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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.17 no.1 São Paulo  2009

 

SEÇÃO LIVRE

 

Direção socionômica multidimensional AGRUPPAA e a fé tácita no eterno retorno

 

The AGRUPPAA multi-dimensional socionomic way of directing and the tacit belief in the eternal return

 

 

Milene De Stefano Féo*

Febrap -Federação Brasileira de Psicodrama

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo apresento algumas estratégias de direção socionômica regidas pela "fé" tácita no eterno retorno e pelo exercício sistemático do pensamento complexo, que nesta perspectiva de trabalho é nomeado como Pensar maiúsculo. Tais estratégias desenham parte do método de intervenção socionômica AGRUPPAA, de minha autoria, em desenvolvimento desde 1989. Proponho que as manobras de direção – multidimensionais - percorram quatro ciclos de ação, que podem ou não se sobrepor durante o decorrer de uma sessão. São eles: ciclo protagônico sociométrico; ciclo para a constituição do campo intensivo focado; ciclo de suspensão e introdução da alteridade e ciclo de reconhecimento de identidade e diferenciação. A descrição de tais ciclos trouxe a necessidade de apresentar, ainda que superficialmente, o léxico socionômico utilizado nesta concepção, que pretende ser coerente com a forma de trabalho desenvolvida.

Palavras chave: Ciclo protagônico sociométrico, constituição do campo intensivo focado, suspensão e introdução da alteridade e ciclo de reconhecimento de identidade e diferenciação.


ABSTRACT

Within this paper I present certain strategies of socionomic directing guided by the tacit belief in the eternal return and by the systematic exercise of complex thinking, which within this working perspective is denominated as Thinking with a capital T. These strategies are part of the AGRUPPAA socionomic intervention method, which I invented and have been developing since 1989. What I propose is that the multi-dimensional manoeuvres of directing traverse four different cycles of action, which may or may not overlap as the session evolves. These cycles are: the sociometric protagonic cycle; the cycle of constituting the area of intensive focus; the cycle of suspension and introduction of change; and the cycle of identity recognition and differentiation. The description of these cycles has made it necessary to also present, even if only superficially, the socionomic language used within this conception that intends to be coherent with the developed way of working.

Keywords: Sociometric protagonic cycle, the cycle of constituting the area of intensive focus, suspension and the introduction of change, the cycle of identity recognition and differentiation.


 

 

INTRODUÇÃO

Muitas são as maneiras com as quais os socionomistas contemporâneos vêm atualizando suas práticas. Cada uma delas parte de alguma fé de quem a inventa, tendo ciência disso ou não o seu inventor. A que eu tenho "inventado", batizei em "igreja ecumênica" com a sigla AGRUPPAA (aparelho grupal para Pensar pensamentos ações e afetos), e a modalidade de direção correspondente como multidimensional. Neste texto pretendo apresentar parte dessa maneira de trabalhar.

O que ofereço ao leitor não pretende sossegar dúvidas e incertezas, apaziguar conflitos e nem mesmo minimizar responsabilidades para com o esclarecimento, a atualização e redimensionamento de teorias e técnicas socionômicas. São apenas contribuições no sentido de se seguir pensando. Portanto, ler este texto não conduzirá ninguém ao êxtase de tornar o complexo, simples; muito menos propiciará encontros com saberes e técnicas que, se seguidos passo a passo, estarão garantindo o sucesso de uma intervenção socionômica. Até porque o que se entende por sucesso é uma questão de fé, que se revela no tipo de homem que se busca encontrar no contexto dramático. Pensar sobre isso já é um começo.

O homem que um diretor multidimensional mantém no horizonte não resiste ao aqui e agora, aceita o acaso, o incerto, o súbito e tudo aquilo que vai além de sua potência possível. Não cultua leis universais, nem pretende alcançar o controle e o julgamento justo, último, sobre todas as coisas. Aquele que procura a vida sem o atravessamento da dor e do mistério, se acaso entrou de gaiato nesse palco psicodramático – desavisado –, quem sabe descubra que a vida vale a pena, venha o que vier, mesmo quando o desenrolar dos acontecimentos se impõe na direção oposta às suas finalidades, de forma intransponível.

Com isso quero dizer que meu trabalho visa fertilizar qualquer coisa muito parecida com o que Nietzsche denomina de amor fati e vontade de potência. E como nossa condição humana – perecível – sempre clama por acalento, fico ainda mais satisfeita quando sigo a intuição nietzschiana (Machado, 1999) e planto como "verdade" – no "pano de fundo" das direções socionômicas que realizo – que tudo que se vive hoje retornará, sempre igual e exatamente como foi, infinitas vezes. Acredito que o homem que se mantiver acompanhado de tal fé tenderá a se manter em prontidão para interferir nos acontecimentos de sua vida, o quanto for possível, de tal forma que ela valha ser vivida, da mesma forma, sempre igual.

Ora, se por séculos pudemos crer que existe um paraíso, por que não depositarmos nossa necessidade de crer em algum tipo de vida além da morte na fé no eterno retorno? Acaso tal fé não nos fará infinitamente responsáveis com cada dia de nossas vidas?

É essa a fé que um diretor multidimensional AGRUPPAA tende a propagar com seu trabalho. E para tanto precisará seguir um "ritual", um conjunto de práticas, em ocasiões determinadas. E revê-las sempre, infinitamente.

Venho sistematizando desde o ano de 1989 tais práticas e são elas que passo agora a apresentar, em forma de uma síntese atualizada, ainda que parcial.

