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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.17 no.1 São Paulo  2009

 

SEÇÃO LIVRE

 

Tecendo diálogos entre socionomia e psicologia comunitária

 

Creating dialogue between socionomy and community psychology

 

 

Eleonora Pereira*

Centro de Referência Especializado de Assistência Social da Prefeitura Municipal de São Gonçalo do Amarante – Ceará

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo apresenta a relação entre socionomia e psicologia comunitária. Foram examinados os conceitos e visões de homem e de mundo, o compromisso social e as dimensões metodológicas de ambos os saberes, de modo a sistematizar os elementos em comum encontrados. Dentre as interfaces de maior relevância encontradas, pode-se citar que: a psicologia comunitária e a socionomia construíram-se de forma pragmática; compreendem o homem como ser sócio-histórico e relacional; privilegiam o trabalho com grupos; trazem em seu bojo metodologias que promovem uma ação mobilizadora e facilitadora da apreensão de novos conhecimentos; trabalham a partir de uma ética participativa, fomentando a co-responsabilidade das pessoas nas transformações sociais, dentre outros. Espera-se, com este estudo, contribuir para o delineamento de novas pesquisas sobre o assunto, além de servir como referência para os psicólogos, para que ampliem suas atuações na esfera pública e no âmbito de trabalhos institucionais e comunitários.

Palavras chave: Socionomia, psicologia comunitária, interfaces, intervenção comunitária.


ABSTRACT

This article examines the relationship between Socionomy and Community Psychology. In an attempt to systematize the common aspects of these two disciplines, together with their methodological dimensions, we examined their concepts and views regarding man, the world and social obligations. Among their most relevant interfaces are the following: Community Psychology and Socionomy are both organized in a pragmatic manner; they both consider man as a socio-historical and relational being; they both favour group work; at the core of both there is a methodology promoting mobilizing action that facilitates new knowledge; they are both based on participative ethics, promoting co-responsibility for social change. Beyond serving as a reference point for psychologists wanting to improve their performance within the public sphere and in their institutional and community work, we also hope that this study will contribute to contrive further research regarding these issues.

Keywords: Socionomy, community psychology, interfaces, community intervention.


 

 

1. PARA COMEÇO DE CONVERSA: CONTEXTUALIZANDO O PRESENTE ESTUDO

O artigo em pauta surge como resultado do trabalho de conclusão do curso de Especialização em Socionomia e Formação do Especialista em Psicodrama, realizado em parceria pela Fundação de Estudos e Pesquisas Socionômicas do Brasil – FEPS do BRASIL, e Universidade Estadual do Ceará – UECE. Tal estudo, fruto de reflexões acadêmicas e profissionais da autora, investiga as interseções existentes entre Psicologia Comunitária e Socionomia. Percebeu-se que esses dois campos do saber poderiam contribuir na construção da práxis profissional ligada às diversas áreas da psicologia, em especial as que tangem às políticas públicas destinadas à assistência social, caso uma sistematização das contribuições mútuas entre eles fosse realizada.

O procedimento metodológico idealizado neste estudo, dessa maneira, foi executado de forma exploratória, a partir de consultas bibliográficas. A pesquisa bibliográfica tomou por base a produção de conhecimento, tendo como livros e artigos científicos sobre psicologia comunitária – Brandão & Bomfim (1999), Campos (2003), Góis (1993, 2005), Lane e Codo (1994) e Montero (2003; 2006) – e socionomia – obras de Moreno (1974; 1992a; 1992b; 1994a; 1994b; 1997; 2003) e de alguns psicodramatistas brasileiros e argentinos – as fontes principais de consulta. Centralizou-se na revisão crítica da bibliografia editada sobre os dois saberes, de modo a permitir uma reflexão através dos dizeres dos autores.

A perspectiva interdisciplinar constituída, aqui, como ponto fundamental, buscou, através da interface entre socionomia e psicologia comunitária, a ampliação dos alicerces epistemológicos de ambas. O princípio da pesquisa foi, nesse sentido, a investigação dos conceitos e visões de homem e de mundo, do compromisso social e das dimensões metodológicas apresentados nas duas áreas, por considerar tais pontos esteio primordial de qualquer campo de saber.

Espera-se, assim, contribuir para o delineamento de novas pesquisas sobre o assunto, bem como gerar a produção de um conhecimento que possa servir como referência e diretriz para o psicólogo e capaz de ampliar, através de uma nova ótica, as suas atuações na esfera pública e no âmbito de trabalhos institucionais e comunitários.

 

2. DOS JARDINS DE VIENA AOS JARDINS DA PSICOLOGIA COMUNITÁRIA: TECENDO DIÁLOGOS

A socionomia, teoria criada pelo psiquiatra romeno Jacob Levy Moreno, pelo estudo das leis naturais que regem os sistemas sociais de um modo geral, dos grupos humanos e do desenvolvimento humano, focaliza a formação psicológica do homem a partir da dinâmica vincular resultante do jogo dialético do desempenho de papéis e contrapapéis. Traz, como proposta, um projeto de planificação e organização social com características auto-organizativas e auto-afirmativas. Através de sua visão de homem como ser relacional e de sua vasta gama de recursos técnicos utilizada no trabalho com grupos, possibilita a transformação gradual dos indivíduos e dos grupos, pois atua sobre a vivência dos conflitos e potencialidades de resolução dos mesmos. Mostra-se, portanto, um forte e eficaz instrumento pedagógico e de mobilização grupal.

