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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.19 no.1 São Paulo  2011

 

SEÇÃO LIVRE

Free Section

 

 

Estudo Socionômico: como se formam os vínculos de jovens homossexuais vivendo em sigilo com HIV/AIDS1

 

Socionomic study: how do relationships develop among young homosexuals living secretely with HIV/AIDS

 

 

Douglas Zacarias da Silva*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo é uma experiência do autor no atendimento a quatro jovens homossexuais que se infectaram com HIV/aids entre os anos de 2006 e 2008 e vivem em sigilo sobre a infecção. Ao utilizar a socionomia, com ênfase na formulação do átomo social e rede sociométrica, foi possível investigar a descoberta do HIV/aids, diante da subjetividade de saber sobre o diagnóstico de uma doença cercada de preconceito e estigma, e como eles administraram essa informação, com quem dividem o fato de viverem com HIV e quais os critérios destas escolhas. Segundo sua rede sociométrica para o HIV, eles compartilham com o namorado (se estão namorando), com poucos amigos e com um dos irmãos, mesmo que tenham mais que um. Em contrapartida, mantêm o sigilo para pai e mãe, apesar da importância afetiva que os genitores têm em sua vida, representada através do átomo social.

Palavras chave: HIV/aids; sigilo; sociodrama; átomo social; rede sociométrica.


ABSTRACT

The author of this article describes his experiences of attending four young homosexuals who have contracted HIV/AIDS among 2006-2008 and live secretly with the illness. The use of Socionomy, focusing on the formulation of the social atom and sociometric network, has helped investigate how these youngsters discovered that they had HIV/AIDS, and, in light of the prejudice and stigma surrounding this illness, how they manage this knowledge, with whom they share it, and what are the criteria of their choices for sharing. The investigation of social networks showed a tendency of sharing this information with their partner (if they have one), with a few friends, and usually just one of their siblings (even if they have more). In contrast with this, and despite of the importance that parents play in their affective lives, these youngsters tend to keep the illness concealed from their parents.

Keywords: HIV/AIDS, secrecy, sociodrama, social atom, sociometric network.


 

 

INTRODUÇÃO

Moreno, ao investigar como se formam os vínculos, através de estudos com grupos, conseguiu teorizar como funcionam as relações vinculares. Desenvolveu a socionomia, que é a essência das leis sociais e é composta por três ramos principais: a sociodinâmica, que é o estudo da dinâmica de grupo; a sociometria, que é a mensuração das relações interpessoais; a sociatria, que é a terapêutica dos grupos.

Quando nascemos, somos colocados num lugar, num determinado tempo, com um determinado grupo de pessoas, como uma família com pai, mãe, irmãos etc. Quem não é criado numa família convencional, também possui pessoas que serão importantes em sua vida, pela representação social que têm e terão. Para definir o nosso grupo (afetivo) primário, Moreno chamou esse primeiro grupo de "átomo social". Para ele, a humanidade é como um grande cosmos. O homem (ser social) sempre em ligação com outro homem (outro ser social) formando redes sociais, afetivas e profissionais, dentro de uma infinidade de vínculos. O átomo social é um conjunto de vínculos. Como lembram Ramalho; Santos e Santos (1998, p. 121), "Moreno disse: O homem é ele, suas circunstâncias, (...) seus vínculos. Não só como ser bio-psico-social, mas como um ser cósmico". Nossa personalidade, nossas condutas, nossa vida são desenhadas por nós, as circunstâncias que nos rodeiam e nossos vínculos afetivos.

"O átomo social é a menor unidade funcional dentro do grupo social. Toda pessoa é relacionada, positiva ou negativamente, (...) que, por sua vez, podem estar a ela relacionados também positiva ou negativamente. O indivíduo tem, desde seu nascimento, estrutura de relacionamentos ao seu redor: mãe, pai, avó e outros membros de seu ambiente primitivo. O volume do átomo social expande-se continuamente à medida que crescemos: é dentro dele que vivemos mais concretamente" (Moreno, 1992, p. 173).

