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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.17 no.2 São Paulo  2009

 

SEÇÃO TEMÁTICA: Psicodrama e pesquisa: projetos, processos, resultados

 

Entrevista dialogal: o que pretende de novo?

 

Dialogic interview: Has it got to offer anything new?

 

 

Júlia Maria Casulari Motta*

Febrap - Federação Brasileira de Psicodrama

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é uma reflexão sobre uma proposta de modelo de entrevista dialogal baseada, em especial, em dois autores: Walter Benjamin (1926- 1984) e Jacob Levy Moreno (1889-1974). Para tanto, discute os conceitos de vínculo entre os participantes, de ética e de realidade suplementar. Desenvolve também a ideia de que visitar o passado é fazer uma viagem rememorativa que reativa um compromisso social, portanto, político. Por fim, reunindo pontos complementares, propõe, como imprescindível, a construção de um projeto dual, cenário da entrevista dialogal. Considera não ser viável treinar pessoas para uma conversa intencional, uma entrevista dialogal. Entretanto, é desejável a construção de motivações, a inserção de pessoas no campo da pesquisa como compromisso político e social.

Palavras chave: Entrevista dialogal, vínculo, projeto dual, memória e história.


ABSTRACT

This paper reflects on the proposal of the dialogic interview model, based on two authors: Walter Benjamin (1926-1984) and Jacob Levy Moreno (1889-1974). It discusses the link between the participants, the concept of ethics and that of surplus reality. It also introduces the idea that visiting the past means embarking on a reminiscent journey that reactivates a social, and therefore political, commitment. Finally, by bringing together complementary points of view, it proposes, as indispensable, the construction of a dual project, this being the scene of the dialogic interview. It considers training people for intentional conversation, a dialogic interview, to be unviable. What is desirable however, is to stimulate motivation, to involve people with research as a form of political and social commitment.

Keywords: Dialogic interview; link; dual project; memory and history.


 

 

INTRODUÇÃO

Para a Psicologia, o ato de lembrar é lidar com o esquecimento, ficando a verdade como mera contemplação. A partir desse fenômeno, fica instalada entre memória e esquecimento uma tensão que necessita criar iconografias para se manter. Tais imagens mentais nascem da necessidade de se proteger aquilo que daqui a pouco não vai mais existir. Mas, somente essas iconografias não satisfazem, e, para não perder a memória, é preciso contá-la.

No entanto, as palavras dizem e escondem, revelam ao ocultar, falam e silenciam. Então, ver o que foi dito é atentar para o como foi dito, por que foi dito e para que foi dito, em um jogo de regras que definem a verdade a cada tempo. Nesse processo, é possível reconhecer que quem define o que vai ser preservado está definindo o que vai ser destruído. Assim, é necessário perguntar quem, no trabalho de história e memória, define o valor. Quem enxerga o valor? Ao lidar com fontes de depoimentos, quais os saberes e poderes do entrevistado e do entrevistador? E como estão esses saberes e poderes em uma entrevista dialogal, que é uma conversa para a construção de uma narrativa?

Este artigo propõe-se a refletir sobre um modelo para uma entrevista dialogal e, ao analisar alguns passos da constituição deste modelo, também reflete a pergunta: qual a viabilidade dessa proposta e as condições em que este procedimento poderá ser adotado? Com a reflexão desenvolvida nesse trabalho, espero ter respondido a essas perguntas.

Para tal reflexão, baseamo-nos em dois autores principais: Walter Benjamin, com os conceitos de memória e história, e J. L Moreno, através dos conceitos de vínculo e realidade suplementar.

 

VISISTANDO WALTER BENJAMIN: MEMÓRIA, NARRATICA E HISTÓRIA

Este autor, que teoriza sem fazer teoria, diz sem dizer e declara que o passado não volta em sua inteireza, chama nossa atenção para as entrelinhas plenas de historicidades e nos relembra de que há uma distinção entre conhecimento e memória. Memória é a capacidade de entrar em contato com o inconsciente, voluntária e involuntariamente. Enquanto o conhecimento não pressupõe esquecimento, mas apresenta-se como certeza, a memória é um trabalho como o do ator, da arte, é cena produzida – em parte como reprodução do script, e também como improvisação do ator estimulado pela plateia –, já que a memória é sempre relacional. É a ação do ator, como sujeito que produz involuntariamente, revelando que a memória é conhecimento gerado no berço da experiência. Então, é também exercício narcíseo, portanto, individuação. Portanto, é trabalho de construção e destruição – é autoria. Para tanto, necessariamente, precisa incluir o sonho, matéria-prima do vir-a-ser, elemento virtual responsável por impregnar a memória da possibilidade criativa.

