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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.19 no.1 São Paulo  2011

 

SEÇÃO LIVRE

Free Section

 

 

Ética, tirania e psicodrama

 

Ethics, tyranny and psychodrama

 

 

André Marcelo Dedomenico*

Universidade Estadual Paulista - UNESP - Faculdade de Medicina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de duas tragédias gregas, As bacantes, de Eurípedes, e Antígona, de Sófocles, o autor desenvolve um ponto de vista conceitual sobre a ética na prática psicodramática. Ética entendida como possibilidade de acolhimento das multiplicidades que constituem o próprio corpo conceitual da prática socionômica.

Palavras chave: Psicodrama; ética; tragédia grega; filosofia; personagem.


ABSTRACT

From two Greek tragedies, The Bacchae of Euripides and Sophocles' Antigone, the author develops a conceptual point of view on ethics in psychodramatic practice. Ethics understood as a possibility to receive the multiplicities that constitute the own set of conceptual practice of Socionomy.

Keywords: Psychodrama; ethics, Greek tragedy; philosophy; character.


 

 

Há algum tempo, e por acreditar na concepção moreniana de homem – um ser em relação dotado de espontaneidade e criatividade – algumas temáticas têm sido foco de meus estudos e pesquisas: a questão das identidades e das diferenças, do Eu e do Outro, do idêntico e do estranho. Nesse percurso – um caminhar para ser em vez de um pensar para existir –, além do pensamento de Jacob Levy Moreno propriamente dito, encontros com muitos outros autores aconteceram. Alguns bem familiares ao campo discursivo da socionomia, como: Perazzo, Cardim, Naffah, Reñones, Féo e Weschler, que, pela identidade linguística existente, expandiram e potencializaram os círculos de significância do psicodramatista-em-mim. Outros, estrangeiros ao saber psicodramático, como Nietzsche, Foucault, Agamben, Maldonato, Deleuze e Guattari, romperam com tais círculos, criaram pontos de subjetivação a partir dos quais novas linhas de fugas foram criadas, não para se fugir do mundo, mas para que o mundo fugisse por elas. Pontos de subjetivação que criaram novos papéis-personagens, como o aprendiz de filósofo-em-mim nas suas versões arqueológo e genealogista, o psiquiatra-em-mim, o psicodramatista-antropófago-emmim, o psicodramatista-didata-em-mim, entre muitos outros1.

Cada uma dessas personagens habita um território existencial distinto, com seus regimes semióticos próprios. Suas falas singulares diferem de acordo com o campo discursivo em que foram gerados e do qual se apropriam em seus enunciados. Suas máscaras sofrem fissuras durante seus atos de fala e transmutam-se em novas máscaras, novos territórios, novas personagens, para que os afetos possam passar. Algumas personagens já fugiram tanto que nem mesmo é possível distinguir de quais papéismáscaras- territórios elas se originaram.

O carnavalesco-em-mim, o cinéfilo-em-mim, o touro-em-mim2 são alguns exemplos. O psicodramatista-em-mim pôde assim experimentar a não identidade, o não-ser, a desterritorialização, longe de um centro de significância, longe de um EU-déspota que a tudo codifica a partir de seu território existencial tão familiar. É pelas bordas que a desterritorialização acontece e que tudo foge.

Foi nas fronteiras de seu saber que tudo aconteceu, na superfície de um corpo-ator, em que novos agenciamentos coletivos de enunciação acoplaram- se, de uma multidão de vozes, de que se tira a própria voz, que deixaram marcas nesse corpo e produziram novas falas para que novas histórias, novas linhas do tempo fossem geradas. Nenhuma cultura modela uma subjetividade sem deixar marcas nos corpos. Uma dobra assim se forma, um dentro do fora. Um eterno retorno das diferenças. São os acontecimentos que voltam pela memória das marcas corporais que ficaram destes encontros.

Acontecimentos que ao retornarem já se constituem como diferenças, pois novos sentidos precisam ser sempre criados para o vivido. Devires singulares. Movimentos. Mutações de si mesmo e a criação de novos pontos de vista, novas perspectivas de mundo, secretadas a partir dos produtos resultantes da ruminação e da digestão de pontos de vistas estrangeiros ao saber psicodramático.

Durante este percurso muitas rupturas aconteceram. Mundos desmoronaram. Centros de significância despedaçaram-se. Nessa zona de fronteira entre o Eu e o Outro, entre o familiar e o estranho, entre uma suposta identidade e uma diferença, a língua trava e uma gagueira toma conta da fala. É desse ponto, em que não é possível uma coincidência entre uma sintaxe e uma semântica, em que as palavras não são as coisas, em que não há identidade entre corpo e linguagem, em que a língua como potência e a fala como ato distinguem-se, que o psicodramatista-em-mim está neste momento situado e tentará dizer algo.

