, esperteza e competitividade. Dessa forma os dois gêneros desenvolvem a capacidade de se vincular socialmente como homem ou mulher, ou seu papel de gênero. "O homem não deve chorar, não deve exteriorizar muito seus sentimentos, porque isso seria uma característica feminina. A mulher, por sua vez, não pode demonstrar força nem determinação, pois isso é próprio do comportamento masculino" (Costa, 1994a, p.31).

Ao longo de toda a infância e adolescência, e dependendo do desenvolvimento afetivo, vai se definindo a identidade sexual, ou a sensação interna sobre a capacidade de se relacionar amorosa e sexualmente com outra pessoa. A escolha de nosso objeto de desejo é chamada de orientação sexual e pode ser dirigida a alguém do sexo oposto, a alguém do mesmo sexo, ou às duas possibilidades (bissexualidade). Esse vínculo envolve essencialmente amor e afeto, não sendo apenas de natureza sexual; assim, como Costa (1994a), prefiro usar o termo orientação afetivo-sexual. "Uma pessoa, qualquer que seja sua orientação afetivo-sexual, só será feliz se estiver em sintonia e em paz consigo mesma" (Costa, 1994a).

O processo de descoberta da sexualidade é muito mais conturbado no jovem com tendências homoafetivas. O direcionamento do interesse afetivo e sexual para uma pessoa do mesmo gênero acontece...... independentemente da vontade consciente do sujeito. Apesar de todos os últimos estudos, tanto da psicologia quanto da biologia, ainda não se pode definir o que determina a homossexualidade4. Embora se utilize o termo opção sexual, não se trata verdadeiramente de uma escolha, de uma opção. Acredito plenamente que, se pudesse, a maioria dos homossexuais preferiria ser hétero, para não ter que enfrentar todas as dificuldades e preconceitos com os quais conviverão.

 

"E A FAMÍLIA, COMO VAI?" (FAMÍLIA DE ORIGEM E OS FILHOS HOMOSSEXUAIS)

A revelação da homossexualidade de um filho é extremamente perturbador para um sistema familiar heterossexual. O estresse é particularmente crítico quando a família pensava que realmente conhecia intimamente aquele filho (ou irmão) e produz reações de crise que afetam o equilíbrio familiar de todos os envolvidos. Os pais normalmente reagem com choque, raiva e sentimentos de culpa, mas também podem demonstrar negação ou vergonha. Irmãos em geral respondem com raiva e confusão e podem desenvolver um distanciamento afetivo em relação ao irmão gay ou lésbica. Nos piores casos, o/a jovem pode concretamente passar a "viver com o inimigo", correndo o risco de sofrer abuso físico ou verbal, ou mesmo de ser expulso de casa. (Sawin-Williams, 2004)

O processo de revelação da homossexualidade de um filho ocorre de acordo com o grau de proximidade emocional que o indivíduo tem com os membros da família, eventualmente de acordo com o grau de dependência do filho com relação à aprovação dos pais. Pesquisas mostram que em geral a revelação ocorre primeiro com a mãe, depois com os irmãos, e por último com o pai (se é que ocorre...). Um estudo americano mostra que 50% dos gays e lésbicas não conseguem se assumir como tal, diante de seus pais, enquanto apenas 25% deles não se assumem para suas mães. Entre aqueles que ousaram expor sua orientação sexual, no entanto, apenas uma percentagem de 10 a 15% se sentiu totalmente confortável e aceito pela família, enquanto entre 70 a 75% obtiveram algum grau de aceitação, e o restante, de 10 a 15%, se sentiu não aceito ou rejeitado, mesmo em longo prazo5. Como serão esses dados no Brasil, o país que tem preconceito contra ter preconceito... e, portanto, explicita e debate muito menos esse conflito?

A reconciliação após a revelação pode tornar-se um longo processo. Para lidar com a situação de maneira saudável, a família deveria buscar informações sobre a homossexualidade e não tratar o assunto como um "segredo" de família; também seria muito útil participar de grupos de apoio, para perceber que existem outras formas de relacionamento6. De modo geral, a maioria das famílias, mesmo aquelas que reagem muito negativamente no início, se torna mais tolerante ou receptiva com o passar do tempo.

"Mateus tem 23 anos, e acaba de contar à mãe que é homossexual; diz que já sentia atração por outros rapazes desde a adolescência e que lutou muito contra esse desejo; tentou namorar meninas... mas que realmente não sentia grande atração por elas. A conversa foi toda permeada de muito choro e muita dor.

