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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.17 no.2 São Paulo  2009

 

REPORTAGEM

REPORT

 

Uma anarquia construtiva

 

A constructive anarchy

 

Wilfredo Aliana*

Compañia de Teatro Espontáneo TransHumantes (Santiago, Chile)

Endereço para correspondência

 

 

Notas sobre o lançamen to no Chile do livro Tea tro da anar quia , de Moysés Aguiar , em janeiro de 2009

- "A gente se deu conta de que estávamos desconcertados e que sentíamos medo, quando nos defrontamos com esse dispositivo, inédito para nós, em que a emoção desempenhava um papel tão importante. E a participação das pessoas se manifestava de formas tão diferentes".

Este comentário, extraído da conversa com os companheiros da Editorial Quimantú (instituição destruída pela ditadura militar e hoje renascida, na forma de um projeto político popular), que assumiu o desafio de produzir no Chile o livro Teatro de la anarquía (Un rescate del psicodrama), de Moysés Aguiar, é um dos inúmeros relatos possíveis da noite, no espaço do "El Sindicato, Centro Cultural y Social", onde se realizou o lançamento da edição, no dia 23 de janeiro de 2009.

-"Para o lançamento na SECH (Sociedad de Escritores de Chile), já estávamos mais preparados e nos misturamos com todos, dançamos e nos abraçamos, e interviemos a partir do mais vívido que ia surgindo".

Realmente, os dois eventos que assinalaram o início do lançamento do livro de Moysés, no Chile, foram diferentes entre si, porque o trabalho inspirado nesse livro proporciona, para distintos públicos, diferentes expressões, processos distintos. Assim, enquanto em El Sindicato o lançamento se transformou numa festa popular, com estrutura carnavalesca, e as crianças pediam para ver de novo as cenas (como se fossem um produto ensaiado e repetível), na SECH, uns dias depois, a lírica, a metáfora, as ritualidades de contenção e acolhida que surgiram espontaneamente do público estabeleceram um alto nível de debate político e social, com referências expressas à história do país.

É que o livro de Moysés encontra no Chile um público heterogêneo e entusiasta, que se identifica com o chamamento da "Compañía de Teatro Espontáneo TransHumantes", que o apresentou, tanto em função das for mas abertas e afetivas do encontro com a comunidade, propugnadas pelo autor , como em decorrência do pulsar mais interno e febril favorecido por sua metodologia de trabalho.

O livro e o trabalho de Moysés com a comunidade têm identidade e consequência muito nítidas, uma coerência de discurso e de ação, revelando uma busca de muitos anos do companheiro brasileiro, que começa a marcar de maneira interessante essa relação entre arte, cultura, saúde e comunidade no Chile. Como trilhas na selva, é um caminho que só se cria no movimento, mas impacta os caminhantes como uma resposta metodológica clara, adequada para a época e para as demandas da sociedade atual.

Ao final da sessão de bibliolançamento em El Sindicato, a sensação que prevalecia era de comunicação. Em meio às cento e trinta pessoas, de diversos segmentos populacionais, surgiam as vozes que expressavam essa sensação, com satisfação e confiança. Outras vozes não foram menos importantes.

O professor Rolando Pinto contou o que se passou com ele, quando leu o livro de Moysés: «Ocorreram-me várias coisas. Rejeição absoluta, do ponto de vista do intelectual. Eu venho da Educação, e não da Psicologia. Tenho uma vivência diferente do que é a Pedagogia. Entretanto, avançando na leitura, fui me reconciliando com Moysés. Fui descobrindo que aquela pedagogia de ação metodológica tinha que ver com algo muito mais profundo. Tinha que ver com a liberdade: estar com o outro, criar com o outro. Quis ler o livro de uma vez só. Colocando perguntas e afirmações, respondendo com muitas das coisas que ele dizia. Fui me emocionando; não me deixou indiferente do ponto de vista emocional. Um parágrafo que me tocou muito foi aquele em que diz:

"O protagonista, ou seja, aquele que faz o personagem principal que centraliza a trama, emerge do público".

