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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.19 no.1 São Paulo  2011

 

SEÇÃO TEMÁTICA: Os sentimentos no psicodrama

Thematic Session: The feelings in psychodrama

 

 

O Psicodrama agindo em um caso de fobia

 

Psychodrama in action in case of a phobia

 

 

Eni Fernandes*

I Instituto Sedes Sapientiae - SEDES

II Instituto J. L. Moreno

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo é refletir sobre a fobia, a partir de um caso atendido em psicoterapia bipessoal em dois períodos: o primeiro pessoalmente, e o segundo por telefone. Apresento esses períodos divididos por momentos, conforme minha compreensão do caso. Procuro um entendimento sobre a fobia na abordagem psicanalítica e, depois, procuro recortes teóricos sobre a fobia no psicodrama, contrapondo-os ao caso atendido.

Palavras chave: Fobia; psicoterapia; psicodrama por telefone


ABSTRACT

The objective of this study is to reflect about phobia, based on a case treated with bi-personal psychotherapy in two phases: the first personally and the second by phone. I will split the phases into moments, according to my understanding of the case. I seek a psychoanalytical approach of phobia and, then, I look for theoretical excerpts of phobia in psychodrama by comparing them to the case.

Keywords: Phobia; psychotherapy; psychodrama by phone.


 

 

I - INTRODUÇÃO E APRESENTAÇÃO DO CASO

Este texto é um extrato de uma monografia sobre psicodrama por telefone, que foi resultado do trabalho de pesquisa realizado com base em um atendimento em psicoterapia psicodramática realizado por telefone. O foco foi uma discussão sobre a viabilidade dessa modalidade de terapia. Aqui, no entanto, ressalto considerações sobre a fobia, principal queixa do caso atendido.

Em um primeiro período, a paciente, a quem chamarei de Isabel, esteve em psicoterapia psicodramática bipessoal comigo por dois anos. Tinha, então, vinte e três anos e, por razões profissionais, acabara de se mudar para São Paulo.

Vivia um processo de adaptação na nova cidade e ao novo papel profissional. Simultaneamente, procurava reafirmar sua singularidade e libertar-se da influência familiar. Seu objetivo inicial era: "quero entender a influência de minha família em minhas decisões".

Logo no início da terapia revelou profunda angústia e enfrentou um período de depressão. Em paralelo ao processo de transculturação, trabalhou seu medo de seguir suas próprias tendências, em um mundo familiar de modelos fortes e positivos.

Quando encerrou o projeto de trabalho em São Paulo, retornou para sua cidade e, assim, parou a terapia. Tinha vencido a depressão, estava mais adaptada à cidade e se colocava de forma mais afirmativa em seus relacionamentos, em especial, o familiar. A relação amorosa ainda permanecia como um ponto conflituoso em sua vida.

Três anos mais tarde, a paciente fez novo contato. Estava casada e morava na Europa. Havia passado por um sofrido processo de adaptação, porém se encontrava mais integrada a seu novo mundo. Estava feliz no casamento e fazia doutorado. De forma geral, sentia-se bem, e o que a levava a me procurar era sua fobia de viajar de avião. Esse era um medo que sempre a acompanhou, mas, como estava viajando sistemática e frequentemente, sofria demais com isso.

Vivia, novamente, um processo de transculturação, desta vez mais acentuado, pois as diferenças culturais eram também maiores.

Ela foi quem propôs fazermos terapia por telefone, modalidade que conheceu através de alguém de seu relacionamento.1

Após pesquisas e acertos, estabelecemos um contrato inicial de uma psicoterapia breve, com tempo determinado de três meses e focado: trataríamos especificamente sua fobia de aviões. Após esses meses, com uma avaliação positiva do processo, recontratamos a terapia, desta vez sem prazo definido e com o foco de trabalho ampliado: do medo de voar passamos ao medo de assumir suas próprias tendências, sempre que isso representava um confronto com as figuras mais fortes de sua vida, complementando o vivido na primeira fase da terapia.

Ao longo de um ano de trabalho foi possível observar a gradativa melhora da paciente, quer na expansão de papéis ou na forma de se relacionar, quer em seu medo de viajar de aviões. Simultaneamente, pudemos experimentar a efetividade do processo por telefone e o alcance das técnicas do psicodrama, transpondo a distância e permitindo o trabalho, bem como alicerçando a relação terapêutica.

Apresento a seguir algumas considerações sobre o caso atendido, sob o ângulo da fobia, aspecto mais ressaltado no atendimento.

 

A - primeiro período: Psicoterapia Bipessoal

Para retratar o processo terapêutico desenvolvido nesse período, optei por dividi-lo em três momentos que marcam, conforme minha compreensão, as principais fases percorridas.

1. Acolhimento:

É o momento inicial da terapia, em que Isabel está em grande sofrimento. Sente-se muito só, com saudade da família, dos amigos e de sua cidade. Sofre com o processo de transculturação: estranha, não gosta e rejeita de antemão tudo que vem de São Paulo.

Está em dúvidas quanto a sua vida afetiva e a sua escolha profissional. Não sabe do que gosta. Ao mesmo tempo tem que trabalhar muito.

No início da terapia, a acolhida e o vínculo que se iniciavam nesta cidade através da terapia foram elementos importantes para se sentir mais amparada e para colaborar em sua integração à cidade.