O átomo social consagra-se como o núcleo de todos os indivíduos com quem uma pessoa está relacionada emocionalmente e, ao mesmo tempo, com os que estão interrelacionados com ela. Enquanto certas partes do átomo limitam-se aos indivíduos que participam dele, outras partes se relacionam com partes de outros átomos sociais e, estes últimos, por sua vez, com outros, formando assim cadeias completas de interações que, em sociometria descritiva, são chamadas de redes sociométricas, que são formadas por vários átomos sociais. Segundo Knobel (2003):

"(...) as redes são formadas por estruturas vinculares, que podem assumir várias configurações, conforme seu campo de interesse. Essas organizações relacionais que aparecem com certa regularidade seletiva, conforme o conteúdo veiculado (afetivo, sexual, racial etc), funcionam como complexos canais de transporte e transformação da comunicação" (p. 93, grifos nossos).

As redes sociométricas mudam conforme seu campo de interesse. Por exemplo: ao falar sobre aids, podemos escolher o indivíduo "A" para compartilhar que estamos vivendo com HIV (começamos a formar uma rede), porém, para falar de trabalho ou problemas financeiros, escolhemos o indivíduo "D" ou "F", por exemplo.

As redes sociométricas não são estáticas, mas mutantes por natureza. Elas variam de forma subjetiva e por variáveis também subjetivas. As redes também se formam de acordo com diversos papéis que cada um desempenha. O homem é um ser social, que vive em grupo, interagindo com outros homens através de papéis.

"Na vida real, em sociedade, os indivíduos têm funções determinadas por circunstâncias socioeconômicas, por sua inserção numa determinada classe social, por seu átomo social e por sua rede sociométrica. Assim, há papéis profissionais: marceneiro, metalúrgico, médico etc.; há papéis determinados pela classe social: patrão, operário, sem-terra, fazendeiro etc.; papéis constituídos por atitudes e ações adotados a partir dos anteriores: líder, revolucionário, negociador, repressor etc.; papéis afetivos: amigo, inimigo, companheiro etc.; papéis familiares: pai, mãe, filho, patriarca, idiota da família, sucesso da família etc." (Gonçalves, Wolff e Almeida, 1988, p. 66).

As redes sociométricas são partes de unidades ainda maiores, a geografia sociométrica de uma comunidade. "É bom lembrarmos que Moreno, com esta visão do átomo social, de vínculos que constituem a nossa identidade, ajudou muito a psiquiatria e a terapia familiar" (Ramalho et al., 1998, p. 122). A formulação do átomo social e da rede sociométrica pode nos auxiliar no atendimento a pessoas vivendo com HIV/aids, auxiliando na abordagem sobre o sigilo da doença. Sua aplicação se torna fácil porque não exige espaço, material específico, podendo ser aplicado a qualquer tempo de encontro.

 

O átomo social e rede sociométrica para HIV/aids

 

 

Para esta pesquisa foram entrevistados quatro sujeitos que vivem com HIV/aids num quadro de infecção recente pelo vírus, conforme quadro de apresentação acima.

No início da entrevista propusemos um jogo, no qual os voluntários produziram o seu átomo social, utilizando uma folha de papel A4 e etiquetas adesivas. Kaufman (1978, p. 82) vê no emprego desses recursos lúdicos a vantagem de minimizar a necessidade de o indivíduo recorrer a mecanismos de defesa mais regressivos, principalmente porque considera mais inofensiva essa forma de trabalhar.

Como nasceu a partir da sociometria, o átomo social tem como base a interpretação individual para determinado critério adotado. "O critério é o motivo, o para que cada participante encaminha sua escolha" (Knobel, 2003, p. 96). "O que define critério é a motivação comum que agrupa estes indivíduos, espontaneamente, para a consecução de objetivo determinado" (Vieira, 2003, p. 130). Para elaborarem o átomo social, definimos a seguinte orientação:

"Esta folha de papel representa a sua vida, o "aqui e agora" neste momento. E neste aqui e agora, vou pedir para você me "trazer" as pessoas que são importantes afetivamente na sua vida, sejam eles familiares ou amigos. O ponto negro no centro da folha representa você. Quero que você utilize esses outros adesivos para representar as pessoas presentes na sua vida. Quero que você as apresente [com esses adesivos no papel] de forma que as mais importantes afetivamente fiquem mais próximas. De acordo com a importância e o grau de afetividade que elas têm para você".