A mãe, chocada com essa revelação, marca imediatamente uma consulta com a psicóloga. Relata que aquele era seu filho caçula, com quem sempre se entendeu maravilhosamente bem; jamais poderia imaginar uma coisa desta!!! Imagina que talvez ele esteja sendo influenciado por alguém... e questiona o que pode ser feito para fazer o menino "voltar ao normal". Diz que tem muito medo da reação do pai, que às vezes se torna muito violento, e que tem horror a gays; relata que o pai nunca se deu muito bem com esse filho caçula, por achá-lo excessivamente mimado, e que isso foi tema de inúmeras brigas entre o casal. Está perdida...não sabe o que fazer!"

De forma geral, é importante para os próprios gays e lésbicas que possam assumir sua orientação homossexual perante seus familiares; o processo de diferenciação do self pressupõe ser essencial não esconder um "segredo" deste porte da família de origem. Sentir-se amado, aceito e reconhecido pela família é um requisito básico para o bem-estar emocional. Decidir não se expor, no entanto, pode significar um desejo de evitar conflitos ou tensões inevitáveis, ou mesmo um cuidado com a própria sobrevivência física ou econômica, em relação à família ou à comunidade em geral. Em alguns casos, deve-se à convicção de estar evitando um sofrimento aos familiares.

Um dos problemas mais doloridos relacionados à homofobia refere-se à não-aceitação pela própria família, com a possibilidade de rejeição ou marginalização, não por algo que se tenha feito, mas por algo existencial!

Creio que a melhor maneira de se ajudar gays e lésbicas a conseguirem um melhor relacionamento com suas famílias de origem é trabalhando inicialmente sua própria homofobia internalizada; a ampliação da consciência, a percepção das consequências das dificuldades vividas possibilita uma aceitação da própria orientação sexual de forma mais integrada, o que favorece a obtenção de aceitação pela família. A auto-aceitação favorece muito a maior compreensão e o suporte por parte da família, uma vez que o indivíduo terá menos reações emocionais e mais assertividade quando tiver que lidar com a homofobia familiar.

 

"MINHA FAMÍLIA SÃO AQUELES QUE ESCOLHO: MEUS AMIGOS!" (A FAMÍLIA ESCOLHIDA: A REDE SOCIAL DE APOIO)

Embora a aceitação e o apoio familiar possam ser essenciais, dificilmente um gay ou uma lésbica se identifica com seus pais quanto à orientação afetivo-sexual. Muitos adolescentes se desenvolvem com um profundo sentimento de solidão, não recebendo apoio nem preparo para lidar com a homofobia.

Todo ser humano tem uma necessidade básica de ter uma rede social formada por pessoas semelhantes, com quem compartilha afeto, aceitação, intimidade, apoio, lazer, calor emocional e um sentido de pertencimento. Gays e lésbicas muitas vezes não conseguem ter essas necessidades preenchidas por sua família de origem, e menos ainda que sua relação com um parceiro do mesmo sexo seja aceita. O preconceito e a perseguição fazem com que busquem novos valores a respeito de muitas normas, entre elas o que significa ser família. Como compreensão, apoio emocional e mesmo ajuda concreta, podem ser encontrados mais facilmente em amigos do que na família, a comunidade homossexual desenvolveu muito criativamente o conceito de "família de escolha" (Weston, 1991); trata-se da rede social de apoio, que pode incluir amigos, assim como parceiros, ex-parceiros, filhos, podendo inclusive conter membros da família biológica. Casais homossexuais bem resolvidos têm uma ampla rede social de amigos, que em geral se relacionam entre si; quando essa interconexão de vínculos de amizade existe há longo tempo, começa a ter características de família, por isso se fala em "família escolhida".

Diferentemente dos heterossexuais, que em geral têm sua família de origem e um grupo social de amigos, ambos importantes e que preenchem necessidades variadas, os homossexuais muitas vezes só se relacionam com a família de escolha; esta pode assumir um papel tão essencial, chegando a gerar dependência e a "impor" certos códigos de conduta, que o indivíduo se vê compelido a aceitar, independentemente de suas convicções pessoais.

