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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.18 no.2 São Paulo  2010

 

SEÇÃO LIVRE

Free Section

 

Infância e patologização: crianças sob controle

 

Pathologizing infancy: children under control

 

 

Andrea Raquel Martins Corrêa1

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Muitas crianças estão sendo submetidas a uma prática terapêutica que medicaliza excessivamente a infância, propiciando que diversos comportamentos e dificuldades, principalmente quando relacionados à escola, sejam abordados como doenças, síndromes ou transtornos. Essa lógica patologizante parece dominar o olhar dos profissionais, tanto na área de educação como na de saúde. A tarefa deste artigo consiste em refletir sobre os mecanismos de controle social que promovem e sustentam esta lógica, considerando suas implicações na vida da criança, cujo destino é, frequentemente, marcado pelo rótulo, pela discriminação e contenção. É urgente a necessidade de se criarem novos olhares, articulando o psicodrama a outros olhares para possibilitar alternativas que garantam uma infância mais livre e saudável.

Palavras chave: Infância, patologização, protagonista, espontaneidade, sociodrama.


ABSTRACT

Many children are subjected to a therapeutic practice that excessively medicalizes infancy, propitiating that various behaviours and difficulties, especially those related to school, should be approached as illnesses, syndromes or disturbances. This pathologizing view seems to dominate the thinking of professionals, as much in the area of education as in the area of health. This paper aims to explore the control mechanisms that promote and sustain this way of thinking, and considers its implications on the life of children, whose destiny is often marked by labels, discrimination and contention. In order to develop alternatives that can warrant a freer and healthier childhood, there is an urgent need to create new perspectives and to link psychodrama with other disciplines.

Keywords: Childhood, pathologizing, protagonist, spontaneity, sociodrama.


 

 

Introdução

A infância e a adolescência foram criações da modernidade, aproximadamente a partir do século XVI e XVII, segundo o historiador francês Philippe Ariès. Neste período nasceram a Ciência Ocidental - tal como a conhecemos hoje - e as ideias iluministas. Isto significa que tanto o conceito de infância quanto o de adolescência são construções históricas, inerentes ao processo de desenvolvimento das sociedades. Antes da Idade Moderna, o sentimento da infância (Ariès: 1986) não existia, e a criança era reconhecida como um adulto.

Polêmicas à parte, visto que há pesquisadores divergentes em relação às teses de Ariès, pode-se afirmar que considerações específicas e conceitos sobre desenvolvimento infantil, estudos e medidas enfocando as crianças são invenções recentes da humanidade2.

No entanto, mesmo com todo o avanço das ciências sociais e humanas, não é difícil constatar, atualmente, o mais absoluto desprezo pelas necessidades das crianças, por parte dos adultos e das instituições. Mais uma vez na história, elas estão sendo tratadas como adultas. Basta olharmos os comerciais, as roupas e os sapatos fabricados para as meninas. Não são pequenas mulheres?

Basta repararmos, com mais atenção, na prática pedagógica dominante que alfabetiza crianças pequenas, impedindo-as de brincar. O brincar só é permitido como ferramenta de aprendizagem, em um contexto utilitarista que não acolhe a criatividade infantil, pelo contrário, mata-a de forma cruel e hipócrita.

Como se poderia compreender, senão desta maneira, a produção de discursos em defesa da infância, contrapondo-se a práticas que violam condições mínimas de desenvolvimento saudável para o ser humano?

Em nome da proteção e do cuidado, um grande número de crianças, desde pequenas, está sendo medicado para tratamento de diversos tipos de situações, consideradas doenças, por profissionais de saúde, distúrbios de aprendizagem ou de conduta. Esses diagnósticos, em linhas gerais, referem-se a excesso de agressividade, isolamento social, ansiedade e agitação motora, dificuldades para concentração e atenção, defasagem no processo de leitura, memorização e cálculo.

Em relação aos adolescentes, especialmente os que têm conflito com a lei - uso de drogas, roubo, fuga do lar -, há notícias de que estão sendo internados em hospitais psiquiátricos através de mandados judiciais, na contramão dos movimentos de luta pelos direitos humanos.

Configura-se, portanto, uma tendência crescente de patologização da infância e da adolescência, seguindo o mesmo percurso terapêutico proposto aos adultos. Isento de quaisquer questionamentos, receitas sem critério multiplicam-se no mercado farmacêutico: para sintomas de depressão, antidepressivos; para ansiedade, ansiolíticos e para ficar ligado, a droga do momento é a ritalina, muito utilizada, mesmo com crianças.