Terminada essa etapa, fornecemos outra folha de papel, com o mesmo ponto negro no centro, e pedimos:

"Novamente você é este ponto preto e sua vida é essa folha em branco. Peço que você me apresente quem é importante para você e que sabe que você vive com HIV. Quero que você apresente as pessoas com quem você sabe que pode contar quando precisa conversar sobre o HIV. Alguém que, num momento de necessidade sobre a infecção, te ajuda sabendo desta condição. Utilizando o mesmo critério de proximidade afetiva, agora, com o HIV".

A representação do átomo social e da rede sociométrica é feita através de sociogramas. "O sociograma é uma forma de representar graficamente os resultados obtidos pelo estudo da estrutura interna dos grupos, obtido por meio de (...) teste chamado sociométrico que pode ser aplicado em várias áreas da vida humana" (Vieira, 2003, p. 128). Formular o átomo social e apresentá-los através do sociograma permite-nos "ver" sua rede socioafetiva, investigar, abordar situações sobre o sigilo e entender como ele cria seus laços afetivos quando o assunto é HIV/aids. A seguir, apresentaremos o átomo social e a rede sociométrica dos nossos voluntários:

 

 

Átomo social x rede sociométrica x sentidos do sigilo

Ao analisar os sociogramas dos voluntários, percebemos que eles são pessoas que vivem em relação afetiva com outras pessoas. Quando solicitamos que nos apresentem quem é importante afetivamente em sua vida, eles trazem todos. Dos parentes que residem em outro estado até os cachorros de estimação (como é o caso de Pedro Henrique). Mesmo um parente já falecido pode continuar presente no átomo social de alguém, devido a sua importância afetiva na vida dessa pessoa.

Ao abordar o átomo social, estamos falando de qualidade de vínculos: quem é importante afetivamente. Se Pedro Henrique nos trouxe 33 representações em seu átomo, isso tem um significado. São trinta e três pessoas que participam de sua vida afetivamente. O átomo social se consagra como o núcleo de todos os indivíduos com quem uma pessoa está relacionada emocionalmente e, ao mesmo tempo, com os que estão interrelacionados com ela.

Como o átomo da física, o átomo social também está em transformação contínua. Isso acontece porque os relacionamentos e afetividades não são estáticos. Vivemos, amamos, decepcionamo-nos e mudamos a formação de nosso átomo social quando necessário e, muitas vezes, imperceptivelmente. O primeiro quadro foi a resposta de nossos entrevistados para dizer quem é importante afetivamente para formar seu átomo social. A segunda amostragem apresenta as pessoas com quem ele compartilhou o exame positivo, adotando o critério "para quem falar sobre o HIV". E eles nos trazem outra formação grupal. Essa nova formação é a rede sociométrica para assuntos relacionados ao HIV. Ao analisarmos os dois sociogramas, notamos que esse número cai em todos os casos estudados. A intenção, ao comparar o átomo social com a rede sociométrica sobre o HIV, é constatar que as pessoas com quem eles compartilham, diminui de maneira severa. O afeto por pai, mãe e irmão, por exemplo, existe, porém, a confiança da informação sobre o HIV é compartilhada apenas com alguns representantes, o que é uma característica do sigilo. Todos os entrevistados vivem em sigilo sobre viver com HIV/aids.

O estudo do átomo social com a rede sociométrica também aponta a vulnerabilidade social de grupos perante o HIV/aids. Podemos conviver com uma pessoa que vive com HIV, diariamente talvez, sem nosso conhecimento. Isso não oferece nenhum risco. Apenas mostra que todos, de alguma forma, sabendo e não sabendo, estão em contato com o HIV.

Os entrevistados revelaram o diagnóstico de HIV positivo para, nesta ordem: o parceiro sexual, em seguida para alguns amigos e, posteriormente, para um irmão (mesmo quando há mais irmãos, eles só contam para um). Depois eles abrem seu diagnóstico para as pessoas com quem irão criar vínculos de namoro. A seguir, falaremos sobre cada um desses vínculos e sobre os critérios utilizados para compartilhar o diagnóstico.