Vinha de uma dinâmica familiar amorosa e fechada, em que o mundo era visto de forma ameaçadora. Também ia ficando claro o comportamento que era esperado dela: autossuficiente, objetivo, seguro de si e voltado para conquistas profissionais. Por seu lado, demonstrava grande necessidade de aprovação.

Isabel passou a ser acompanhada também por um psiquiatra aqui de São Paulo, tendo assim um acompanhamento para o uso de antidepressivo, que já vinha tomando, sem, contudo, um resultado efetivo. Esse vínculo com o psiquiatra representou também mais um passo para sua adaptação a esta cidade.

2. Atravessando a tempestade:

Essa foi a fase central da terapia, um período longo e difícil para Isabel.

Gradualmente ela começa a compreender seu medo diante dos modelos familiares. Fazia tudo para agradar os pais e, se não fizesse, tinha certeza de que não seria amada. Experimentava desamparo e solidão por não seguir o "roteiro" de vida desenhado por seus pais, por assumir a vida adulta com os riscos e a responsabilidade pelas escolhas.

3. Flores saindo da gaveta:

Isabel procurava afirmar-se nas diferenças, no que lhe era particular. Em uma das sessões desse período, produz uma imagem de "florzinhas saindo de uma gaveta" e fica emocionada. Cada flor tem um cheiro, uma cor e vai relacionando cada uma a um papel ou uma emoção, em clara metáfora da ampliação de seu ego, da multiplicidade de "eus parciais", compondo sua singularidade.

Conseguiu estabelecer uma pequena estrutura sociométrica aqui em São Paulo e movimentar-se com desenvoltura pela cidade.

Ao parar a terapia estava mais fortalecida, sentia-se mais confortável. Já sabia que não poderia transformar-se em uma mulher madura sem sentir medo.

 

B - Segundo Período: Psicoterapia por Telefone

De início, tratamos de sua queixa específica: fobia de viajar de avião, diria que nos aproximando mais de seu medo para compreendê-lo, o que já teve um efeito positivo, porque Isabel não podia sentir medo, se relembrarmos seu padrão familiar.

Com o tempo construímos um processo riquíssimo, acercando-nos de novos elementos de seu mundo interno, o que ajudou para que ela se reconhecesse e se afirmasse em suas diferenças diante do modelo familiar. Gradualmente, entre idas e vindas, Isabel foi adquirindo maior expansão pessoal. Cada passo vivido como perigoso: crescer, chamar atenção sobre si, assumir suas qualidades ou talentos, sempre era vivido como algo ameaçador.

Para retratar o processo terapêutico desta fase, também optei por dividi-lo em momentos que considerei mais marcantes, a partir de um eixo de compreensão do quadro apresentado pela paciente e do processo terapêutico. Com eles compus um "álbum de fotos" da "viagem" que fizemos, que sustenta o eixo do processo tanto pelo conteúdo trabalhado como pelo manejo técnico do psicodrama.

São alguns recortes de sessões que realizei com Isabel após o recontrato dos três meses iniciais. Faço uma descrição prática, fundamentada em um olhar conceitual. Passar os olhos por essa viagem, creio, portanto, que nos remete ao processo de transformação de como o psicodrama pode agir em um caso de fobia, encaminhando-nos aos construtos teóricos que o fundamentam.

B - 1- Álbum de fotos : o Psicodrama agindo em caso de fobia

1. Conversa com o pai

Demonstra a consciência que Isabel vai tomando em relação ao que era esperado dela pela família, através da troca de papéis. Trabalha, nesta sessão, as imposições que sente em sua relação com o pai, mostrando que ele tem um script pronto para ela e que, se o cumprir, sente-se irritada, se não, fica culpada.

Isabel está sentada em frente a seu pai.
A cada troca de papel, põe uma almofada no lugar do ego.
I (para o pai): – "Você me sufoca!"
I/pai: –" Quando que eu sufoco?"
I: – "É às vezes, não é hoje. É quando você dá palpite no que eu devo estudar, que carreira devo seguir, que exercício devo fazer..." E (no princípio do duplo de I): – "Você tem um script para mim" I: –" Isso, um roteiro pronto" E (no princípio do duplo de I): – "E se eu sigo..."
I: – "Fico irritada e vocês felizes"
E: – "Se não..."
I: – "Vocês ficam tristes e eu culpada"

2. Pondo um pouco da raiva para fora

Demonstra um momento de catarse.

É a sessão com um ex-namorado, Neto, em que fica claro o desdém com o qual ela sente que ele a trata. Tal percepção promove uma resposta raivosa de grande intensidade.

A cena ocorre no estacionamento da empresa em que ele trabalhava, ambos estão dentro do carro e Isabel desempenha o papel desse ex-namorado.

I/Neto: – "Você é uma bobona, não se atira para fazer as coisas, não está com nada.."

I: (soca o namorado no carro, não admitindo ser tratada assim, não é boba... Vai falando e socando uma almofada)

Ao fim da sessão Isabel me diz que quer fazer uma "pergunta técnica", e assim questiona:

– "O que é o medo?"

3. Avião caindo

Sessão em que, em algum momento, propus a Isabel que realizássemos o seu medo de avião.

Ela está no avião, que está subindo, subindo... Há turbulência, sente muito medo, vai cair. Caiu.
Fica presa nas ferragens, chorando muito.
Não sabia se estava muito machucada, apenas não podia sair, estava muito assustada. E estava sozinha.
Depois de um tempo, pedi espelho.
Foi cedo demais, ela ainda chorava muito.
Dei mais tempo.
Pedi espelho e tentei uma cena anterior, que não veio.
Pedi então que acolhesse aquela que havia caído.
Isabel fez um colo com almofadas na cama para por "a que tinha caído do avião".
Trocou de papel com ela e sentou-se no meio das almofadas.
E: – "Então eu, agora, abraço você junto com suas almofadas".
E ela se deixou ficar.