 

CICLOS DE INTERVENÇÃO MULDIMENSIONAL AGRUPPAA

Proponho pensar as intervenções de um diretor não como etapas a serem seguidas durante uma sessão, tal como é costume entre os socionomistas, mas sim como ciclos de trabalho, que podem ou não se sobrepor, conforme as forças confluentes que forem se constituindo. Tais ciclos podem ser imaginados como se fossem vários "olhos", sensíveis e viscerais, que o diretor tem desenvolvido, a serviço de identificar e interferir nas múltiplas dimensões dos acontecimentos em desenvolvimento. Sendo assim, mais de um ciclo de trabalho, pode ser referência para a ação de um diretor em um mesmo momento, podendo ser trabalhados quase que simultaneamente. Para melhor esclarecê-los, apresento-os um de cada vez.

Os ciclos de uma sessão AGRUPPAA são: reconhecimento de identidade e diferenciação, protagônico sociométrico, constituição do campo intensivo focado, suspensão e introdução da alteridade.

Não nomeio nenhum ciclo como aquecimento, dramatização, compartilhar e processamento, tal como é costume entre os socionomistas, porque utilizo tais recursos, à medida que se verifica sua operacionalidade, do início ao fim do trabalho e, portanto, estão inseridos, potencialmente, em cada um dos ciclos de intervenção propostos. Dessa forma, em uma sessão transita-se por tais recursos por diversas vezes, com diferentes objetivos.

A. Ciclo de reconhecimento de identidades e diferenciação

Este ciclo busca expandir o conhecimento de situações selecionadas para dramatização e reinventá-las no como se psicodramático, reconhecendo suas diversas dimensões biopsicossociais e cósmicas, entendendose por esta última tudo aquilo de mistério que exista entre o céu e a terra, ainda que nossa vã filosofia não alcance.

Por toda sessão a meta do diretor é reinventar realidades em cena que se mostrem insuficientemente satisfatórias para os presentes. Reinventar "realidades" no como se implica buscar produzir cenas ainda não vividas pelos personagens no percurso de suas histórias relatadas e dramatizadas. Experimentar o inédito neste contexto significa potencializar a capacidade de "sonhar" outras formas de se viver e valorar a vida. Aquece a todos os presentes para ir além do já estabelecido. Abre a possibilidade de realização de mudanças necessárias, levando em conta, em um segundo momento, as implicações de tais mudanças. Revela a intenção do diretor, neste contexto, de fortalecer o homem intuitivo, metafórico, interessado em constituir a vida como obra de arte, a ser reinventada a cada dia. E também o homem político, que se sabe sempre inserido numa trama de interesses que nem sempre coincidem com os seus próprios e, por isso, produz alianças e negociações. Ao desempenhar, de forma inédita, diferentes papeis no contexto dramático, expande-se a força de eus parciais que estiveram a clamar por expressão e fundam-se outros, o que resulta na modificação da dinâmica geral de eus globais de indivíduos e grupos, atualizando-se sua estrutura, que, se saudável, tenderá a ser sempre mutante.

Expandir o conhecimento de uma situação é pré-condição para modificá- la, diferenciá-la dela mesma, em busca de caminhos mais satisfatórios para os envolvidos. Implica reconhecer identidades que se repetem – invariâncias, conflitos e anseios por mudança, expressos pelos personagens que compõem as cenas dramatizadas.

O conhecimento que se busca não deve ser confundido com estímulo à racionalização – processo patológico de pensamento cindido da experiência emocional. O que se valoriza é o exercício de um Pensar grupal que acorda corpos em "coma", que assim permanecem para evitar conflitos entre dimensões opostas que habitam os presentes. É um pensar que se realiza também na ação. Muitas vezes, dentro e fora do como se, precisamos deixar a vida seguir, ainda que estejamos transitando por situações obscuras, sem precipitar sentidos, para que ela vá se revelando em suas dimensões ainda não esclarecidas.

Esse Pensar, o qual o diretor se ocupa em produzir durante uma sessão, não busca sínteses nem consensos, mas sim acolhimento de dissensos, produção de novos sentidos para os acontecimentos examinados. Um pensar que não parte do mundo das ideias e ali se esgota, nem de concepções prontas pregadas pela cultura, por religiões ou ciências. Parte, isso sim, dos afetos e sensações que denunciam exatamente os elementos que foram excluídos dos entendimentos formulados até então. É um "saber" que se constitui, momento a momento, nas relações que se estabelecem no palco psicodramático e suas ressonâncias com a plateia.

Nesse processo de expansão de conhecimento o que importa é multiplicar sentidos, e não encontrar a essência dos fatos. Parte-se do princípio de que conhecer não é um ato neutro e desinteressado. Surge das intenções e motivações – conscientes ou não – daquele que o produz. O entendimento que se alcança é visto mais como "signo", "linguagem simbólica", "expressão" e, por vezes, até mesmo "sintoma" do estado geral entre forças de intenções diversas, tanto as dominadas como as dominantes. Estas habitam diferentes indivíduos e os anima a interpretar "realidades" vividas.

Regido por tal pressuposto, cabe ao socionomista favorecer que se realize a expressão de diferentes vértices de entendimento sobre as situações em foco, levando-se em conta o reconhecimento das intenções, no mais das vezes, conflituosas entre si, que habitam os universos intra e interpessoais. Neste contexto, vértice deve ser entendido como uma "perspectiva", um "ponto de vista" ou um "ângulo", a partir do qual diferentes dimensões que habitam um mesmo indivíduo ou grupo captam e comunicam uma determinada experiência.