 

Quando compartilham com o namorado

É possível que o médico, assistente social ou outro profissional que leu o exame com resultado positivo para o HIV possa aconselhá-lo a compartilhar com o namorado ou último parceiro sexual, auxiliando o paciente e tentando interromper a cadeia de transmissão do HIV. Começamos com o relato de Rodrigo que, ao ir ao Centro de Testagem e Aconselhamento e receber o diagnóstico positivo, recebeu a seguinte orientação da atendente:

"(...) ela disse que eu teria que mandar um e-mail para todos com quem eu tive relacionamento sexual e falar que eu era soropositivo. Eu falei para ela: Você está louca! Eu não vou fazer isso! Vou me expor assim, desse jeito? Eu transei com camisinha! Não é assim! Ela me encaminhou para a psicóloga, que não estava". (Rodrigo)

Rodrigo não se sentiu acolhido pela profissional. Ele comunicou a seu namorado por uma questão ética própria, no mesmo dia em que descobriu o HIV. O discurso da primeira profissional não o ajudou nessa questão. A forma como ele informou o parceiro foi como um pedido de ajuda ao namorado. Ele pedia ajuda e, ao mesmo tempo, informava o risco do parceiro:

"Eu deitei, descansei e, às 18 horas, liguei para o meu namorado [que estava saindo do trabalho] e disse: "vem aqui em casa que eu preciso conversar com você". Ele perguntou: "Tem que ser agora?". Eu disse que sim, pois era muito importante. Ele me respondeu: "Fala o que é, pois estou no meio do trânsito, aqui na Faria Lima e até eu chegar aí... Pelo amor de Deus, o que aconteceu?" Eu falei sem barreira alguma: "Fui fazer o exame e deu positivo." Ele ficou conversando comigo da Faria Lima até aqui na Paulista. Quando eu olhei pra ele, pensei comigo mesmo: "Putz, acabou tudo. Nós tínhamos acabado de voltar e eu descubro isso!" Eu caí em prantos. Esse foi o único momento em que eu chorei. Ele ficou comigo o restante da noite que tinha. Saímos, fomos jantar. Ele sempre pedindo para eu ficar calmo. Ele ligou para a médica particular dele, pois nós já transávamos há três anos. Mas a questão era "eu contaminei ele também". Ele falou com a médica dele a respeito disso e foi fazer o exame pelo [laboratório] Fleury. O resultado sairia no dia seguinte. O dele deu negativo e eu já fiquei um pouco mais tranquilo. Enfim, basicamente foi esse o dia [em que fiquei sabendo do HIV]". (Rodrigo)

O namorado sugeriu que ele passasse em consulta com médico particular. A conduta deste médico e de sua equipe foi mais acolhedora:

"Primeiro, se você utilizou camisinha com todos os parceiros posteriores ao namorado, você não precisa se expor!" Eles [a equipe médica] tiraram todas as minhas dúvidas em relação à infecção: o que contamina, o que não contamina. Até então, no CRT, eles me falaram "não compartilhe barbeador, gilete... cuidado com escova de dente". Eles quase falaram: "Se você morar com alguém, se isola". Foi isso que eles falaram para mim. Daí, eu fui conversar no [consultório] particular e eles me disseram: "Se cair uma gota do seu sangue agora, em 30 segundos, o HIV estará morto. Fora do corpo humano, o HIV não dura nada. Ele é extremamente fraco. Então, você não precisa fazer nada disso. Não precisa se expor. Nesse momento, em que você ainda está frágil, que você acabou de descobrir, não tem necessidade de se expor. O que vai agregar a você, falar para uma pessoa? Óbvio que, se você tiver um relacionamento, vai ter que contar." (Rodrigo)

Pedro Henrique relata que, mesmo antes da orientação do médico, tinha o intuito de contar sobre a infecção. O que de fato fez:

"O meu namorado foi a primeira pessoa a saber. A gente se separou... Na época ele não teve cabeça pra segurar a situação... Mas, a gente está junto de novo". (Pedro Henrique)