Termina a sessão com uma onda de raiva por todos que a criticavam e a "faziam" disfarçar o medo.

Isabel, posteriormente, considerou essa uma das melhores sessões, que rendeu muitos desdobramentos.

4. "Às vezes penso que sou normal"

Isabel comentava sobre uma amiga e uma vizinha que tinham medo de avião, o que a impactou muito. Por conta disso, comentou:

I: – "Às vezes penso que sou normal e só tenho medo de turbulência... Quando falo isso sinto um frio na barriga...

Depois de mais aquecida, pedi que concretizasse o "frio na barriga" e trocasse de papel com ele.

I/frio na barriga: – "Quem você pensa que é para dizer que é normal? Só porque viajou de avião, levou seu xale, faz terapia...

A partir disso, Isabel retorna a falar do script desenhado para si pela família, referindo-se a ele como uma cartilha.

Por várias sessões, definimos essa cartilha, em uma concretização lenta e detalhada do papel que a família esperava dela.

5. A cartilha de Isabel

Comentando sobre como essa "cartilha" comandava a família, propus que estudássemos a influência dela em cada um.

Sobre sua cama 2, Isabel colocou um livrinho, como a cartilha.

À direita, um enfeite em forma de pinguim como a mãe. À esquerda, uma vela como a irmã. Acima, um enfeite em forma de hipopótamo como o pai. Abaixo, à esquerda, um frasco de hidratante como o irmão e, abaixo, à direita, Isabel, através de uma foto.

Pedi que Isabel fosse tomando o papel de cada um daqueles "átomos" da cartilha, sem sair do lugar em que ela estava. A partir de sua própria poltrona, ela pegava e trazia para si o objeto correspondente àquele personagem interno e eu pedia que falasse como ele, a partir da influência da cartilha.

E aqui estão as falas mais significativas:

I/mãe: – "Eu sou anticartilha. Filha, você não precisa seguir a cartilha. Seu pai vai ficar triste, mas depois passa, ele vai entender!"

I/pai – "Cartilha é boa e pronto! Não tem nada que discutir sobre ela!"

I/Cartilha: – "Eu amasso você, Isabel! Você tem que me seguir!"

I: – "Sai!" E: – "Espie seu pai."

I: – "Está triste. Mas eu não posso fazer nada, não posso seguir essa cartilha."

Isabel, comentando ao final, diz que está pronta para se livrar dessa cartilha, mas que ela também tem seu lado sedutor, que gosta dela.

Claro que sim! Seguir um roteiro já desenhado é, sob certo aspecto, mais fácil, não há decisões, os riscos são menores.

Sugeri, então, que ela escrevesse a própria cartilha.

I: – "Ela seria cor de rosa."

E: – "Ela é cor de rosa. Veja, está aí na sua mão. Nossa sessão está acabando, mas dê uma olhada na primeira página e me diga qual a primeira coisa que está escrita nela.

I: – "Ser livre."

Nas sessões seguintes dedicamo-nos a escrever sua cartilha.

6. A poltrona de Isabel

Isabel entra em um lindo processo de expansão pessoal. Toma contato com sua dificuldade em assumir suas qualidades ou seus talentos: que é bonita e bem-sucedida ou que está bem-vestida, que é uma mulher e não uma menina... Tem vergonha, tem medo de ser arrogante.

E com isso uma nova metáfora também relacionada ao avião: ela não senta em sua "própria poltrona".

De fato, nessa fase, fizemos por várias vezes a oposição entre a cartilha de couro e a cartilha rosa. E a rosa, em alguns momentos, só aparecia para brincar.

A partir daí, fomos para uma cena com seu pai, quando ela veio para São Paulo, e que ele recomendava que ela não fosse medíocre, pois tinha um sobrenome a zelar, sobrenome que significava sucesso. Como ela se sentiu? Encurralada. Em espelho, fala com a encurralada, mas não acredita nela.

E/Encurralada: – "Eu sou a encurralada. Não acreditam em mim. Eu não devo ser nada legal. Mas como vou fazer algo legal tendo que ter certeza que tem que ter sucesso? E se eu fizer besteira?"

I: – "Agora eu me lembrei de minha mãe."

Fomos para outra cena, em que Isabel era uma criança e a mãe lhe dizia:

I/mãe: – "Não mostre para seu irmão que você está crescendo, para ele não se sentir menor do que você. E não mostre para sua irmã sua roupa nova, para que ela não fique com ciúme. Não seja diferente."

I/pai: – "Quanto mais alto, maior o tombo!

7. Cansada de ser low profile

Isabel quer, mas não está acostumada a ser o centro das atenções. Quando era pequena queria ser feia para não chamar atenção. Se se expandisse, não seria uma boa irmã ou filha.

Disse que estava cansada de ser low profile na vida. Por essa ocasião, contou que reclamou para a vizinha do barulho em seu apartamento e que havia falado com o marido sem ser "menininha".

Estava empolgada por conseguir viajar mais tranquila, como nunca havia conseguido. Em sua última viagem, nessa época, sentiu medo apenas no aeroporto, e tomou meio comprimido de ansiolítico contra tantos que tomava anteriormente. "Embarcamos felizes", ela me contou. E que havia acrescentado na bagagem3 o carinho do marido.