Quais as possíveis consequências desta concepção e intervenção na vida das crianças? O psicodrama, dialogando com outras abordagens, poderia contribuir com uma reflexão crítica acerca deste tema?

Nem de longe minha intenção é esgotar um assunto tão amplo e complexo. Interessa apenas, e de outro modo, o exercício reflexivo e a possibilidade de compartilhá-lo com outros colegas interessados.

 

Lógica pa tologizante

Muitos pais, educadores e profissionais da saúde poderiam questionar a questão levantada: qual é o problema em medicalizar e patologizar a infância e a adolescência, se de fato os resultados desejados são obtidos rapidamente?

Os pequenos ficam mais calmos, e os maiores são contidos. A escola não se revê como instituição de ensino e a família permanece em suposta harmonia, livre dos comportamentos transgressores dos filhos. Enfim, toda a sociedade agradece, os jovens doentes são excluídos e nós, adultos, não precisamos mais nos preocupar com eles. Mantêm-se a dinâmica e o funcionamento social prescrito pelas normas vigentes.

Ironias à parte, possivelmente seja para isso que camisas de força químico- sociais estejam sendo administradas com tão pouco critério, tornando- se valores positivos e inquestionáveis. É óbvio que há situações em que os medicamentos são necessários para proteger os indivíduos, mas numa outra perspectiva, diferente desta.

O que está em discussão é o predomínio de uma lógica patologizante, imposta às crianças de classes sociais diversas, na qual o doente é tão somente a própria criança, com pouca ou nenhuma responsabilização do adulto/educador. Não se incluem, para efeitos de um diagnóstico preciso, outros atores e grupos nos quais esta criança/adolescente está inserida. Geralmente, os sintomas são vistos como desequilíbrios bioquímicos, partindo das concepções neurocientíficas que dominam o pensamento da medicina atual.

Nesse contexto, determinadas dificuldades transformam-se em sinais de um possível transtorno que deve, inclusive, ser tratado com a máxima urgência, para impedir que se desenvolva como tal. Exemplo disso é a queixa de professores e diretores, do ensino público e privado, os quais encaminham para atendimento crianças de 5 ou 6 anos, cujo problema, segundo eles, relaciona-se à não alfabetização em contraposição à rápida alfabetização desenvolvida pela maioria dos alunos.

O discurso, digno de registro, revela a normatização das relações na sociedade, pautada por interesses econômicos que orientam políticas públicas impostas arbitrariamente aos educadores. Por sua vez, este sistema de normas também gera expectativas em relação ao desempenho e ao comportamento, tanto dos alunos quanto dos professores.

Aos alunos que não respondem de acordo com estas expectativas, resta o enquadramento pela doença. O diagnóstico, feito de antemão pelos próprios educadores, arbitra uma sentença: "é preciso tratar logo para que o problema não piore"; "quanto mais rápido houver um diagnóstico, mais fácil será tratar um quadro de dislexia ou de déficit de atenção"; "essa criança não vai se desenvolver como as outras se não for tratada com urgência". O tratamento implica remédios e, muitas vezes, acompanhamento psicopedagógico ou psicoterapêutico individual.

Vale assinalar que, junto a patologização configura-se a psicopatologização, fenômenos que não se distinguem um do outro, apenas se complementam. A classificação das doenças e transtornos mentais, como sabemos, é realizada de acordo com critérios médicos, respaldada por diversos outros profissionais da saúde, especialmente psicólogos, psicoterapeutas e psicopedagogos.

Beatriz de Paula Souza, psicóloga do Serviço de Psicologia Escolar da Universidade de São Paulo, é autora e organizadora do livro Orientação à queixa escolar (2007), que problematiza a patologização do fracasso escolar. Os artigos e as experiências relatadas nesse material buscam apontar novas formas de intervenção psicológica no atendimento a queixas de natureza escolar, rompendo com práticas vigentes e incluindo, ao mesmo tempo, o modelo clínico.

"Esta coletânea (...) procura integrar conhecimentos desenvolvidos nas áreas da psicologia escolar e social, a seu atendimento clínico. Partimos de uma concepção do homem como ser social, cuja subjetividade constitui-se em relação dialética com seu ambiente, o qual compreende, entre outros elementos que o integram, instituições e grupos de pertencimento historicamente marcados." (p. 23)

A investigação do livro é muito interessante, porque apresenta uma nova modalidade de atendimento clínico, breve e focado, denominado Orientação à queixa escolar, desenvolvido numa parceria entre o Serviço de Psicologia Escolar da USP e a Secretaria Municipal de Saúde da cidade de São Paulo, a partir da década de 90.