No percurso de produção de múltiplos sentidos de uma cena selecionada, revela-se um campo de forças complexo, constituído de finalidades distintas que desenham conflitos diversos. De tais conflitos emergentes não se busca depreender cenas pretéritas vividas pelos participantes de uma sessão. Entende-se que o que importa de seus passados estará presentificado em suas formas de interpretar, reagir e sentir no aqui e agora, estabelecendo eventuais combates com experiências presentes, que convocam a novos pensamentos, ações e afetos. Ressalta-se que tal passado presentificado agrega, em si, desde as marcas de experiências primevas infantis, estabelecidas com seus primeiros cuidadores, até suas relações estabelecidas com a cultura, com os grupos sociais e institucionais, com a mídia, com o espaço geográfico e cibernético, com suas próprias químicas e cargas genéticas e, quem sabe, também com seus próprios deuses, anjos, carmas, conjunções astrológicas ou o que seja aquilo com que cada um – como indivíduo ou grupo - foi atravessado até aquele momento. Tais marcas históricas, venham elas de onde vier, desenham identidades e singularidades diversas, que podem ser entendidas como eus parciais (Moreno, 1975) de indivíduos e grupos, os quais se organizam de forma a uns terem mais ou menos poder sobre outros, sendo os eus soberanos, em dado momento, os principais responsáveis por produzir as primeiras expressões de sentidos sobre as realidades examinadas. Depreende-se disso que, para expandir o conhecimento de uma cena selecionada, caberá ao diretor favorecer a emergência de vértices de eus parciaisque até então estavam despotencializados. Com este objetivo, ele propicia que sensações presentes na sessão de forma sutil – não nomeadas pela cultura e interrompidas por representações do passado ou por negação de conflito – possam ser recuperadas de modo a garantir visibilidade a eus parciais, fadados até aquele momento, total ou parcialmente, à inconsciência. Assim, antigas e novas representações, em status nascendi, se cruzam, promovendo abalos na estrutura de poder estabelecida entre eus pessoais e grupais, podendo gerar novas formas de existir, diante da situação em foco, dentro e fora do contexto dramático.

A esse processo grupal de reconhecer e reinventar realidades proponho que seja chamado Pensar maiúsculo. Caracteriza-se por um Pensar que é co-construído por indivíduos em interação a partir de sensações que atravessam seus corpos (Féo, 2007 a), quando mobilizados por acontecimentos que pretendem juntos melhor compreender e reinventar. Tal Pensar tende a desconstruir pensamentos, ações e afetos estabelecidos, que dificultam a atualização necessária da existência, e a fortalecer seja a reinvenção, seja o retorno do já instituído, quando este se mostra revitalizado pelo aqui e agora. Não busca a harmonia, mas o reconhecimento da diferença, do dissenso e da possibilidade de negociação. É regido por uma lógica em que o ressentimento não tem lugar.

O espaço privilegiado do Pensar maiúsculo é o contexto dramático, onde adquire diferentes formas, desde a maximização de expressões intensivas e imagens corporais até cenas simbólicas e realistas, associadas ou não a construções verbais. É ele o principal elemento em que se embasa o ciclo de reconhecimento de identidades e diferenciação.

B.Ciclo protagônico sociométrico

Este ciclo tem por meta estimular a expressão de eus parciais somáticos, psicológicos, grupais, institucionais, sociais e cósmicos, que "habitam" indivíduos e grupos; localizar confluências de forças estabelecidas pela atração, rejeição e indiferença entre estes eus parciais (Féo, 2007 a) e favorecer que eles se "materializem" em forma de diferentes cenas e personagens, no contexto dramático.

Os elementos que devem ser considerados para se compreender esse ciclo são a micropolítica dos eus parciais e eus globais; a constituição das cenas e dos personagens e suas formas de desdobramentos no como se e as etapas de construção de instantes protagônicos durante uma sessão.

 

 

A sociometria, revisitada pelo vértice AGRUPPAA, propõe que em todos os seres humanos habitam dimensões com quereres conflitantes entre si. Depreende-se daí ser equivocada a ideia de que dois ou mais indivíduos – considerados eus globais – é que se escolhem, se rejeitam ou são indiferentes entre si, ainda que se tenha delimitado um critério claro de escolha. No mais das vezes, "partes" de um mesmo indivíduo podem rejeitar e outras, se sentirem atraídas ou indiferentes a um outro indivíduo, levando-se em conta um mesmo tipo de projeto relacional. Por exemplo, imaginemos um homem em psicoterapia que conta, satisfeito, que sua mulher irá trabalhar com ele como parceira em seu trabalho. O grupo o questiona se seria boa mais essa duplicidade de papeis entre eles. Um campo de forças converge o interesse de muitos dos presentes sobre o comunicado desse colega de grupo. Inicia-se uma cena no como se que se desdobra em outras, que revelam uma complexidade maior do que a percebida inicialmente por aquele cliente de grupo. Ele tem a mesma profissão de sua esposa e recentemente ela passou a trabalhar na mesma instituição que ele. Surgiu uma vaga para ela se tornar parceira direta dele, o que seria benéfico financeiramente para ambos. A princípio eles se escolhem como parceiros de trabalho. A mulher considera o homem brilhante; com ele sente-se estimulada a reinventar sua forma de desempenho de papel profissional de maneira profícua. O homem também a escolhe como parceira profissional, posto que se sente valorizado, reconhecido e alimentado pela competência de sua esposa. Porém, a mulher carrega em si outras questões. Rejeita este mesmo parceiro para esta mesma atividade, posto que, ao lado dele, tem acionado sentimentos fortes de inferioridade e inveja. Teme que toda sua produção seja identificada como da autoria daquele a quem tanto admira. O homem, por sua vez, simultaneamente a se sentir atraído pela ideia de trabalhar com sua esposa, também rejeita tal ideia, por identificar e temer seus impulsos destrutivos para com ele. Além disso, não quer que aquela parceria dificulte o reconhecimento da esposa que tanto estima. E que também odeia, pois ela tem cedido aos "convites" daqueles "colegas" que têm atribuído, de certa forma, a autoria de seus projetos de trabalho à sua esposa. Sabem perfeitamente de seu percurso profissional e o quanto se dedicou para elaborá-los. Sabem também que sua esposa entrou na área há apenas dois anos e ele está ali há mais de quinze. Ainda assim, falam de seu projeto como se fosse uma autoria dos dois, com intenção de desmerecê-lo. Tudo se passa como se os eus parciais invejosos de sua esposa, ao inserir-se no átomo profissional de seu marido, ficassem potencializados. Ele sente-se muito irritado com isso, seja por considerar justo assumir a real autoria de seu trabalho e esta estar colocada em risco, seja pela inserção destrutiva de sua esposa na rede complicada de suas relações profissionais.

