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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.17 no.1 São Paulo  2009

 

SEÇÃO LIVRE

 

Corpos tatuados, relações voláteis: sentidos contemporâneos para o conceito de conserva cultural

 

Tattooed bodies, volatile relationships: the contemporary meaning of the concept of cultural conserve

 

 

Devanir Merengué*

Instituto de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo de Campinas- Febrap -Federação Brasileira de Psicodrama

Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas

Endereço para correspondência

 

"O que temes se sabes que és mortal?"
(Imre Kertéz, escritor húngaro)

 

 


RESUMO

O autor utiliza a tatuagem para discutir o conceito de conserva cultural, como proposto por Jacob Levy Moreno. Por que jovens e adultos se tatuam em um momento da História marcado pela volatilidade das relações humanas? Por que se fixar na moda de algo tão permanente quando o mundo moderno-líquido pede desprendimento? Se a tatuagem é uma conserva cultural, esse conceito precisa ser redimensionado, pois tem uma forte conotação de resistência ao mudancismo da pós-modernidade.

Palavras chave: Conserva cultural, espontaneidade criadora, tatuagem, contemporaneidade, tempo.


ABSTRACT

The author employs tattoo in order to discuss the concept of cultural conserve as proposed by Jacob Levy Moreno. Why do young people and adults get tattooed in a moment of History marked by the volatility of human relationships? Why do they get attached to the fashion of something so permanent, when our modern-liquid world demands detachment? If tattoo is a cultural conserve, than this concept needs reconsidering, as it has a strong connotation of resistance in face of ever-changing postmodernity.

Keywords: Cultural conserve, creative spontaneity, tattoo, contemporaneity, time.


 

 

UMA QUESTÃO

A vida parece ter perdido o sentido que dávamos a ela. E isso há pouco tempo. Lá e então, havia um passado, um presente e a confiança em um futuro mais ou menos organizado. Havia muitos obstáculos, dogmas, tradições, preconceitos. Tudo isso era entendido como algo a ser superado. Jacob Levy Moreno se esmerou nessa luta: necessário, essencial era, então, o ato inaugural. Nesse sentido, o que é a espontaneidade criadora senão um novo começo, suplantando a conserva cultural vigente e limitadora?

Definitivamente: o mundo no qual vivia Jacob Levy Moreno era um mundo a ser superado. As conservas culturais tudo estancavam, não eram possíveis a fluidez, as transformações, o mundo aberto, as alternâncias libertadoras. A religião dogmática, o teatro dogmático, a ciência dogmática, os gestos dogmáticos... produzindo sentidos duros a um cotidiano vigiado.

Uma primeira questão que levanto nesse escrito é: Que novos sentidos podemos dar na atualidade ao conceito de conserva cultural? Esta pergunta leva a uma outra: A contemporaneidade pede isso?

Utilizo a pesquisa de Cukier (2002) sobre a obra de Moreno e, mais especificamente, aquilo que diz respeito ao conceito de conserva cultural:

(...) constitui a maior de todas as barreiras à infiltração da espontaneidade no padrão total da civilização hodierna. (pp. 56-57)

(...) está no final de um processo, um produto terminal. (p. 57)

(...) continuidade e herança – assegurando para ele a preservação e a continuidade do seu ego. Esta provisão é de ajuda sempre que o indivíduo viva em um mundo comparativamente estável; mas que deverá fazer quando o mundo à sua volta se encontra em mudanças revolucionárias e quando a qualidade das transformações se converte, cada vez mais, numa característica permanente do mundo em que ele participa? (p. 57)

(...) a conserva cultural é uma categoria tranquilizadora. (...) As conservas culturais serviram para dois fins: eram prestimosas em situações ameaçadoras e asseguravam a continuidade de uma herança cultural. (pp. 57-58)

O homem criou um mundo de coisas, as conservas culturais a fim de produzir para si mesmo uma semelhança de Deus. (p. 58)

O esforço de evasão do mundo conservado é semelhante à tentativa de retorno ao paraíso perdido (p.58).