Nessa proposta de atendimento, a instituição escolar é incluída, tanto quanto a criança e seus familiares, sendo que a ótica da patologização é questionada através de estratégias que buscam dar voz a todos os envolvidos, transformando-os em sujeitos3;.

Como sujeito, a criança pode expressar suas ideias, sentimentos e também sintomas, deixando de ser apenas um objeto de intervenção médica, um corpo exposto à catalogação de doenças para sustentar um discurso que constitui, na realidade, o exercício daquilo que Foucault denominou biopoder.

 

Recordan do Michel Foucault (1926 – 1984)

Partindo de leituras e discussões que têm como referência a obra do filósofo francês Michel Foucault (1993-1994), reconhecidamente um grande estudioso das relações entre poder e saber, bem como de muitos outros temas importantes, é possível compreender a patologização da infância como um processo que participa de uma engrenagem muito mais ampla, envolvendo mecanismos de controle social efetivos, voltados para a utilização do corpo e a domesticação dos indivíduos.

De uma maneira simplificada, porque o objetivo do texto não é expor as concepções de Foucault, pode-se afirmar que interessa aos sistemas de poder/saber constituídos atualmente, dentre eles a medicina e a psicologia, produzir o estereótipo da criança doente, favorecendo assim um dos discursos que sustentam a inserção dos fármacos no nosso cotidiano.

Como todo discurso ou explicação científica, este também possui o estatuto da verdade. Tal verdade, nas ciências de nossos dias, é pautada pela bioquímica. Mesmo as doenças supostamente psicológicas ou psicossomáticas são consideradas disfunções químicas e biológicas, sendo que a união destas disciplinas com a neurologia vem produzindo fantásticas e inacreditáveis justificativas para os problemas mentais, incluindo aqueles que se relacionam à cognição. Diversos estudos acadêmicos sobre TDAH (hiperatividade), por exemplo, comprovam uma diminuição do fluxo de sangue cerebral e aumento da atividade metabólica na região frontal do cérebro, áreas relacionadas ao controle dos impulsos. Em consequência, a criança tem dificuldades de concentração e desenvolve um distúrbio de comportamento, tornando-se arredia, às vezes agressiva.

A esquizofrenia é outro exemplo interessante: estudos científicos afirmam que ela decorre de mutações genéticas, causas comprovadamente orgânicas, portanto. Será? O que significa o predomínio desta visão bioquímica nas Ciências Modernas? Como e para que/para quem estes discursos científicos são construídos?

O filme americano Gattaca – A Experiência Genética, de Andrew Niccol (1997), é um convite à reflexão, retratando o funcionamento de uma sociedade de controle baseada em técnicas de manipulação genética, tragédia que alguns afirmam já estar ocorrendo e que poderá, futuramente, fundamentar uma nova prática de eugenia.

O fato é que, mesmo no presente, a força da produção desse conhecimento médico é tamanha, tendo se naturalizado nos mais diversos meios de convivência e se transformado em uma verdade inquestionável, que normatiza e regula as relações sociais.

Cabe lembrar que a normatização opera funções de exclusão, ou seja, estabelece critérios para separar os indivíduos que funcionam dentro do esperado e os indivíduos que atuam fora, à margem da norma. Neste sentido é que prescrições de toda ordem - a partir da abordagem bioquímica de saúde - multiplicam-se indefinidamente, visando garantir que todos cumpram, quiçá, a norma da máxima performance individual, o controle mais absoluto possível do próprio desempenho.

Levando em conta a temática do desenvolvimento infantil, qual seria a performance ideal de uma criança? A que normas ela está excessivamente submetida? De que recursos ela dispõe para se rebelar contra a normatização do seu comportamento, de suas necessidades, seus desejos e potencialidades?

 

Crianças protagonistas

B. tem 12 anos e está muito deprimido, seu diagnóstico é de síndrome do pânico. Estuda em escola particular, é excelente aluno, mas precisa se dedicar, também nos fins de semana, para tirar notas altas em todas as matérias. Com isso não há descanso, não há lazer, poucos amigos. Os pais se queixam de sua inabilidade no trato social.

