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Revista Brasileira de Psicodrama

On-line version ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.19 no.1 São Paulo  2011

 

DIÁLOGO ELETRÔNICO

Electronic dialogue

 

 

Sentimentos no Psicodrama

 

Feelings in psychodrama

 

 

Luís Falivene Alves*

Instituto de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo de Campinas, SP

Endereço para correspondência

 

 

Luis Falivene é um psicodramatista conhecido por sua abordagem sutil quando faz teoria e investiga as relações utilizando o psicodrama. O convite para o Diálogo surgiu em função do modo como foca o sentimento de maneira privilegiada, além de ser sempre um enorme prazer estar, de algum modo, com ele. O presente diálogo aconteceu via e-mails, entre outubro e novembro de 2010.

Editor: Resumidamente, qual o seu trajeto no psicodrama?

Falivene: Enquanto ainda fazia o internato e a residência médica no Hospital das Clínicas de São Paulo, participei de um curso de formação em psicoterapia no Instituto Sedes Sapientiae, sob coordenação da saudosa Madre Cristina. Por intermédio do professor Blay Neto, tive os primeiros contatos com a psicoterapia de grupo de base psicanalítica, seja como aluno seja como cliente. Confesso que essa abordagem não me conquistou e tinha várias críticas a ela. Durante o curso, Moreno e o psicodrama tinham sido apenas referidos entre outras vertentes de trabalhos grupais. Fui aprovado em um concurso na Prefeitura de Campinas, em que atendia a funcionários da mesma, e, para dar vazão à demanda existente, passei a constituir grupos de psicoterapia adotando um formato de condução que não seguia exatamente os parâmetros até então aprendidos. Busquei então uma formação que melhor complementasse o meu trabalho. Encontrei isso no psicodrama, na SOPSP, onde me formei. No ano seguinte, participei da fundação do IPPGC (1976) e, nesses quase trinta e cinco anos, tenho participado ativamente do mesmo, seja como professor supervisor ou em cargos diretivos, seja contribuindo para a ciência psicodramática com escritos para livros e revistas especializadas.

Editor: Qual a importância dos sentimentos no psicodrama?

Falivene: Há diferença entre emoções e sentimentos? Para muitos as emoções estariam na ordem de reações mais básicas, mais instantâneas, com duração proporcional à duração do estímulo, como componente físico importante. Raiva, medo, alegria, por exemplo, estariam nessa categoria. A ordem dos sentimentos já pressupõe uma sequência evolutiva e consequente à capacidade de introspecção e simbolização ao desenvolvimento da memória associativa e da imaginação. Medo, raiva e prazer podem perdurar além da situação desencadeante e serem acionados pela lembrança ou imaginação – transformam-se em sentimentos. Com o avançar da racionalidade, passa a haver uma integração maior entre emoção e sentimento, um desencadeando o outro, sendo quase concomitantes a ponto de serem indistinguíveis.

Somos seres primordialmente emocionais que se tornaram pensantes e, através da racionalidade, capazes de qualificar nossas emoções como sentimentos. Somos seres sentimentais. Como falar de vida relacional sem nos ater ao que é a essência da nossa existência? Por isso mesmo pode-se dizer que os sentimentos são a matéria-prima do psicodrama. Hoje, que já não admitimos a separação entre corpo e mente, entre razão e emoção, a famosa afirmativa de Descartes penso, logo existo" poderia assim ser formulada: ao pensar sobre o que sinto me percebo existindo; emocionome, tenho sentimentos, então existo.

O psicodrama, em suas várias modalidades, justifica-se como proposta de investigação/pesquisa do imaginário, de conflitos, do jogo de papéis, do desenvolvimento de personagens que permeiam a convivência humana, buscando pela espontaneidade possibilitar transformações criativas. Insere-se nas vivências da vida em busca do que é atuado, do que é sentido e percebido.

Ao propor a dramatização, a exposição cênica como seu método de ação prática, ele o faz exatamente para oferecer um contexto propício para entrarmos em contato com emoções e sentimentos.