Os fundamentos básicos da obra moreniana estão sedimentados, sobremaneira, no curso da sua própria vida. Cada momento vivido por Jacob Levy Moreno produziu dados que, posteriormente, deram origem a um acervo de conceitos científicos, que constitui vasto referencial teórico. Oferece, assim, campo à pesquisa e a aplicações, predominantemente, em algumas áreas das ciências humanas e da saúde.

Da mesma forma, Garrido Martín (1996, p. 38) nos diz que

"em Moreno, a teoria surgiu do contato com a realidade social; não é uma teoria a priori, porém indutiva, fundamentada em dados objetivos e em experiências vitais".

Portanto, a construção da socionomia se deu pela práxis de Moreno, que buscava sentidos e métodos que permitissem ao ser humano construir a si mesmo e o seu mundo, de forma livre e autônoma. Os trabalhos que realizou tornaram-se marcas profundas nas suas preocupações sociais e o despertaram para o fenômeno da força grupal.

Assim, na vida de Moreno, podem-se distinguir três referências que influenciaram em sua obra (Costa, 1996; Gonçalves, Wolff & Castelo de Almeida, 1988): 1) Princípios religiosos, baseados no hassidismo (movimento religioso judaico do século XVIII) e no catolicismo, e filosóficos existenciais, cujas principais influências vêm de Henri Bergson e Sören Kierkegaard. Tais princípios foram as determinantes na formulação de diversos conceitos em sua teoria; 2) O teatro, que definiu muito do seu estilo de trabalho e ensejou o surgimento de técnicas fundamentadas na ação; 3) ramos das ciências sociais, como a sociologia e o socialismo científico (marxista).

Com essas forças, Moreno passa a exercer diversas atividades com grupos, das quais podemos ressaltar duas: o trabalho com grupo de prostitutas e o de assistência aos refugiados após a Primeira Grande Guerra, na Áustria. Nelas, fica evidente a importância da busca por soluções efetivas dos problemas sociais, levando sempre em conta a natureza das dificuldades, em termos das relações e integração com o contexto.

"No caso das prostitutas, o objetivo não era "recuperá-las" para reintegrá- las à sociedade que as excluía (e que provavelmente continuaria excluindo). Consistia em desenvolver, junto com elas, princípios básicos de organização que iriam conferir, ao grupo em questão, maior integração, organização e, consequentemente, melhoria das condições de vida (organização social)." (Riquet, 1998/99, p. 185)

De acordo com Marineau (1992), na experiência no campo de refugiados, em Mittendorf, na Áustria, Moreno, formando em medicina e, posteriormente, médico, nos anos de 1915 e 1918, depois de observar as condições de vida das pessoas nos abrigos, percebeu que havia muitos problemas no campo, principalmente pela superlotação e porque nenhum esforço era feito para levar em consideração, entre os refugiados, afinidades de religião, estilo de vida, posição social etc. Diante disso, interveio nos grupos de modo que as semelhanças existentes entre as pessoas fossem levadas em conta na organização e distribuição das mesmas nos abrigos, apresentando, inclusive, sugestões às autoridades do campo.

"Nesse trabalho, ficou evidente a importância que as preferências e as afinidades das pessoas têm, e que precisam ser consideradas na resolução de conflitos, para que, mesmo em situações de dificuldades, elas possam ser mais felizes. Nesse episódio, ficou evidenciada a capacidade de se intervir em grandes grupos utilizando a força grupal para modificar configurações de problemas sociais. Aqui se faz presente a força grupal no processo auto-organizativo, que, quando respeitado, leva ao bem-estar social, pois reduz as tensões inter-relacionais" (Riquet, 1998/99, p. 186)

Com suas atuações e estudos, ainda conforme Marineau (1992), Moreno já tinha em vista as pedras angulares para todo trabalho com grupos: a autonomia do grupo; a existência de uma estrutura grupal e a necessidade de saber mais a respeito dela (o diagnóstico grupal é preliminar ao trabalho com o grupo); o problema da coletividade (ex.: a prostituição representa uma ordem coletiva com padrões de comportamento, papéis e hábitos que dão colorido à situação, independentemente dos participantes particulares e do grupo local); o problema do anonimato (no trabalho com grupos, há uma tendência ao anonimato dos membros, e o grupo como um todo torna-se a coisa importante).

Tendo em mãos esse conhecimento, passou a buscar métodos eficientes de intervenção grupal. E como vimos, uma de suas principais influências, na criação desses métodos, vem do teatro, uma das artes mais antigas e que é, também, instrumento de educação e mobilização popular. Moreno fala-nos que a força liberada pelo drama e pelo teatro está na plateia, e não no palco. Assim, os espectadores transformam-se à medida que os conflitos passam a ser vivenciados por eles, e a transformação individual, gradual, é levada para o grupo social ao qual pertencem. Afirma, também, que quando o indivíduo-plateia tem a possibilidade de assumir um papel no drama e, de maneira espontânea, criar e desenvolver esse papel, as possibilidades de soluções criativas para os desfechos das tramas são infinitas. Além disso, a dramatização permite um desenvolvimento incomum da capacidade de observação das pessoas envolvidas, assim como a capacidade diagnóstica.