Ele começará seu percurso ao falar de duas tragédias gregas escritas e encenadas há mais de dois mil anos. Não com o intuito de descobrirmos a verdade dos gregos ou de transpormos valores antigos para este momento em que se vive, mas para que possamos trocar a tão conhecida questão: "Quem é o outro diante de mim?" e podermos enunciar: "Quem somos nós nessa relação hoje?"; "Que máscaras são produzidas a partir de um encontro entre psicodramatistas?"; "Entre um psicodramatista e seus clientes ou grupos?"

O universo trágico carrega a força das multiplicidades e dos movimentos, onde nada permanece igual ao que se é. Onde a força da correnteza arrasta a segurança das certezas da terra firme. Fenômeno indissoluvelmente social, estético e psicológico. Da multiplicidade do coro de vozes destaca-se a singularidade da máscara do protagonista. Arte do deus que é pura alteridade. Dioniso, deus mascarado, deus estrangeiro. Arte catártica da qual bebeu Moreno.

A primeira tragédia é As bacantes, de Eurípides. Nessa obra Dioniso é o protagonista de um drama no qual a máscara tem a função de esconder e mostrar, levando somente os espectadores a ver o deus por trás da máscara do estrangeiro, a fim de se dar e conhecer pelo que é: um deus mascarado cuja vinda deve trazer, para uns, a plenitude da felicidade e para outros, que não souberam vê-lo, a destruição. Todos os protagonistas do drama, inclusive o coro de fiéis lídias que o seguiram até Tebas, veem na máscara teatral usada pelo deus, apenas o missionário estrangeiro. Penteu, um tirano trágico, na sua cegueira e impossibilidade de ver o deus por trás da máscara do estrangeiro, acaba morto por aqueles que lhe são mais familiares: sua própria mãe e tias.

A visão de Dioniso, segundo Vernant (1999), consiste em fazer resplandecer do interior, em reduzir a migalhas essa visão "positiva" que se pretende a única válida, em que cada ser tem sua forma precisa, seu lugar definido, sua essência particular num mundo fixo, que assegura a todos sua identidade, no interior da qual esse ser permanece encerrado, sempre semelhante a si mesmo. Para ver Dioniso é preciso penetrar num universo diferente, onde reina o Outro e não o Mesmo.

"... em nenhum dos casos ele (Dioniso) vem para anunciar uma sorte melhor no Além. Ele não preconiza a fuga para fora do mundo, nem pretende trazer às almas, através de um modo de vida ascético, o acesso à imortalidade. Os homens devem, pelo contrário, aceitar sua condição mortal, saber que não há nada diante das forças que transbordam de toda parte e que têm o poder de esmagá-los." (Vernant, 1999, p. 359)

A segunda tragédia é Antígona, de Sófocles. A filha de Édipo é condenada a guiar seu pai cego e, ao fazê-lo, abdica de sua própria vida. Não teve tempo para perceber a si mesma, em razão da culpa de seu pai e do suicídio de sua mãe. Antígona inocente-culpada. Na tentativa de sepultar seu irmão Polínice, num gesto que transgride as leis da polis, seu tio Creonte, governante de Tebas, reage furiosamente. Somente a ele é dado decidir sobre os valores de que é dado prescindir. Creonte encarna o saber-poder que se identifica com os valores supremos da polis. "A cidade não pertence a quem a governa?" pergunta o tirano.

Etéocles e Polínice. Antígona e Creonte. Identidade e diferença. A Etéocles, defensor de Tebas e de suas leis, toda honra e glória em seu sepultamento de herói. Para Polínice, o traidor, o invasor que vem de fora, a marginalidade que invade as certezas já estabelecidas, nada de honras ou glórias em seu funeral. Seu corpo deve apodrecer nas margens de Tebas, ser antepasto de abutres e outros carniceiros, decreta Creonte. Diante da impossibilidade de deixar o outro só diante de sua própria morte, Antígona situa-se nessa zona de fronteira, nesse limbo criado a partir das leis do tirano e das leis de sua própria consciência. Gradações de cinza diante das certezas absolutas do claro ou escuro, da dicotomia branco-preto.

À identidade de Etéocles opõe-se a diferença de Polínice. Antígona é obrigada a escolher e, nessa escolha, faz triunfar a vida sobre a morte, mesmo que sua escolha represente a sua própria morte. Ao morrer, transcende a si mesma, faz triunfar a vida e seu absoluto e o individual direito natural sobre a ímpia lei da cidade. Antígona ainda vive em nós e Sófocles lembra-nos, com sua tragédia, da possibilidade de involução tirânica que acompanha qualquer democracia.