Yosef foi pegar o resultado com o namorado da época:

"Eu fui com o meu namorado lá para pegar o resultado (...). Ele, na hora, ficou assustado. Teve que fazer de novo. Ele até fez comigo, com meu médico. Então, não deu nada [HIV-] pra ele, pois a gente sempre teve relações com proteção. Mas, ele não me virou as costas. Ele ficou comigo". (Yosef)

Tecnicamente, isso é chamado de "notificação de parceiros". Um assunto delicado para profissionais de saúde e para pessoas vivendo com HIV/aids. Movidos tanto por sua responsabilidade pública com o controle da cadeia de transmissão do HIV quanto pela responsabilidade privada com o bem-estar psicossocial do paciente em suas relações afetivas, conjugais e familiares, os profissionais de saúde têm necessidade, de alguma forma, de adotar estratégias para que os parceiros de pessoas vivendo com HIV/aids tomem ciência da situação. Segundo Ayres e Silva (2009):

"A partir do momento em que tomam conhecimento de que a condição sorológica para o HIV não foi comunicada aos parceiros, os profissionais têm, como medida geral, aconselhar os pacientes a fazê-lo. A recusa em revelar ou a omissão sobre a situação sorológica ao parceiro sexual repousa sob vários contextos e os profissionais, embora possam acolher e se compadecer dessa dificuldade, raramente abrem mão da prerrogativa de insistir na necessidade de que o parceiro seja informado da situação."

Os profissionais que acompanharam os voluntários optaram pela estratégia de aconselhá-los a contar aos parceiros. Quem não estava namorando, conversou com o último namorado ou parceiro sexual, mas com a preocupação de manter a privacidade sobre seu quadro de saúde. Sobre esse assunto, o médico que isolou o HIV em 1986, Montagnier (1995, p. 114), diz que "o médico não tem o direito de advertir o cônjuge ou os parceiros de uma pessoa soropositiva. No entanto, desde a comunicação da soropositividade, deve estimular seu paciente a avisar seus parceiros presentes e passados, para que eles possam fazer um teste e tomar as precauções necessárias". Opinião similar a de Guimarães (1994):

"Eu acho que a nossa obrigação é esclarecer ao paciente sobre os riscos que ele pode colocar para o parceiro, se ele não tiver um comportamento de sexo seguro, mas acho absurdo orientá-lo a comunicar a todos os parceiros que ele é soropositivo. Isso é uma coisa que depende muito da vontade dele, porque é uma dificuldade muito grande, o preconceito é muito forte. Se ele não está colocando o outro em risco, se está agindo com consciência, ele não tem nenhum dever de comunicar nada, pelo contrário, ele tem direito à privacidade". (p. 15)

 

Quando compartilham com o(s) amigo (s)

A aids é uma doença cercada de estigma, preconceito, desinformação e medo. Diante do diagnóstico positivo, a pessoa se sente perdida, em contato com sua finitude. Quando procuram um amigo para falar que está com HIV, ele está procurando ajuda. Um apoio, alguém para dizer que tudo dará certo, conforme o relato abaixo:

"Bom... O critério que eu utilizei foi quem teria, quem se "sustentaria" com a doen... (ele não completa a palavra) com a notícia. Quem não ficaria mal com essa notícia. Quem eu não abalaria psicologicamente e que poderia me ajudar ao invés de atrapalhar com isso. Foram minhas duas melhores amigas, as duas primeiras pessoas a saberem no dia, já. Além do meu namorado, obviamente. (...) E, depois, mais um ou outro amigo mais próximo e minha analista, que já era de muitos anos... Mas, que continua sendo não por esse motivo, mas foi também uma das primeiras pessoas a saber." (Pedro Henrique)

O critério sobre dizer para quem "se sustentaria" com a notícia e o pedido de ajuda é compartilhado por Eric:

"Quando eu precisei refazer o exame eu já liguei pra uma amiga do trabalho. Tava chorando. Ela me consolou e disse que tudo daria certo. Até hoje continua me apoiando. Sempre (...). Depois surgiu outro amigo, um cara que tava me paquerando, mas me apoiou e deu força". (Eric)