Logo, percebemos que a socionomia está intimamente ligada ao trabalho com grupos, atuando, junto com seus membros, num processo contínuo de autoconhecimento emancipatório e propiciando, ao romper com a perspectiva de "transferência" de responsabilidade, a construção de uma ética de alteridade e de co-responsabilidade.

Por sua vez, a psicologia comunitária, de acordo com Góis (2005), possui sua origem nos movimentos sociais comunitários, sobretudo nos de saúde mental, da Europa e dos Estados Unidos. Historicamente, o termo "psicologia comunitária" teve sua configuração formal dentro da Conferência de Swampscott, em Boston, 1965, que objetivava traçar as bases dos Centros de Saúde Mental Comunitária, proposto pelo presidente J. F. Kennedy, bem como debater a formação do psicólogo e ampliar a noção de saúde mental ao âmbito comunitário. Este termo surge porque tanto os profissionais de saúde como os dos movimentos comunitários desejavam construir processos diferenciados no campo da saúde mental, que passou a considerar, em sua concepção de saúde, a promoção, a prevenção e o potencial de participação da comunidade. Já na Europa, a formação do campo teórico-conceitual da psicologia comunitária teve um alicerce comum ao modelo estadunidense, porém com certas variantes próprias, em virtude das influências do modelo do Estado do Bem-Estar Social, proposto por John Maynard Keynes, após a crise de 1929, buscando amenizar as tensões sociais vivenciadas pelos países capitalistas após esta crise.

A América Latina, segundo Campos (2003) e Góis (1993;2005), a psicologia comunitária passou a ser utilizada com o objetivo de se fazer uma nova psicologia social, a partir da preocupação de alguns psicólogos diante dos escassos resultados da psicologia social tradicional e da necessidade de se construir uma proposta ancorada nos pilares de transformação social. Assim, sua construção está diretamente transversalizada pela realidade sociopolítica vivenciada pelos povos latino-americanos, fortemente marcados por processos colonizadores e, posteriormente, no transcurso da história, por regimes ditatoriais. Por isso, surge como proposta de atuação com intuito de colaborar com a superação da opressão vivida nos diversos países latino-americanos.

No Brasil, a psicologia comunitária teve sua ligação com a proposta metodológica de atuação emergente no contexto latino-americano. É dentro da conjuntura socioeconômica, na qual se inscrevia o país no período ditatorial, que a psicologia comunitária surge como uma prática inserida no contexto das classes populares, buscando uma leitura crítica da sociedade, de forma que se tornasse uma ferramenta de transformação da realidade a serviço das classes oprimidas. Seu processo inicial de atuação ocorreu em Belo Horizonte, Minas Gerais, com enfoque na ecologia humana. Posteriormente, por volta dos anos setenta e seguintes do século passado, Lane e Andery fomentaram o enfoque sociopolítico de atuação e discussão teórica. Naquele momento, a proposta já era estudar o processo grupal em bases materialistas, históricas e dialéticas, através de trabalhos interdisciplinares em comunidades.

No Ceará, em especial, a psicologia comunitária, conforme Brandão e Bomfim (1999), teve suas origens no início dos anos de 1980, quando Góis iniciou os primeiros trabalhos de intervenção no bairro Nossa Senhora das Graças do Pirambu. Tendo como norte uma postura ética de atuação, a psicologia comunitária no Ceará construiu (e constrói) sua caminhada como práxis dentro de um processo dialético de intervenção, ou seja, de ação-reflexão-ação. Nesse estado, ela apresenta uma forte dimensão pragmática, pois a transposição da ciência psicológica para as comunidades rurais e bairros periféricos não ocorreu apenas como uma ampliação dos conhecimentos elaborados na academia, mas, inversamente, o caminho percorrido pelos seus construtores foi da prática à teoria.

Dentre as diversas contribuições epistemológicas, ainda segundo Brandão e Bomfim (1999), é preciso ressaltar quatro interlocutores na construção da atuação do psicólogo comunitário cearense: a educação popular de Paulo Freire – que leva em consideração a relação dialógica no desenvolvimento da autonomia da comunidade e a utilização dos círculos de cultura como instrumento principal de intervenção; a psicologia social problematizadora (crítica) – cujo conceito fundamental de abordagem é o de identidade, entendido como processo ou metamorfose, e o trabalho com os mecanismos de coesão grupal e as possibilidades de construção do futuro; o materialismo histórico e dialético – que evidencia a crença no potencial do oprimido, pois além da manifestação de uma postura crítica, busca uma atitude coletiva transformadora que permita intervir no real e modificá-lo; e a biodança – abordagem em favor da vida e que enfatiza o encontro humano, a partir do trabalho grupal.