Todo esse processo não é uma tagarelice da fala sem experiência, é tradução e traduz uma linguagem, esta que é fruto dos vínculos e, ao mesmo tempo, gera vínculos. Ao atentar para o vínculo entre entrevistado e entrevistador, as condições criadas para a entrevista, também reconheço que quem define o que vai ser lembrado está definindo o que vai ser esquecido, pois rememorar é um ato político que inclui poder, portanto, contém a capacidade de transformação. Ao recordar quando cria uma narrativa histórica, o entrevistado está construindo sua participação no coletivo, por isso tem poder de transformar a história, em outras palavras, assume o poder protagônico.

Para o historiador Benjamin, memória não é só ir atrás do tempo perdido, é visitar o passado em busca do amanhã, é tirar do passado aquilo que faria a nossa história diferente, levando em conta que aquilo que consideramos mais estranho é o melhor material para compreender uma verdade (Gagnebin,1982, pp. 46-60).

Estamos diante de um desafio benjaminiano, que é descortinar do passado aquilo que faria da nossa história uma outra história. Este pensador aponta para as alegorias que são imagens encharcadas de temporalidades, imagens dialéticas que revelam a historicidade como um cenário de uma casa sem telhas depois de uma explosão. Mostra-nos que nos símbolos encontramos uma linguagem que fala de si mesma e que, nas alegorias, há uma linguagem que nos fala de outras coisas, apontando que a verdade pode ser encontrada mais nas alegorias que nos símbolos. "Escovar a história a contrapelo" (tese VII) é buscar a história dos vencidos, aquilo que a história oficial excluiu, o ficou apócrifo como "documento da barbárie", é reconhecer a memória que não está nos livros dos vencedores, é escavar o que teria feito da nossa história uma outra história. Essa garimpagem tem como meta evidenciar o novo na história, o que é capaz de atualizar as esperanças, de libertar os vencidos de ontem e os de hoje. Com isso, a história passa a ser contexto do vencedor e do vencido, pondo em evidência a importância da retomada dos fracassos como experiências acontecidas, através das quais foram produzidas relações vividas.

A memória é, então, um recurso singular de participação no coletivo, é um patrimônio do coletivo no singular, e a verdade é o que toca um ao outro, possibilitando a construção de visões sociais plurais. A memória e a narrativa histórica permitem que homens e mulheres tenham uma existência humana na condição de pronunciantes do mundo, pois não é no silêncio, mas na palavra, que o homem se faz, e o diálogo é a vinculação entre humanos (BENJAMIN, 1975;1986;1987;1989).

 

VISITANDO JACOB LEVY MORENO: VÍNCULO E REALIDADE SUPLEMENTAR

A profunda importância da ideia de tempo e espaço para a obra moreniana é que sua proposta parte do princípio de que se busca a verdade, se vivencia a verdade através da ação. O valor da realidade subjetiva, que é sempre relacional, portanto, sempre em inter-relações com o coletivo, serve como premissa para a possibilidade de um encontro entre pessoas no aqui-e-agora. O objetivo do psicodrama, então, é construir um espaço terapêutico que tenha a vida como modelo, que permita aos participantes integrarem todas as modalidades de vida, "desde as universais, como tempo, espaço, realidade e cosmos – passando por todos os seus detalhes e suas nuanças" (FOX, 2002, p. 31). Ora, a vida é feita de homens e mulheres organizados em tempo, espaço, realidade e cosmos através de vínculos, grupos, instituições, sociedades e culturas, que nem sempre estão visíveis na realidade social.