Trata-se de um recorte, uma delimitação deliberada no conceitual moreniano para melhor argumentar e responder às questões levantadas. Priorizo o tema do tempo imiscuído na noção de conserva cultural: como se o tempo parasse e congelasse um produto resultante de um momento de criação. A conserva cultural é memória de um momento criativo, puro resultado de uma clareira no fluxo do tempo.

Moreno insiste na ideia de evasão em um "paraíso perdido", das conservas culturais utilizadas como "muletas" para nossos medos, do nosso desejo infantil de ser deus. Em todas estas noções está presente a ideia de algo seguro, apaziguador. O que pode haver de mais garantido do que a imagem de um relógio parado que não nos empurrasse para o final temido?

A espontaneidade criadora, pelo contrário, retira do homem o controle sobre o relógio e este, solto no nada, no abismo do não sabido, se obriga a produzir, a inventar.

O sociólogo Zygmunt Bauman tem descrito o mundo da pós-modernidade em que vivemos, chamando esta modernidade de líquida. Sua extensa obra tem sido publicada no Brasil, deixando entrever uma possível nostalgia (negada por ele em entrevistas1) e uma profunda desesperança nos dias que correm.

Chama de modernidade líquida um tempo que se contrapõe a uma modernidade sólida. Nesta havia nexos entre aquilo que outras gerações fizeram e o que as novas gerações farão, mesmo que a relação fosse de conflito. A liquidez diz respeito a algo fluido, que nos escapa a todo o momento. As identidades são frouxas, o medo é disforme, a ordem não tem rosto, o controle se espalha. As relações são bastante voláteis. Não esperamos mais algo tão conservado como um casamento para toda a vida ou uma aposentadoria conseguida no trabalho em uma única empresa. As migrações acontecem em todas as áreas da vida, mudar é a regra e não a exceção. E a não mudança constante e compulsória empurra o indivíduo a um inconveniente ostracismo.

É importante assinalar que as mudanças impingidas pela modernidade líquida nada tem a ver com as escolhas desejadas por Moreno: elas são impostas por uma sofreguidão do mercado, dos vínculos fugazes, da incerteza, da segurança que nos escapa sempre e sempre.

Bauman lembra que a compreensão dada por ele visa apenas e tão somente traçar esboços e não trazer soluções para algo tão complexo como, por exemplo, a globalização.

De qualquer modo, a necessidade de atualização teórica, no que diz respeito a conceitos tão básicos quanto conserva cultural e espontaneidade criadora, obriga-nos a discutir e atualizar estes conceitos como lastro teórico e operacional para o psicodramatista.

 

TATUAGEM

A tatuagem como expressão humana se inscreve na história coletiva dos corpos. Falo do corpo de cada indivíduo em um vínculo (fácil, doce, duro, tenso...) ao seu tempo e seu lugar. Falo também das marcas deixadas pela humanidade em um sem fim de desenhos, símbolos, letras, números não fora, mas na pele - que se acabam com a morte, mas desenhos serão conservados até o fim da vida.

Esse desejo de desenhar, escrever sobre a pele tem em cada tempo e em cada lugar sentidos muito distintos, mas sempre podemos detectar a questão da durabilidade: a marca está feita, conservada nesta pele, neste corpo.

O corpo é linguagem: o que difere é se é autor da mensagem ou apenas vítima passiva daquilo que está inscrito no seu corpo. As mensagens podem ter significados nobres ou marcas da crueldade humana, banais em dado tempo e perturbadores em outro momento. O corpo, desse modo, é suporte, base para o atravessamento da história. Esse corpo não apenas recebe, mas também responde, interfere no fluxo dos acontecimentos. Kafka (1988) descreve no seu livro Na colônia penal corpos marcados e excluídos de modo semelhante ao processo pelo qual passaram judeus na Segunda Guerra Mundial. Ramos (2006) descreve as memórias de judeus, cujos corpos, marcados por números identificatórios na pele, deixam a marca indelével da desumanização em massa. Revelam a intolerância para a diversidade. Ou, nas palavras da autora:

O anti-semitismo, que tatuou milhares de judeus, ciganos e homossexuais, nada mais é do que a não aceitação do outro na sua diversidade étnica, religiosa, política, econômica, sexual e social, e é ainda hoje amplamente vivido por nós e traduzido nas constantes intolerâncias, intriga e guerra a que voltamos, ou sempre estivemos a presenciar. (p. 4)

De qualquer modo retomamos à ideia da marca "eterna" inscrita nos corpos dos indivíduos diferentes dos nazistas e que, por isso, deveriam ser excluídos e, assim, garantir uma suposta superioridade alemã.