Esses e muitos outros eus parciais, mais ou menos conscientes, habitam o espaço relacional intrapessoal, grupal e institucional dessa trama trazida pelo cliente, constituindo-se um campo micropolítico onde circulam múltiplos interesses em jogo, o que esclarece quando afirmo que escolhas sociométricas não ocorrem entre eus globais, mas sim entre eus parciais. E sabendo disso, é preciso verificar também, nessa sessão, a "radiografia" sociométrica que rege a escolha de esse cliente permanecer ou não no foco do trabalho do dia. Estamos, portanto, lançados na reflexão sobre protagonista e tema protagônico.

No método multidimensional, uma sessão não segue necessariamente no caminho de encontrar um protagonista e um tema protagônico de maior grandeza, nem, tampouco, por princípio, os evita. Tudo depende da circunstância. O que é valorizado é que ocorram instantes protagônicos sucessivos, nos diferentes ciclos de trabalho, os quais podem conter um mesmo protagonista, ou não.

Entendo por instantes protagônicos aqueles momentos de uma sessão em que todos os integrantes do grupo estão de fato envolvidos com a cena dramatizada, por estarem incluídos seus eus parciais nos acontecimentos em desenvolvimento.

As cenas vividas, dramatizadas e relatadas durante um acontecimento socionômico mutidimensional, podem ser imaginadas, tal como múltiplos afluentes de diferentes rios que vão se encontrando aqui e ali, simultaneamente, em diferentes espaços geográficos. Imagino os diferentes rios como metáforas para representar múltiplos pontos de confluências de questões ou invenções grupais, comuns ou complementares, que estariam delineando cenas protagônicas, protagonistas e antagonistas que representariam subgrupos ali presentes. Por qual rio se navegará a cada momento da sessão caberá aos presentes definir, podendo ser inclusive aquele que estabeleça algum tipo de conexão entre um ponto de confluência e outro. E seja qual for a escolha do rio a se navegar, entendo que sempre existirá a possibilidade de transitar por territórios constituídos por alteridades que "plantam" revisões de identidades estabelecidas e germinam novas formas de existir, pessoais e grupais. O processo de decisão grupal sobre os percursos dessa "navegação" já é em si um potente dispositivo de intervenção grupal, pois implica um exercício de reconhecimento de interesses, de negociação, de constituição de alianças e de expansão de potências e responsabilidades compartilhadas.

 

 

Escolhido o trajeto – sempre entendido como temporário, no mínimo para ser revalidado pelo grupo de tempos em tempos – caberá perícia ao diretor para fazer transbordar por toda a plateia o "rio" pelo qual se decidiu navegar, de forma a fertilizar o instante protagônico em foco também entre aqueles que pretendiam seguir outras rotas. Se tiver sucesso, o diretor conseguirá trabalhar com um grupo implicado na co-construção das cenas dramatizadas. Caso contrário, será melhor rever o caminho a seguir nos momentos seguintes.

Entendo que tanto quanto o Egito é uma dádiva do Nilo, a socionomia é uma dádiva do instante protagônico, constituído e constituinte do protagonista, de seu antagonista e de sua trama, imersos em campos de forças sociométricos e espontâneos. Para identificá-los, ao diretor caberá ir cartografando os acontecimentos, cuidando especialmente para não impor rotas que lhe pareçam garantir o encontro com um determinado tema protagônico que trance em si a "grande e maior" questão do grupo ali presente. Encontrá-lo é uma das possibilidades. Preocupado com isso pode perdê-lo de vista, se acaso ele de fato estiver pulsando na sessão. A competência esperada para um diretor é a de se deixar guiar por cada instante, captando dele suas manifestações fugidias e se surpreendendo – tanto quanto os demais – com o percurso transcorrido, e o mais livre de a priori que conseguir. Entendo que a atitude "detetivesca" de tentar encontrar um tema protagônico mais acoberta acontecimentos grupais que clamam por emergir do que permite que ele se expresse. Isso não significa, de forma alguma, um diretor negar a própria influência na constituição dos acontecimentos da sessão. Apenas sugiro que ele não se apegue na busca de um grande tema, de um grande protagonista, que estaria em algum lugar, escondido entre os fenômenos emergentes, no aguardo de ser encontrado pelo diretor.