Voltemos para o século XXI...

A dor trágica diante do mistério de quem somos e da falta de um sentido claro para nossa existência fez a humanidade, ao longo dos séculos, criar inúmeros dispositivos de saber e de poder. Na busca de uma tão sonhada identidade, para explicarmos o mundo e a nós mesmos, saberes foram criados, formas foram definidas, esquadrinhou-se o espaço da existência e criaram-se dicotomias. Leis e regras que se pretendem universais ao definirem o normal e o patológico, o saudável e o doente, o que é corpo e o que é mente, o individual e o grupal, o grupal e o social, o EU e o OUTRO. Na área das ciências humanas, disciplinas e instituições foram assim constituídas, sempre em razão de explicar, categorizar, dividir e padronizar comportamentos e paixões. Disciplinas que ao longo dos séculos produziram objetos para que sua própria existência, como verdade sobre os corpos, fosse validada. Foucault, em seu livro O poder psiquiátrico, explicita bem essa questão ao mostrar que tanto as práticas psiquiátricas quanto psicológicas, nascidas no início do século XIX, vieram ao encontro do objetivo de definir e explicar quem é esse outro, quem é o estrangeiro que se apresenta diante de mim e me questiona em sua diferença. O poder disciplinar, que ainda hoje é tão presente em nossa prática cotidiana, no encontro com a loucura, com o outro, com a angústia trágica, que a perda de uma identidade de referência nos provoca.

Vejamos o que Foucault (2006) nos diz:

"Essa função-psi foi o discurso e a instituição de todos os esquemas de individualização, de normalização, de sujeição de indivíduos no interior dos sistemas disciplinares. Assim, vocês veem aparecer a psicopedagogia no interior da disciplina escolar, a psicologia do trabalho no interior da disciplina da oficina, a criminologia no interior da disciplina da prisão, a psicopatologia no interior da disciplina psiquiátrica e asilar. Ela é essa função-psi, a instância de controle de todas as instituições e de todos os dispositivos disciplinares e faz ao mesmo tempo, e sem que isso seja contraditório, o discurso da família."

Fugiria aos propósitos deste percurso adentrar em tão polêmica questão, e citou-se Foucault apenas para que se possa ver que as disciplinas podem fazer a todo momento renascer Penteu-em-nós ou Creonte-em-nós, sempre tentando sufocar ou deixar de fora dos muros de nossa cidadela as diferenças que nos invadem e nos questionam. Agarramo-nos a uma identidade déspota, a um EU-tirano, que com seu conhecimento tudo explica e codifica. Habitar essa zona de incerteza do limite de quem se é na relação com o outro implica deparar-se com nossa própria diferença, com o outro que se é. A fim de diminuir a estranheza e a violência desse encontro, rapidamente apropriamo-nos de uma verdade para explicá-la, de um conceito para defini-la ou de uma estrutura para dar-lhe forma, de um saber-poder que se apresenta em uma máscara. Assim, na posição de especialistas em determinado assunto, ao explicarmos o outro a partir de uma verdade que já se tem, colocamo-lo numa camisa de força e o enclausuramos dentro de uma identidade definida por um saber-poder que se naturalizou ao longo dos séculos. Aqui estamos no terreno da moral, da lei tirânica e coercitiva que tudo engloba ao dar-lhe um contorno familiar, que subsume os corpos, a fim de diminuir a estranheza do outro que se apresenta diante de nós. O reinado do idêntico e do mesmo, da busca de semelhanças e de identidades, de "eus verdadeiros" por detrás de cada máscara, da exclusão do outro e da diferença.

Deste modo, o que seria pensarmos hoje um psicodrama, não como prática disciplinar, que a tudo explica, define, cura e trata e, ao fazê-lo, formata e esquadrinha o espaço da vida e exclui as diferenças, mas como prática política, como transdisciplinaridade e, portanto, fora das disciplinas? Transdisciplinaridade que, segundo Regina Barros (2007), desnaturaliza cada disciplina ao trazer para o campo de análise sua história, seu caráter transitório e parcial, o recorte que imprime nas práticas e como produz seus próprios objetos. Transdisciplinaridade que rompe com as dicotomias: teoria-prática e sujeito-objeto, pois são tais dicotomias que sustentam as disciplinas como saberes estanques e hierarquizados. O desafio que se propõe a transdisciplinaridade é a de criar um novo objeto, que, ao se construir, constrói outras formas de subjetivação.