Em suma, tomando como referência a psicologia comunitária latinoamericana e, evidentemente, brasileira e cearense, pode-se, então, conceituá- la como uma área da psicologia social que estuda os aspectos referentes à vida em comunidade e visa ao desenvolvimento desta a partir dos sujeitos que a constroem. Caracteriza-se pela práxis compromissada com as classes populares, procurando debruçar-se sobre suas problemáticas singulares (Campos, 2003). Assim, ela:

"[...] estuda os significados (coletivos) e sentidos (pessoais), assim como os sentimentos pessoais e coletivos do modo de vida na comunidade, [objetivando compreender] como esse sistema de significados, sentidos e sentimentos se encontra presente nas atividades comunitárias." (Góis, 2005, p. 51)

Dentro da prática da psicologia comunitária, é preciso, também:

"Estudar as condições (internas e externas) ao homem que o impedem de ser um sujeito e as condições que o fazem sujeito numa comunidade, ao mesmo tempo em que, no ato de compreender, trabalha com esse homem a partir dessas condições, na construção de sua personalidade, de sua individualidade crítica, da consciência de si (identidade) e de uma nova realidade." (Góis apud Lane in Campos, 2003, p. 32)

Ou seja, a psicologia comunitária, além do estudo do sistema de relações e representações, níveis de consciência, identificação e pertinência dos indivíduos à comunidade, visa, também, ao desenvolvimento da consciência dos moradores como sujeitos históricos e comunitários, através de um esforço interdisciplinar que examina o desenvolvimento dos grupos, no intuito de transformar indivíduos em sujeitos de sua própria história.

Desse modo, a perspectiva da psicologia social comunitária enfatiza, de acordo com Campos (2003): 1) Em termos teóricos, a problematização da relação entre produção teórica e aplicação do conhecimento: parte-se do pressuposto de que o conhecimento se produz na interação entre o profissional e os sujeitos da investigação; 2) Em termos de metodologia, utilizam-se, sobretudo, as metodologias participativas, na qual o psicólogo e os sujeitos da ação trabalham juntos na busca de explicações para os problemas colocados e no planejamento e execução de programas de transformação da realidade vivida; 3) Em termos de valores, os trabalhos de psicologia comunitária enfatizam, especialmente, a ética da solidariedade, os direitos humanos fundamentais e a busca da melhoria da qualidade de vida da população. Ou seja, questiona-se a visão da ciência como atividade não-valorativa, e assume-se ativamente o compromisso ético e político. Em termos éticos, busca-se trabalhar no sentido de estabelecer as condições apropriadas para o exercício pleno da cidadania, da democracia e da igualdade entre pares. Em termos políticos, questionam-se todas as formas de opressão e de dominação, e busca-se o desenvolvimento de práticas de autogestão cooperativa.

Destarte, o objeto da psicologia comunitária, conforme Montero (2003, p. 144), é tomado:

"[...] como el desarrollo del control y el poder de los actores sociales comprometidos en un proceso de transformación social y psicosocial que los capacita para realizar cambios en su entorno y, a la larga, en la estructura social. Cabe igualmente agregar que o caráter político de la Psicología Social Comunitária reside en primer lugar, en su reconocimiento explícito del objetivo transformador; pero adémas, tan político es callar y ocultar como hacer oír su voz. La diferencia reside en mantener el status quo o en buscar su transformación democrática."

Portanto, o que faz político um ato é sua capacidade em influenciar na estrutura social, nas relações de poder e na ordem estabelecida, buscando refazê-las, modificá-las, subvertê-las.

"En este sentido decimos que toda Psicología Comunitaria es en su base una Psicología Política, puesto que trata con processos de organización, desarrollo y promoción de ciudadanos. Los procesos de fortalecimiento, problematización, desideologización y concientización son generadores de ciudadanía, robustecedores de la sociedad civil y, en la medida en que los proyectos y acciones comunitarias logran transformaciones en su entorno, en el modo de vida y en la capacidad de las personas que las integran, están influyendo en las relaciones de poder, en el orden y en el desorden social." (Montero, 2003, p. 166)

Compreende-se, dessa forma, que a psicologia comunitária coloca-se a serviço da transformação da estrutura social como ferramenta, na construção do processo de tomada de decisão coletiva dos diversos atores sociais. O desenvolvimento local e comunitário emerge, portanto, a partir do fortalecimento dos grupos populares locais, através da arte e da cultura local, dos caminhos de resistência, da história da comunidade, do fortalecimento do sentimento de pertença com o lugar de moradia e através da construção de seu processo de autonomia e tomada de decisão coletiva.

 

3. SOCIONOMIA E PSICOLOGIA COMUNITÁRIA: INTERFACES EM CENA

Como primeiro ponto das interfaces surgidas entre os dois campos de saber ora apresentados, podemos ressaltar que tanto a socionomia como a psicologia comunitária se construíram de forma pragmática. Isso significa dizer que ambas apresentam, em sua base, o estreito vínculo entre pesquisa, ação e reflexão, algo ainda presente e constituinte em suas intervenções. O interesse maior dos dois saberes é o estudo do homem em situações cotidianas, nos seus grupos de origem, suas organizações e comunidades. A partir de então é que os problemas e a identificação dos recursos necessários para suas soluções surgem e, após, faz-se a planificação das atividades que facilitarão o alcance dos objetivos desejados.

O homem na psicologia comunitária, como na socionomia, é um ser histórico, inserido num contexto socioeconômico-cultural que direciona suas atividades e que contribui para a formação de sua subjetividade, produzida ao longo de suas experiências relacionais. Ao mesmo tempo, esse mesmo ser humano é, também, fazedor e transformador da história e de seu meio, mediante ações e relações que desenvolve.