Quanto nos fazem falta protagonistas, no Chile, que emerjam do público, da vida, que emerjam do povo: não tipos iluminados, que pretendem definir uma política para os outros, não entendendo sequer o que seja a vida do outro! Fiquei intranquilo. Moysés explica que: "os coparticipantes tanto podem ser atores profissionais, que fazem parte do elenco liderado pelo diretor, como podem vir do público". Outra vez o público! Que lindo seria se, neste país, os que pensam a política nos considerassem coprotagonistas da decisão dessa política! Finalmente, Moysés diz que: "a participação deste (o público) é intensa; durante todo o espetáculo, qualquer de seus integrantes pode intervir na cena, trazendo um novo personagem, cuja atuação pode chegar, inclusive, até a redirecionar a trama". Aqui eu disse: bravo! É uma concepção diferente do que é a vida. Pode até ser que eu continue não concordando com muitos dos termos e conceitos. Mas nisto, sim, tenho clareza absoluta: se amanhã cada um de nós nos sentíssemos protagonistas para redirecionar a trama de nossas próprias vidas, talvez pudéssemos sonhar que também temos a possibilidade de ser protagonistas para redirecionar nosso país».

Claudia Marcela Tranchino, psicopedagoga, se interrogava, depois da leitura da obra de Moysés: «Como me transformo e transformo o outro nesta relação, neste encontro, nesse jogo que nos permite construir a realidade, neste coletivo que está representando um grupo maior? Em Educação, se eu posso transmitir isso àqueles a quem ensino, estou co-criando. Sopram ventos novos para o Teatro Espontâneo no Chile, graças também a Moysés Aguiar».

Estas intervenções aconteceram no contexto de uma sessão de Teatro Debate, criação de Moysés Aguiar, com a qual se consegue avançar na prática artístico-social que seu livro argumenta. Os atores intervêm, em meio ao debate, através de uma cena curta, de não mais que um minuto, que capta o que o público está discutindo, ou o clima reinante no meio da audiência. Imediatamente, recomeça o debate, potencializado pela metáfora da cena teatral.

Assim, vimos desfilar temas da grupalidade, que pareciam saídos do texto do psicodramista brasileiro como, por exemplo: podemos passar da vergonha à felicidade; a falta de comunicação começa em cada um de nós; a dor pode ser útil. Surgiram propostas no sentido de resgatar a solidariedade perdida, assim como de amalgamar falta de comunicação e morte, espaços da não escuta. Com muita emoção, Moysés Aguiar se referiu ao que estava ocorrendo ali, à força da busca que estava acontecendo entre nós, uma busca do sentido do que ele fazia.

Este livro que, afinal, temos a oportunidade de ler no Chile, abre portas a um diálogo frutífero entre aqueles que nos identificamos com as preocupações do autor a respeito de temas centrais para a história e para o futuro de nosso país.

Moysés menciona a importância de se lançar a discussão sobre as relações de poder, capaz de quebrar os mitos em que se baseia o controle social, advertindo a respeito das nefastas consequências da recusa a essa discussão por uma parte de nossa sociedade. Aponta também os profissionais que temem sair dos caminhos confortáveis da intervenção social tradicional, pretendendo restringir sua atuação a uma dimensão apolítica, evitando tomar conhecimento das propostas científicas, terapêuticas, educacionais e artísticas, transformando-se em guardiães da ordem estabelecida.

«Tal discurso não resiste à evidência de que a atividade psicoterápica é parte de um todo social – o sistema – e que esse todo não só a afeta diretamente (quando não a define), quanto, mais ainda, é por ela afetado em maior ou menor grau. O psicodrama implica, assim, uma iniciativa política».

As obras têm uma vida independente de seus autores. O livro «Teatro de la anarquía» (Un rescate del psicodrama) começou a circular por nosso pequeno, comprido e distante país. Não é utópico pensar que esta aventura que começa terá importantes consequências na vida de muita gente. Há forças novas que apontam nessa direção. Não dá mais para esperar.

 

 

Endereço para correspondência
Carlos Edwards, 1435
Comuna de San Miguel
Santiago - Chile
e-mail: wilfredoaliana@manquehue.net

 

 

* Doutor em Cultura e Educação (Universidad Arcis, Chile); mestre em Ciências e Técnicas (Université Saint- Denis-Vincennes-Paris VIII); ator e diretor da Compañia de Teatro Espontáneo TransHumantes (Santiago, Chile).