Já na fase de aquecimento, vamos conduzindo a alguma conexão emocional. O relato de fatos, situações, lembranças, conflitos e dificuldades precisa ser dotado de uma carga emocional para que se faça representativo de uma pessoa ou de um grupo. A narrativa não deve ser só descritiva, há que se buscar a palavra dramática", a que expressa e promove sentimentos. O que é contado, para se fazer coletivo, deverá produzir impacto ou curiosidade, despertar choro ou riso, medo ou acolhimento. Emoções desencadeadas, sentimentos percebidos ou esboçados irão delineando o percurso do tema protagônico.

Ao integrarem o contexto dramático, os personagens atuantes estarão submetidos a provocações emocionais desencadeadas por intervenções do diretor, do egoauxiliar ou das interrelações que surgem no como se" estabelecido. A contínua ressonância da plateia garante a preservação do ponto de aquecimento para a manifestação de sentimentos, afiançando o estarmos caminhando por um fio condutor protagônico.

O compartilhar final só se faz possível se formos contagiados pelas emoções/sentimentos vivenciadas no palco dramático.

Editor: Existem sentimentos mais difíceis de serem acessados? O processo depende de um bom aquecimento? Ou de outros fatores?

Falivene: Sabemos que há pessoas que têm facilidade para rir, outras para chorar, há os que dizemos que riem à toa, outros que apelidamos de manteiga derretida". Conhecemos indivíduos que se irritam facilmente, sempre prontos para reclamar, discutir, agredir, e outros que parecem estar sempre de bem com a vida. Alguns com emoções à flor da pele ou, ao contrário, blindados a qualquer provocação externa. Existem os que se comovem com o sofrimento dos outros e há aqueles que se mostram indiferentes. Estou falando de reações emocionais, mas, como dissemos antes, passar à categoria de sentimento depende apenas da auto-observação que nomeia e decodifica o que se está sentindo.

Ter acesso aos nossos sentimentos tem a ver com múltiplas variáveis. Há culturas familiares, regionais, nacionais ou étnicas que valorizam em maior ou menor grau o deixar-se tomar por determinadas sensações. Já passou a ser um estereótipo afirmar que os latinos são mais emotivos e os asiáticos, mais frios.

Há famílias que prezam um comportamento chamado discreto, prioriza-se o silêncio, o sorriso em vez da risada, os olhos umedecidos em vez do choro soluçante. Outras são barulhentas na alegria e na tristeza. Pertencer a certa classe social também determinava (ou ainda determina) o comportamento emocional: como deve ser a conduta de uma pessoa educada? O que é ser elegante, fino, aristocrata ou ser moleque de rua, barraqueiro, gentinha, pobre? Há também toda uma influência da vulgarização de alguns conhecimentos do campo da saúde mental e psíquica que adjetiva certas expressões emocionais, utilizando-as para caracterizar uma pessoa como louca, histérica, drogada, psicopata, neurótica, fóbica, depressiva, contribuindo assim para uma vigilância maior daquilo que se pode exteriorizar.

Há também sentimentos que, por acionarem lembranças de momentos muito sofridos, encontrarão toda a barreira psíquica arquitetada para negar ou minimizar a recordação dolorosa.

Características pessoais, configurações predeterminadas pela genética também diferenciam indivíduos em mais ou menos sensíveis e mais ou menos expressivos.

Doenças físicas e patologias mentais podem ser responsáveis por bloqueios ou exageros sentimentais, exemplos facilmente encontrados na esquizofrenia ou nos transtornos bipolares. Medicações antipsicóticas costumam bloquear sentimentos, ao contrário de drogas estimulantes, que as exacerbam.

Em função do descrito acima, o que chamaremos de um bom aquecimento para se desencadear ou acessar determinado sentimento, deverá levar em conta todos esses fatores.