O ciclo protagônico sociométrico se constitui por etapas que podem ou não se repetir, por diversas vezes, durante uma sessão. Durante todo o transcorrer de um encontro socionômico – da plateia ou do palco – diferenciam-se indivíduos que trazem questões a serem examinadas através de diferentes linguagens e níveis de consciência e propósito. Aqueles indivíduos que se sobressaem de um todo indiferenciado em que estavam mergulhados nomeio manifestantes grupais, os que se fazem conhecer, que se mostram através de relatos de cenas acontecidas ou "tecidas" no aqui e agora, na relação estabelecida com os indivíduos presentes ou com os personagens no palco psicodramático. Suas expressões podem ou não atrair o interesse grupal, mas, por se mostrarem, geram atrações, rejeições e indiferenças que possibilitam irem se constituindo, mantendo ou modificando campos de forças, aos quais vão convergindo ou divergindo interesses diversos e sociometrias distintas entre os eus globais e parciais ali presentes. Assim, diferentes possibilidades de trajetórias a serem seguidas em uma sessão vão se delineando, constituindo-se diferentes núcleos de forças. Cada um desses núcleos é formado por indivíduos e alguns dentre eles vão se configurando como possíveis representantes de cada núcleo. A estes representantes de diferentes subgrupos presentes na sessão nomeio convergentes fracionais, líderes circunstanciais de subgrupos constituídos a partir dos acontecimentos delineados no aqui e agora da sessão. Sobre eles converge um fluxo de atração de eus parciais de alguns integrantes do grupo. Cada um desses convergentes fracionais traz consigo uma cena convergente fracional. Entendo que unanimidade sobre o que se "debruçar" em um encontro socionômico, no mais das vezes, é utopia. Um ou outro, no mínimo, pode não compartilhar do interesse localizado como comum. Uma questão única que abarque o interesse de todos é ilusão. O possível é exercitar boas negociações, estabelecer critérios de escolha com o grupo, responsabilizá-los por cada decisão tomada. Assim, escolhe-se, entre os convergentes fracionais, um representante grupal. Aqui opto por utilizar um termo usado por Falivene, ainda que me refira a uma etapa de um processo que busca instantes protagônicos sucessivos e não, necessariamente, o tema protagônico e um protagonista de toda a sessão como um dispositivo de intervenção especialmente desejado (Alves, 2008).

 

 

Escolhido um representante grupal, passa a contar a perícia do diretor e sua equipe para favorecer a identificação e o comprometimento de toda a platéia com o foco de trabalho escolhido.

Se nesse processo o grupo alcança um estado de identificação suficiente com o representante grupal e com sua respectiva cena trazida para dramatização, o representante passa a ser nomeado convergente grupal, e sua cena, cena convergente grupal. Esta, quando dramatizada, passa a ser chamada de cena protagônica ancoradoura, sendo o personagem principal desta cena o protagonista grupal, e o personagem que contracena com ele, se contrapondo e trazendo o conflito inicial para a cena se desdobrar, o antagonista grupal. Chamo de cena protagônica ancoradoura pois, quando um grupo constitui um tipo de dinâmica em que uma cena alcança a convergência de interesse de todos, ou pelo menos o compromisso de participação com seus desdobramentos, considero que a melhor maneira de ampliar hologramaticamente as suas possibilidades seja configurá-la para todos os presentes como um marco de referência, ao qual poderemos todos nos reportar durante o instante protagônico efetivado.

A cena protagônica ancoradoura pode desdobrar-se de forma centrífuga ou centrípeta. Nos desdobramentos centrífugos, as cenas protagônicas ancoradouras desdobram-se em outras cenas espontâneas (cenas ressonantes) e em sucessivos convergentes grupais, que assumem alternadamente o papel de autores e/ou atores espontâneos, e, um de cada vez, passa a ser responsável pela criação de sucessivas tramas inventadas no aqui e agora. Neste caso, o trânsito por diversas cenas constituirá o Pensar maiúsculo grupal. Já quando a cena protagônica ancoradoura se desenvolve de maneira centrípeta, seus desdobramentos tendem ao detalhamento dos elementos da cena da trama em si e do reconhecimento minucioso das múltiplas dimensões que habitam o protagonista e o antagonista. Neste caso, o trânsito pelas partes constituintes e constituidoras de uma cena gera o Pensar maiúsculo grupal.

 

 

Nesse ciclo protagônico sociométrico transita a maior responsabilidade do diretor em definir se o trabalho será predominantemente um sociodrama, um psicodrama ou um pedagodrama e, portanto, se o foco predominante do manejo da cena ocorrerá nas relações grupais, em tramas pessoais, no aprofundamento de um tema ou no desenvolvimento de um papel específico. Todas as três modalidades podem assumir características predominantemente profiláticas ou terapêuticas, e o convergente grupal ser trabalhado a partir de um personagem na primeira pessoa (maior exposição pessoal) ou na terceira pessoa.

Entendo que o manifestante grupal, o convergente fracional, o representante e o convergente grupal, todos eles podem ser nomeados mensageiros grupais, posto que, com suas ações, pensamentos e afetos, trazem elementos que constituem a identidade grupal e seus potenciais movimentos de diferenciação.

C. Ciclo de trabalho para constituição do campo intensivo focado

É meta de um diretor, durante o ciclo de constituição do campo intensivo focado, favorecer a efetivação de compromisso, por parte dos indivíduos presentes, para com os acontecimentos que estão inseridos, tornando-os cientes de que, quaisquer que sejam suas atitudes, sempre estarão a fortalecer ou enfraquecer possibilidades potenciais de manutenção ou mudança dos fatos dos quais são co-autores. Para tanto conta com sua capacidade de exercer influência significativa durante todo o percurso de trabalho, procurando estimular a expressão de múltiplos pólos de influência, além dele mesmo, por todo o grupo.

Um conglomerado de pessoas reunidas caracteriza um agrupamento. Passará a ser um grupo se entre elas se estabelecer uma relação de influência.

Entendo que a constituição de um grupo pode ser pensada como estado e como permanência. Um grupo como estado (grupo "instante") é constituído por indivíduos que compartilham uma mesma situação, no aqui e agora, e entre si se influenciam mutuamente, mesmo que antes daquele encontro nunca tenham se avistado. Um grupo como permanência (grupo "permanente") é constituído por pessoas que compartilham de uma mesma circunstância de vida que tende a se repetir e estabelecem entre si uma relação de influência mútua, que ultrapassa e independe do aqui e agora. Em alguma circunstâncias elas se influenciam a distância, em função desta relação estabelecida. Em outras, ainda que compartilhando um mesmo espaço, podem não se configurar como grupo "instante".