Interessa, a mim, a tatuagem escolhida, não aquela imposta compulsoriamente. Não é possível, entretanto, separar tão distintamente as duas situações: o inteiramente imposto (como a dos campos de concentração) ou aquela escolhida (supostamente a do jovem urbano e ocidental). O filme de David Cronenberg, Senhores do crime (Eastern Promises, 2007) mostra o uso que a máfia russa faz da tatuagem: o corpo desenhado conta a história do indivíduo e a situação dele na organização. Nesse caso, o que mais importa no processo é o pertencimento ao grupo.

Ao que tudo indica os seres humanos que escolhem se tatuar, o fazem por diversas razões:

- ter um adorno puro e simples em local visível e que funcione como um brinco ou um batom, com a função de se enfeitar e seduzir.

- marcar simbolicamente o corpo com um ou mais desenhos, com o intuito de produzir uma memória concreta de fatos objetivos ou subjetivamente vividos.

- criar para si um corpo distinto dos demais e, assim, se apropriar dele singularmente.

- produzir uma marca de um grupo específico, ao qual pertence ou deseja pertencer.

- agredir os pais, a família, a sociedade, fazendo aquilo que, suposta ou concretamente, não é permitido.

- transformar o corpo, modificando-o radicalmente. Nesse caso, a tatuagem pode ser associada a outras intervenções, como descreve Pires (2005).

As razões podem estar entrelaçadas, não sendo necessariamente excludentes. Assim, o simples ato de procurar um tatuador pode ser algo mais complexo do apreensível em um primeiro momento. O que me chama mais a atenção é o caráter aparentemente definitivo que tem uma tatuagem. Ou seja, o ato não diz respeito a um novo modismo, facilmente modificável. Trata-se de produzir um desenho que, para ser retirado, terá um alto custo financeiro, um difícil tratamento a laser e, em certos casos, com resultados discutíveis (Rodrigues, 2006, pp. 59 a 70).

O fato é que, quando se busca a tatuagem, busca-se também o definitivo: a estrela bela, o nome da amada, o versículo bíblico, o coração flechado e, mais radicalmente, o nome das empresas em que o tatuado trabalhou, ou da namorada no pênis. Compreendo o ato como a tentativa de congelar um desejo, um símbolo, uma marca. O desenho, por mais simples e "decorativo" que possa ser, apreende uma intensidade qualquer. O desejo de "reter" o tempo, concretizando-o, parece-me evidente.

Podemos aventar, desse modo, uma desconfiança na memória como lembrança. Seria preciso colecionar estes traços e cores para organizar uma narrativa, do mesmo modo que guardamos cartas de amor ou bilhetes de viagem para se amparar nessa concretude quando o tempo passar. Como suportar a solidão em alto mar? O desenho de mulher, com cores vibrantes no peito do marinheiro, talvez seja mais "vivo" do que uma foto, por exemplo.

Mas até aqui pensamos na relação do tatuado com sua tatuagem. Um corpo tatuado não é, evidentemente, um corpo isolado. Ou seja, não é possível desprezar o caráter relacional da questão.

 

PAPÉIS E TATUAGEM

As práticas e objetos ganham sentidos diversos no decorrer da história dos seres humanos e das sociedades, sendo adaptados, complementados, reinterpretados na medida da necessidade e dos fluxos do co-inconsciente. Desse modo, podem ter sentidos opostos, dependendo do tempo e/ou do lugar (ver Araújo, 2005).