Uma pessoa que construiu seu personagem relacional com características de uma pessoa forte, responsável, cuidadora e sobrevivente de dificuldades passadas poderá colocar obstáculos ao entrar em contato com sentimentos de abandono, de solidão e à intensidade e repercussão das ausências vivenciadas. Seu lema: jamais chorar, jamais fraquejar. Nesses casos, o trabalho terapêutico deverá ser processual, desvendando status nascendi, lócus e matriz da construção dessa personagem possibilitando desfazer-se a imobilidade defensiva. Uma estratégia pode ser aquecê-la para emoções que dignifiquem seu personagem e o caracterizem como forte, por exemplo, indignar-se com uma tirania. Na dramatização propõe- se uma inversão com o personagem alvo da injustiça, pode-se fazer duplo e espelho do mesmo, possibilitando entrar em contato com os sentimentos do injustiçado, uma ponte, um aquecimento, para que ele mesmo possa contatar suas próprias vivências, lembranças e emoções.

Um paciente muito tímido poderá não explicitar o que se passa em seu íntimo, mas o corpo que se mostra retraído, uma ruborização ou palidez facial estarão a denotar uma emoção já presente e a necessidade de muitos duplos e espelhos para ser decodificada. Uma reaprendizagem, um guia de como abordar o seu interior.

Editor: Os sentimentos precisam de repercussão na plateia. E, mesmo na terapia individual, no diretor. Gostaria que falasse um pouco do caráter social dos sentimentos...

Falivene: Os sentimentos são a essência do ser humano, são o amálgama das relações humanas, surgem da convivência, são responsáveis pela aproximação e pelo afastamento entre as pessoas. Por isso mesmo, no artigo Grupo: lócus de saúde e de doença no homem", publicado nesta nossa revista em 2006 (vol.14, nº1, p.139), conceituei tele como um direcionamento emocional, concomitantemente experienciado por duas ou mais pessoas, orientado no sentido de estabelecer uma conexão relacional, que prevê e antecipa a possibilidade, propicia e permeia uma vivência espontâneo-criativa e a realização de um projeto dramático". Dissemos antes que os sentimentos constituem a representação decodificada das emoções. Diante de algo que produza uma resposta emocional, esta passa por um processamento intelectual que a associa a outros eventos de estimulação semelhante, desencadeando memórias, defesas e mecanismos resolutivos, que se estendem além do estímulo desencadeante, constituindo o que nomeamos sentimento. Os sentimentos são frutos das experiências vividas pela humanidade e, especialmente, por cada um. Acumulam uma historicidade. Aprende-se a sentir, aprende-se a lidar com sentimentos. Aprende-se, porque o meio que nos circunda é que fornece modelos, libera ou reprime, estimula ou desestimula a valorização do que se percebe em si mesmo e nos outros.

Uma criança que vive numa casa em que se escute muita música, com pais, parentes e amigos reunidos para cantar, dançar, compor, vai desenvolver um gosto artístico, uma sensibilidade especial aos acordes de uma melodia. Sentirá alegria ou tristeza, ou será remetido a recordações e fantasias, a inspirações ou transpirações. Uma criança que more em ambientes sem interação, em que a ênfase esteja na tarefa a ser cumprida, onde a existência resuma-se a trabalhar-cansar-descansar-trabalhar, terá um repertório pequeno de opções sentimentais. O silêncio ambiental, o vazio interior serão os refúgios para o seu repouso. Sobre o que sente saberá apenas responder: estou cansado" ou estou bem". Emoção? Sentimento?

Se os sentimentos forjam-se na vida social, será no âmbito das relações que eles mais serão despertados. Quando no plano do imaginário, a interação se fará com algo da nossa memória ou fantasia. Todos nós já experimentamos situações grupais em que nossas emoções e sentimentos potencializam-se. A multidão de um estádio de futebol, comemorações ou protestos em praça pública, carnavalescos atrás de um trio elétrico, grandes eventos religiosos são palcos para grandes extravasamentos, sejam de alegria, de fúria ou de fé. Melhor assistir no cinema a uma comédia ou filme de terror. Melhor todos gritando nas descidas bruscas de uma montanha russa. Melhor gritar gol no meio da torcida.