8. Hello Kitty

Na última sessão do ano, pedi a Isabel que escrevesse um cartão para si própria.

Escolheu um cartão da Hello Kitty.

Comentou, então, que sempre gostou desse personagem. Pedi que o descrevesse e o que me chamou atenção é que a Hello Kitty não tem boca, o que Isabel não havia notado até então. Fica muito surpresa com isso.

E: – "Troque com ela. Hello Kitty, vamos agora fazer uma mágica: você vai falar, mesmo sem boca. Eu não posso ver você, não dá para eu a compreender de outra forma."

I/Hello Kitty: - "Quero uma boca, não posso expressar nada, não demonstro raiva. Sou boazinha, não choro, não faço cocô, não dou trabalho a ninguém."

9. "Oi, Eni, aqui é o João".

Pretendo aqui retratar um dos momentos de humor do processo da psicoterapia por telefone e a capacidade da paciente de trocar de papéis, sua espontaneidade e criatividade.

Era um momento da sessão em que Isabel estava no papel do pai e a ligação caiu. Quando o telefone tocou novamente e eu atendi, Isabel me surpreendeu com uma voz forte e firme: -

"Oi, Eni, aqui é o João".

Ela ainda estava no papel do pai. Ao que eu respondi: -

Oi, João, me desculpe estar rindo, é que sua filha é tão criativa que às vezes ela me surpreende!

10. Grávida, feliz e estranhando seus pais.

Isabel engravidou e estava muito feliz.

Nesse período ainda fez várias viagens. Em uma delas teve muito medo e não se conteve: chorou, reclamou, "deu um show", usando suas palavras. Seu marido não gostou e tiveram um desentendimento. Ficou com raiva e sentiu-se desvalorizada.

Começamos a perceber que as viagens de volta eram piores que as de ida.

Passamos, então, a falar de seu medo da vida, de um futuro incerto - talvez seu marido fosse transferido de cidade, de novas mudanças que poderiam ocorrer.

Ao mesmo tempo, surpreendeu-se com a própria capacidade de gerenciar sua vida: trabalho e estudo, reforma da casa, preparação para a vinda do bebê.

Também nessa fase, conviveu uns dias com seus pais e estranhou o jeito deles. Já não compartilhavam a mesma maneira de pensar, a mesma cartilha.

11. Finalizando o processo terapêutico

Paramos a terapia quando seu filho nasceu e Isabel se dedicou a ele e se envolveu com nova etapa de sua vida, já com raízes em seu novo locus.

Nas últimas sessões, trabalhamos mais suas expectativas e ansiedades em relação ao papel de mãe. Foram sessões suaves, nas quais mais conversamos, ela conversava com o bebê...

Isabel fazia uma boa avaliação do processo, mas se sentia um tanto frustrada por ainda sentir medo. Na verdade, ainda sonhava em nunca mais senti-lo.

 

II - CONSIDERAÇÕES SOBRE O CASO

1. Sobre fobia

Isabel começa a segunda fase da terapia com uma queixa específica: fobia de avião.

Que entendimento temos sobre a fobia?

Na abordagem psicoanalítica, encontramos maiores referências.

Em sua conceituação básica, a fobia pode ser tanto tomada como quadro clínico quanto como sintoma e, em sua base, estaria o mecanismo do recalque, separando afeto de representação, e a libido liberada em forma de angústia. Quando essa angústia se liga secundariamente a um objeto, tem-se o sintoma. Gurfinkel propõe, de forma muito pertinente, que se fale de fobias, no plural, pois sua definição "desliza da neurose de angústia à histeria de angústia, mas pode ser um sintoma encontrado na neurose obsessiva e em quadros psicóticos." (Gurfinkel, 2006, p. 11).

Entre as diferentes compreensões e os diferentes autores desse enfoque, destaco Walter Trinca (1992), que conceitua a personalidade fóbica. À parte das classificações das "doenças", a personalidade fóbica designa um modo de funcionamento mental e suas manifestações na conduta. Seria, então, uma dinâmica psíquica peculiar, da qual Trinca descreve as características específicas, que dariam origem à fobia e ao pânico.

Baseia-se no conceito de self, que seria a "representação da pessoa total em contraposição ao mundo externo e à representação mental do objeto ou como o conjunto somato-psíquico do continente e do contido da pessoa total" (Gurfinkel, 2006, p.142).

Trinca fundamenta-se em Bion, especialmente na noção de rêverie, que se refere à:

"situação de comunicação primitiva entre a mãe e a criança, na qual a mãe realiza, para o seu bebê, uma metabolização psíquica da angústia advinda das experiências de contato com o mundo interno e o externo. Com o tempo, a capacidade materna para rêverie devolve à criança a noção de realidade dos sentimentos e, em especial, a noção da existência da criança como ser" (Gurfinkel, 2006, p.143).

A mãe é o continente primário, anterior ao continente interno.

Um traço marcante na personalidade fóbica seria a fragilidade do self que ocorreria em decorrência de falhas nessa função materna primitiva.

Trinca chama de centro de sustentação interna a parte que neutralizaria a angústia de dissipação do self que "é, antes de tudo, a noção de si mesmo" (Trinca, 1992, p.113).