O apoio dos amigos é extremamente valorizado. E, mostrando que o HIV pode ser mais comum do que imaginamos, podem acontecer revelações:

"[Contei] para uma amiga que cresceu comigo. Nossa! Ela me botou lá no alto. Me deu o maior apoio. Depois, eu falei pro meu ex, que muito amigo meu hoje. Contei para outro amigo, que revelou também viver com HIV. E a gente ficou muito unido por causa disso". (Yosef)

Questionados se sentiram alguma mudança de comportamento ou postura dos amigos com quem compartilharam, eles respondem:

"Não, acho que não. (...) Eu abri pra quem eu acreditei que tivesse estrutura e eles estão mais próximos... Eu acho que nada mudou. (...) Ah não! Pelo contrário! Sinto todo mundo mais perto, mais carinho, mais atenção. Mas, é como eu disse, eu acho que escolhi também para quem falar". (Pedro Henrique)

Eric relata uma experiência negativa com um amigo que era bem próximo:

"Depois do diagnóstico, eu conheci um cara e comecei a namorar. Ele era negativo. Eu pedi a ajuda dele para falar para esse meu amigo sobre o HIV. Ele foi super carinhoso e me ajudou a falar. Estávamos na casa desse carinha. Ao sair, meu amigo perguntou: ‘ele também tem HIV?' Eu respondi que não e imediatamente ele disse: ‘Nossa, mas como ele tem coragem de ficar com você?'. A partir disso eu percebi que, para ele, eu deixava de ser o Eric para ser um aidético, uma ameaça de doença e morte". (Eric) (grifos nossos)

Segundo Cruz (2005, p. 209), "a grande maioria das pessoas quer que o outro diga que tem HIV, para deixá-lo. Muitas vezes, não somente deixá-lo como parceiro sexual/amoroso, mas também como amigo". Para Eric, o discurso do amigo representou-lhe o rompimento. Atualmente Eric relata que não conta mais com a presença desse amigo como antes, por não acreditar que ele possa ajudá-lo com o preconceito que, segundo Eric, ele demonstrou.

 

Quando compartilham com um (a) irmão (ã)

Examinando o átomo social, percebemos que a família é uma instituição importante para nossos entrevistados. Todos trouxeram a família, mesmo as que estão em outro estado. Porém, na maioria dos casos, as pessoas vivendo com HIV/aids não compartilham esse fato com todos da família. O HIV é algo que desperta sentimento de culpa, vergonha e medo. Portanto, eles preferem manter sigilo dentro da família. Ao mesmo tempo, eles temem pelo sofrimento dos pais, preferindo poupá-los de sofrer por conta disso. A opinião do médico pode também influenciar na decisão de falar ou não para a família:

"Quem me disse pra não falar foi o meu médico. Disse: "Yosef, não vai mudar nada na sua vida. Não vai. Se você quiser falar, você fala. Mas, você vai preocupá-la. Você vai deixá-la nervosa. Vai deixá-la tensa. Eu resolvi, já que a minha irmã tem mais cabeça, é mais calma, é mais tranquila, eu resolvi contar pra ela. (Yosef)

Quando esse sigilo não pode ser totalmente mantido, eles escolhem apenas um integrante da família. Nossos voluntários optaram por contar para um (a) irmão (ã):

"Não contei [sobre] a doença! (enfático). Mas, ela entendeu. Ela disse que já desconfiava: "Yosef... Eu sei a sua vida. Eu sei o que você faz. Eu sei que doença é essa. Mas, olha, a gente está aqui. Vem pra cá pra gente cuidar de você. A gente te ama!"(Yosef)

O relato de Yosef remete aos estudos de Pollak (1990, p. 26), quando diz que "na maioria das vezes, não foi o homossexual que informou deliberadamente sua condição para as pessoas com quem convive, mas estas que perceberam ‘por acaso'". E esse sigilo com a irmã é quebrado por um lado prático: a necessidade da presença de um parente em caso de necessidade, como uma internação: ‘Porque eu estou longe. [Ele mora em São Paulo e a família no Rio]. Se me acontecer alguma coisa, ela já sabe pelo menos.