S. é pequenino, tem 5 anos, sua coordenação motora é considerada ruim, e sua memorização também. Os pais estão desesperados porque a escola, da rede privada, afirma que ele não tem condições de aprender. Com resistência, os pais aceitaram a intervenção de um neurologista, que realizou exames em seu cérebro para afirmar, em seguida, que ele é hiperativo e precisa tomar remédios.

A. também toma medicamento controlado pra ficar mais calmo. Tem 4 anos. Aprende facilmente a escrever as palavras na escola, mas é muito agressivo (disseram que atacou o professor de karatê!). No relatório enviado pela escola, particular, três páginas foram escritas para afirmar que ele tem algum problema grave e precisa de acompanhamento neurológico e psicológico.

F. tem 9 anos, estuda em escola pública, que o encaminhou à neurologia e à psicologia devido à sua rebeldia. Ele já sofreu diversas formas de punição, mas nunca resolveu. Está melhor porque o medicamento o deixa efetivamente mais calmo.

L. é uma menina adolescente que detesta ir à escola, da rede pública, porque não tem concentração suficiente. Sua mãe preferiu que ela tomasse medicamento a que participasse por mais tempo do grupo terapêutico de adolescentes, já que o resultado daquele é imediato e o do grupo, não. Todas essas e muitas outras crianças são uma pequena mostra de atendimentos realizados em um programa de promoção de saúde, desenvolvido por uma empresa de medicina da rede privada, no interior de São Paulo.

A maior parte dos atendimentos caracteriza queixa escolar, mas poucas crianças têm, de fato, algum problema neurológico grave, identificável, no percurso do desenvolvimento neuropsicomotor. Apesar desta constatação, a ótica que orienta o próprio encaminhamento é de cunho patologizante, imprimindo-lhes o rótulo de crianças com problema neurológico, mental ou psicológico. Como psicóloga psicodramatista que trabalha neste Programa, meu papel é de orientação aos pais e acompanhamento das crianças, em grupos ou individualmente.

As expectativas em relação a este processo de acompanhamento e orientação resumem-se à prescrição de condutas corretivas, visando a melhoras no comportamento da criança, algo que poderia ser traduzido como maior submissão às necessidades dos adultos.

Tais necessidades apontam e privilegiam diversos valores compartilhados socialmente, sendo que o valor do rendimento máximo configura-se como um dos principais, regulando as relações familiares e escolares. Determinados atributos individuais de inteligência e sociabilidade - para não falar de outros - são eleitos frequentemente com a função de garantir ou aprimorar uma performance ideal.

Tanto crianças quanto adultos, então, devem "superar seus limites", "ser o melhor dos melhores", "brilhar em tudo o que faz", respondendo de maneira eficaz à demanda dos superlativos, reinante em todas as classes e universos da sociedade.

O desempenho escolar de uma criança, bem como o desenvolvimento do seu papel de aluno, fica, desta maneira, ancorado nesses valores e dimensionados a partir deles, impossibilitando que outras perspectivas possam também ser consideradas. O vínculo professor-aluno, tanto quanto o vínculo pais e filhos, contém as expectativas de alta performance e não há questionamento sobre isso, embora pudesse haver.

Não seriam exageradas as expectativas acerca da produtividade da criança? Para que servem os valores que pautam nossa conduta no alto rendimento?

Em vez do questionamento, acompanhamos o trágico percurso das crianças que, ao não fornecerem a resposta esperada, são automaticamente rotuladas como doentes. Os sintomas que produzem revelam possivelmente formas de resistência, recursos para lidar contra o excesso de imposições, numa busca incansável pela criação de espaços de liberdade e espontaneidade. A criança que se deprime, que sofre, que se isola, que fracassa na alfabetização, que não rende, não aprende e teme sair de casa... essa nossa criança que muitas vezes ataca o colega e xinga o professor, é ela a criança protagonista de nossos tempos, perversos e estranhos, absolutamente controlados. Uma criança que não se redime, não se adapta e, para ser aceita, precisa ser contida através de medicamentos.

Sua mensagem é recusada pelos adultos, seu protagonismo tem pouco alcance. É hora de ajudá-la a subir ao palco, acompanhando-a na cena, com força e fragilidade, propondo que conte sua própria história, a fim de somar parceiros, sensibilizar profissionais e possibilitar uma outra compreensão.

 

Para uma nova infância

Permitir à criança que seja protagonista requer um novo olhar para o mundo, com uma nova lente, que registre outras perspectivas de ação e coloque à margem os interesses e necessidades da vida adulta.