 

CASAIS HOMOSSEXUAIS COM FILHOS - FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS

Diversas instâncias da sociedade estão envolvidas com o reconhecimento legal da união estável entre pessoas do mesmo sexo, com a decorrente polêmica levantada pelos setores mais conservadores da sociedade. Esse provável reconhecimento trará inúmeras implicações psicológicas, sociais e culturais, tanto do ponto de vista individual quanto no grupo familiar. Em primeiro lugar "tiraria das sombras" o reconhecimento homoafetivo, que ainda hoje é vivenciado por muitos indivíduos como algo a ser escondido; muitos indivíduos e casais optam por ser invisíveis para a sociedade, o grupo cultural e profissional a que pertencem e a própria família, para não sofrerem os efeitos danosos do preconceito.

Segundo a advogada Viviane Girardi:

"a jurisprudência brasileira, acompanhando a tônica internacional, considera que ... as uniões homossexuais vão além do simples fato de se constituírem por pares do mesmo sexo, pois são uniões que têm sua gênese no afeto, na mútua assistência e solidariedade entre os pares, e, dessa forma, não seria mais possível se deixar de reconhecer efeitos jurídicos para esse tipo de união". (Girardi, 2005, p. 50)

Juízes da Vara Cível do Rio Grande do Sul desde 1999 vêm julgando questões envolvendo a partilha de bens entre casais homossexuais, e recomendando que tais causas sejam julgadas pelas Varas de Família (e não por eles, da Vara Cível), como ocorre nas separações envolvendo heterossexuais, uma vez que ambas tratam de relações de cunho afetivo. O reconhecimento jurídico da homossexualidade e dos direitos dos homossexuais acelera o processo de aceitação da sociedade como um todo, devido ao caráter legal que assume.

O reconhecimento do direito à sexualidade e ao livre exercício da orientação sexual favoreceria sobremaneira a diminuição da homofobia, essencial para a melhor inserção de gays e lésbicas nas próprias famílias, no trabalho e na vida social.

Atualmente diversos casais homossexuais estão buscando na justiça seus direitos referentes não só ao reconhecimento legal da sua união, mas também à adoção de um filho. A adoção pelos dois pais, ou pelas duas mães, com certeza contribuiria para a maior definição dos direitos e, portanto, para o futuro dessa criança.

O fato de a união homossexual não ser reconhecida legalmente acarreta uma série de danos para os casais, como não conseguir designar seu companheiro como herdeiro ou beneficiário legal, nem ter direito a ser considerado dependente para utilização de seguro saúde e outros benefícios. Gays e lésbicas muitas vezes sofrem impedimentos legais em relação aos próprios filhos, fruto de casamentos heterossexuais anteriores. Esta discriminação costuma ser ainda maior em relação ao parceiro homossexual do pai ou da mãe da criança, ainda que este tenha funcionado como uma figura parental ou de apego, partilhando da educação e dos cuidados durante muito tempo7.

O que se questiona é o que acontece com essas crianças, criadas por dois homens ou por duas mulheres. Como ficam as questões de identificação e o desempenho das funções materna e paterna?

Existe uma grande preocupação referente à falta que faria uma figura masculina ou feminina à criança adotada por um casal do mesmo sexo. Na realidade brasileira, de um enorme contingente de famílias monoparentais8, além da crescente diversidade familiar que encontramos, essa questão perde sua relevância. Entretanto, podemos afirmar que os papéis materno e paterno, de fato importantes para um bom desenvolvimento psicossocial da criança, não estão mais diretamente associados à figura da mulher ou do homem, nem mesmo nos casais heterossexuais atuais. Desempenha melhor a função materna e a paterna o progenitor que mais se identifica com as tarefas associadas a estes papéis, seja homem ou mulher.

Diversas pesquisas americanas mostram que crianças que pertencem a famílias homoafetivas desenvolvem mecanismos para lidar com o fato de terem dois pais ou duas mães e que têm um bom ajustamento à situação. A Associação Americana de Psicologia concluiu, após analisar inúmeras pesquisas, que "não há um único estudo que tenha constatado que as crianças de pais homossexuais - gays e lésbicas – tenham qualquer prejuízo significativo em relação a crianças de pais heterossexuais".

Ricketts e Achtenberg (1989) comprovaram que a saúde mental e a felicidade individual dependem da dinâmica da família e não da forma como está estruturada.. Patterson (1997) pesquisou a influência de pais e mães homossexuais sobre a identidade sexual, o desenvolvimento pessoal e o relacionamento de crianças adotivas e biológicas; seus resultados mostram que tanto o nível de ajustamento da função materna quanto a auto-estima e o desenvolvimento social e pessoal dessas crianças são compatíveis com o de crianças criadas por casais heterossexuais; demonstrou também que pais do mesmo sexo são potencialmente tão afetivos quanto pais heterossexuais.