Um grupo que se configure seja como estado ou permanência pode assumir características de um grupo ressentido ou um grupo potente. Um grupo ressentido (ou passivo) configura-se nas situações em que seus integrantes poderiam ser agentes dos acontecimentos em que estão inseridos, porém tendem à passividade, à submissão, à obediência e à reclamação, esperando que um líder se responsabilize pelas realizações a ocorrer em um dado encontro ou percurso de vida. Transitam desde a idealização até a desvalorização completa de seus líderes, podendo chegar a cometer violências primitivas contra eles. O papel de líder tende a ser fixo, não circulando entre os integrantes do grupo. Já um grupo potente (ou ativo) configura-se nas situações em que seus integrantes tendem a agir de forma ativa, sabendo-se co-responsáveis pelos acontecimentos e percursos de vida dos quais compartilham. Tendem a realizar ações compromissadas, éticas e criativas. O papel de líder tende a ser móvel, circulando, sempre que possível, entre os integrantes do grupo.

Concorre com o campo intensivo focado o campo intensivo disperso, que se refere a campos de forças favoráveis ao descompromisso de indivíduos e grupos, para com a constituição dos acontecimentos presentes, ou à inconsciência de que, quaisquer que sejam suas atitudes, sempre estarão a fortalecer ou enfraquecer possibilidades potenciais de manutenção ou mudança dos fatos dos quais são co-autores.

 

 

Para que predomine o campo intensivo focado, durante uma sessão, é necessário que as pessoas se exponham, tal como foi descrito no ciclo de protagonização sociométrica, através de seus mensageiros grupais. E elas se dispõem a se expor apenas quando adquirirem confiança na equipe de socionomistas, nos indivíduos ali agrupados, e compreendem com clareza a proposta de trabalho, seja para validá-la ou transformá-la. Por isso é fundamental que um diretor favoreça o estabelecimento e a manutenção de uma aliança de trabalho durável por toda a sessão, entre todos os presentes, começando pela aquisição de uma relação de confiança com a equipe de socionomistas, seguida de um reconhecimento grupal constante – situação a situação – e de um contrato (e se preciso for, recontratos no decorrer da sessão) claro sobre o que se pretende fazer ali: situação em que se esclarecem o método e os objetivos da intervenção, o nível de exposição pessoal que se pretende atingir, entre outros esclarecimentos significativos. Esse é um cuidado ainda mais importante de ser tomado quando se trabalha em contextos empresariais ou educacionais, onde a exposição pessoal não costuma ser desejada nem indicada, e, também, quando o trabalho se realiza em apenas uma sessão e, portanto, o vínculo para com aquele trabalho, no mais das vezes, ainda não foi estabelecido.

Durante a construção da aliança de trabalho, é preciso que o diretor mantenha-se atento ao fato de que os integrantes de um grupo são ligados a interesses de diferentes subgrupos "permanentes" – diretamente relacionados ou não com a sessão – assim como a interesses sociométricos que atravessam e constituem a dinâmica grupal em formação. Dessa perspectiva, cabe ao diretor promover a expressão desses diferentes campos de força e, se necessário, modificar o objetivo do trabalho proposto. Além disso, deve manter-se atento a todo e qualquer movimento de dispersão grupal com a clareza de que nem sempre ela diz respeito à ausência de interesse ao que está acontecendo, mas, especialmente, ao descompromisso com a realização da sessão na direção do que cada um ali pretende. É muito comum indivíduos, excitados com o tema que está sendo desenvolvido, escolherem expressar suas posições para seu companheiro ao lado, por exemplo. Estão motivados com o tema tratado, mas não em colocar suas posições no grupo de forma que suas idéias e sensações se tornem influência significativa. Em casos assim, tais indivíduos estarão favorecendo que o grupo tenda para um campo intensivo disperso e retorne ao estado de agrupamento. Nessas circunstâncias, caberá ao diretor fazer intervenções para recuperar o campo intensivo focado perdido naquele momento.

Vale ressaltar que de nada adiantará qualquer intervenção do diretor para atingir as metas desse ciclo se, acaso, ele próprio não "transpirar" vontade de potência e de fato desejar o mesmo para os ali presentes. Aquele diretor que vem para o evento imbuído do desejo de ser reconhecido como o detentor da verdade do grupo não conseguirá alcançar os objetivos do ciclo de constituição do campo intensivo focado, tal como aqui está proposto. O mesmo ocorre com aquele que não suporta conflito e espera gerar um grupo obediente, ainda que não se dê conta disso.

D. Ciclo de suspensão e introdução de alteridade

Neste ciclo, o que está em jogo é que diferentes vértices sobre a cena protagônica ancoradoura sejam expressos por diferentes mensageiros grupais, de forma sistemática, alternando-se, segundo alguns princípios, o vértice soberano de autoria de tais cenas e seus personagens. O vértice soberano refere-se ao poder estratégico e temporário – atribuído pelo diretor de palco a um determinado indivíduo ou subgrupo – de dar a palavra final sobre a cena em desenvolvimento no contexto dramático. Dessa forma, o como se transita regido pela suspensão tácita da alteridade e pela introdução cênica da alteridade, simultaneamente, ora cabendo o vértice soberano para uns, ora para outros (Féo, 1992), favorecendo que haja múltiplos desdobramentos de uma mesma cena, de forma centrífuga ou centrípeta.

A suspensão tácita da alteridade está relacionada a um conjunto de manobras que um diretor realiza para favorecer que o palco psicodramático se torne um espaço para a expressão máxima das formas singulares de sentir, agir e pensar das diferentes dimensões que habitam um determinado indivíduo ou subgrupo. A este é delegado o vértice soberano de diversas cenas dramatizadas.