Desse modo, se a tatuagem perpassou culturas, ora alinhadas ao papel social "adequado", ora em total "desacerto" (como veremos adiante), valeria a pena compreender como ela pode sobre-codificar os papéis. O médico vestido de branco, mas deixando entrever no braço uma bela tatuagem que teime em escapar pela manga da camisa, confirma um papel de profissional "moderno" ou complica um papel supostamente "de respeito" em uma sociedade conservadora? Aquela tatuagem estaria "a serviço" de algum papel imaginário que não necessariamente se alia com o papel social de médico em um meio urbano? Um ator busca tratamento a laser para retirar a tatuagem, pois alguns personagens vividos por ele no teatro, na televisão ou no cinema não são compatíveis com um corpo tatuado. Isto poderia não ser um problema para um artista circense. O desenho rígido sobre o corpo irá, assim, favorecer ou complicar o desempenho dos papéis sociais. Ou ainda ser algo absolutamente insignificante, dependendo da tatuagem e do papel social.

O aspecto relacional é eixo importante na questão: mesmo que o tatuado diga que se tatuou para si apenas e tão somente, seu desenho objetivamente poderá servir para seduzir, afastar, agredir o outro dependendo das intenções conscientes ou inconscientes implicadas. Uma tatuagem nos genitais difere do efeito de uma tatuagem no rosto, sendo que a primeira diz respeito supostamente à vida amorosa do(s) envolvido(s), enquanto a segunda, amplos aspectos de papéis e funções.

Uma tatuagem anuncia no seu conteúdo ou na sua forma algo explícito ou implícito, mais ou menos apreensível ao "leitor". Uma gama de signos que se interpõem nos vínculos, aproximando ou afastando. Podemos imaginar uma verdadeira sociometria bem viva acontecendo entre tatuados e tatuados, não-tatuados e tatuados, perpassando sutilezas e preconceitos entre os envolvidos. Frequentemente, os desenhos tatuados condensam uma história como em um sonho, um poema, uma ferida (simbolizada por uma rosa?). Imaginemos esse desenho sendo exposto no jogo social...

Retomando o conceito de papel imaginário (Naffah, 1979, Merengué, 2003) como um papel de algum modo guardado e impedido de ser vivido no contexto social, muitas vezes asfixiado pelo papel social, a tatuagem pode ser parte dessa história. Um exemplo é a história narrada por um cliente que, impossibilitado de namorar uma colega de seu curso universitário, já que ela o rejeita, tatua um retrato dela nas costas. Fica instaurada uma tensão entre papel social sem contrapapel (namorada "ausente") e papel imaginário com um contrapapel imaginário, representado pelo desenho da moça em forma de tatuagem. A (triste? lírica? louca?) resolução encontrada por ele foi tatuar o rosto dela, eternizando o amor.

Podemos imaginar que a tatuagem pode não estar associada uma narrativa tão consciente, mas a algo não compreendido, como em um sonho, cujo sentido não foi apreendido. O olhar psicodramático estimularia a busca de cenas e significados para estes desenhos aparentemente destituídos de significado.

 

TATUAGEM E FUGACIDADE

Para Bauman (2001), o único papel que, de fato, importa no nosso tempo é o de consumidor. Não fala apenas e tão somente do ato de comprar uma mercadoria e, sim, do consumo de conhecimento, de amores, da arte etc. Nesse sentido, o bom consumidor é aquele que desempenha essa tarefa de modo ágil e acrítico, comprando, antes de tudo, um estilo de vida, um modo de se comportar, mais e mais. A identidade conseguida na modernidade líquida estaria, na compreensão do autor, na crença da descartabilidade das coisas, pessoas e relações e em uma ansiedade de continuar consumindo vorazmente. Não é um universo de certezas, portanto, muito pelo contrário, marcado pela constante mudança de tudo. O esforço feito pelos indivíduos é no sentido de manter-se em fuga para não perder lugar. Não se vai em direção a uma utopia (Bauman, 2007), mas fugindo de algo.

