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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.17 no.2 São Paulo  2009

 

SEÇÃO LIVRE

 

O começo do fim

 

The beginning of the end

 

Sergio Perazzo*

Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP)
Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama, (ABPS)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor compara a teoria do psicodrama com a prática psicodramática nos dias atuais. Critica o excessivo academicismo das instituições brasileiras de ensino de psicodrama na construção desta teoria, limitando a criatividade dos nossos psicodramatistas, e aponta o enfraquecimento da sua prática com a diminuição do trabalho com grupos, especialmente com protagonistas e com formas cada vez mais superficiais e estereotipadas de exercício desta prática psicodramática, muitas vezes equivocada e distanciada de seus fundamentos teóricos mais elementares.

Palavras chave: Ensino de psicodrama, prática de psicodrama, orientação de monografias, criatividade dos psicodramatistas, modelos de grupos psicodramáticos.


ABSTRACT

The author of this paper compares the theory of psychodrama with the practice of psychodrama as it is done today. He criticises the excessive academic approach of Brazilian psychodrama training organisations in their formulation of this theory, arguing that this restricts the creativity of our psychodramatists, and also that there is an impoverishment of the psychodrama practice due to a decrease of actual group work, especially protagonist centred group work. He also argues that psychodrama practice has become more and more superficial and stereotypical, often mistaken and distanced from its most basic theoretical foundations.

Keywords: Psychodrama training; psychodrama practice; guidance for dissertations; creativity of psychodramatists; models of psychodrama groups.


 

 

Recebi um convite amável da Cida Martin e da Cristiane Romano, que me deixou muito feliz, para integrar este time competente de autores neste livro da ABPS (Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama) com o tema Como se faz psicodrama?

Embora correndo o risco de parecer ingrato diante de tal convite, decidi, deliberadamente, descumprir as normas propostas para a redação do capítulo que me cabe. Rebatizem, se quiserem, este meu texto como um convite à reflexão. Não me submeterei rigidamente às normas da Febrap (nada contra a Febrap, Federação Brasileira de Psicodrama, que sempre contou com a minha aprovação) para redação de artigos ou trabalhos de psicodrama de uma maneira geral, normas que os autores deste livro supostamente deveriam adotar, porque minha intenção é a de convidar o psicodramatista a buscar coerência entre o pensamento e postura psicodramáticos e a construção e prevalência de um excesso de diretrizes que mais engessam o psicodrama que o disciplinam sob um pseudomanto de respeitabilidade formal.

Creio firmemente, trata-se mesmo de minha profissão de fé, que não é possível fazer bem o psicodrama sem analisar mais profundamente as vertentes institucionais e políticas que ditam a sua prática e a sua construção teórica no plano do ensino e do aperfeiçoamento pós-graduado. Este é o foco de minhas reflexões. Seus fundamentos.

De cara, decidi contratar um sábio chinês que ficará a meu lado o tempo todo, com seu quimono de seda e barbicha orientais em posição de lótus, contando pacientemente os 40.000 caracteres, incluídas as referências bibliográficas, digitadas no programa Microsoft Word of Windows, tipos de letra (fonte) Times New Roman, tamanho da letra em corpo 12, com citação e destaque sempre em itálico, deixando o negrito para situações especiais. O sábio chinês com certeza saberá refrear meus ímpetos criativos no fim da contagem dos 40.000, mesmo que no meio de uma frase.

Em primeiro lugar, o que a elaboração de um livro tem a ver com normas da Febrap? Só porque se trata de um livro de psicodrama? Alguém já se dispôs a esta tarefa nem um pouco prática de contar 40.000 caracteres num capítulo? Não é mais fácil para nós, pobres escritores mortais, contar 10 ou 15 páginas de um texto? De onde se copiou tal norma que só pode ser cumprida com o auxílio do sábio chinês?

Como vocês podem ver, antes mesmo de começar a escrever o texto solicitado me deparo com um tipo de limitação que me lembra o febeapá dos anos sessenta, Febeapá, um livro de crônicas bem-humoradas do Sérgio Porto, cujo pseudônimo (para os mais novos) era Stanislaw Porte Preta, que satirizava o que ele chamou de Festival de Besteiras que Assolam o País (Febeapá), apontando os absurdos normativos da ditadura, da política e da burocracia, de cabo a rabo.

Não há muito tempo participei de um concurso de poesias que também limitava o número de caracteres e impunha outras tantas regras gráficas para aceitação de qualquer poema. A criação hoje, mesmo a poética, tem que se enquadrar rigidamente nos parâmetros da norma. Estamos chegando lá. Os psicodramatistas assim como os poetas vão ficar de braços dados no bloco das conservas.

Vocês devem estar se perguntando o motivo de toda esta minha arenga. Na verdade a minha preocupação se volta para a forma como o psicodrama está sendo ensinado e divulgado no Brasil, principalmente no que diz respeito às formas como ele tem sido praticado e no formato cada vez mais acadêmico da sua construção teórica. Minha intenção é a de apontar algumas de suas tendências, no panorama psicodramático brasileiro, que, a meu ver, distanciam o psicodrama de seus fundamentos elementares e de seu suporte filosófico no contexto do ensino básico, da prática de grupos, da redação de monografias, da direção do psicodrama público, da organização e das atividades dos congressos de psicodrama, da construção dos papéis de terapeutas, de alunos e de professores-supervisores didatas.

Um bom exemplo que nos serve para iniciar tais discussões é o processo de elaboração de uma monografia de psicodrama.

Para iniciar uma reflexão sobre este tema é necessário um movimento constante de colocar-se no papel ora do orientando, ora do orientador e ora dos coordenadores de ensino e dos professores de uma instituição que promove uma formação em psicodrama. Para isso é indispensável nos remontarmos a alguns aspectos históricos dos quais participei ativamente.