Porque aconteceu de eu ter um conhecido, que me vendeu um carro, que tinha HIV. Eu soube depois. Ele morreu, e a família, ninguém, sabia que ele tinha HIV. Foi no leito de morte que os familiares ficaram sabendo. Aquilo me apressou a contar para alguém da família. Eu contei para minha irmã'. (Yosef)

 

Eles não compartilham com pai e mãe

O relato mais ouvido como justificativa para não falar para a família é não levar sofrimento, para poupar pai e mãe:

"Sim, é não levar sofrimento. Não deixar ninguém preocupado" (Yosef)

Relato similar ao de Rodrigo:

"Acho que meus pais já não têm mais seus 40 anos. Viveram numa época em que o HIV era "contagem regressiva" [para a morte]. O começo do HIV, quando viram quem era Renato Russo, quem era Cazuza, Freddy Mercury e tudo mais, enfim. Eles têm aquela noção bem fechada disso. Então, por isso, eu deixei de contar pra eles. É desnecessário [contar]. Eles vão pensar: "Ai, meu filhinho... Que não sei o quê!". Se eu contar, eu sei que eles vão sofrer. No começo. Depois, vão ver e perceber que nada a ver. A mesma coisa quando eu contei pra eles que eu era gay. Eles: "Ah... Vai virar um travesti. Garoto de programa. Vai colocar silicone e vai se vestir igual mulher." Depois eles viram que não era nada disso. Vai ser igual. Mas, eu tenho minha vida independente. Então, não tem necessidade alguma. Eu estou muito bem. Então, não tem necessidade de dar esse choque, este abalo para eles." (Rodrigo)

Porém, não falar para pai e mãe gera sofrimento nas pessoas que vivem com HIV. Eles consideram que é possível manter esse segredo familiar, evitando que a família sofra, porém, o mesmo não acontece com eles. Alguns relatam sofrimento em esconder esse fato:

"Eu acho que em alguns momentos é possível (manter sigilo da família). Acho que por um bom período de tempo, principalmente se a família não convive com você... É possível. Mas, vai chegar num momento em que você vai precisar da ajuda, tanto da família quanto dos melhores amigos. (Pedro Henrique)

Pedro Henrique relata sofrimento com o fato de esconder essa situação dos familiares.

"Você sente falta de poder compartilhar. Tem momentos que você está pra baixo e você gostaria de... De ter o carinho dessas pessoas que você ama tanto. Mas, você não quer machucá-las, porque elas não têm estrutura para saber disso. Para elas, vai ser o fim do mundo e o fim do mundo não é também". (Pedro Henrique)

 

Quando compartilham com futuros namorados

Conhecer alguém e dizer para essa pessoa que se tem HIV não é tarefa fácil. Alguns criam estratégias para revelar o fato:

"Eu fiquei com meu namorado sete meses. Mas, eu não contei para ele. Na verdade, eu deixei o meu diagnóstico pra ele [ver]. Eu deixei [o exame] em cima de um móvel, alguma coisa assim. Eu deixei ou esqueci. E ele viu e veio me dizer: "Yosef, o que é isso aqui?". Ai, eu tive que contar. Ah... É Isso, isso e isso. Eu não tive coragem de contar para você e é verdade". (Yosef)

Revelar o diagnóstico faz com que haja uma diferença entre o casal, entre "o saudável" e o "doente". Segundo Maksud (2007), isso gera um conflito que acomete o casal de forma generalizada. E, por parte do HIV positivo, o medo de contaminar o parceiro pode prejudicar a relação. Da mesma forma que o parceiro também tem medo de adquirir o vírus.