No imaginário popular existe uma fantasia, decorrente da época em que a homossexualidade era vista como uma doença, que pais ou mães homossexuais teriam uma intenção perversa ou obscura por trás do seu desejo de adotar uma criança; em 1998 Coates e Zucker mostraram que o percentual de crianças abusadas física e sexualmente por seus pais é o mesmo tanto em famílias hétero quanto em famílias homoafetivas.

As pesquisas têm mostrado consistentemente que pais gays e mães lésbicas cuidam eficientemente de seus filhos e que as crianças não sofrem danos por serem criadas em famílias homoafetivas, sendo que as maiores dificuldades estão relacionadas ao momento da revelação sobre a homossexualidade. O fundamental para um bom desenvolvimento é a capacidade dos pais, sejam hétero ou homossexuais, de proporcionar à criança um ambiente afetivo e estável.

Gays e lésbicas também formam famílias do tipo nuclear, quando existem filhos. Essas crianças existem em geral em função de um relacionamento heterossexual anterior, mas são cada vez mais numerosos os casos de adoção e também os de inseminação artificial. É mais frequente termos crianças vivendo com casais de lésbicas do que com gays, uma vez que são as mulheres que têm a guarda de seus filhos na maioria das vezes.

Grande parte de pais e mães homossexuais se assume como tal no momento de separação de uma relação heterossexual; possivelmente negavam sua orientação homoafetiva, ou estavam completamente inconscientes dela, o que, em ambos os casos, revela a própria homofobia internalizada. O próprio reconhecimento e aceitação são a fase mais difícil do processo; a maioria inicialmente se vê como bissexual, por ser mais fácil e aceitável do que integralmente homossexual.

Revelar a homossexualidade para os filhos é provavelmente a mais temida e a mais desejada tarefa a ser enfrentada por pais e mães homossexuais, provocando um verdadeiro pavor de perder o amor e o respeito de seus filhos. A experiência clínica sugere que é melhor que essa revelação seja feita antes da adolescência, especialmente se o filho for do mesmo gênero do pai/mãe, antes que os jovens tenham que lidar com seus próprios conflitos de natureza sexual.

As expectativas que casais e famílias homoafetivos e casais e famílias heterossexuais têm a respeito do casamento e da vida em família são essencialmente diferentes. Casais heterossexuais, em geral, iniciam o relacionamento com uma série de pressupostos: um vínculo monogâmico; finanças conjuntas; cuidados mútuos em caso de problemas de saúde ("na saúde e na doença"); mudanças de cidade dependendo do desenvolvimento da carreira de um dos dois (em geral do marido); cuidados financeiros e afetivos na velhice das respectivas famílias de origem; herança e direitos legais de um sobre o outro em questões como seguro-saúde, aposentadoria ou na ocorrência de incapacidade física ou mental de um dos parceiros. Nada disso ocorre de forma automática com casais do mesmo sexo. Em geral as expectativas em relação a estas questões não são sequer mencionadas antes de o casal passar a viver junto. Visões discordantes entre os parceiros muitas vezes só aparecem quando a expectativa de um ou de outro já foi frustrada, o que pode ocorrer de forma muito dolorosa. Este tipo de dificuldade permeia todo o vínculo.

Outros problemas vividos por famílias homossexuais se referem às dificuldades com padrasto ou madrasta, tais como os efeitos nos filhos da separação dos pais, a dificuldade em aceitar o novo adulto, problemas no relacionamento afetivo entre a criança e o padrasto ou a madrasta, ou questões de limites e disciplina. A incorporação do novo adulto do mesmo sexo que o progenitor é muito mais difícil devido à homofobia, à falta de aceitação e legitimação pela sociedade e à ausência de rituais e cerimônias que confirmem o novo relacionamento. O relacionamento com os ex-esposos também pode ser um fator estressante para a família; muitas vezes o pai gay ou a mãe lésbica teme revelar a homossexualidade ao ex-cônjuge por medo de ter seu direito de relacionamento com a criança diminuído ou alterado.

 

CONCLUSÃO

Apesar de tudo, os preconceitos contra os homossexuais vêm diminuindo paulatinamente no nosso país, no decorrer dos últimos anos. Contribuem para isso a maior visibilidade dos homossexuais, os movimentos de gays e lésbicas (como a Parada Gay de São Paulo, considerada a maior passeata do mundo!) e uma crescente divulgação do assunto na mídia, como os gays e lésbicas que aparecem nas novelas, de forma cada vez menos estereotipada. Tudo isso tem provocado debates e discussões sobre os relacionamentos homoafetivos e os direitos dos homossexuais, na sociedade como um todo.