Em geral, a organização do nosso cotidiano e o sentido que a ele imprimimos configuram uma ótica adultocêntrica de mundo, pois nos relacionamos uns com os outros e com as crianças a partir de nossos interesses, nossas necessidades, mesmo quando afirmamos que atendemos todos os desejos de nossos filhos (quais seriam estes desejos, por acaso expressões ou manifestações de uma ordem social, pautada pelo excesso de consumo, por exemplo?).

Como foi abordado, as expectativas - e os desejos - que temos em relação às capacidades e atitudes das crianças são constituídas a partir de demandas da sociedade que, uma vez inscritas em nossa forma de pensar e sentir, acabam por conduzir também nossas ações.

No atendimento a pais e professores, é possível perceber a necessidade imperiosa de que o terapeuta converse com as crianças, não que brinque com elas, muito menos que crie outras linguagens de expressão e comunicação. Esperam-se conversas adultas, racionais, mesmo que a criança tenha 3 ou 4 anos.

A proposta de brincar, de fazer psicodrama com as crianças, principalmente em grupos, desorganiza expectativas, desconcerta relações, especialmente quando não há interesses utilitários na brincadeira ou quando a força desses interesses é menor. O brincar, como uma experiência de liberdade e espontaneidade, é algo questionável para os padrões do nosso mundo contemporâneo, tão pragmático e obcecado por resultados.

Nesse contexto de produtividade/competitividade, a infância é vista apenas como uma fase a ser vivida rapidamente, uma etapa para chegar adiante, um projeto de futuro que deve caminhar em direção a algo, para algo. Todavia Kohan (2003), filósofo argentino, pesquisador do CNPQ e professor doutor da UERJ, nos desafia a criar uma outra imagem da infância, que considere a experiência de ser criança como uma possibilidade de existência humana, a ser vivida em qualquer idade, independentemente da ordem cronológica.

"Não nos preocupemos com o que a infância pode ser, mas com o que ela é. Asseveraremos a infância como símbolo da afirmação, figura do novo, espaço de liberdade. A infância será uma metáfora da criação no pensamento; uma imagem de ruptura, de descontinuidade, de quebra do normal e do estabelecido" (p. 116).

Segundo as investigações históricas e filosóficas de Kohan, a infância é tradicionalmente associada ao inferior, àquilo que falta, que não se pensa nem se sabe. Sendo assim, a educação das crianças fundamenta-se no conceito de que elas funcionam como receptáculos naturais dos desejos e das demandas adultas.

Contrapondo-se a tal pedagogia, Kohan nos apresenta outros filósofos, gregos e modernos (como Heráclito, Sócrates, Deleuze), para propor novas concepções de infância ou, como ele denomina, uma outra imagem da infância. Nesta outra imagem, a criança torna-se uma representação da novidade, da descoberta e da transformação incessante.

A infância seria, neste sentido, uma experiência possível para todos, sem importar a idade, e a educação das crianças não contemplaria a tutela dos adultos que, deste ponto de vista, configura-se como um exercício autoritário de poder, fomentando a dominação e o silenciamento. Quando, ao contrário, as crianças são compreendidas como sujeitos, tornam-se protagonistas, podendo falar a si mesmas e aos outros sobre o nascer contínuo, sobre o possível indeterminado das relações e dos afetos, sobre o que ainda não existe e o que existe mas poderia existir de outra maneira. Nas palavras de Kohan: "a infância é devir; sem pacto, sem falta, sem fim, sem captura; ela é desequilíbrio, busca; novos territórios; nomadismo; encontro; multiplicidade em processo, diferença, experiência." (p. 253). Infância é criação, espontaneidade, ficção e realidade ao mesmo tempo; jogo dramático, faz-de-conta e poesia para crianças ou adultos, em qualquer tempo, em qualquer espaço. Esta tal infância, com certeza, é também psicodrama.

Voar sem asas, pensar-se Deus, descobrir-se humano; quebrar o braço, gritar bem forte, tornar-se alguém. Inventar formas, buscar caminhos, expulsar fantasmas e conviver com dores: infância e ofício de psicodramatistas infantes...

Quão custoso é, para todos nós, ser criança nesta outra infância. Perder o controle e brincar, viver um momento de suspensão do real, junto com o outro, sem saber o final da história.

E não seria essa nossa função, nossa principal atuação como psicodramatistas, reinventar uma certa infância, criar uma nova narrativa, um pouco mais livre, um pouco mais nossa?