"Na personalidade fóbica [...] aparecem rupturas intra-self que afetam prioritariamente o continente interno e o centro de sustentação interna, resultando em déficits na experiência de existir. A angústia fundamental da fobia seria, portanto, a de dissipação do self.", como escreve Gurfinkel a respeito da teoria de Trinca (Gurfinkel, 2006, p. 143). Observamos, assim, que, neste enfoque, a reação fóbica não é considerada apenas uma defesa contra a angústia de morte em que haveria uma fragmentação e uma projeção a um objeto externo.

Indo além neste panorama geral da teoria de Trinca, vejamos as principais características – ou fatores básicos - de uma personalidade fóbica, já as contrapondo com o caso de Isabel.4

√ Fragilidade do self

"Esse é o fator básico que pode se manifestar por sensações de esvaziamento interno ou vivências de vácuo e de vazio; desvitalização; adoção de referências alheias, desconfiando dos próprios sentimentos e pensamentos; uma certa inconsistência, por falta de credibilidade em si mesmo, que aparece como medo de assumir a condição pessoal e profissional; um estado de desamparo que é vivido na forma de desproteção, com dúvidas quanto a sua própria identidade" (Gurfinkel, 2006, p. 144).

No primeiro período de terapia, quando Isabel morava em São Paulo, ela fazia mais alusões a uma sensação de vazio e sentia-se desvitalizada. Era-lhe extremamente difícil dar conta de seu dia.

A adoção de referências alheias e a pouca confiança em si, seja no que sentia, seja no que desejava realizar, eram as questões centrais de Isabel, observadas desde seu objetivo inicial da terapia, querendo entender a influência da família em suas decisões.

O medo de assumir sua condição pessoal aparece até mesmo quando Isabel já se sente mais segura, porém experimenta um "frio na barriga quando pensa que é normal".

√ Angústias de morte

Aparecem como medo da morte ou de enlouquecer ou de perder o controle da situação.

Eram presentes em Isabel a tentativa de manter o controle das situações e o imenso medo de que as coisas se revertessem de uma hora para outra. É o que podemos perceber em trechos escritos por ela5:

"Ouço a voz de meu pai dizendo que tudo pode mudar de uma hora para outra. O curioso é que isso combina direitinho com avião. Assim como meu pai diz que a vida pode estar ótima e mudar a qualquer momento, o avião é igual. Ele pode estar voando super bem e daí ter uma turbulência."

"Então, eu tenho medo de ter medo e desse medo acabar com esse meu sonho colorido. É meu pai dizendo: não voe tão alto que você pode cair".

"... medo que a minha vida toma de uma reviravolta e de que algo ruim aconteça."

√ Evitações fóbicas

Isabel sofria com antecedência quando tinha situações temidas pela frente, como uma viagem aérea, mas as enfrentava. Com o tempo, foi aprendendo ainda mais a manejar esses momentos, reconhecendo o que precisava em cada um.

O que evitava era se colocar de forma afirmativa na vida profissional e em seus relacionamentos.

√ Uso do outro

O uso do outro se traduz em relações de dependência, uma vez que o outro substitui o centro de sustentação interna. Há uma urgência de proteção diante do desamparo experimentado.

Isabel não estabelecia relações tão dependentes. Eu diria, nesta questão, que ela priorizava a vida profissional de seu marido – em contraposição a ser menos expressiva na sua – e estes trechos escritos por ela expressam certo conflito nesse sentido:

"É claro que a mudança para outro país está em primeiro lugar relacionada à carreira dele. Acho que hoje o trabalho dele é mais importante. É com o salário dele que vivemos e não me incomodo de ser a esposa que segue o marido. Eu (até) gosto deste papel. Sei que para mim seria melhor esse novo país em termos de trabalho, mas não me incomodo de parar de trabalhar por uns dois anos. Seria legal ser mãe e dona de casa chique (não Amélia)."

"... como vou conseguir ir para o Brasil sem você (marido)?"

√ Outros aspectos da angústia

"Referem-se a uma combinação de sintomas tais como: dispnéia, sudorese, desmaios e calafrios..." (Gurfinkel, 2006, p. 144)

O grande temor de Isabel era o momento de pânico dentro do avião, quando sentia perder o controle: "Minhas pernas tremem e meu corpo fica quente e tenho medo de ter medo".

Esses momentos estavam relacionados aos picos de angústia ou de ter um "piti", como dizia. Depois que passava, sentia-se profundamente envergonhada.6

Trinca sinaliza a atenção necessária ao processo da análise: reconhecendo a forma como o paciente vincula-se ou refere-se a si mesmo, certamente com mecanismos de "supressão, desvinculação, invalidação e ruptura", evidencia-se o sistema mental utilizado para "solapar suas bases psíquicas". O trabalho terapêutico seria o de fortalecimento do self, por meio de um espaço continente que favorecesse a recuperação dos vínculos com o continente interno, à semelhança da função rêverie da mãe.

"O paciente precisa de referências estáveis em sua relação consigo mesmo e com o analista, e o trabalho se concentra no estabelecimento de uma comunicação que resgata o contato com a existência da mente; isto leva ao restabelecimento de um continente interno (...). Dar nome ao que anteriormente era inominável constitui uma proeza inigualável" (Gurfinkel, 2006, p. 145).

Sabemos da importância do vínculo em um processo terapêutico, mas creio que esta importância é ainda maior ou tem uma função específica em um caso de fobia, e ainda mais para Isabel começando nova fase da vida em uma cultura diferente. O vínculo comigo era a referência estável, continente, que espelhava a si mesma e a ajudava em seu reconhecimento e em seu fortalecimento.