Tendo estas ideias como pano de fundo, impressiona que muitos jovens e adultos escolham a tatuagem, seja qual for a razão que esteja na base dessa opção. O que chama a atenção em primeiro lugar é o caráter supostamente permanente da escolha, quando o universo pede descartabilidade. Desse modo, a tatuagem, mais que um simples adorno, representa uma marca que se contrapõe à fugacidade de tudo. Uma conspiração contra o tempo e a pressa que tudo apaga? Aquele que se tatua prefere o registro material, objetivo, uma representação na pele para lembrar-se de jamais esquecer-se de lembrar. Ou, no caso, das tatuagens visíveis, para, de algum modo, fazer o outro lembrar.

Em um primeiro olhar, a tatuagem é o exato oposto da fugacidade da vida. Sua função resultaria na eternização das coisas, em uma luta contra a morte do que é passageiro, impingida pela brevidade e efemeridade dos tempos líquidos. Seriam as tatuagens grandes, coloridas, vívidas a encarnação dessa batalha? Suas formas intensas o confronto com o amarelar precoce de nossas relações?

A tatuagem reinterpreta o corpo, acrescentando o supostamente inusitado. Já não é o corpo herdado, e o qual, belo ou feio, nada tem do seu dono. A tatuagem dá essa marca, registro pessoal e intransferível que se contrapõe à impessoalidade e à desmemória. Não se exclui a vaidade como determinante para a feitura da tatuagem: mesmo aí e, talvez principalmente neste caso, uma atitude narcísica aponta para a defesa necessária em um mundo que esvazia sentidos, sentidos estes produzidos pela subjetividade.

A identidade pós-moderna segue na contramão da subjetividade produzida por indivíduos ou por grupos de indivíduos, cuja principal motivação vital diz respeito aos experimentos com a espontaneidade criadora. Não se reconhece o criador, mas apenas e tão somente o consumidor. A única possibilidade de o criador ser reconhecido é que sua criação esteja à serviço da ordem consumística. Identidades não alinhadas a esta ordem serão execradas.

Entendo, seguindo esse pensamento, a tatuagem semelhantemente à assinatura do artista que personaliza um corpo que agora pertence ao indivíduo. Mas facilmente sujeito à voracidade da ordem, que despreza subjetividades não registradas naquilo que essa mesma ordem autoriza como bom e vendável.

Mesmo que compreendamos o corpo como adaptado, domesticado, apenas seguindo o fluxo da moda, e a tatuagem vista como algo sem qualquer caráter contestatório e nenhuma insurgência, ainda assim, busca-se, nessa marca pessoal, a resistência, mesmo que negada e inconsciente.

 

NOVOS SENTIDOS PARA O CONCEITO DE CONSERVA CULTURAL

Quando Moreno conceitua conserva cultural como produto de um ato espontâneo e criativo, apontando aspectos positivos (menos) e negativos (muito mais) aí implicados, falava ele de um mundo rígido, no qual as mudanças não aconteciam. Promover mudanças produzindo alternativas era algo absolutamente necessário, em um universo pouquíssimo disposto à novidade. A contextualização histórica facilita o entendimento na construção desse conceito. Viena, cidade onde se encontrava Moreno no começo de século XX, simboliza o amor pelo perfeccionismo que não admite mudanças, mas, ainda assim, cansada disso e ansiosa por profundas transformações para o mundo.

O descongelamento destas conservas virá, na concepção moreniana, com o espontâneo e o criativo. O foco incide frontalmente sobre as relações humanas feitas de rituais e tradições, neuroses duras e psicoses dolorosas e a principal matéria da conserva cultural, o apego doentio pelo mesmo. Muito mais que algo próprio do indivíduo e dos grupos, a conserva cultural atravessa as sociedades, seus lugares e tempos. O zelo para manutenção dessa ordem é feito de vigilância e controle.

Uma conserva cultural, para assim ser compreendida, necessita da repetição, da insistência no padrão, na quantidade e na qualidade, no ordenamento, na seriação. Para que o conceito seja mais preciso, o uso que se faz de uma conserva cultural deve ser francamente limitador: fica diminuído o perigo de abusos criativos e espontâneos nessa diminuta nesga.