 

Finalizando

Surpreendo-me a imaginar novas e outras possibilidades de atuação, que traduzam os questionamentos e a indignação: um sociodrama com pais, filhos, educadores e médicos juntos. Sociodrama da infância patologizada...

O que aconteceria? Que cenas seriam dramatizadas? Quais histórias seriam criadas? Quem seriam os personagens?

E as crianças, o que teriam a nos dizer? O que teríamos nós, adultos, a revelar? Que tramas de poder se explicitariam no palco psicodramático?

O sociodrama, como "método profundo de ação que trata de relações intergrupais e de ideologias coletivas" (Moreno: 1992, p. 188), apontanos para intervenções mais efetivas, nem sempre possíveis. É óbvio que reunir em um mesmo contexto grupos sociais distintos não parece fácil, afinal cada grupo representa um conjunto de papéis e interesses próprios à ordem cultural estabelecida, permanecendo em constante tensão.

O texto buscou explicitar algumas dessas situações: crianças que se diferenciam das normas são classificadas, por profissionais de saúde e educação, como portadoras de distúrbios, o que as obriga a fazer parte de um novo grupo, controlado por psicotrópicos, para fins de contenção e adaptação social. Sem qualquer questionamento, esta forma de abordar a infância vem se naturalizando e se fundamentando, mais especificamente através das ciências neurológicas.

Possibilitar que tanto grupos de profissionais quanto grupos de pais possam discutir estas concepções, estimulando novos olhares e propondo questionamentos é um percurso a ser criado. O Conselho Regional de Psicologia vem realizando tal debate. E o psicodrama, também poderia contribuir?

Do ponto de vista teórico, seria interessante investigar o conceito psicodramático de papel social, articulando-o aos domínios de poder-saber concebidos por Foucault? Ao estudar a sociometria e a sociodinâmica de um grupo, poderíamos levar em conta os dispositivos de saber-poder que o movem, propiciando conflitos e resistência? Que formas de resistência precisariam ser criadas ou incentivadas no contexto da infância? Espaços de livre brincar?

Será que a linguagem do brincar contribui para que a criança se torne protagonista? E o que significa ser protagonista, implicaria também apoderar-se de um discurso - consoante Foucault -, um saber que efetivamente amplia a força de ação dos sujeitos nas relações de poder?

São infinitas as questões e inumeráveis as dúvidas, apenas para começar! Mas é preciso terminar, mesmo sem ter de fato terminado. Sabemos de antemão, é impossível dar conta. As palavras e o texto, ainda assim, buscam registrar o esboço de uma reflexão, para futuras considerações.

Às crianças de todas as idades, com afeto.

 

Referencias

ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.         [ Links ]

FOUCAULT, M. Vigiar e punir. 10ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1993.         [ Links ]

______. O nascimento da clínica. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994.         [ Links ]

KOHAN, W. O. Infância – Entre educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

MORENO, J. L. Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, psicoterapia de grupo e sociodrama. Goiânia: Dimensão, 1992.         [ Links ]

SOUZA, B. P. (org.) Orientação à queixa escolar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.         [ Links ]

 

OBRAS CONSULTADAS

MOURA, M. A. Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade: quando um problema de comportamento caracteriza um distúrbio na infância. In: Diagn. Tratamento. 2005; 10 (4): 180-4. Ambulatório de Especialidades Médicas do Hospital dos Fornecedores de Cana de Piracicaba, Piracicaba/SP.

 

 

Endereço para correspondência
Praça Antonio Prado, 2234
CEP 13400-852, Piracicaba - SP
e-mail: andrea-raquel@bol.com.br

 

 

1 Psicóloga, psicoterapeuta e psicodramatista didata pelo Instituto de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo de Campinas (IPPGC)
2 - Walter O. Kohan é um filósofo pesquisador que questiona a concepção de invenção da infância, proposta por Ariès, criticando o predomínio, nas ciências sociais modernas, de uma visão que ele considera historicista. Partindo de estudos da filosofia grega, Kohan nos apresenta outros olhares sobre a criança no decorrer da história humana. Segundo ele, em Platão, por exemplo, é possível identificar certa imagem da infância, o que permitiria supor a existência desta em outros períodos históricos também, não apenas na Idade Moderna.
3 - O Conselho Regional de Psicologia vem organizando seminários e debates sobre a patologização da infância e, mais especialmente, sobre a dislexia, questionando um projeto de lei do município de SP que visa à aplicação de testes em alunos da rede pública de ensino, com a finalidade de diagnosticar essa doença. Mais informações no site do CRP (www.crpsp.org.br).