No começo dos anos 70 a exigência de monografia de conclusão de curso de psicodrama era pouco rigorosa, e a sua construção se resumia a pouco mais que a redação de um artigo científico para uma revista especializada. Equivalia a isso.

A minha turma iniciou o curso com 18 alunos, acabou com 6, dos quais 3 continuaram na prática psicodramática e, destes 3, um deles distanciouse do psicodrama no correr dos anos. De todos estes alunos fui o único a apresentar uma monografia de conclusão de curso e, pouco tempo depois, de credenciamento como terapeuta de alunos e como supervisor.

Meu outro colega, que permanece no psicodrama até hoje, foi escrever e apresentar a sua monografia de conclusão de curso, pasmem, 20 anos depois. Nas outras turmas daquela época o panorama não era muito diferente.

Por estas razões, sempre se discutiram, nas instituições, formas de se conseguir que os alunos escrevessem suas monografias de conclusão de curso, o que nunca foi tarefa fácil. Foram experimentadas várias maneiras de estímulo e de exigências, resultando em determinações mais ou menos rígidas, dependendo da instituição e da época, como estabelecimento de prazos, convite à colaboração dos professores, inclusão de metodologia de ensino na grade do curso e de orientadores fixos entre os professores da matéria (até então os alunos escolhiam os seus orientadores livremente entre os professores disponíveis, aqueles que mais lhes apraziam e que tivessem uma relação mais estreita com o conteúdo da monografia). Como tudo na vida, com vantagens e desvantagens.

Paralelamente a isso, o padrão de qualidade das monografias aumentou muito e muitos colegas psicodramatistas se tornaram mestres e doutores em várias universidades espalhadas pelo Brasil nos anos subsequentes.

Se, por um lado, o psicodrama brasileiro ganhou com isso uma maior preocupação com a profundidade dos temas desenvolvidos nas monografias e com um enfoque novo na pesquisa, por outro lado, acabou também sendo contaminado pelo ranço acadêmico. O psicodrama, em vez de arejar os corredores empoeirados da universidade, absorveu e absorve as suas conservas, às vezes acriticamente, numa velha postura colonizada de que o que vem de fora é melhor do que o que vem de dentro. Aquela história da galinha do vizinho.

Alguns exemplos: títulos quilométricos de monografias, modelito tese, que pretendem contar 80% do conteúdo em algumas linhas, tipo Considerações preliminares acerca de uma variação sistêmica de um papel assimétrico no átomo social de adolescentes de uma comunidade nordestina na periferia de Guaxupé, um estudo comparativo sociométrico e sociodinâmico com a intervenção de Moreno num grupo de tiroleses na Iª Guerra Mundial.

É claro que este título é inventado. Quero aqui apenas ressaltar, pelo lado ridículo das coisas, que diante de uma aberração dessas, por melhor que seja a monografia, de cara não desperta vontade alguma de nem mesmo folheá-la, sendo condenada ao ostracismo das prateleiras encardidas de uma biblioteca de sótão. Por que não, por exemplo, um título mais instigante e criativo, mais levemente inteligente, mais espontâneo, como Adolescência, discriminação e panelas? Afinal de contas, criatividade não é fundamento básico do psicodrama? Cadê o fator surpresa?

Costumo dizer e repetir que se Sócrates, Platão e Aristóteles fossem vivos não passariam num exame de qualificação de mestrado, porque não possuiriam um projeto de pesquisa. Dante, Camões, Shakespeare, Fernando Pessoa ou Drummond, com seus longos versos densos de significados, não conseguiriam hoje sequer se inscrever num concurso de poesias. Como se poesia hoje fosse apenas o verso curto, clean, não importando o ritmo, o tônus, o andamento, a beleza e a consequência íntima das palavras. O livre pensar é só pensar.

Perdi a conta do número de monografias que orientei, nestes 35 anos de psicodrama, e das inúmeras vezes em que participei de comissões de avaliação (bancas). Das incontáveis vezes com que me deparei com o conflito da forma com os princípios rudimentares da redação de uma monografia.

Exemplifico. Não raro vem parar em minhas mãos uma monografia bem escrita e aparentemente bem articulada, toda dividida em capítulos bem ordenados, metodologicamente e corretamente batizados. Formalmente irrepreensível.

Quando lemos um capítulo habitualmente batizado de Bases teóricas ou Teoria psicodramática ou Correlações psicodramáticas ou Aportes morenianos etc etc. Muitas vezes ficamos diante de uma aula de psicodrama bem ordenada, citando vários autores etc, como manda o figurino.

Se procurarmos no capítulo que descreve alguma experiência de intervenção psicodramática ou no capítulo de comentários e conclusões, é comum não encontrarmos referência à teoria de psicodrama desenvolvida no capítulo teórico. Ou seja, o capítulo teórico se resume a uma mera resenha do que foi aprendido no curso de formação de psicodrama, quando deveria conter e discutir apenas a teoria de psicodrama visível no atendimento psicodramático e no capítulo de comentários e conclusões.

Outras vezes, ou no mesmo trabalho, o capítulo de comentários e conclusões é sintético e frequentemente elogiado pela banca. Como assim? Sintético? Comentários e conclusões, para mim um capítulo só, é a essência de uma monografia. É ali que o psicodramatista defenderá seu ponto de vista, divulgará sua contribuição original, fazendo a ponte entre a teoria visível na prática descrita e a prática descrita, implorando por um sentido teórico. Se o orientando tiver que se estender em algum lugar dessa monografia, o lugar é este. Não importa o que a academia mandar ou achar. Outras vezes a monografia se estende, e até brilhantemente, sobre um tema e tem pouco ou nada de psicodrama. Por exemplo: Drogadição num grupo de psicodrama. O autor falará de drogadição e nada de psicodrama. Portanto, o trabalho não é de psicodrama. Ou para dar esta ilusão o autor insere ao longo do trabalho duas ou três frases de Moreno para justificar o nome psicodrama.

Vocês estão achando que eu exagero?