Ademais, as duas áreas confirmam os recursos internos e potenciais de cada ser humano, trabalhando-os, cada uma a seu modo, para o resgate da competência de cada membro, a fim de possibilitar a assunção da responsabilidade de suas escolhas, promovendo mudanças de ideias, atitudes e outros.

Assim sendo, para contribuírem com uma vida psicológica mais saudável, a socionomia e a psicologia comunitária trabalham no sentido de ultrapassar a esfera do individual e do particular em direção ao social, ao mesmo tempo em que adquirem uma perspectiva de apreensão da realidade, tanto em sua totalidade como em sua concretude sócio-histórico- cultural, compreendendo, dessa forma, a vida real das pessoas. Fazer isso, na especificidade do trabalho das práticas sociais psicológicas, significa atuar nas relações que são travadas cotidianamente, eliminando-se posturas reducionistas, psicologizantes e a-históricas sobre os processos psicossociais.

Marra (2004) ressalta que, assim como a pesquisa-ação, a socionomia, por meio de seus métodos e técnicas, privilegia o estudo das interações entre os membros do grupo, chamando a atenção para a imbricação dos processos individuais e sociais em toda e qualquer situação. A mudança social ocorre por intermédio do indivíduo, com implicações éticas no que diz respeito à responsabilidade de cada um, dado que as pessoas relacionam- se por papéis desempenhados com seus pares ou complementares, definindo o lugar de cada um na relação. É dessa interação por meio de papéis que os sujeitos constroem o conhecimento, distinguem a realidade perante certa concepção do que ela seja, organizam-se e, ao mesmo tempo, ordenam e articulam sua realidade.

Desse modo, segundo Aguiar (2005), o que a socionomia pretende é identificar os sentidos dados pelas pessoas e que podem ser encontrados no "aqui e agora", ou seja, no presente momento, através das cenas desenvolvidas por seus métodos dramáticos. Não se trata de um único e verdadeiro sentido. São "sentidos" no plural, mesmo. E o objetivo do trabalho é ampliar essa pluralidade, encontrando e confrontando novos e variados sentidos, novas e variadas possibilidades, matéria-prima da espontaneidade e da criatividade.

Temos, aqui, pois, mais uma consonância com os princípios teóricooperacionais da psicologia comunitária, uma vez que um de seus objetivos é, de acordo com Góis (2005), estudar e compreender como os significados, sentidos e sentimentos pessoais e coletivos do modo de vida encontram-se presentes nas atividades comunitárias.

Portanto, em ambos os saberes, todos são participantes do processo de transformação. E se os membros dos grupos assim não se sentem, pelas dificuldades inter-relacionais ou da própria estrutura social, cabe ao facilitador problematizar esse estado mediante o uso da ação-reflexão-ação.

Verificamos, então, que as duas teorias ancoram a pesquisa-ação participante. Valorizam, ainda, a inserção do pesquisador integrante do grupo e consideram que ele deve se incorporar a esse grupo e propor maneiras de descrição, em primeiro lugar, e de transformação, num segundo momento, numa dimensão reflexiva, educativa e expressiva, propondo a ação no contexto do qual surgem as necessidades. Destarte, o referencial teórico-prático de investigação e intervenção que tais campos de saber utilizam propõe um conhecimento em movimento, uma pedagogia revolucionária, estimulando tanto a participação como a criatividade e a responsabilidade ética, do mesmo modo que trabalham para o resgate dos potenciais de cada membro.

Por isso, tanto na socionomia como na psicologia comunitária, a preocupação vai além da aplicação técnica. Procura, ao contrário, criar um contexto de desenvolvimento e aprendizagem de novas e mais adequadas respostas sociais, através da emergência das demandas e práticas sociais, políticas e culturais de qualquer segmento da população, quando, então, os atores sociais começam um processo de conscientização na compreensão de seus papéis.

Lane (1992 apud Neves e Bernardes, 1997) acentua que o grupo é condição fundamental para o desenvolvimento da consciência, na qual um membro se descobre no outro, espelhando-se conjuntamente. Nesta atitude reflexa, ou de espelho, no linguajar socionômico, e reflexiva, descobrir- se não resulta apenas de um discurso, mas de uma prática conjunta. E esse é um dos motivos que fazem a psicologia comunitária privilegiar o trabalho com grupos, atuando na prevenção, buscando colaborar para a formação da consciência crítica e para a construção de uma identidade social e individual orientada por preceitos eticamente humanos.

Semelhantemente, o enfoque grupal dado pela socionomia favorece a relação das pessoas entre si, dos grupos e instituições, trazendo à cena a experiência comunitária, no intuito de alcançar o reconhecimento da alteridade a partir do respeito à diferença do outro. Oportuniza, ainda, o desempenho de papéis e funções que se interligam, almejando a tomada de consciência destes através da ação, de modo a auxiliar as pessoas a tomarem uma nova posição e se tornarem sujeitos mais autônomos. Parte-se, portanto, da convicção de que a mudança na qualidade dos vínculos, dentro e fora do contexto grupal, favorece a alteração de sua auto-imagem e modifica o átomo social do indivíduo.