É conhecido o costume, ainda existente em alguns povoados, da presença das chamadas carpideiras em velórios. São mulheres, sem obrigatoriedade de ter vinculação com o morto, que choram alto, lamuriosa e continuamente, promovendo a estimulação dos sentimentos de perda nos parentes e conhecidos. A neurociência responsabiliza os neurônios-espelho por muitas das nossas reações de rir, bocejar, tossir, chorar diante da presença de alguém que apresente essas manifestações, consideradas iniciadores corporais, necessitando articulações com outros iniciadores emocionais ou ideativos para que desenvolvam ações mais elaboradas. Por exemplo, a ver meus olhos lacrimejarem diante de alguém que chora, precisarei entrar em contato com situações que esteja vivenciando ou que estejam registradas em minha memória para que esses olhos marejados possam ser a expressão de um sentimento. Quando isso não ocorre, se questionados, costumamos responder: "estou rindo por ver vocês dando risadas" ou é só ver alguém chorando que meus olhos ficam molhados". Se não se configurar negação ou defesa, trata-se de uma reação em espelho.

As atitudes de solidariedade ou de compaixão diante de sofrimentos alheios estão ligadas a valores humanos desenvolvidos nos processos educacionais e à nossa condição de corresponsabilidade e respeito social. Nós nos chocamos, nos mobilizamos diante das grandes tragédias ou dos sofrimentos daqueles que estão abandonados à própria sorte, estimulando o engajamento voluntário em muitas obras sociais.

No psicodrama, a identificação com as personagens dos dramas vivenciados assume fundamental importância. Eu e o outro, os outros e eu temos algo que nos assemelha, nos aproxima, nos possibilita entender e ser entendido, nos compreendermos. A sensação de sermos compreendidos autoriza, permite o estar aberto para as estimulações que a vida nos oferece, recepcionando-as como emoção e logo vivenciadas como sentimento.

O fenômeno protagônico acontece pelas interações dos movimentos emocionais que ocorrem entre integrantes de uma relação, seja dual, grupal ou de uma coletividade maior. Coconsciente e coinconsciente que se constituem e se desvelam num jogo de sentimentos. Um indivíduo, às vezes, uma comunidade faz-se representante de um todo maior e afirmase como protagonista em busca da transformação. Numa sessão de psicodrama, o comprometimento emocional do terapeuta e do grupo será a garantia da protagonização.

A ênfase na protagonização está justamente na premissa de que os sentimentos têm sua vinculação com o social e é nesse contexto que começa a se configurar o tema protagônico. Um sentimento nasce de uma vinculação social, aprendida, desenvolvida, valorizada ou criticada, permitida ou impedida, por isso mesmo demandando a presença de alguma plateia que o reafirme ou o transforme. Temos medo de que nossos sentimentos nos deixem desprotegidos, isolados ou destruídos. Precisamos de parcerias, companheiros em nossas transformações, só assim estará garantida a não exclusão, a sensação de adequação ao grupo de pertencimento. Mudamos juntos, daí a fundamental importância do compartilhar no psicodrama. Quando os demais participantes declaram que os sentimentos revelados pelo protagonista também são seus – sentimentos que se revelam sociais –, a transformação confirma-se no coletivo ali presente. O que se compartilha é a mudança alcançada. Se todos se modificam, não nos sentiremos isolados. Continuaremos pertencentes, sentimentalmente juntos.

Editor: Luís, agradeço especialmente a sua disponibilidade para a conversa. Tenho certeza de que o leitor terá bastante sobre o que pensar. Um grande abraço.

 

 

 

Endereço para correspondência
Rua Guilherme da Silva, 396
CEP 13025-070, Campinas - SP
e-mail: Falivenealves@uol.com.br

 

 

* Médico (USP), psiquiatra (ABP), psicodramatista (SOPSP e I. J. L. Moreno- Arg.), didata supervisor (Febrap, IPPGC/ UCG), professor supervisor no IPPGC