Há poucos anos participei da comissão de avaliação de escritos psicodramáticos, visando ao prêmio Febrap de um de nossos congressos, e tive nas mãos dois trabalhos excelentes com seus temas muito bem desenvolvidos, porém, sem uma única linha de psicodrama e que, por isso mesmo, nem poderiam ser aceitos e inscritos num congresso de psicodrama, podendo ser muito bem-vindos em outros congressos de psicologia, de psiquiatria ou de ciências sociais. Nada reflete mais este jogo de forças e de contradições que os prazos que são determinados pelas instituições para a entrega de uma monografia pronta e acabada.

A minha primeira crítica a esta questão delicada, e que faz parte da adoção do modelo acadêmico dos prazos de entrega de teses as mais variadas, é o inferno que isto muitas vezes representa para o orientando. Criou-se um mito. Escrever uma tese implica desenvolver fatalmente uma neurose de tese em que lazer, vida social, namoro, casamento, filhos, sexo vão literalmente pras cucuias como parte obrigatória do processo, como uma medalha de honra que se ostenta vencido e contrafeitamente conformado no pescoço, com a estampa de uma TPM crônica e permanente, uma doença aderida ao nome monografia.

Ora, nós que lidamos cotidianamente com estas coisas que afetam angustiadamente os nossos clientes, pacientes, alunos etc e sabemos muito bem do que se trata, como podemos repetir com os nossos orientandos este mesmo tipo de loucura? Nós que nos colocamos como guardiões e agentes transformadores de uma qualidade de vida minimamente razoável, como podemos contribuir para tal estocada nesta mesma qualidade de vida de nossos orientandos?

Não quero abolir prazos, mergulhar no caos total, mas também não quero ver nos meus orientandos aquela expressão de crucificados estóicos que é a expressão acadêmica de quem está escrevendo uma tese e percorrendo os caminhos burocráticos de sua elaboração e dos sucessivos adiamentos para a entrega desta maldita (vira maldita) tese pronta. Não quero copiar este travo azedo desta conserva da academia.

Por outro lado, como se faz para estimular a construção e entrega de uma monografia para credenciar o maior número possível de psicodramatistas, terapeutas de alunos e professores-supervisores?

Para começo de conversa, a orientação de uma monografia é um doce ato de amor. Se não é, assim deveria ser. Um ato de amor com o psicodrama para o qual o orientador é um intermediário, um cupido a flechar o coração do orientando, cativando-o para os sobressaltos da paixão: Olha este lindo capítulo do livro do Albor sobre momento, a visão da Sylvia Cardim sobre imaginação e fantasia, um novo olhar da Mirela Boccardo sobre manejo de grupos, um zoom da Célia Malaquias sobre o negro brasileiro precursor do psicodrama entre nós, da Laurice Levy sobre o encontro das águas psicoterápicas no psicodrama, da Claúdia Barrozo sobre uma abordagem renovada da sociometria e de suas aplicações, da Noemi Lima sobre uma concepção existencial do encontro psicodramático, do Armando Oliveira Neto sobre aspectos revisados de uma psicopatologia psicodramática!; e tantos outros, incontáveis mesmo, impossível citar todos aqui, estrelas brilhantes apontando e despontando no céu de nossa constelação brasileira de talentos.

E é este orientador que tem o papel sublime de ajudar a despertar tudo isso, de esperar o tempo do seu orientando para assimilar tanta produção fecunda e de integrar a sua prática. De compreender, sentindo, tudo aquilo por que já passou nos muitos cenários psicodramáticos em que atuou, em todas as participações possíveis como paciente, aluno, supervisionando, orientando, protagonista, platéia, ego-auxiliar e, por fim, diretor.

É olhando para este fascinante, delicado e intraduzível processo, em que uma teia delicada se tece essa teia em que a sensibilidade se funde à compreensão do conhecimento, que não podemos deixar de visualizar o grau de privacidade e de intimidade que tudo isso implica. É por esta razão que as instituições não podem se comportar como cafetinas de puteiro (não estou xingando ninguém, nada pessoal) batendo na porta: Deu a hora!; impondo prazos inflexíveis. Ou concedendo: Mais dez minutos!; adiando um pouquinho mais o mesmo prazo e que só pode resultar em brochada ou ejaculação precoce. Aliás, este papel ingrato de cafetina de puteiro é um papel que os coordenadores de ensino das instituições se obrigam a desempenhar por imposição da inflexibilidade das normas. E nem ganham comissão para isso.

Para bem fazer psicodrama, na construção de monografias, é fundamental que o orientador é que seja o sinalizador deste processo, porque é ele que está intimamente em contato com os desdobramentos deste difícil caminho. Que ele se responsabilize como guardião deste processo de construção da monografia do seu orientando nas instituições. Ele, junto com o seu orientando, é que determinarão quando a monografia vai ficar pronta. É claro que isto também tem limites, mas este limite será dado de dentro e não de fora de quem está vivendo este processo de construção, mesmo que, é óbvio, o orientador preste contas à instituição do andamento deste percurso. Mas, por favor, sem precisar preencher formulários e mais formulários.

Se, pelo menos parcialmente, este modo atabalhoado de tratar as monografias de psicodrama acaba espelhando velhas contradições do panorama psicodramático brasileiro, que contradições são essas capazes de cristalizar um modo mais espontâneo de fazer as coisas, contrariando os princípios mais rudimentares da teoria e da prática psicodramáticas? A questão principal, para mim, é a da dissociação crônica desta teoria e desta prática, com a qual tentamos lidar de diversas maneiras ao longo de todo este tempo.