Dessa forma, outro fator a considerar é que os dois campos de saber têm seus alicerces no fortalecimento e na resiliência dos grupos, ampliando suas possibilidades existenciais e reforçando as vivências dos desafios, reinserindo cada membro numa relação intersubjetiva em direção às comunidades e rumo ao pertencimento. Pertencer, para ambos os saberes, é sentir-se confirmado na sua identidade e competente no seu papel e na sua função, estando mais preparado para negociar regras, respeitar as diferenças e tolerar as frustrações na direção de uma mudança social.

Destarte, o psicólogo comunitário e o socionomista buscam o desenvolvimento dos potenciais individuais e grupais no sentido de promover o amadurecimento dos mesmos, a conquista da autonomia e possibilitar o despertar do ser ético através da valorização e da confirmação da auto-referência de cada membro e da qualificação dos trabalhos, que são resultados dos movimentos nas comunidades. Moreno (1992), como os teóricos da psicologia comunitária abordados neste estudo, propõe vivenciar valores sociais, relacionais e éticos, para permitir ao sujeito traçar seu projeto existencial e um sentido de vida. É dessa relação de compromisso e responsabilidade que o homem consciente e que age livremente emerge e assume a autoria de seus atos, reconhecendo-os como seus e respondendo pelas consequências. Nesse sentido, fala-se de uma ética que está a cargo da transformação do homem e da realidade social.

Os trabalhos da socionomia e da psicologia comunitária visam, nesse caso, aos conteúdos dinâmicos e sociais, elementos da educação como um meio de continuidade social e de transformação. Por isso, são atividades que se constituem, também, em uma ação terapêutica, na qual estão incluídos o relacional e o fazer, vistos como ação que gera aprendizagem de atos e conteúdos. Nesse sentido, o objetivo dessa pedagogia terapêutica é permitir um ambiente propício para a expressão pessoal e corporal, trazendo à tona sentimentos, sensações, impressões e pensamentos para que tal aprendizagem seja plena. Essa atuação espontânea do grupo por meio da ação promove, conforme Moreno (1994b), efeito catártico ou curativo.

Além do mais, tanto a socionomia quanto a psicologia comunitária trazem, ainda, para a discussão, os contextos micro e macrossociais, no qual o conhecimento se constrói. Nas duas áreas abordadas, tem-se uma aproximação da ciência ao senso comum, pois o conhecimento, sendo alcançado socialmente, é produzido e se renova a cada momento da interação, conduzindo a reflexões e novas criações.

Chegamos, nesse momento, a outra interseção encontrada: a que diz respeito à postura que o profissional deve assumir diante do conhecimento. Este, como facilitador inserido no grupo, coloca-se ao lado deste para ajudá-lo a encontrar formas de concretização de seu projeto políticosocial. Então, a partir do movimento próprio dessa confluência de saberes, a realidade passa a ter um papel ativo, e o saber popular aproxima-se do saber científico e vice-versa. Todos os envolvidos ganham, assim, um espaço para dialogar com o real de modo processual, aberto e flexível. Afinal, o conhecimento científico, do mesmo modo que o conhecimento do senso comum, modifica a vida das pessoas quando estas se apropriam dele e lidam com os resultados produzidos pelo grupo.

Além disso, a socionomia e a psicologia comunitária têm a característica de se articularem com outros campos do saber e de se adaptarem às especificidades surgidas, uma vez que esses são princípios importantes das práticas sociais e que fazem parte, inclusive, da formação dessas duas teorias. As diversas demandas oriundas da comunidade trazem a necessidade de coabitarem diferentes teorias e conceitos que consigam ampliar e amparar a ação do profissional.

Por fim, gostaria de ressaltar que os métodos e técnicas socionômicos potencializam as ações da psicologia comunitária, uma vez que a obra moreniana desenvolve conceitos sobre a formação e a dinâmica dos vínculos (sociodinâmica), a medida das relações sociais (sociometria) e o tratamento dos grupos e das relações (sociatria).

Numa relação dialógica que se estabelece entre esses dois campos, a influência da socionomia sobre a psicologia comunitária emergiria em dois sentidos: como instrumento de trabalho de campo e também como base teórica de ação prática nas comunidades. Possibilita e contribui, ainda, a mediação emocional. Desse modo, permitiria um avanço, na psicologia comunitária, no lidar com os variados aspectos emocionais que surgem na interação grupal.

Afinal, com a metodologia socionômica é possível conhecer aspectos de subjetividade das pessoas através da vivência dramática, os quais não haviam sido acessados pela percepção. Ademais, com a socionomia, surge a possibilidade de apreender teoricamente a tessitura da realidade e enxergar os potenciais daqueles sujeitos, já que concebe o homem como ser cósmico e ressalta seus aspectos positivos, trabalhando-o com o que tem de potencial.

Portanto, tendo-se em mãos tão rica teoria de estudo e intervenção em grupos dentro da psicologia, acredito que se deva oportunizar seu uso dentro das diversas práticas sociais e comunitárias e, inclusive, nas ações dos psicólogos nas diversas políticas públicas.