Pensar um fora das disciplinas não como exterioridade, pois ainda assim estaríamos falando de uma interioridade psicodramática, e, portanto, de uma única visão de eu, de mundo e de deus. O exterior nada mais seria aqui do que a projeção de uma certa visão de mundo. Mas de um psicodrama do fora, dessa zona fronteiriça do limite, tão próxima e tão distante ao mesmo tempo. Limite não como linha que demarca um território, mas zona de fronteira entre duas pátrias, onde ainda não somos, mas devimos. Psicodrama errante, tal qual Ulisses que, ao navegar pelos mares, de ilha em ilha, dá forma e relato a si próprio, e, se existe uma identidade aqui, é apenas aquela gerada pelos acontecimentos do percurso. Deste modo, criar-se-á a necessidade de uma ética do caminho, de uma lei que seja regra de passagem, enquanto artifício relacional, e não de uma origem ou fundação como a verdade mais verdadeira, como objetivo principal a ser revelado e que só a alguns poucos é dado a conhecer ou como finalidade última a ser atingida. Ética que define um modo de existência na qual se está implicado.

Nesse percurso com certeza nos depararemos com Kafka, não o autor, mas a personagem K. ou Joseph K., em sua busca incessante por um espaço de liberdade para poder respirar3. K. está sentado no meio, na borda entre o palco e a plateia. A beira do abismo, onde um devir de forças e intensidades habita o que ainda não é, o não ser e o não lugar. Está cabisbaixo e angustiado diante da possibilidade de um assento confortável na plateia, que pacientemente tudo vê e só se levanta diante da segurança que a certeza de sua fala representa. Mas a plateia também é um lugar político, define uma posição de sujeito, e escolhas nem sempre podem ser feitas. Às costas de K. está o palco, locus onde se trava uma batalha feroz e sangrenta, matrix onde os saberes-poderes tentam domesticar e disciplinar os corpos. Família, religião, escola, trabalho e inúmeras outras instituições disciplinares tentam a todo custo efetuar a força de seus saberes sobre seu corpo, dizendo quem ele é, o que deve pensar e o que ele pode ou deve ser. O palco psicodramático como status nascendi ou meio de efetuação de forças, de saberespoderes que instituem determinadas subjetividades. Palco como polemos, o espaço das tensões dramáticas. Romper com o instituído ou sentar-se como sujeito paciente na plateia? Tal escolha lança Kafka nessa zona de fronteira, espaço em que as multiplicidades e intensidades fluem, onde a criatividade pode fazer nascer novas regras, novas leis, novas subjetividades. Constituirse como sujeito ético e não moral. A lei aqui funciona como artefato ou regra de passagem; é facultativa e não coercitiva. É nesse meio que o devir acontece, onde o movimento ocorre, o não-lugar da fronteira, liberando a potência dos corpos e seus respectivos devires.

Kafka, essa personagem universal que está sempre em busca de uma suposta liberdade nunca alcançada, ao romper com o instituído olha para o abismo e o deserto do mundo, depara-se com a angústia do trágico presente em nós. Dor trágica que dilacera e nos faz criar novos sentidos para o que se vive. Nesse momento precisamos mais do que nunca de um órgão onírico bem desenvolvido, para podermos sonhar e criar novas possibilidades de existência. Dor trágica que nos coloca em relação com uma multiplicidade de forças e intensidades, que mostra nossa finitude e os infinitos mundos que nos cercam. Suportar essa desestabilizaçãodesterritorialização, que essa falta de uma identidade de referência provoca, exige uma subjetividade-artista, que se cria e se transforma a cada encontro com o desconhecido. É toda uma estética da existência de um devir-artista que aqui a nós se apresenta.

Felizmente, Moreno deixou-nos um legado teórico-prático com uma grande abertura às diferenças. Uma pluralidade já se encontra dentro do próprio corpo conceitual psicodramático. Os conceitos morenianos vão na direção que Deleuze, um dos filófosos que mais pensaram a diferença, considera o que é um conceito: um todo fragmentado, uma multiplicidade, uma articulação de elementos, de componentes, eles mesmos conceituais, distintos, heterogêneos, mas inseparáveis, intrinsecamente relacionados, agrupados em zonas de vizinhança ou de indiscernibilidade. Alguém aqui por acaso saberia dar a definição mais exata do conceito de papel, só para ficarmos em um dos conceitos mais utilizados em nossa prática diária?