Durante a suspensão tácita da alteridade, cabe ao diretor opor resistência a qualquer expressão soberana de alteridade àquele mensageiro grupal definido como o que tem a palavra final sobre as cenas em desenvolvimento. Já durante a introdução cênica da alteridade, o vértice soberano passa a ser daqueles que antes não tinham para si o vértice soberano, passando então o palco a ser habitado agora por suas verdades e desejos. Portanto, suspender e introduzir alteridades são movimentos simultâneos, relativos a quem está com o poder sobre as cenas no momento. Com todos busca-se a expressão máxima de como cada um apreende a cena e deseja transformá-la, assim como a expansão da capacidade de suportar serem atravessados por alteridades que os lançam para revisão de suas próprias identidades, desejos e conflitos.

Opor resistência à expressão da alteridade, quando um indivíduo ou subgrupo tem o vértice soberano, não implica colocar qualquer obstáculo à participação de todos os outros integrantes de uma sessão socionômica. Ao contrário, implica aquecê-los para assumir o papel de manifestantes da alteridade, que significa serem estimulados a expressar seus próprios vértices, durante o percurso de construção de uma cena em foco, para que esta seja rejeitada, modificada ou aprovada pelo manifestante que tem o poder tácito de decidir sobre ela. Ainda que não tenham a última palavra sobre as cenas produzidas, ao construí-las, os manifestantes da alteridade tornamse mais e mais implicados com as tramas dramatizadas, podendo inclusive promover sobre si a confluência das forças grupais, o que pode transformálos, em um momento seguinte, em convergentes grupais.

Para que esse tipo de participação se efetive proponho a realização de quatro tipos de produções dramáticas: a auto-apresentativa, a ressonante, a projetiva e a retrojetiva.

A produção auto-apresentativa refere-se às realizações dramáticas – de autoria daquele que tem o vértice soberano – que expressam as dimensões que o habitam, no que se refere à cena convergente ancoradoura. A produção ressonante, a projetiva e a retrojetiva referem-se às realizações dramáticas por parte de manifestantes da alteridade, sejam eles indivíduos ou subgrupos integrantes da equipe ou do público, ao se deixarem atravessar pela cena narrada ou dramatizada. Na produção ressonante, o manifestante da alteridade exprime-se sem nenhuma reflexão a priori, deixando fluir o mais livremente possível como a cena protagônica ancoradoura ressoa em si, sem quaisquer outras preocupações além de se expressar. Na produção projetiva é pedido ao manifestante da alteridade que "escute" a cena convergente ancoradoura, tal como se fosse um texto dramatúrgico, o qual ele deverá encarnar, seja o protagonista, seja o antagonista, conforme a orientação do diretor. Este aquece o manifestante da alteridade para que ele busque, nas cenas de sua vida pessoal, referências para construir a expressão dramática projetiva. Assim, o manifestante da alteridade, aquecido pelas próprias cenas pessoais,expressa cenicamente como ele próprio experimenta em si as cenas de vida pessoal à qual foi reportado através do relato do convergente grupal. Já na expressão retrojetiva, a consigna dada ao manifestante da alteridade é que ele procure se manter ligado aos sinais emitidos por aquele com poder tácito sobre a criação da cena e, a partir desses sinais, construa uma expressão dramática, que deverá ter por base a empatia, e seguir os princípios das técnicas do duplo e do espelho. Realizadas as expressões retrojetivas, projetivas ou ressonantes, caberá ao indivíduo ou subgrupo que tem o poder tácito do vértice soberano eleger, entre os manifestantes da alteridade, seus egos auxiliares consonantes: aqueles autores e atores espontâneos que, segundo ele, produziram boas expressões de seu próprio drama. Elegerá também seus egos auxiliares dissonantes: aqueles que produziram expressões as quais identificou como distantes de sua forma de sentir, agir e pensar a trama em questão. Aos egos consonantes e dissonantes caberá a produção de expressões dramáticas diversas, as quais serão apreciadas, modificadas ou rejeitadas, conforme o desejo daquele a quem cabe o vértice soberano.

Os recursos cênicos utilizados nesse processo – sejam para a produção auto-apresentativa, ressonante, projetiva ou retrojetiva – são as expressões intensivas, as realistas, as radiográficas e as simbólicas.

As expressões intensivas referem-se às manifestações dramáticas que evitam o mais possível a comunicação verbal, realizando-se através de sons, grunhidos incompreensíveis, silêncios, expressões faciais e corporais. As expressões realistas apresentam os acontecimentos objetivos relevantes contidos na cena convergente. As expressões radiográficas se constituem através de imagens que buscam concretizar os diferentes eus parciais e versões de tus significativos da cena convergente. As expressões simbólicas são produções que reapresentam a cena protagônica ancoradoura de forma metafórica.

As expressões dramáticas radiográficas, intensivas, simbólicas e realistas podem ser construídas no aqui e agora da sessão, em palco aberto ou nos bastidores, situação em que um ou mais subgrupos montam cenas sem que o restante do grupo acompanhe a criação, tomando contato com ela apenas na hora de sua apresentação. Nestes casos o grupo todo pode estar dividido em subgrupos para criar cenas de bastidores ou apenas um subgrupo se retira do palco e vai produzir sua cena, enquanto o restante prossegue com suas produções em palco aberto, junto com o diretor. Esta forma algumas vezes é escolhida posto que, quando os indivíduos retornam dos bastidores e se encontram com os que ficaram trabalhando em palco aberto, é comum se notar que algumas dinâmicas estabelecidas em um e outro grupo tendem a se desestabilizar, o que pode ser produtivo.