Em primeiro lugar, não conheço psicodramatista nenhum que tenha vindo para o psicodrama porque se encantou com algum texto de Moreno. Todos chegaram a ele porque participaram de alguma vivência psicodramática. Ou seja, o encanto do psicodrama sempre se deu através da força de sua prática. A teoria sempre veio depois. Por outro lado, isto levou, nos primeiros tempos, a um treinamento prático intenso com total imersão numa cultura de grupo, ancorado num suporte teórico frouxo e incipiente. Os primeiros psicodramatistas brasileiros transbordavam sua criatividade num leque amplo de recursos técnicos, porém, claramente ou inadvertidamente, sofriam de um sentimento de inferioridade permanente por não conseguirem arquitetar um arcabouço teórico suficiente para conseguir a respeitabilidade científica diante de seus pares nas demais áreas da psicologia, psiquiatria e educação.

Data desta época o costume de recorrer a outras teorias, psicanálise, por exemplo, (uma boa parte dos colegas argentinos nunca se livrou disso), chegando ao ponto, mesmo nos dias de hoje, de não reconhecerem a autoria de suas próprias descobertas. Exemplificando: a técnica de concretização em imagens é uma velha técnica do psicodrama e que sempre foi utilizada por nós. Muito antes de existir ou de se ouvir falar em teoria sistêmica. Ora, os terapeutas sistêmicos encantaram-se com esta técnica psicodramática. Até aí tudo bem. Passaram a utilizá-la com entusiasmo. Quem disse que é proibido utilizar algo criado por outra linha de pensamento, mesmo se deslocado da sua razão teórica ou filosófica? Rebatizaram-na de escultura. Embora o nome sempre possa ser melhorado, começa aqui um certo conflito de autoria. Pior, psicodramatistas que passaram a juntar psicodrama com sistêmica, não só passaram a utilizar o termo escultura, como também a ensinar a seus alunos a técnica com o nome sistêmico, colocando-o até em artigos e livros. Aqui já fica difícil aceitar que psicodramatistas passem, com esta atitude, a negar, na prática, a autoria de uma técnica que é histórica e essencialmente psicodramática. É como funcionar como um receptador de objetos roubados e negar fazer parte da quadrilha (de novo, não estou chamando ninguém de bandido). Tudo em nome do velho sentimento de inferioridade que coloca o psicodramatista no lugar do colonizado.

Estes são resquícios que permanecem até hoje entre nós. Por isso mesmo, olhando para aquela época, foi notável o esforço dos psicodramatistas brasileiros na construção de uma produção teórica ímpar e surpreendente que nos coloca hoje, sem qualquer exagero, em primeiro lugar como produtores de textos de psicodrama no plano internacional, o que é reconhecido em todo o mundo (mais de 100 livros e mais de 1000 artigos e incontáveis monografias e teses de psicodrama; único país do mundo a ter uma coleção de livros de psicodrama numa editora, Ágora, fora publicações em outras editoras, e a se organizar sob uma federação, Febrap).

Daí, é fácil compreender que as exigências de impecabilidade científica muitas vezes ultrapassaram o psicodrama brasileiro em si mesmo no que diz respeito aos escritos psicodramáticos, sacrificando de alguma forma a sua produção mais criativa e sua fluidez mais espontânea.

E o que aconteceu, ou vem acontecendo, com a sua prática neste mesmo tempo?

1. O trabalho com grupos em consultório diminuiu sensivelmente.

2. Como consequência disso, muitos psicodramatistas deixaram de atender grupos.

3. Um certo número de psicodramatistas não dramatiza ou deixou de dramatizar em sessões individuais.

4. Alunos de psicodrama, diante deste quadro, passaram a não ter modelo ou tiveram um modelo pobre de dramatizações com seus próprios terapeutas, não passando pela experiência ou passando pouco pela experiência de ser protagonista. Ou seja, aprender psicodrama na própria pele.

5. Algumas instituições de formação de psicodrama exigem pouco dos alunos (às vezes até porque não têm estrutura organizacional para isso) quanto à formação e direção de grupos. Ou seja, o aluno pode passar por um curso de psicodrama sem atender grupos ou atendendo muito pouco. Sairá manco como diretor de grupo e como psicodramatista.

6. Nos congressos brasileiros de psicodrama cada vez menos vemos psicodramatistas dirigir uma vivência (um psicodrama público) com protagonista (sou um dos poucos que insistem sempre em trabalhar desta forma em congressos).

7. Tenho ouvido nos últimos congressos brasileiros e nos últimos iberoamericanos uma argumentação frouxa de que trabalhar com protagonista em congressos é expor desnecessariamente as pessoas. Já ouvi psicodramatistas experimentados repudiarem o seu próprio trabalho com protagonistas em congressos passados como se tivessem cometido um crime sádico com estes mesmos protagonistas. Contra-argumento como sempre tenho contra-argumentado publicamente e com uma certa frequência:

- dirigir psicodrama com protagonistas num grande grupo exige experiência e continência, dentro de uma formação sólida;

- os cuidados do diretor, desde o aquecimento até o compartilhamento, não perdendo nunca a perspectiva do grupo, é o que dá chão e coberta ao protagonista;

- esta forma de trabalho é o modelo de Moreno. Por que não ensiná-lo?;

- este é o modelo prático por excelência do psicodrama. Por que não passá-lo?;

- se todos sabemos que o psicodrama se aprende e encanta pela vivência; num congresso de profissionais de psicodrama todos nós contribuímos com nossa cota de participação e de sacrifício em nome do aprendizado. Congresso não é para isso? Como ficamos? Sem modelo?;

- a prática mais ou menos recente do grupo auto-dirigido (grupo cuja direção é alternada, tendo como diretores os próprios membros do grupo com um coordenador fixo) muitas vezes passa por cima da adequação e da inadequação do método. Grupo auto-dirigido é grupo para quem já tem modelos de direção. Não é para principiantes. Senão, vai dirigir a partir de quê? Do nada?;