Moreno não esmiúça o conceito, chamando de conserva cultural uma imensa gama de "produtos". Diferencia de modo incipiente uma bomba mortífera de um livro, mas é óbvio, pelo seu histórico, que o livro era, moralmente falando, preferível ao artefato destrutivo. Não incide sobre a moral, no entanto, sua discussão, e, sim, sobre processos criativos e o apreço da humanidade pelos produtos destas criações. Nessa cruzada, perde a chance de refletir sobre a própria conserva cultural.

Impressiona, especialmente, a satanização do livro (Moreno, 1974), embora compreensível dentro da contextualização histórica feita acima. Fala de um objeto (concreto? metafórico?) nefasto: o livro. Por um lado é muito corajosa sua atitude de discutir algo tão especialmente sagrado, mas, por outro, destrói todo potencial revolucionário das letras impressas. A ideia expressa nos seus textos é uma briga acirrada contra as fórmulas prontas e repetitivas, sendo isso algo importante no projeto moreniano. O livro é esse símbolo anti-moreniano: será preciso, então, uma luta sangrenta a ser empreendida contra a tirania imposta pelas letras.

Existem no mundo, no entanto, livros e livros. Dogmáticos uns. Outros plenos de sentidos, camadas e possibilidades, para o leitor criativo ou não. Moreno, como infelizmente fica patente nos seus escritos, é pouco afeito à leitura minuciosa. É superficial quando lê os autores de sua predileção (?), com o principal objetivo de desqualificá-los, com raríssimas exceções. Como palavra escrita é para ele palavra morta e o que vale mesmo é a ação, o pobre livro vira bode expiatório fácil.

O sentido de ação indica também um sentido de desmumificação de seu tempo: é preciso agir, mesmo que isso, em certos momentos, sacrifique a reflexão. Parece que o papel de leitor remete a essa falta de ação, a passividade execrável, as letras coladas no papel que não mudam o mundo. Despreza os intelectuais e filósofos que "nada fazem" e admira aqueles que põem a mão na massa. Para compreender o potencial do livro, seria preciso entender que leitura é ação, reflexão é ação, escrita é ação.

O que dizer do desprezo pelo livro, pela escrita e pela leitura de nossos dias? Essa discussão, absolutamente atual, é feita por educadores desesperados, quando seus alunos leem pouco ou assumidamente não gostam de livros. Essa geração, filhotes da Idade da Tela, prefere imagens com pouco texto. A imagem, onipotente, tudo toma. O livro torna-se obsoleto já que, na tela, acham os defensores da imagem, crianças, adolescentes e adultos encontram tudo o que precisam. A discussão, no meu entender, fica extremada e estéril quando se exclui o livro ou a tela: ambas as ferramentas podem ser absolutamente úteis e interessantes.

O livro, na contramão do que pode significar para o pensamento moreniano, constitui-se, nos nossos dias, peça de resistência. Nos fluxos e refluxos da História dos homens, aquilo que um dia foi um obstáculo para a transformação, hoje pode ser o lócus da revolução.

É necessário, em função do que foi dito, retomar o conceito de conserva cultural, à luz dos novos tempos. Mudar o tempo todo: capturado pela ordem produziu-se uma patologia social, algo como um mudancismo.

Mudar a roupa, o emprego, as relações pessoais tudo isso é "muito desejável" no atual estado de coisas. A conserva cultural, em resumo, passou a ser a própria mudança compulsória. Temos uma impressão constante de um mundo novo e que não precisamos mais de criadores, parecendo haver um movimento constante e incontrolado de muitas transformações. Um esforço necessário está, portanto, em situar e conceituar conserva cultural nessa pressa desenfreada.

Uma atitude muito mais crítica diante do que é espontâneo e criador e o que é conserva cultural se faz necessária. Isso só pode ser apreendido na interioridade do vínculo, levando-se em conta os elementos presentes envolvidos na questão. Uma atitude de não-mudança pode funcionar como antídoto para discutir justamente o mudancismo. Nesse sentido, uma hipótese possível para a tatuagem, no momento atual, seria uma atitude de resistência contra tudo o que traz um prazo de validade no rótulo.