A introdução cênica da alteridade tem início quando o vértice passa para as "mãos" da platéia e dos egos dissonantes.

O palco psicodramático, sob a regência da introdução cênica da alteridade, implica constituir-se como espaço para a diferença poder ser reconhecida ainda mais. Múltiplas cenas são aqui também produzidas em diferentes estilos – simbólicos e realistas – criados em palco aberto ou nos bastidores.

Nesse percurso co-criativo, durante todo o ciclo de suspensão e introdução da alteridade, a cena protagônica ancoradoura e seus personagens, expressos em suas várias faces, vão se constituindo como um leit-motiv de uma ópera. O que se pretende com isso é produzir múltiplas cenas que passem a habitar os palcos interiores de todos os ali presentes, fazendo-os questionar sobre suas próprias verdades estabelecidas, favorecendo que a experiência na sessão seja para todos uma matriz de singularização e diferenciação. Assim, o como se psicodramático torna-se um espaço privilegiado para exploração de diferentes vértices concebidos pelos presentes, incluindo a equipe de socionomistas em exercício.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para que o diretor multidimensional realize seu ato tácito de fé no eterno retorno, através de ações estratégicas propostas pelo método AGRUPPAA, os integrantes de uma sessão – inclusive a equipe de socionomistas – expressam e articulam seus múltiplos vértices de apreensão e reinvenção de realidades vividas no aqui e agora, transitando pela sessão, o mais possível, em campo intensivo focado. As cenas dramatizadas são revistas através de diferentes estilos de linguagem, tal como um leitmotiv de uma ópera, que se repete se diferenciando por toda a execução da "partitura" da sessão. Expande-se assim o conhecimento de fenômenos emergentes e suas possibilidades de reinvenção, fazendo lembrar a todos que não existe última palavra ao alcance de ninguém, muito menos ponto final para coisa alguma. Esse processo resulta em um Pensar negativo, que se pensa a partir das sensações e que não se propõe a resolver problemas nem matar a charada sobre coisa nenhuma. Pretende, isso sim, colocar os envolvidos na condição de continuar pensando, sentindo e agindo, seja sobre o que for, e se reinventando continuamente. Resulta também em um Pensar complexo, que acontece imerso em um campo de forças em que se estabelecem relações entre diferentes expressões do instituído e do que se pretende tornar instituinte de novas ordens de se viver. Assim se favorece o reconhecimento de áreas de consenso e dissenso entre as uni/dualidades pessoais e grupais presentes, que se comunicam e se influenciam mutuamente, funcionando como uma máquina de produzir múltiplos sentidos e possibilidades de porvir das realidades intra, inter e transpessoais trançadas aos acontecimentos "examinados".

Tenho observado que as estratégias de direção multidimensional favorecem um Pensar que promove a articulação entre diferentes pensares, tomando a forma de um aparelho grupal para Pensar pensamentos, ações e afetos. Tal aparelho tende a:

- Transitar pela busca de verdades temporárias levando em conta as intenções, conscientes ou não, de quem interpreta o fenômeno. - Reconhecer a relevância de trânsito entre o exame das partes de um acontecimento e de seu todo, admitindo suas interações com seu ecossistema.

- Admitir a relação ininterrupta entre observador/concebedor e objeto observado/concebido, introduzindo o indivíduo que procura expandir o conhecimento de uma dada situação como parte constituinte daquilo que tenta apreender.

- Substituir a lógica pela dialógica, que comporta noções complementares, antagônicas e concorrentes.

- Combater o idealismo e a racionalização, que crê que o real pode-se esgotar em um sistema coerente de idéias.

 

Referencias

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_____________________. Integração de conceitos psicanalíticos ao psicodrama: uma subversão aos alicerces básicos do psicodrama?. In: Anais do VIII Congresso Brasileiro de Psicodrama. São Paulo: Federação Brasileira de Psicodrama, 1992.         [ Links ]

MORENO, J.L. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1975.         [ Links ]

 

OBRAS CONSULTADAS

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____________________. Revisão conceitual de tele e autotele: Uma das bases do método socionômico AGRUPPAA. In: Anais do Congresso Brasileiro de Psicodrama. São Paulo: Federação Brasileira de Psicodrama, 2008.

____________________. O trágico no psicodrama. Reflexões sobre a construção de personagem. In: Revista Brasileira de Psicodrama. Vol. 15, no 2. São Paulo: Federação Brasileira de Psicodrama. 2007 b.

_____________________. O psicodrama e a busca da verdade. In: Um homem à frente de seu tempo: O psicodrama de Moreno no século XXI. Costa, Ronaldo Pamplona (org.) São Paulo: Ágora, 2001.

_____________________. Atendimento conjunto pais-criança: Uma proposta de atendimento ambulatorial. In: Psicodrama nas Instituições. (org.) Luiza Cristina Ricota. São Paulo: Ágora, 1990.

______________________. Féo e Vilaseca. Los psicodramas nuestros de cada dia: verdades que (n)os sustentan, incertezas que (n)os asombran. In: Anais - Registro histórico das contribuições no II Congresso Ibero-americano de Psicodrama. São Paulo: Federação Brasileira de Psicodrama, 1999.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007 a.

____________. Introdução ao Pensamento Complexo. Porto Alegre: Sulina, 2007 b.

MOURA, Carlos Alberto Ribeiro de. Nietzsche: civilização e cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

NIETZSCHE, F. Sobre a verdade e a mentira. In: Obras incompletas, Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

___________. A gaia ciência. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

 

 

Endereço para correspondência
Rua Teodoro Sampaio, 1020 conj 602 Pinheiros
São Paulo - SP
e-mail: milenefeo@uol.com.br

 

 

* Psicoterapeuta didata, professora supervisora pela Febrap