- o crescimento de grupos de teatro espontâneo e de teatro de reprise, derivado do playback theatre ou inspirado nele (não estou me referindo a nenhum grupo em particular), se, por um lado, difundiu uma forma de trabalho útil no campo socioeducacional e acrescentou recursos ao psicodrama clínico, por outro, forneceu aos psicodramatistas um modelo de trabalho que muitas vezes (não todas as vezes, quero deixar bem claro) mais parece com teatro amador do que com psicodrama, quer pela superficialidade com que um certo tema é tratado, quer pela limitação da possibilidade psicodramática do protagonista. Um trabalho mais fácil de ser aprendido e que exige muito menos habilidade técnica do diretor. Estou aguardando que me provem o contrário. Até hoje me sinto incomodado quando uma vivência psicodramática se resume à construção de imagens óbvias e estereotipadas montadas por subgrupos articulados pelo diretor, e fico mais espantado ainda com a chuva de aplausos aos construtores das imagens óbvias, como se acabássemos de assistir a uma interpretação genial e profunda da Fernanda Montenegro na cena teatral. Para aí? E o resto? Diante de tudo isso, portanto, não é de estranhar que um psicodramatista se forme com pouca experiência de ser protagonista, com pouca experiência de direção de grupos e com pouca experiência de dirigir protagonistas. Para mim, uma aberração antipsicodramática.

A relação foi invertida. Se no início do movimento psicodramático brasileiro tínhamos uma prática hipertrofiada e uma teoria diminuta, hoje temos uma teoria hipertrofiada por um excesso de normas acadêmicas e regulamentos formais e uma prática que, embora diversificada, sofre o risco da banalização das dramatizações com a pobreza do trabalho protagônico e o excesso de máscaras e fantasias que, frequentemente, vira criativismo. Está na hora de cuidarmos melhor desta integração entre teoria e prática porque, hoje, basta escrever uma monografia dentro das normas para se chegar a supervisor de psicodrama. Para supervisionar alguma coisa não parece óbvio que se saiba o que supervisionar? Dentro deste quadro tudo é possível. Acredito sempre no renascer constante do psicodrama para que isto não seja o começo do fim. Bem integrar a teoria com a prática dentro de uma postura nova que não agrida os princípios básicos e elementares do psicodrama é para mim a única via para o Como se faz psicodrama? Para o ato e o processo de fazer bem o psicodrama.

Teria ainda muito e muito o que dizer a respeito deste momento de reconstrução de caminhos do psicodrama brasileiro, mas o sábio chinês parou de levitar e vem apontando o dedo na minha direção. Na direção dos 39.999 caract...

 

INTERMEZZO

Quando terminei de escrever este capítulo de livro, enviei uma cópia para vários colegas psicodramatistas, vá lá saber exatamente por que. Em parte porque, para mim, o assunto é tão atual que não aguentei em mim mesmo a impaciência de esperar a publicação para poder compartilhar essas minhas ideias e sentimentos. Em parte, talvez, por vaidade (há muito queria escrever sobre isso e queria ser lido) e por instigar uma certa polêmica, uma provocação.

Para minha surpresa, recebi por e-mail uma avalanche de respostas com tantos pormenores que seria impossível responder a cada um e a cada questionamento que foi feito. Optei, portanto, por uma resposta única que contemplasse mais ou menos a todos. É a resposta que se segue.

 

RESPOSTA (O COMEÇO DO FIM)

As questões levantadas por mim, neste capítulo de livro que enviei a vocês, são questões que não só trago comigo há um bom tempo, como são questões que venho compartilhando com muitos colegas. Abrir uma polêmica significa estar disposto a aguentar os possíveis rojões que vêm de volta, incluindo os ataques pessoais a que se está sujeito em tais situações. Por isso é difícil vencer o momento de inércia e começar a falar o que muitas vezes nem sempre se quer ouvir.

O recurso auxiliar do humor que utilizo não é novidade. Gosto de utilizá-lo porque é uma forma a que o humorista recorre para difundir aquilo que para ele é a sua verdade. Aumenta a contundência do que diz e representa um apelo para ser ouvido e um convite quase impositivo à reflexão. Para mim, o essencial do que eu disse tem por base o mesmo amor ao psicodrama que vocês têm. Nunca duvidei disso e a minha preocupação, daí o título aparentemente pessimista O começo do fim (não esqueçam que termino o texto acenando com a minha crença numa construção de um caminho renovado do psicodrama, logo, reafirmando o meu otimismo), é a de ficarmos contemplando a banalização progressiva da prática (sublinho, prática) psicodramática, tentando compensar isso com a hipertrofia da forma como vem sendo tratada muitas vezes (não todas as vezes) a sua moldura teórica.

O sentido é focar uma melhor integração entre teoria e prática que seja coerente com os princípios psicodramáticos que adotamos, pregamos e em que todos acreditamos. Não se trata de um ataque cruel e raivoso à universidade. Deixo claro no texto que os colegas psicodramatistas que foram para a universidade ou que estão nela revitalizaram a nossa teoria em profundidade e disciplina. Também deixei claro que não estou pregando o caos e nem sou contra o rigor científico. Quem me conhece sabe disso e já se tornou voz corrente, o que até me chateia bastante, que sou exageradamente exigente na orientação de monografias e na minha participação em bancas (tenho certeza de que jamais maltratei algum colega na intimidade ou publicamente).

Também é público e notório, já disse isso muitas vezes e repito, inclusive pessoalmente, que você, Marília, e você, Márcia, salvaram a SOPSP de um mergulho na decadência, batalhando pela implantação do convênio com a PUC. Para mim isto foi decisivo para a SOPSP e para o psicodrama brasileiro. Vocês conseguiram isso. Logo, estou falando da universidade de braços dados com o psicodrama, o que sempre me entusiasmou e apoiei e continuo apoiando. Portanto, não tenho qualquer fobia neste sentido e, é claro, estou reafirmando que estamos todos dentro da universidade, que, como qualquer instituição, tanto tem seus preciosos quilates quanto também sua banda podre, não havendo por que canonizá-la.