Para Moreno, foi necessário criar uma nova dimensão da realidade, a que chamou de suplementar, na qual as experiências de determinadas dimensões invisíveis na realidade da vida podem ser vividas, experimentadas e expressas. Essa realidade suplementar é um tempo-espaço especial (FOX, 2002). Esse contexto da realidade suplementar – em que a narrativa do entrevistado é construída num trabalho de rememoração, como o do ator, da arte – é uma cena produzida, reunindo o script da história oficial com a improvisação, com a produção imagética do ator – já que a "memória é sempre relacional" (BENJAMIN, 1986;1987;1989). Ora, a cena de uma entrevista dialogal é uma relação entre, no mínimo, duas pessoas, quando o entrevistado oferece suas memórias como conhecimento gerado no berço da experiência. Esta autoria como um trabalho de construção e destruição necessita incluir o sonho, o vir-a-ser, que nada mais é do que a possibilidade criativa. Nesse contexto do "como se" da realidade suplementar, cenário da entrevista dialogal, as pessoas envolvidas constroem um projeto compartilhado em uma narrativa. O entrevistador, como um diretor em cena, aquece seu ator para o papel de entrevistado, ao mesmo tempo em que é motivado por este. Constroem uma cena comum, que inclui o sonho que perpassa às individualidades, alimenta e é alimentado nas inter-relações. Dos diversos vínculos entre todos envolvidos na entrevista, do compartilhar segredos, às vezes, da competição pela notícia que será considerada verdade; das elaborações da história – da criação de uma versão original dos acontecimentos – constroem um projeto dual: a história da história, em outras palavras, uma narrativa.

Ora, os conceitos de vínculo e realidade suplementar estão presentes em uma entrevista dialogal? Por quê? E de que maneira estes conceitos se relacionam com o pensamento benjaminiano apresentado?

Entendo que a conceituação de entrevista dialogal ocorre no contexto suplementar, que reúne história e memória, possibilita que o velho e o novo dialeticamente se entrelacem, que sonhos e fatos convivam, que o vir-a-ser esteja presente na improvisação, que a afetividade do tema, a qualidade das experiências vividas e narradas, sejam elementos básicos construtores da narrativa histórica. A díade entrevistado e entrevistador compartilha afetos (nem sempre positivos, mas afetos), olhares, gestos, acordos explícitos e implícitos, checa conhecimentos, sonhos, desejos, necessidades, argumentos e torna-se cúmplice na história original, pois quer uma narrativa única dos fatos. Às vezes, tentam convencer um ao outro de que seu ponto de vista é o certo, que "a verdade deve ser a sua verdade", mas, mesmo não concordantes, estão envolvidos em uma mesma tarefa – a narrativa de um tema. A construção na realidade suplementar é única sem ser universal, pois, caso a mesma entrevista seja (re)feita, a cada vez será uma nova narrativa. A conversa geradora da narrativa é recheada de saberes e poderes, os quais são manifestos nas condições dos que escolhem o que vai ser dito, determinando ao mesmo tempo o que vai ficar de fora. O ideal seria dizer "as pessoas envolvidas", mas guardo os termos entrevistador e entrevistado para delimitar lugares, posições que são diferentes, mas estão em relações.

E os autores escolhidos, podem conversar?

 

UM DIÁLOGO ENTRE OS AUTORES

Diz Benjamin que a história fecundada pela narrativa nascida da memória torna-se contexto do vencedor e do vencido, pondo em evidência a importância da retomada dos fracassos com experiências acontecidas, através das quais foram produzidas relações vividas: o que não pôde acontecer, os temas excluídos, as alternativas que não foram eleitas, que, na linguagem moreniana, foram os temas emergentes que não protagonizaram. Fazer uma leitura a contrapelo é ver o autor como alguém em relação, e não como uma função. É reconhecer que o autor é alguém que, ao voltar-se para a interioridade, busca no subjetivo uma narrativa, que tem como desdobramento dessa viagem se reconhecer nos seus referenciais e, finalmente, já modificado, retomar a relação com o outro. Em Moreno, encontramos o conceito de protagonista que pode ser relacionado com o de autor na obra de Benjamin. Para Moreno, o protagonista é sempre a voz das intersubjetividades, é o representante de uma coletividade que mergulha na subjetividade em busca do novo, de algo que transcenda a história oficial, transformando-a. Para ambos, a ação do autor-protagonista é cena do ator, ora segue o script ora cria na improvisação, na espontaneidade criativa. A memória é um recurso singular de participação no coletivo, é a possibilidade de escapar do que Foucault descreve como sujeito homogêneo, útil, mas dócil.

Estes autores – Benjamin e Moreno –, com forte presença do hassidismo em suas vidas, tomam como verdade aquilo que toca o outro, o que comove, o que caracteriza a inter-subjetividade na qual nasce a ação protagônica, do autor, aquela que traz uma proposta nova, a transcendência do conhecido, o caminho aberto para o vir-a-ser. Ambos mantêm a esperança no homem e na construção de um devir melhor. Por isso, uma entrevista dialogal, baseada nesses autores, é uma conversa, é a busca da verdade pela ação, porque não está centrada na ideia de que um tem os saberes e poderes e o outro é um depositário que recebe e é preenchido pela verdade do outro.