Tratar deste tema - famílias homoafetivas - é uma tentativa de contribuir com a diminuição do desconhecimento e do preconceito, de tornar mais visível algumas experiências e dificuldades dessas pessoas que são atraídas por e mantêm um relacionamento íntimo com parceiros do seu mesmo gênero.

Acredito ser fundamental que, como terapeutas, tenhamos abertura e discernimento quando tratamos de indivíduos e famílias de grupo minoritários. A informação e a vivência são nossos maiores aliados. Apenas o relacionamento com o "diferente" nos faz perceber o quanto somos iguais. Meu amigo, meu irmão não se transforma em outra pessoa porque descubro seu interesse por alguém do mesmo gênero. É possível deixar de amar um filho ou uma filha, apenas porque ele se revela diferente de mim em sua orientação sexual?

Concluo reafirmando que:

"nenhum terapeuta, nem mesmo os homossexuais ou bi-sexuais, estão imunes a reações homofóbicas. Quanto mais consciência temos dos valores heterocêntricos em que estamos imersos, e da homofobia que permeia nosso cotidiano, maior a possibilidade de ajudarmos as pessoas que nos procuram" (França, 2004).

E, para encerrar, um Psicodrama Interno:

• Acomode-se bem, onde você estiver.

• Feche os olhos, e pense em um grande amigo ou amiga.........

• Deixe vir uma cena de vocês dois batendo papo, em um lugar costumeiro.....A conversa flui, gostosa, pelos assuntos usuais......

• Agora, troque de papel com seu amigo.

• Você - o amigo - tem algo muito importante a revelar; você vem querendo contar há muito tempo que é homossexual.

• Como você se sente, prestes a fazer essa revelação? Que emoções e sensações afloram neste momento?

• Diga o que você tem a dizer.

• Agora, destroque de papel; volte a ser você mesmo.

• Ouça seu amigo contando-lhe aquele grande segredo.

• Perceba sua reação ao ouvir....... O que passa pela sua cabeça? Que emoções tomam conta de você?

• O que mudou na forma de você encarar o seu amigo?

• Você ainda vai manter o mesmo nível de contato físico, dar aquele abraço de antes?

• Responda honestamente: vai continuar a convidá-lo a frequentar sua casa, participar de eventos da família, conviver com seus filhos?

Chegamos ao término deste texto.

Neste final, a dramatização é sua, você é o protagonista.

Você decide:

Como vai querer terminar sua última cena?

 

Referencias

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Endereço para correspondência
Rua Dr. Sodré, 122 – cj. 31 Itaim Bibi
São Paulo SP
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1 O termo homoafetivo, introduzido pela Desembargadora Dra. Maria Berenice Dias, do Rio Grande do Sul, vem sendo cada vez mais utilizado, substituindo a palavra homossexual, por se tratar acima de tudo de inclinação afetiva, e não apenas sexual, por outra pessoa do mesmo gênero. (lembrando que gênero na língua portuguesa é na maioria das vezes definido pelo sexo da pessoa – masculino ou feminino)
2 - Outros estudos indicam percentuais entre 4 e 14%, variação esta explicada pela dificuldade de muitos homossexuais de assumir sua orientação sexual
3 - Por esse motivo deixou-se de utilizar o termo homossexualismo, cujo sufixo ISMO denota patologia, e passou-se a usar homossexualidade, (SOPSP), terapeuta familiar (APTF) que significa apenas uma das possibilidades da sexualidade humana
4 - Existe uma tendência entre os estudiosos do tema a acreditar que não há uma única causa para a homoafetividade. Os geneticistas insistem em uma determinação bio-genética, enquanto os psicólogos pesquisam a influência da Matriz de Identidade, ou seja, as relações familiares; ainda uma outra vertente está estudando a influência das vivências externas, sociais, através de amigos, vizinhos etc…
5 - Sawin-Williams, 2001
6 - Existem hoje entidades formadas por pais de homossexuais, que auxiliam famílias nesse processo
7 - Vide caso Cássia Eller. 8 - Existe atualmente no Brasil uma realidade de quase 28% de famílias monoparentais chefiadas exclusivamente por mulheres
* Psicóloga (PUC-SP), psicodramatista (SOPSP), terapeuta familiar (APTF).