Vejamos agora, por outro lado, como poderíamos compreender a fobia através da teoria do psicodrama, pois, talvez inspirada por Moreno, comecei a praticá-la.

 

2. Processamento da Viagem: recortes teóricos sobre a fobia no Psicodrama

Este é um caminho difícil, com poucas referências bibliográficas.

Partimos de um eu que se forma a partir de papéis e entre os papéis desenvolvem-se vínculos operacionais de contato "a fim de que possamos identificar e experimentar, depois de sua unificação, aquilo a que chamamos o eu e o a mim" (Moreno, 1993, p. 26). A consciência que cada um tem de si mesmo só acontece através do desempenho de papéis, quer dizer, em relação e a partir de características ou pautas familiares, sociais e culturais específicas.

Partindo deste conceito, sigo, primeiramente, Fonseca, que compreende o eu como sendo formado por uma multiplicidade de eus parciais. Diz esse autor que a sucessiva repetição de momentos relacionais da criança configura a internalização daquele modelo de relação afetiva, o que, no entanto, ocorre de modo parcial (bebê/seio da mãe) e não ainda totalmente (criança/mãe), quer por imaturidade neurológica, quer pelo que seria a própria utopia de um processo completo. Começam, então, a configurar-se os eus parciais que permanecem latentes ou que emergem pelo desempenho de papéis.

Como decorrência, teríamos no psiquismo uma sociometria interna, com esses eus parciais apresentando diferentes graus de relacionamentos entre si. A pessoa, então, relaciona-se com os outros – grupo externo – e consigo própria – grupo interno. "O intrapsíquico é uma interrelação de eus internos" (Fonseca, 2000, p. 91) e os eus mais acionados equivaleriam aos principais traços de personalidade, como "sulcos demarcadores", usando expressão desse autor.

Esses eus mais acionados em papéis aproximam-nos do conceito de papel gerador da identidade, desenvolvido por Bustos. Este complexo configura, no repertório de papéis adultos, "uma dinâmica de comportamento, a qual tingirá o desempenho de todos os papéis como uma matriz mais ou menos identificável" (Bustos, 2001, p. 106). Deveria ser algo flexível, que incorporasse mudanças. De qualquer forma, porém, tem uma função ordenadora, mas também defensiva, cimentando a identidade e/ ou (des) construindo a autoestima.

Creio que poderíamos traçar aqui um paralelo entre a sociometria interna e o papel gerador da identidade com o centro de sustentação interna. Estaríamos falando de um eixo psíquico "de coordenação, de organização e de autoconfiança" ou, como o próprio Trinca diz, a "coluna vertebral psíquica" (Trinca, 1992, p. 53). As rupturas intra-self, que acarretam a fragilidade básica da personalidade fóbica, poderiam ter paralelo na forma específica da organização da sociometria interna ou em uma articulação dos eus que não resulta em possibilidade de potencializar a existência.

Tentando dar mais contorno a essa ideia, lanço mão de uma leitura sobre o pânico a partir da teoria da espontaneidade-criatividade, realizada por Carezzato (1999). O fóbico ou alguém com pânico seria dotado de pouca espontaneidade, com papéis que refletem a conserva: "Seus papéis são roteiros pré-escritos para serem seguidos sem questionamento e sem emoção..." (Carezzato, 1999). A consciência de si próprio, que está diretamente ligada às características dos papéis desempenhados, seria, portanto, de alguém mais limitado, pois os próprios recursos espontâneos não são assim reconhecidos, quero dizer, não são percebidos como possibilidades pessoais, como potencial próprio.

Ocorreriam, então, os comportamentos mais estereotipados, uma profunda insegurança e a tendência a constituir vínculos suplementares, em que o outro é parte de si. Pela recuperação da espontaneidade teríamos a expansão do self, o reconhecimento do próprio valor e o desenvolvimento de novos projetos.

Procuro apoio, ademais, na teoria dos clusters, de Bustos, que é uma tentativa de compreender o sofrimento humano sem situá-lo em um quadro de patologias. Bustos toma como referência a teoria de Moreno de que os papéis se agrupam em cachos ou clusters, e segue uma linha de evolução do desenvolvimento intrapsíquico a partir da matriz de identidade, mesclando com conceitos de psicanálise.

Em resumo, Bustos procurou um fio condutor para essa dinâmica de agrupamento dos papéis e, assim, classificando-os em três clusters. No cluster um temos os papéis com propriedades passivas e de dependência, que apontam para o complementar materno. O cluster dois corresponde aos papéis ativos, tendo o paterno como complementar. Finalmente, o três que corresponde aos papéis fraternos.

Para a passagem ou incorporação dos papéis ativos, é preciso que o indivíduo se desprenda do complementar primário e, para isso, devem existir condições de segurança, de forma a superar a angústia da separação. Se essas condições não existirem, vai se configurar o que Bustos chama de papel complementar interno patológico, que traduziria o mecanismo subjacente à transferência.

Podemos aqui ter um paralelo com a noção de rêverie, de Bion. Como diz Bustos, se a ternura dessa primeira fase for substituída por eficiência, deixará marcas e a pessoa tenderá a automatizar as relações afetivas. (Bustos, 2001, p. 18). O desamparo compromete também os estágios seguintes.