Meu texto trata o que, sempre sob o meu ponto de vista (não é uma verdade absoluta), me parece exagerado, pedindo um reajuste, implorando por flexibilidade. Por isso, Mariângela, a crítica, você que sente falta neste meu escrito de pontos a favor. Por que não posso pensar que é hora de levantar o problema e fazer uma crítica? Não tenho o direito? Minhas observações decorrem do que tenho visto e ouvido, não só em São Paulo, mas em muitos lugares no Brasil e no exterior, onde dou supervisões, aulas e cursos, e onde tenho dirigido vivências psicodramáticas as mais variadas, não só clínicas, como também sociodramáticas e educacionais. Também não estou falando exclusivamente da PUC. Além disso, muitas dessas angústias me chegam através de meus alunos, clientes, supervisionandos e orientandos e, de certa forma, quis ser, numa pequena medida, um porta-voz das suas e das minhas inquietações. Algo de errado nisso? Se me exponho deste jeito não lhes parece que quero abrir uma discussão, o que já está acontecendo, sobre o assunto? Em nenhum momento me julgo dono da verdade ou com interesses escusos. A esta altura dos acontecimentos, vocês acham que preciso disso?

Para os colegas professores da SOPSP que têm participado comigo de reuniões de ensino, me parece que parte das posições que tomo com este texto não constitui novidade, o tanto que discutimos juntos tais questões, concordando e discordando sadiamente. Para muitas coisas não chegamos à unanimidade. Alguma novidade nisso? Não é simplesmente humano? Portanto, por que o espanto?

Quanto aos 40.000 caracteres (o Calvente informa que o computador conta automaticamente, dispensando o sábio chinês, ignorância minha), não se trata de exigência da Febrap para os capítulos do livro. Apenas os organizadores recorreram às normas da Febrap para a publicação de artigos na revista, onde esta exigência está registrada (uma exigência padrão, bem sei). Somente peguei este exemplo saído fresco do forno para ilustrar como absorvemos sem muita crítica normas que nem originalmente são nossas. Nada contra os organizadores e nada contra a Febrap. Que acham, ao pé da letra, contarem 40.000 caracteres de um texto, mesmo sabendo que na prática não é exatamente assim que acontece? A sensação do ridículo acentua o que estou querendo dizer. É um recurso literário. Da mesma forma a cafetina de puteiro. Nelson Rodrigues repetia as expressões o óbvio ululante, a estagiária da PUC e o Palhares, o canalha que cantava a cunhada nos corredores da casa da família e o Sergio Porto criou a Tia Zulmira, que dizia que primos, padres e pombos só servem para sujar a casa. Muito antes, por sua vez, Machado de Assis já satirizava a morte com os vermes do cadáver de Brás Cubas. Por que não posso aspirar a tão ilustre companhia?

Aliás, você, Cezira, me diz que o exemplo que dou do febeapá está caricato e fora de contexto porque deslocado do seu foco original, nos anos 60. Deliberadamente foi minha intenção recontextualizá-lo. O exemplo é bom e pode muito bem ser utilizado como comparação. É a vantagem de expressões criativas, que ou não morrem e são incorporadas na linguagem comum ou podem perfeitamente ser ressuscitadas e empregadas de uma maneira nova. Recriação de uma conserva.

Isto serve como exemplo para destacar a diferença entre duas posturas. Uma, dentro de certas regras, em que se obedece a contextualizações adequadas, seja num plano histórico, seja num plano narrativo. Outra, em que mais importa a irreverência calculada ou uma dada concepção estética mais ligada ao prazer, ao riso, à comédia perdida e incinerada de Aristóteles, ao divertimento e à crítica pela exposição incômoda, até bizarra, daquilo que se pretende criticar (um coro grego, talvez), deixando de lado um revestimento formal das coisas, a linguagem sisuda e excessivamente consequente. Moreno não nos dava o direito de viver uma certa megalomania, resultado de nossa criatividade, como tão bem observa o seu notável biógrafo, Marineau?

Ainda nessa linha, minha querida amiga Terezinha me dá um puxão de orelha: ...discordo das metáforas agressivas. É óbvio que você não está xingando ninguém, mas convenhamos que se a metáfora é um tipo de analogia, dói saber que somente estas, com "tom" de agressividade (de "baixo calão", eu diria), sejam as únicas possíveis...sim são utilizadas, e bem! na literatura; mas em roteiros tais que as "fazem" pertinentes...

O que você acha, Terezinha, da Mensagem a Rubem Braga, de Vinícius de Moraes, incluída na sua Antologia poética, uma poesia dos idos de 1944 ou 45, que diz em certo trecho:

"...Digam-lhe que o mar no Leblon Porquanto se encontre eventualmente cocô boiando, devido aos despejos Continua a lavar todos os males. Digam-lhe, aliás Que há cocô boiando por aí tudo, mas que em não havendo marola A gente se aguenta..."

O registro de Vinícius numa época em que eu tinha, no máximo, dois anos de idade, relido hoje, dá uma sensação de atualidade e de indignação, pela permanência no tempo de coisas ruins imutáveis. A força da sua imagem é tanta, que este poema lido por mim há tantos anos permaneceu na minha memória até a sua releitura hoje.

Se na poesia o cocô do Vinícius, bem ou mal, pôde ficar boiando todo este tempo, por que a cafetina de puteiro não pode se instalar numa reflexão sobre o psicodrama, a sua prática e o seu ensino? E se tivéssemos que transcrever, num trabalho científico, a fala de um paciente numa sessão que incluísse um palavrão? Também seria considerado de baixo calão, inapropriado para um texto pretensamente científico? Ou estaríamos tomados, nós terapeutas e educadores, supostamente mentes abertas, por um prurido de sacristia?