Quem entrevista estudou o tema, sabe coisas do outro, reconhece critérios para a escolha daquela pessoa, chega carregado de afetividades (que nem sempre são positivas), busca referendos, confirmações, redefinições, novas narrativas, o que está escrito nas palavras e o que está oculto. Ambos, ao se encontrarem, trazem consigo saberes e poderes sobre o assunto, estão vinculados pelo tema protagônico.

O entrevistado participou da história, tem algo que o outro precisa e quer.

O entrevistador tem um plano de pesquisa, traz consigo perguntas, questionamentos, dirige o foco, mas é dirigido pelo seu parceiro de conversa, porque ao "invés de fatos temos fenômenos vividos" (MARRA et al., 2004, p.102).

Cabe a ambos querer a história, construir a história, modificar a história oficial, fazer da pesquisa uma pesquisa através da ação no sentido benjaminiano e moreniano apresentado aqui, em que a lembrança (re) visitada ultrapassa um diagnóstico, pois é um "fenômeno vivido".

Dialeticamente, reúnem-se em uma construção histórica o velho e o novo, a tradição e a inovação em um entrecruzamento do tempo passado e presente. O trânsito permanente entre os contextos social, grupal e da realidade suplementar alimenta todo o tempo porosidades de comunicação, permitindo que seja possível trabalhar a narrativa gerada pela entrevista dialogal como produtora de micropolíticas que modificam as inter-relações, e geram a narrativa.

Uma entrevista presa ao contexto social é somente uma historiografia, rigidamente limitada pela lembrança reconhecida dos fatos - um produto conservado, com pretensões de universalidade, diferentemente de uma narrativa impregnada de sonhos, afetos de diferentes matizes, avaliações, posicionamentos que traduzem cidadania, autoria - a ação política.

Entrelaçados em suas falas, os autores nos auxiliam no aclaramento dos conceitos básicos nesta proposta.

 

O PESQUISADOR E O PESQUISADO, O TEMPO E O LUGAR A ÉTICA E A VIDA

O pesquisador que se propõe a esta vivência que seu interesse e compromisso crescem à medida que estuda, que busca conhecer, pois cria em si interesses não só sobre o tema, mas sobre o outro, o seu "pesquisado". Reconhece que, quando inicia o diálogo, já desenvolveu simpatias e identificações positivas ou não, que vem enfrentando juízos de valores, reconhecendo movimentos de triangulações e preferências. Por reconhecer alguns movimentos internos, busca desenvolver um espaço de humildade, e, à medida que se reconhece humano, também aceita que o outro da sua pesquisa o seja.

Então, o lugar da pesquisa, o campo da pesquisa, é todo o desenvolver do tema. O ato de escolher um assunto pressupõe que outros foram deixados de fora, que temos desejos, fantasias e projetos pessoais que se entrecruzam com os da pesquisa. Algumas vezes, o tema nos chega, é uma escolha alheia, pela necessidade da instituição, por exemplo. Mas, ao aceitar participar, o pesquisador está, de alguma maneira, escolhendo também.

O pesquisador já está no campo à medida que escolhe ou aceita o tema, e faz de toda sua relação com o assunto o seu "campo–tema", para usar uma expressão de Spink. Em todas as etapas, estamos no campotema, e não somente quando "vamos a campo para pesquisar", i. é., quando vamos participar da cena propriamente dita de uma entrevista (SPINK, 2003, pp.18-42).

O ator social, quando se torna o pesquisador, também tem múltiplos movimentos: pensa coisas, sente outras, faz planos e organiza suas lembranças para que sua memória construa uma narrativa. Relembrando o que já foi afirmado neste texto, vemos que quem decide o que vai ser dito está igualmente decidindo o que vai ficar de fora, portanto, pesquisar é sempre um ato político, pois inclui saberes e poderes. A escolha de um tema revela o campo onde o pesquisador e a pesquisa constroem sua participação social (MOTTA, 2004; 2005).