Isabel, já antes de nascer, não teve suas necessidades respeitadas: sua mãe antecipou seu nascimento, por impaciência de esperar os nove meses. Sempre lhe foi solicitada eficiência. A passagem para o cluster dois foi acelerada, não natural.

Os papéis correspondentes ao modelo familiar foram tomados por Isabel sem que ela valorizasse suas pautas pessoais, às quais integraria suas necessidades e desejos. A sociometria interna não lhe dava potência. O eu gerador da identidade era de fato idêntico ao ideal da família.

Assim Isabel começa a terapia, tendo como objetivo ou necessidade libertar-se da influência familiar.

Devo mencionar que Isabel teve também em sua família, amor e acolhida, tanto que se tornou uma pessoa de muitos recursos, criativa, capaz de estabelecer vínculos duradouros. Sua questão maior era separar-se dos valores e projetos ideais familiares e criar um amadurecimento próprio, mas tinha medo de se lançar num roteiro não definido, sem se sentir plenamente confiante. A fobia de avião espelhava esse medo do descontrole, o medo de alçar o próprio vôo.

O medo não tinha espaço na família de Isabel. Poderiam, no discurso verbal, como pessoas esclarecidas que eram, entender e falar com naturalidade a esse respeito. Aceitar, porém, o momento de expressão da emoção e a condição limitante dada pelo medo – ou a quebra da onipotência – era algo difícil para a família. E, assim, o medo vinha para Isabel acompanhado de rejeição, menos valia. "... sinto-me menor do que as outras pessoas quando tenho medo."

Para além do aspecto familiar, Isabel estava morando na Europa em uma cidade de emocionalidade baixa e de pessoas discretas, repetindo a cultura paterna de não mostrar os sentimentos.

Aceitar e acolher seu medo como natural, contendo suas emoções e ajudando a metabolizá-las, foi uma função importante e organizadora da terapia, mesmo ela tendo sido feita por telefone.

No decorrer do processo, Isabel parece que vai fortalecendo-se, dando nome ao inominável e tecendo conteúdos no vazio, com a criação de personagens e metáforas que representavam sentimentos e partes de si mesma; algumas ainda colocadas no avião, no pai ou em mim, transferencialmente. Quando escrevia durante suas viagens, Isabel parecia fazer um autopsicodrama em alguns momentos. Seus interlocutores eram seus eus parciais, demonstrando o fortalecimento de seu centro de sustentação interna.

Em outro reflexo ou intercâmbio dessa vivência interna, acompanhamos a expansão e a mudança no átomo social de Isabel. Para este ponto, tomo como apoio teórico o texto em que Knobel (Pamplona da Costa, 2001) mostra-nos a matriz de identidade e o átomo social como ângulos complementares na compreensão de uma pessoa - duas faces de uma moeda, usando a expressão dessa autora. A matriz de identidade "define a história e os processos vinculares", podendo configurar o complementar interno que, no caso de Isabel, resultou na estereotipia de suas reações. O átomo social permite-nos conhecer, do outro lado, a "vida relacional presente", a manifestação das relações a partir da forma como são vivenciadas pela pessoa (Pamplona da Costa, 2001, p.115).

O átomo social contém diferentes qualidades e características que Knobel, no mesmo texto, aclara e organiza em instrumento da prática clínica: status sociométrico, que se refere ao "montante e qualidade dos afetos" (Pamplona da Costa, 2001, p. 115) investidos nas relações; expansividade social ou número de papéis presentes no átomo; expansividade afetiva, ou capacidade de trocas afetivas; equilíbrio de afetos, que diz respeito à tendência interna do átomo de equilibrar-se ou, como escreve Knobel, "as pessoas escolhem e rejeitam de forma semelhante à qual são escolhidas e rejeitadas"; e mudanças no átomo, demonstrando que há necessidade de um projeto dramático comum para manter um vínculo (citando Aguiar in Pamplona da Costa, 2001, p. 124).

Acompanhando Isabel, foi possível perceber que ela passou a se colocar nos relacionamentos com mais força. De início, tímida, começou a se portar com mais presença em seus círculos sociais. Em sua família, considerava-se o "patinho feio". Com o tempo, ser diferente fez com que passasse a ser admirada pela família e até com que influenciasse comportamentos, como, por exemplo, seu pai procurar ajuda para tratar a própria depressão. Em nossa viagem, vimos também que ela começa a se colocar de forma diferente, como bonita, bem-sucedida, mais madura, e o quanto é difícil para ela lidar com o prazer que sente em agir dessa forma: tem vergonha e também medo de ser arrogante. Para sentar-se em sua poltrona, em seu locus, certamente haveria que resgatar esses aspectos. Acompanhamos ainda as mudanças em seu átomo social. Isabel passa a sentir um estranhamento na convivência com seus pais: o amor permanece, mas já não compartilham os mesmos pontos de vistas e os mesmos valores, o que implica mudanças nas características do relacionamento, com novos programas, novos tipos de conversas. Em seu novo ambiente, Isabel está mais integrada, já avançando na transculturação7 e, com o nascimento do filho, criando novas raízes.

Resumindo, através do psicodrama poderíamos compreender a fobia de Isabel como uma forte reação em conserva, adicionada de cargas transferenciais que distorciam a percepção do momento presente vivido, no qual as angústias, impedidas de se manifestar em situações relacionais coercitivas, são atribuídas a perigos externos. Configuram-se personagens que são a concretização de medos aterrorizantes, que encenam a impossibilidade de controlar e extinguir os perigos da existência.