 

4. E A CAMINHADA DEVE CONTINUAR

Escrever este trabalho trouxe-me a constatação de que se deve repensar o papel de todos nós, socionomistas brasileiros. Então, para encerrar, trago em tela uma série de questionamentos surgidos ao longo dessa trajetória. Quero compartilhar algumas considerações que me parecem importantes, no intuito de auxiliar no debate social e na reflexão dos próprios socionomistas e estudantes de socionomia acerca do projeto profissional que estão dispostos a construir. As ideias contidas nesse trabalho revelam uma necessidade e uma possibilidade de se ter a socionomia presente no esforço de transformação das condições socioeconômicas e psicológicas das populações. De reavivar a virulência da socionomia e as descobertas revolucionárias de Moreno no trabalho de mudança social.

Ressalto, ainda, que a psicologia tem se aberto, cada vez mais, a novas leituras e intervenções. Propõe-se a entender o mundo psicológico como constituído a partir de relações sociais, em que estão imbricadas questões políticas, econômicas e culturais de nossa sociedade. Por isso, acho essa discussão sobre a função da socionomia, como campo de saber psicológico, importante por ser pertinente aos atuais debates promovidos, ao levar as contribuições do psicólogo às práticas sociais dentro das políticas públicas, valorizando a cidadania e os direitos humanos como instrumentos geradores de transformação social.

Nas discussões sobre cidadania, podemos identificar a tentativa de estender uma relação horizontalizada a todas as pessoas, para que assumam, em conjunto, a co-responsabilidade pelo seu destino comum. A noção de cidadania tem a ver, também, com a forma como as pessoas vivem nos espaços que a circundam, com a construção das relações, com a permanente contratação do estar-junto, com a formação de subjetividades. Então, o conceito contemporâneo de cidadania pode ser definido como universalidade de direitos e deveres, inclusão social e responsabilidade mútua.

Assim, a perspectiva é transformar as questões grupais, comunitárias e sociais em práticas sociais e reconhecer que as resoluções estão presentes em todos esses locais, que o contexto dos acontecimentos constitui-se de complexidades organizadas, vividas intersubjetivamente e produtoras de conhecimento. Desse modo, Marra (2006) ressalta que as práticas sociais têm o objetivo de reinstalar o sujeito na organização social. Quem participa de um processo transformativo adquire competência, pois desenvolve sua capacidade de aprender acerca da própria aprendizagem. Além disso, as práticas sociais contribuem para a melhora da auto-estima e o resgate da competência das pessoas, ao usarem a criatividade para construir possibilidades de uma vida mais digna e cidadã. Abrangem, ainda, várias modalidades de intervenção preventiva, no sentido de facilitar tal competência humana para a autonomia, a cidadania e os valores éticos.

A cidadania, portanto, é o objetivo que encerra a maior das aprendizagens, porque busca o sujeito emancipatório. Funde-se no manejo crítico e criativo do conhecimento. Assim, o conhecimento-emancipação traz novas formas de sociabilidade, de modo a criar as condições para a experimentação social.

A psicologia comunitária tem isso muito bem fundamentado em sua prática, e vem, mais e mais, construindo-se e fincando pé nas ações das políticas públicas, principalmente as de assistência social (Creop, 2007). E a socionomia, onde se encontra atualmente?

É bem verdade que nossa bibliografia enfileira inúmeros tipos de estudos que valorizam a individualização da clínica, do mesmo modo como vemos, em congressos e outras formas de encontros profissionais, a presença maciça desses estudos abraçadas por muitos dos nossos mestres. Porém, isso não nos deve desestimular no esforço de buscar novas possibilidades e outros espaços de atuação, superando etapas e abrindo caminhos que nos levem mais longe. Cesarino (1999, p. 45), ao contextualizar o quadro sociopolítico-econômico brasileiro, ressalta que:

"[...] a situação de desigualdade, marginalização, pauperismo, acentuou- se. A grande ameaça do desemprego ronda a subjetividade de todas as classes.

O grande capital globalizado reforça a ideia de competitividade: com isso, afirma a racionalidade do mercado (isto é, a lógica do mercado, de competição é automática, "natural" e independente da vontade do homem)."

Essa lógica desconhece especificidades históricas, culturais, nacionais (não há mais nação). A oposição a isso com outra lógica – das necessidades dos pobres, da cidadania, da solidariedade, é desvalorizada como irracional, sentimental, atrasada (não moderna).

Portanto, não podemos deixar de considerar este quadro, porque é dele e nele que podemos caracterizar as demandas para nossa profissão de socionomista. Não podemos mais nos pensar como profissionais que, em consultórios particulares ou escritórios, oferecemos nossos serviços, acreditando que estamos tendo alguma contribuição ou interferência para a melhoria das condições de vida da sociedade. Sei que não tem sido fácil sair destes lugares, pois é preciso trabalhar e é o local onde ainda temos esta possibilidade. Mas não perceber as limitações sociais de nosso trabalho ou mesmo, pior ainda, disfarçar isto com justificativas de que sofrimento psíquico é igual para todos (ricos e pobres) é algo que não se pode mais aceitar. Precisamos reconhecer as limitações de nossa ação profissional, pois isto já é um bom começo.

Dessa forma, ainda no texto de Cesarino (pp. 46-47), ele destaca que:

"[...] Pavlowsky (psicodramatista argentino de que todos pelo menos já ouviram falar) dizia, já em 1971, que o psicodrama é um instrumento de mudança e não de adaptação ao sistema; por isso tem sempre uma implicação política.