O conceitual moreniano, no entanto, não perde sua validade. Suas premissas foram construídas em um mundo em que o revolucionário e o conservador eram nitidamente explícitos. A revisão se faz necessária. Retomando as ideias de Moreno recortadas por Cukier, na obra citada: A espontaneidade e a conserva cultural não existem em forma pura: uma é função, é parasita da outra. (p.57)

A plasticidade presente na afirmação desengessa e tira rótulos do que viria a ser espontâneo e conservado. Em outro contexto (Merengué, 2004), tentei justamente mostrar que a pornografia foi algo plenamente disruptivo em determinado momento da História, produzindo crítica social e política. Nos nossos dias, cumpre, juntamente com tantas outras coisas, a função de produto a ser consumido no mercado sem qualquer conotação de crítica à ordem. Mas como avaliar que essa conserva cultural, de pouquíssima originalidade, não possa produzir "obras novas" ou comportamentos espontâneos e criativos?

Para Moreno, a espontaneidade criadora parte de indivíduos e grupos – os criadores. Na atual ordem, a tal mudança deve ser apenas e tão somente consumida, escondendo os grandes dilemas humanos como o tempo, que leva para a morte. Os exemplos mais óbvios são as cirurgias plásticas na melancólica luta humana contra o envelhecimento, as religiões cujo propósito é oferecer o paraíso pelos meios mais absurdos e irracionais. Todos evitam o enfrentamento da questão mais nodal, ou seja, a fugacidade da vida humana. Se nosso sombrio tempo é feito de solidão, pois o indivíduo encontra-se isolado, o projeto moreniano visa à discussão do como sobreviver juntos.

 

Referencias

ARAÚJO, L. Tatuagens, piercing e outras mensagens do corpo. São Paulo: Cosac Naify, 2005.         [ Links ]

BAUMAM, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.         [ Links ]

___________. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.         [ Links ]

CUKIER, R. Palavras de Jacob Levy Moreno. São Paulo: Ágora, 2002.         [ Links ]

KAFKA, F. Na colônia penal. São Paulo: Brasiliense, 1988.         [ Links ]

MERENGUÉ, D. Violência e Criação: Observações psicodramáticas sobre o filme "Cidade de Deus". In: Revista Brasileira de Psicodrama. São Paulo: publicado pela Febrap. Vol. 11, n. 1, ano 2003.         [ Links ]

_____________. O obsceno: a cena pornográfica na espreita psicodramática. In: Revista Brasileira de Psicodrama. São Paulo: publicado pela Febrap. Vol. 12, n. 2, ano 2004.         [ Links ]

MORENO, J.L. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1974.         [ Links ]

NAFFAH NETO, A. Psicodrama descolonizando o imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1979.         [ Links ]

PIRES, B. F. O corpo como suporte da arte. São Paulo: Editora Senac, 2005.         [ Links ]

RAMOS, C. M. A. As nazi-tatuagens: inscrições ou injúrias no corpo humano? São Paulo: Perspectiva, 2006.         [ Links ]

RODRIGUES, A. Tatuagem: dor, prazer, moda e muita vaidade. São Paulo: Editora Terceiro Nome e Mostarda Editora, 2006.         [ Links ]

 

OBRAS CONSULTADAS

BAUMAN, Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

COSTA, A. Tatuagem e marcas corporais. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003

 

 

Endereço para correspondência
Rua Anhandeara, 275 Chácara da Barra
Campinas - SP
e-mail: dmerengue@uol.com.br

 

 

* Psicólogo (Unesp), psicodramatista (IPPGC-Febrap), pesquisador Violar (FEUnicamp)
1 - Ver, nesse sentido, entrevista do autor em Tavares, F. Governados pelo medo. In: caderno Álias. O Estado de São Paulo. São Paulo. Domingo, 27 de janeiro de 2008.