Numa arqueologia, o pesquisado tem saberes e poderes que o tornam autor da história, mas o pesquisador também os tem, pois, além de definir as perguntas que apontam o rumo da conversa, é sua a responsabilidade de produção de um texto final. O texto que se torna uma versão da história oficial, muitas vezes com desdobramentos, algumas vezes com seguidores que, ao citarem-no, estão eternizando ideias que passam a ser tomadas como verdades da época. Nos dizeres foucaultianos, saberes se tornam poderes e poderes se tornam saberes (FOUCAULT, 2000;2001;2002). Quem escreve, registra uma narrativa a favor de alguém, em oposição a alguém, com alguém e para alguém, porque o ato de escrever é um ato social. Escrever é fazer história, história que é ação política.

O tempo não pode ser considerado um fenômeno desvinculado do espaço, como o dentro e o fora, mas um entrelaçado tempo-espaço, que nunca será ou tempo ou espaço, e sim um entrecruzamento no qual as construções fazem e são feitas. Tanto Benjamim quanto Moreno mostram, em suas obras, que o tempo-espaço não reconhece uma desvinculação como o processo de modernidade quer impor. Então, neste tempo-espaço da realidade suplementar da entrevista dialogal, sabemos que estamos lidando com memória encharcada de múltiplas afetividades, de imaginário, de lembranças, de fatos da historiografia oficial, de narrativas prenhes de vir-a-ser que são possíveis porque estamos no palco do tempo-espaço integrado.

A ética e a vida nesta proposta andam juntas, se entrelaçam em um beijo carregado de compromisso com o outro, produzem e são produzidas por um compromisso político. Considero o vínculo ética-vida a integração de elementos de saberes e poderes, que nascem da convicção dos participantes de que construir uma narrativa é exercer o direito à cidadania, de produzir no singular uma contribuição para o coletivo.

 

CONCEITUANDO ENTREVISTAS DIALOGAL ATRAVÉS DO COMPARTILHAR DAS MINHAS EXPERIÊNCIAS

Para concluir este artigo, certamente não esgotando o tema, quero revelar que minha motivação básica está centrada e é guiada pela minha vontade de saber. Como psicóloga psicodramatista, tenho um trunfo no meu treino profissional para ouvir, o que me deixa disponível enquanto meu convidado está narrando. Não preciso interpretar o que o outro me diz, ao contrário, posso e devo transformar minhas afirmações, minhas certezas internas em perguntas. Estou nesse momento reunindo ética e vida. Busco uma posição alinhada à fenomenologia, tento esvaziar-me de certezas, não sou melhor do que o outro, preciso dele para compreendêlo. Fiz de um gravador e um caderno meus companheiros de viagem. Anotava, anteriormente, as perguntas básicas classificadas pela importância para o tema. Depois de iniciada a entrevista, nem sempre as primeiras questões que me pareceram as mais importantes eram confirmadas, às vezes uma nova informação abria estrada, mostrava paisagens essenciais que mudavam o roteiro. Mesmo assim, antes de desistir das perguntas, submetia-as à opinião do narrador. O fato de demonstrar que havia me preparado para a entrevista, mas que não estava tentando convencê-lo da "minha versão", foi bom para as experiências de entrevistar. Não pretendi "inventar a roda", mas ser capaz de argumentar foi um procedimento que deu certo, facilitou o nosso vínculo. Procurei estar o mais inteira possível ao ouvir a narrativa, mantendo-me interessada nas memórias de quem estava comigo, mesmo que não me identificasse com elas.

Em todas as entrevistas, trabalhei para a construção de um vínculo inicial, atenta à tendência intimista que causa dificuldades de relacionamento entre as pessoas e com o objeto, que podem gerar falas monológicas, que não estabelecem relações na hora de produzir conhecimento, de falar com o outro. Entrevistar é um ato social que gera uma mudança entre as e nas pessoas envolvidas, também produz um terceiro nessa relação: a narrativa, uma contribuição social. Quis contemplar, no sentido benjaminiano, a linguagem que é prenhe de história, de evidências, e não só a linguagem máscara, que leva o pesquisador a procurar a verdade fora. Portanto, os dados empíricos nasceram das e nas relações entre sujeito e objeto, ou, em outras palavras, entre as pessoas envolvidas: entrevistador e entrevistado, como fruto da contemplação que toca. Para tanto, estudava anteriormente algo sobre meu entrevistado, já estava, com isso, criando um espaço vincular. Levava comigo uma pergunta, um interesse especial da pessoa pelo tema da pesquisa, expunha, como aquecimento para a entrevista, com que critério eu a havia escolhido. E, ao mesmo tempo, compartilhava algo meu, não pretendia ser uma pretensa pesquisadora "tábula rasa", conversávamos sobre outros temas do nosso interesse antes de passarmos às perguntas, estávamos criando um campo ou um cenário em comum. Estava cuidando de construir um convite ao vínculo, vendo que duas pessoas que têm um vínculo conversam em campo construído em comum, menos defendido, permitindo a narrativa livre, que traz as lembranças daquilo que faz sentido. Daí a proposta para roteiros focados, mas abertos, superando os questionários e meras assimilações estabelecidas sem direção.