Diz Bustos:

"o homem naturalmente procura dar curso à sua espontaneidade, como um rio procura seu leito. Mas também procura a segurança do imutável. Esta dualidade coloca-nos perante um dilema: seguir fieis às sempre mutáveis circunstâncias da vida ou nos mantermos dentro da segurança do conhecido. Nesta última opção, pagamos o preço da angústia, mesmo quando usamos mecanismos para suprimi-la. Isto nos indica o que estamos impedidos de manifestar-se. A aventura de viver leva-nos a escolhas dolorosas. O medo de ser livres e consequentes com nossa verdade acarreta um compromisso que nem sempre estamos em condições de cumprir. Nesse lugar entra a escolha da neurose como opção tranquilizante, mesmo implicando em sofrimento." (2001, p. 87).

Em nossa viagem por telefone, partimos de uma rigidez interiorizada, de papéis tomados como roteiros pré-definidos de muitos "nãos", da incapacidade psíquica de controle absoluto. Na contraposição às ordens familiares aparece a fragilidade do self na organização potente dos eus parciais. Passamos pela culpa diante da possibilidade de abandonar o modelo familiar e também pelo desamparo, solidão e medo perante uma nova rota. E também pela raiva!

Seguindo, aproximamo-nos da posse de seus recursos, da espontaneidade achando seu curso. Passamos pelo antimodelo, pela descoberta e criação de novas possibilidades, pelo humor, e, por fim, chegamos ao próprio locus de Isabel, à sua singularidade.

Não foi uma viagem em linha reta, mas um ir e vir, movimento do campo da subjetividade. Uma viagem sustentada pelo vínculo, de mãos dadas pelo telefone.

 

III - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quero enfatizar o aspecto da coconstrução: quando Isabel pega em minha mão, ela me permite atravessar o oceano e voar para seu mundo. Enquanto eu lhe garanto o idêntico, ela se lança na aventura de voar para seu mundo singular. Ao mesmo tempo, seu medo me convida a ousar. Sua mão também me conduz a um percurso novo, estranho e singular, que foi o psicodrama por telefone. Nele, também enfrentei angústia diante do desconhecido e do não saber. Também me vi emaranhada, sozinha. Tive que suportar silêncios. Turbulências em nosso voo.

A mão de Isabel, com suas emoções, orientava-me. Enquanto ela descobria novos sentidos, eu refletia sobre os sentidos de minha ação, criando este novo rumo terapêutico. Também vivi momentos de surpreendentes descobertas.

Enquanto ela conversava com seus interlocutores internos e se fortalecia, também eu buscava ajuda de supervisores, colegas e de modelos internalizados. Juntos, todos nós percorremos e desbravamos novos loci.

 

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Endereço para correspondência
Rua Piracuama, 280 sala 52, Perdizes
CEP 05017-040, São Paulo - SP
e-mail: enif@uol.com.br

 

Notas

1 - Vale lembrar que a psicoterapia por telefone aqui no Brasil não é uma prática regulamentada pelo Conselho de Psicologia, sendo permitida apenas em caráter de pesquisa.
2 - Isabel realizava as sessões em seu quarto. Cito esta sessão para também demonstrar mais uma possibilidade do psicodrama.
3 - No início da terapia tivemos uma sessão em que preparamos sua mala para viagens no como se, colocando o que considerava importante a partir do medo, sejam a consciência e tolerância em relação ao próprio medo, sejam maneiras de contorná-lo, seja sua coragem vinda de outros papéis. Essa bagagem passou a ser uma referência em suas viagens posteriores.
4 - Para identificar a personalidade fóbica, Trinca determina três níveis de fatores: básicos, adicionais e de agravamento, e adverte que o conjunto dos cinco fatores básicos deve estar presente, em maior ou menor grau, para caracterizá-la como tal. Neste estudo, dado seus objetivos, menciono apenas os fatores básicos e os tomo como referências para a compreensão clínica da paciente, não exatamente para enquadrá-la ou defini-la como uma personalidade fóbica.
5 - Durante algumas viagens de avião, Isabel escrevia sobre seus sentimentos e pensamentos e, depois, me enviava esse material, que chamamos de "Diário de Bordo".
6 - Essa sensação é uma das características da agorafobia: "Uma avaliação mais fina mostra que ele (paciente agorafóbico) não teme as situações, mas tem medo de sentir sensações corporais de ansiedade ou crise de pânico. O medo de ter medo é considerado a característica fundamental da agorafobia" (Gurfinkel, 2006, p. 13)
7 - Poderíamos compreender o processo de transculturação de Isabel à luz dos conceitos de coletivo singular e simbólico, identidade de papel e identificação de papel. Resumidamente, a identidade de papel refere-se a uma generalização na expectativa de conduta de um grupo, fazendo com que todos os seus membros sejam vistos de forma única. Há um coletivo simbólico fantasiado, imaginado. Internamente ao grupo, para seus membros, ocorre o mesmo fenômeno e as pessoas veem-se através de uma identidade coletiva singular. Num segundo momento ocorre a identificação, quando, através de alguém significativo, distingue-se uma particularidade de um membro do grupo. Creio que Isabel, em sua aliança comigo, procurava garantir o coletivo singular idêntico enquanto se lançava na busca ou na expressão do singular, nessa fase de inclusão em nova sociometria
* Psicóloga (PUC- Campinas); Psicodramatista (SOPSP); Didata- Supervisora (Sedes); Diretora de Psicodrama (Instituto J. L. Moreno)