"Ele veio a mim e perguntou: Yosef, isso é verdade? E eu disse "Ah, é verdade! Mas, eu fiquei com receio de te contar, pois eu gosto muito de você. Eu não queria te perder. "Ainda bem que você achou o exame, porque se você não acha, eu não ia te contar nunca". No dia seguinte, ficou sem falar comigo. Eu também não quis ligar. Quis deixá-lo à vontade. No outro dia ele me ligou. Feliz. Dizendo que tinha feito o exame, que havia dado negativo e que iria pensar sobre a relação. Para eu não ficar preocupado, porque ele não iria se afastar de mim por isso. Depois ele disse que não ia mudar nada. Ele mandou uma mensagem [de texto no celular]: Yosef, não muda nada entre a gente Eu quero continuar com você. Mas eu fiquei com medo depois disso. [Medo] da relação, de como que ia ficar. E o medo de prejudicá-lo também (Yosef)

Analisando o discurso de todos os entrevistados, constatou-se que o momento mais delicado de viver com HIV é o momento da revelação para o parceiro afetivo. Se o fato de viver com HIV será aceito ou não pelos parceiros. Do contrário, todos consideram que é possível viver de forma tranquila com o vírus.

 

Considerações

Desde 2000, a epidemia de aids no Brasil mantém-se estabilizada. Segundo França e Vidal (2008), por três motivos principais:

"O primeiro é a garantia de acesso universal ao tratamento por todas as pessoas infectadas. (...) O segundo refere-se à expansão do acesso ao diagnóstico e à disponibilidade do uso de preservativos gratuitos. Já o terceiro está relacionado à abordagem preventiva isenta de preconceitos morais e religiosos." (p. 43)

Porém, ao lado desde progresso, "é inquietante observar que o estigma e a discriminação permanecem quase intocáveis, através de inúmeras formas de violência exercida contra portadores de HIV/aids" (Pascual, 2008, p. 27). Neste sentido, cabe aos profissionais das áreas sociais e humanas saberem acolher e orientar as pessoas que vivem com HIV/aids. Segundo o Boletim Epidemiológico (Brasil, 2009), a população que vive com o vírus ultrapassa 600 mil brasileiros.

No campo profissional, o assistente social é um profissional que "tem uma prática que se consolida na vida privada dessas pessoas" (Martinelli, 1998, p. 140). Segundo Santos (2006, p. 16), esse profissional "tem a possibilidade de trabalhar a maneira de agir, sentir, pensar e ver dos indivíduos". Abordar os aspectos psicossociais da doença pode ser facilitado quando o profissional faz o uso da teoria social moreniana, mais especificamente na elaboração e no estudo do átomo social e da rede sociométrica para HIV. Saber com quem a pessoa que vive com HIV se relaciona e investigar com quem ela compartilhou a informação sobre a infecção são dois assuntos importantes para elaborarmos nossa intervenção, pautados no nosso papel ético-político, pois, como Moreno nos ensinou, o homem não vive sozinho, estando sempre em relação com os outros através de vínculos, redes, amizades etc.

Segundo Paiva et al. (2002), "é muito comum encontrarmos pessoas vivendo com HIV, sofrendo com o isolamento social, e que nos percebem nos centros em que são atendidos como sua referência de família substituta". Por outro lado, nosso papel profissional e ético deve motivar-nos a procurar outras formas de reflexão da questão social com aqueles que nos procuram e que são acometidos pelo HIV. O estudo do átomo social e da rede sociométrica, além de outras teorias sociais de Moreno, podem ajudar-nos a conhecer outros aspectos da vida dos sujeitos, que poderiam passar em branco, através de abordagem mais formais.

Por causa de toda sua história com grupos discriminados, acredito que, se Moreno estivesse vivo, estaria conosco na luta contra a discriminação que envolve pessoas vivendo com HIV/aids.

 

Referencias

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Endereço para correspondência
Rua Alves Ribeiro, 398 Apto. 718,
Cambuci
CEP 01540-010, São Paulo - SP
e-mail: dozasil@hotmail.com e dzacarias@prefeitura.sp.gov.br

 

 

Notas
1 - Temática discutida originalmente e com maior aprofundamento analítico em nossa dissertação de mestrado, "Os sentidos do sigilo entre homossexuais recentemente infectados pelo HIV/aids", pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP – 2010
2 - Os nomes foram trocados e escolhidos pelos voluntários

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Mestre em Serviço Social pela PUC-SP (2010); especialista em psicodrama socioeducacional pelo Sedes Sapientiae (2004); especialista em violência doméstica contra crianças e adolescentes pela USP (2005); graduado em Serviço Social pela Faculdade Paulista de Serviço Social (2001)