[...] Para mim, pensando na origem e no potencial desse instrumento, a vertente de preocupação com o social é a mais importante. Penso que é nessa linha que poderemos marcar com mais propriedade a real diferença que nos pode distinguir dentro do universo psi."

Algo que é complementado por Marra (2004) ao dizer que cabe a nós, estudiosos da proposta da socionomia, não só fazer psicodrama e considerá-lo excelente perspectiva de abordagem e transformação individual ou de grupos, mas certificar e divulgar, mediante pesquisa e estudos, sua validade e seu reconhecimento. A utilização da socionomia, com suas ricas metodologias de promoção da participação social, tem sido um modo de redescobri-la. Assim, percebemos a socionomia brasileira gestando novas abordagens psicossocioeducacionais e contribuindo para a mobilização, a organização e o desenvolvimento dos grupos, bem como para o planejamento e a concepção de novas políticas sociais, apontando alternativas concretas de resolutividade.

É preciso trabalhar para o reconhecimento de novos campos da pesquisa e do diálogo das práticas sociais com as demais práticas do conhecimento e para a interação de profissionais de diversos campos de saber. Essa constatação assegura-nos avançar, também, na intervenção preventiva, uma vez que as metodologias de ação da socionomia tão bem contemplam esses campos legítimos de socialização e participação. A prevenção cabe a todos nós, aptos à promoção da saúde, em suas várias instâncias, e das mudanças sociais. Compete a todos favorecer a inclusão social, buscando o desenvolvimento da cidadania e da responsabilidade ética, otimizando os recursos dos sujeitos e das redes imbricadas nessa construção comum, promovendo o resgate de suas competências e denunciando injustiças sociais.

A espontaneidade e a criatividade, quando aplicadas ao fenômeno social, conferem iniciativa e mudança aos indivíduos inter-relacionados. Para atender a essa finalidade, surgem a socionomia e sua metodologia própria, por serem capazes de responder às demandas do grupo por meio das vivências que incluem uma linguagem de fácil aceitação e compreensão, ou seja, a dramatização. Este é um instrumento competente para a desmistificação das ações grupais e para intervenções nas políticas públicas. A socionomia promove, ainda, um tipo de ação mobilizadora, apresentando-se como uma pesquisa ação-participante, por dar conta do acesso às dimensões humanas.

O compromisso da psicologia com a transformação social não pode ser, de acordo com Martín-Baró (1985), um ato passivo, mas uma práxisação e reflexão sobre a realidade, ou seja, um processo de conscientização. Ao fazermos este trabalho, atuamos atendendo à proposta socionômica de colocar a psique em ação (Moreno, 2003) e trazer a verdade por meio da prática reflexiva, desencadeando uma ação mobilizadora para descobertas e mudanças.

Portanto, a socionomia traz em seu bojo uma proposta de transformação permanente. As pesquisas de Moreno favoreceram-nos a sair para a comunidade e para os mais diversos espaços onde a mudança social se faz presente, onde os indivíduos querem transformar-se em sujeitos de direito.

Tomar a socionomia, nessa perspectiva, significa que somos capazes de alterar a realidade social, de denunciar as desigualdades, de contribuir para que se possa cada vez mais compreender a realidade que nos cerca e atuarmos nela para sua transformação. Assumir compromisso social, em nossa ciência, é buscar estranhar o que hoje já parece naturalizado. É não aceitar como as coisas aparecem-nos, mas sempre duvidar e buscar novas respostas.

Quero que todos nós possamos dar a volta por cima e construir uma socionomia identificada com as necessidades da maioria da população brasileira, uma maioria que sofre e luta, dadas as condições de vida que possui. Identificar-se com as demandas de nosso povo e acompanhar seu movimento, sendo capazes de apresentar respostas técnicas, é este o nosso desafio.

Logo, defendo a rica possibilidade de se usar a socionomia em políticas públicas, por concebê-la capaz de promover transformações nas realidades sociais, ocupando o socionomista um papel de mediador, facilitando os processos que são próprios dos grupos e das pessoas.

Não quero, com isso, dizer que essas ideias só possam ser levadas a cabo nos trabalhos instituídos na área da psicologia comunitária. Vejo ser também possível (e necessário) poder conduzi-las aos consultórios clínicos, escolas e organizações. Assim, longe de separar de forma maniqueísta as diversas áreas da psicologia, enfatizo a relação como ponto de partida do trabalho do socionomista, esteja este atuando em uma comunidade, em um consultório ou em um projeto. Outros estudiosos da socionomia poderão, no entanto, trazer, em seus estudos e suas práticas, outras perspectivas, outras formas de atuação e, consequentemente, contribuir para a construção de mudanças que tragam melhorias para a vida das pessoas.

 

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Endereço para correspondência
Av. Mister Hull, 2992 – Bl. 05 / Ap. 302,
Alagadiço - CE
e-mail: eleonorapsi@gmail.com

 

 

* Psicóloga do Centro de Referência Especializado de Assistência Social da Prefeitura Municipal de São Gonçalo do Amarante – Ceará. Psicodramatista pela Fundação de Estudos e Pesquisas Socionômicas do Brasil – FEPS do Brasil. Socionomista pela Universidade Estadual do Ceará – UECE