Nem sempre consegui uma identificação favorável com meu entrevistado, tampouco concordei com tudo o que me contaram, mas podia continuar meu trabalho porque estávamos vinculados por um interesse comum – o tema protagônico. Por isso, construímos um projeto dual, ligados por um tema de interesse comum, algo que nascia e passava por nossas inter-subjetividades com o destino à participação no coletivo.

Trabalhei a recuperação de fragmentos do passado, porque o passado não volta na sua inteireza; (re)conhecendo que não se ensina o passado, não se impõe o passado, mas se estimula o (re)conhecimento. Cada vez que o passado é (re)visitado, está atualizado. Busquei um lugar nas fronteiras do campo, em que pudesse conhecer a memória dos meus entrevistados. Ansiava por trazer a visão do singular ao coletivo. Com o poder de escrever o texto final, algumas vezes precisei parar para refletir se excluía ou não um enunciado. Perguntava-me o que me motivava a excluir tal trecho: se não concordava com aquele ponto de vista, se não acrescentava informação de relevo, se havia sido dito por alguém com quem não me identificava... Assim, atualizava minha visão de ética-vida e conseguia permanecer nos parâmetros traçados para a narrativa. Minhas evidências confirmam que nenhuma história é universal, que a força germinativa da memória-história permanece capaz de novas narrativas.

Com essas motivações, construí esta pequena metodologia de entrevista, para dar vida aos relatos, abrir brechas para o tempo-espaço. Tomei memória como trabalho, sonho, luta, (re)memoração, racionalidade, esquecimento, corpo, mas sensibilidade, porque memória não é só ir atrás do tempo perdido, (re)memorar é uma viagem que traz à tona um compromisso político (MOTTA, 2004).

Trabalhei também com um grupo de alunos da pós-graduação, no esforço de motivá-los para uma reflexão sobre esta proposta de entrevista dialogal. Destas experiências, ficou uma pergunta: será possível treinar alunos-pesquisadores para entrevista dialogal?

Não posso ainda concluir, mas hoje penso que "treinar" pessoas para conversar intencionalmente com outra pessoa, ou, em outras palavras, para fazer entrevista dialogal, não é um caminho viável, parece-me perigoso tal procedimento como proposta pedagógica. O que impede o treino? Uma entrevista dialogal só é possível comprometida com a construção de um projeto dual, é fruto de um amadurecimento que se constrói com reflexões, com vivência, com compromisso sociopolítico com a pesquisa. Essas características não são treináveis, mas desenvolvidas a partir da escolha livre do pesquisador, é um compromisso ético e não se treina ética. Posso, sim, oferecer minhas experiências esperando que elas motivem professores e alunos a criarem novas reflexões. Aprender a usar o nome de entrevista dialogal não é garantia de que irá acontecer a proposta apresentada aqui. Mas creio que desenvolver motivações, inserir pessoas na ideia de pesquisa como compromisso político com o social é mais que possível, é desejável e necessário. Construir espaços de reflexões sobre o ‘campo-tema', como estabelecer uma conversa-pesquisa, delimitar o vínculo construído, reconhecer os elementos principais do projeto dual que norteará a entrevista dialogal é trabalho pedagógico. Trabalho este que traz um compromisso político de pessoas com a tarefa de trabalhar para que a Academia seja parte integrante do social. Também para que a história e a memória se entrelacem na construção de uma narrativa que não se pretenda história universal, hegemônica, para que possa guardar sua capacidade germinativa, de (re)criação.

 

Referencias

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Endereço para correspondência
Rua Rosa de Gusmão, 307 Jd Guanabara
Campinas, SP CEP 13073-141
e-mail:juliacmotta@gmail.com

 

 

* Professora-supervisora pela Febrap (IPPGC); Doutora em Saúde Coletiva (Unicamp); Pós-doutorado em Psicologia Social (PUC-SP).