Interessante a reação de vocês, principalmente, Cezira, Lilia, Marília, Márcia, Mariângela e Yvette. Todas são pontas-de-lança da vanguarda psicodramática entre nós. Todas demonstram um espírito de amazonas lutando bravamente pela consolidação da consistência do nosso (repito, nosso) psicodrama. Todas reagem (Mariângela muito menos) imediatamente em defesa da academia (da universidade). É até esperado, todas são professoras universitárias. Em tempo, eu esperava que, primeiro, vocês reagissem em defesa do psicodrama. Vocês acabaram indiretamente confirmando em parte (sei muito bem que nesta reação intervêm inúmeros outros fatores de ordem reflexiva e do temperamento de cada uma) o quanto o modelo da universidade está hoje de tal forma entranhado no psicodrama brasileiro que quase não pode ser tocado (parece aquelas relações simbióticas, não estou falando que vocês são simbióticas nem estou emitindo dupla mensagem, que se estabelecem com aquela mãe dominadora que não pode ser nem sequer arranhada, criando uma forma especial e fechada de corporativismo).

Repito. Meu trabalho não trata da universidade, nem despreza o valor da universidade. Trata do psicodramatista e de como ele adota certas posições, atitudes e um excesso de normas que contribuem mais para desintegrar do que para integrar a prática com a teoria. Para mim o buraco é mais embaixo. O que estou dizendo é que, apesar da diversificação da prática psicodramática ser uma realidade hoje e benéfica sob vários aspectos, ela é, na minha opinião, insuficiente e deficiente para a formação de bons psicodramatistas. O Albor me responde que eu ponho o dedo na ferida. O Calvente me assinala tratar-se de um artigo de opinião. É isso mesmo. Dou a minha opinião (só opinião) e ponho o dedo não na ferida, mas em uma de nossas feridas.

Você, Lilia, você, Mariângela, você, Cezira, você, Marília e você, Márcia, levantam questionamentos muito pertinentes, me tratando com muito carinho e respeito quanto às minhas posições, mesmo se não concordando com elas, o que muito me toca e comove. Lilia, você chega mesmo a incluir um convite pra lá de simpático para o diálogo com a universidade, diálogo que eu nunca recusei.

Márcia, você não esconde uma certa irritação, e tem todo o direito a ela, porque está cansada de ouvir falar que a universidade é fechada, impositiva etc, quando a sua postura e a de colegas que estão lá dentro é a de abrir os braços para as sugestões e o novo. É verdade. Prova disso são os inúmeros convites que você já me fez, e eu aproveitei para falar para os alunos no próprio seio da universidade, ocasiões em que fiz e disse o que bem quis e entendi transmitir. Porém, de novo, não estou negando em nenhum momento o valor da universidade, estou falando dos excessos.

Vocês, em alguns momentos de seus questionamentos, parecem (parecem apenas) me subestimar, me explicando tintim por tintim a importância das normas bibliográficas, do rigor da comunicação científica, de certos procedimentos universitários etc etc. Vocês acreditam mesmo que são questões desconhecidas por mim?

Todas as questões que levanto, apesar de opiniões de ordem subjetiva, são baseadas em fatos concretos. Já que estamos falando em vida acadêmica, é bom lembrar que participo dela há 46 anos (entrei na faculdade em 1963). Neste tempo tive e tenho muitos amigos e pacientes que estiveram e que estão dentro da universidade. Desde alunos, professores, doutores, livresdocentes etc, até diretores de faculdade e reitores (tanto amigos que frequentavam e que frequentam a minha casa quanto clientes). Portanto, os seus bastidores não me são desconhecidos, nem as preciosidades e nem a banda podre da universidade e a forma como ela funciona. É indispensável sublinhar que quando digo isso não estou dizendo que tal coisa é própria exclusivamente da universidade. São coisas de qualquer instituição, a universidade incluída, as instituições psicodramáticas igualmente incluídas. São limitações, glórias, grandezas, mesquinharias, desprendimentos, oportunismos e maracutaias humanas que vazam para qualquer instituição. Qualquer uma.

Você, Yvette, levanta também questionamentos pertinentes num tom mais raivoso, tom a que me acostumei em algumas ocasiões, ocasiões em que trabalhamos juntos (coordenação de congressos, reuniões de professores, discussões psicodramáticas etc), reconhecendo-me muitas vezes em você, levantando juntos a bandeira do psicodrama.

No entanto, se você diz no começo de sua resposta que será absolutamente clara, esta clareza deixa de ser visível quando parte para um ataque pessoal e me acusa de querer ser o dono do psicodrama e do conhecimento psicodramático. Você diz: ...me incomoda que você (Sergio) se arvore como único e lúcido entendido de TODO o PSICODRAMA Brasileiro (de onde tirou isso, Yvette?). É possível ser mais clara e justificar o porquê? Ter múltiplos interesses nas questões psicodramáticas é suficiente para me atribuir tal posição? Enviar meu texto a vários colegas, instigando uma discussão que me deixa exposto, não é justamente o contrário do que você está me acusando? Quando você fala indignada do trabalho psicodramático organizacional, em que você não vê as coisas que estou apontando, não seria esta uma oportunidade de explicitar a sua visão, o que muito contribuiria com a sua larga experiência para todos nós? Posso entender o seu ponto de vista porque muitas vezes me senti falando para o vento. Daí, talvez, a forma mais contundente que escolhi adotar desta vez em minha comunicação, e que você chama de mordaz. Também não entendi que intenções ocultas (parece as forças ocultas antigas do Jânio Quadros) você me atribui, porque você diz textualmente e sem a devida clareza: ...você (Sergio) trata de algo interno ao movimento, às entidades e o expõe nu em praça pública, como um condenado...pra quê? Há uma intenção, né? (qual, Yvette?) Que não é o que você expõe (qual, Yvette?). Ninguém é idiota, Sergio... nós sabemos ler! (explique, Yvette, o que só você consegue ler e que para você é tão claro; gostaria que também ficasse claro para mim e gostaria igualmente de saber por que você me vê colocando nossos colegas no trono do idiota-mór).