Papel é "unidade de conduta observável", "aspectos tangíveis do eu", "forma de funcionamento que o indivíduo assume no momento específico em que reage a uma situação específica, na qual outras pessoas e objetos estão envolvidos", "fusão entre elementos privados e coletivos", só para ficarmos nas definições mais comuns. Muitos conceitos dentro de um mesmo conceito, sem se sobreporem, coexistindo em suas diferenças. A intensidade de um conceito não para definir o que ele é, mas como ele funciona. Papel pode funcionar como designação ao nomear determinada pauta de condutas sociais; como significação, ao remeter a um significante a partir de um referencial teórico qualquer; ou como manifestação dos sujeitos de enunciação e do enunciado, ao definir quem fala e sobre quem se fala.

Graças a todos os deuses, a multiplicidade e a heterogeneidade também habitam o corpo teórico-prático do psicodrama e, por isso mesmo, é difícil transformá-lo numa única disciplina, por mais que se tente e se queira. Conceitos sem identidade, que funcionam de um modo ou de outro, de acordo com o referencial teórico-filosófico de cada psicodramatista que deles se utilizam. Teremos tantos psicodramas quanto psicodramatistas. Pluralidade também presente na relação com outras áreas do conhecimento e dos saberes. Podemos falar num psicodrama psicanalítico, num psicodrama construtivista, num psicodrama núcleo-do-eu, num psicodrama matriz-de-identidade, num psicodrama junguiano, num psicodrama lacaniano, num psicodrama líquido, num psicodrama multidimensional, num psicodrama sociométrico, num psicodrama nômade, e por aí vai, como um antropófago que vai digerindo elementos estranhos a cada novo encontro, a cada diferença que surge pelo caminho, sem deixar de ser ele próprio, mas nunca sendo o mesmo.

Assim, o que para muitos pode parecer incoerência ou inconsistência do criador do psicodrama, ao criar seus conceitos, é exatamente o que nos permite habitar a multiplicidade que somos como psicodramatistas e estar com a diferença do estrangeiro que bate em nossa porta e nos questiona em nossas verdades. A cada novo encontro, uma nova máscara surge nas fissuras da anterior e a pergunta: "Quem somos nós nessa relação hoje?" faz-se necessidade como paradigma ético-estético-político.

Se pudermos falar de uma ética no psicodrama, seria a ética do acolhimento da diferença, sem deixar de ser ele próprio sendo outro. Precisamos dobrar as forças que fortalecem Creonte-em-nós e Penteu-em-nós, pois elas existem e são muitas e, para que não se mostrem em suas máscaras a cada encontro com o estranho e desconhecido outro, que se apresenta diante de mim. Para que Antígona possa viver, pois o único valor que realmente importa é a própria vida. Para encerrar, ouçamos a voz alucinatória de Fernando Pessoa que, como artista, soube melhor do que ninguém acolher a multiplicidade e a diferença presentes na multidão:

"Multipliquei-me para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente."

 

Referencias

Barros, R. B. Grupo: a afirmação de um simulacro. Porto Alegre: Sulina/ Editora da UFRGS, 2007.         [ Links ]

DEDOMENICO, A. M. Processos de subjetivação: uma produção de pensamento a partir de uma prática psicodramática num centro de atenção em álcool e drogas. Monografia apresentada ao Departamento de Psicodrama do Instituto Sedes Sapientiae para obtenção do título de psicodramatista- didata. São Paulo, 2009.         [ Links ]

Foucault , M. (1973). O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006.         [ Links ]

PESSOA, F. Poemas de Álvaro de Campos: obra poética IV (p.119). Porto Alegre: L&PM, 2010.         [ Links ]

Vernant, J. P. e Vidal -Naquet P. Mito e tragédia na Grécia Antiga I e II. São Paulo: Perspectiva, 1999.         [ Links ]

 

OBRAS CONSULTADAS

Brandão, J. S. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes. 9ª. ed., 2002.

MACHADO, R. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

Moreno, J. L. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1997.

 

 

Endereço para correspondência
Rua Carlos Comenale, 68 Apto. 51,
Bela Vista
CEP 01332-030, São Paulo - SP
e-mail: adomenico@terra.com.br

 

 

Notas
1
-Tais personagens em seus respectivos territórios existenciais e máscaras encontram-se descritos em Dedomenico, 2009.
2
-touro-em-mim foi a personagem gerada a partir de um ato socionômico – Invasões bárbaras, realizado no Centro Cultural São Paulo, em abril de 2010. In: https://docs.google.com/View?docid=dfdc64x2_71g9hv6mdk
3 - Kafka foi a personagem protagônica do ato socionômico "Desconstruindo Kafka", dirigido no Centro Cultural São Paulo, em setembro de 2009. In: https://docs.google.com/View?docid=dfdc64x2_51gmmd7qgf

*
Psiquiatra - FMB/Unesp Psicodramatista-didata DPSedes