Não me oponho a você, Cezira, pelo contrário, concordo plenamente que temos que escrever mais, produzir mais e que, sim, temos que aparecer no mundo científico. Sempre defendi este ponto de vista e sempre foi esta a minha posição, desde que não nos comportássemos colonizadamente.

Marília, você enfatiza a supervisão como espaço privilegiado do desendo conhecimento psicodramático, fala em direitos e deveres dos psicodramatistas, procura tirar a academia do lugar de vilã que, eu insisto em dizer, não foi o lugar em que a coloquei; e brinca com o sábio chinês. Tudo bem costurado com consistência e senso de humor que chega-me à razão e à alma.

Muitos de vocês me estendem a mão e o sorriso: Lorice (sentiu-se instigada com meu texto), Eni, Lia, Mirela, Érica, Kelma, Cris, Célia, Ciça, Cybele (que fala das dificuldades regionais, da falta de dinheiro e das saídas para a prática do psicodrama), Wilson (que propõe um debate sobre o tema na SOPSP), Falivene (concordando com algumas coisas e discordando de outras com a sua costumeira elegância), Penha (que fala do medo que se tem hoje do protagonista, enfatizando a importância da academia), Zoli (compartilhando a experiência inglesa da prática integrada à teoria e das 450 horas clínicas de direção exigida dos psicodramatistas britânicos), Calvente (alertando para os perigos da ortodoxia e lembrando da discriminação que Melanie Klein e Lacan sofreram nas sociedades de psicanálise por questionarem modelos pré-estabelecidos), Albor (criticando a falta de consistência, falta de seriedade e falta de arte que vê no psicodrama atual) e o Artur (que me vê num misto de raiva e amor no meu texto; que critica o falso valor que a universidade confere àquele que tem maior número de papers, não necessariamente o melhor profissional; no excesso de pressão e de prazos que ele também vê nos meios universitários, ele mesmo um professor universitário; e de como ele valoriza a tese da Beth Sene, por entrar na universidade ostentando uma metodologia psicodramática). De propósito, como numa conversa íntima, chamo todos pelo primeiro nome, sem a formalidade do sobrenome como citação científica (trata-se apenas de uma carta-resposta com endereços personalizados).

E você, caríssimo Bustos, diz, com muita propriedade, que o grupo auto-dirigido lhe ensinou que os mais novos e mais inexperientes surpreendentemente, ou não tão surpreendentemente assim, revelaram conhecimentos inesperados que não suspeitávamos existir, meio adormecidos dentro deles. Também acredito nisso e observo isso, o que não invalida o meu ponto de vista. Mesmo tendo a certeza de que, por mais experiência que se tenha, não podemos saber tudo, o conhecimento nascido desta experiência conta e muito. Há limites naquilo que o nosso aluno ou supervisionando sabe ou não sabe, caso contrário estaremos na fronteira da complacência e até de uma inadvertida posição que pode beirar até a demagogia, se não tivermos o cuidado de não adularmos exagerada e sedutoramente os mais novos e de não colocarmos, no mesmo plano, aquilo que ele descobre por si mesmo e a variada gama de recursos que se adquire com o tempo e que o grupo auto-dirigido sozinho não pode fornecer ou compensar porque, digo outra vez, não tem como tirar modelo do nada. O cardápio de possibilidades técnicas e teóricas ainda prevalece a partir da maior experiência. Também é preciso vestir a camisa de um saber penosamente adquirido no correr dos anos sem sentir culpas desnecessárias e sem exibir o menor constrangimento. Os sinais do meu cotidiano ainda me levam a pensar assim.

Ora, se deflagrei esta discussão enviando a todos vocês o meu texto, em que cada um pode dizer e está dizendo o que pensa, minhas críticas estão gerando este diálogo. Logo, por que destrutivas? Para mim, são construtivas e não mudo uma única vírgula do que escrevi, porque corresponde ao meu pensamento e sentimento daquele momento único e impossível de ser repetido, como todos nós estamos carecas de saber.

Caso vocês concordem e os organizadores do livro também (para isso, só se todos concordarem), vou incluir os comentários de vocês no texto, em sequência esta minha resposta e, finalizando, uma réplica de cada um de vocês à minha resposta, sem acrescentar nenhuma outra palavra minha. Ou seja, co-construiremos este final de texto, sendo a última palavra a de vocês. Contra ou a favor. O que acham?

 

EPÍLOGO

A minha proposta final incluída no fim da minha resposta encontrou pouco eco entre os colegas que me escreveram. Apenas um ou dois toparam dar a palavra final. Mesmo assim, um deles queria reformular a sua réplica inicial para colocá-la em melhor linguagem literária, para que suas ideias não ficassem em desvantagem.

Ora, publicar uma segunda resposta de apenas dois colegas enfraqueceria a polêmica levantada. Portanto, todos ou nenhum.

Por outro lado, o argumento de reformulação da resposta inicial me pareceu esvaziar a espontaneidade do texto, logo, a sua emoção, que é a graça da coisa.

A propósito, esta minha reflexão acabou não sendo incluída como capítulo do livro. A pedidos, escreverei outro texto sobre o fazer o psicodrama. Involuntariamente, acabei colocando os organizadores num dilema. E como a polêmica foi levantada e seria uma pena deixar perdê-la, é que pedi ao Devanir que o Conselho Editorial da nossa revista considerasse a possibilidade de publicar essas minhas ideias e sentimentos, em torno do que se levantou tanta poeira. Sendo assim, aqui estou.

 

São Paulo, 10 de novembro de 2008

 

 

Endereço para correspondência
Rua Artur de Azevedo, 1767, cj. 131 Pinheiros
CEP 05404-014 São Paulo – SP
e-mail: serzzo@terra.com.br

 

 

* Psiquiatra, psicodramatista, professorsupervisor didata da Sociedade de Psicodrama de São Paulo (SOPSP) e da Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama, (ABPS), Credenciado pela Federação Brasileira de Psicodrama (Febrap)