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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.19 no.2 São Paulo  2011

 

SEÇÃO TEMÁTICA: Psicodrama público: Por quê? Para quê?

Thematic section: Public Psychodrama: What for? Who for?

 

 

Psicodrama público: por quê? Para quê?

 

Public Psychodrama: What for? Who for?

 

 

Mariângela Pinto da Fonseca Wechsler*

Sociedade de Psicodrama de São Paulo - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para Correspondência

 

 


Resumo

Este artigo tem o objetivo de, por meio da apresentação de fragmentos de direções da autora no Centro Cultural São Paulo, tecer reflexões sobre o ato / processo vivido pelos frequentadores, apontando para as semelhanças e diferenças entre eles. Da perspectiva das semelhanças pontuam-se as aprendizagens que ambos propiciam para os usuários: aprendizagens de ordens singulares, relacionais, culturais, sociais, políticas, éticas e estéticas. Da perspectiva das diferenças entre ato e processo, pontua-se a necessidade dos diretores e gestores do projeto serem corresponsáveis pelos efeitos em curso, atualizando uma leitura articulada às respostas sobre o quê está em jogo, ou seja, a necessidade da demanda do momento, visada dentro do processo, o por quê trabalhar os sofrimentos identificados, o como manejá-los de uma perspectiva sociodramática e o para quê trabalhar a serviço da autonomia e conhecimentos emancipatórios da população, traduzindo a utopia moreniana, que aponta para os movimentos que levam às transformações sociais. Isto faz dolocus Centro Cultural São Paulo uma clínica sociopolítica. Nas considerações finais, é feita uma tessitura sobre a questão: Psicodrama, uma ciência ética? Responde-se, pelos vértices da crítica, à uma razão instrumental, e pela necessidade de se devolver ao senso comum o que partiu dele para se formular uma ciência.

Palavras-chave: Psicodrama público; ato e processo; clínica sociopolítica; ciência ética.


Abstract

Through presenting fragments of the author's directing work at the São Paulo Cultural Centre, this paper aims to reflect on the experiences of those attending these events, pointing out the similarities and differences between one-off acts and process. In terms of the similarities it shows that learning is offered to participants of both one-off acts and the process: learning on the individual, relational, cultural, social, political, ethical and aesthetical level. In terms of the differences between act and process, the paper points out that there is a need for both directors and users of this project to be co-responsible for the impact of this work, eliciting their inter-connected understanding of what is being worked with (the demand of the moment within the process), why to work with the identified issues, how to manage these in a sociodramatic manner, and whom does the autonomy and emancipatory knowledge serve, when we implement Moreno's utopian ideas that lead to social transformation. All this turns thelocus, the São Paulo Cultural Centre, into a socio-political clinic. In the final considerations the author reflects on whether psychodrama can be considered an ethical science? Through a critical approach to instrumental reasoning, she argues for the need to return to common sense, what used to be at the starting point of science.

Keywords: Public psychodrama; what, why, how and for whom; one-off act and process; socio-political clinic; ethical science


 

Era uma vez um homem que amava caixas...o homem tinha dificuldades
de dizer ao filho que o amava...então com suas caixas ele começou
a construir coisas para seu filho...a maioria das pessoas achava que o
homem era muito estranho...mas nada disso preocupava o homem
porque ele sabia que tinham encontrado uma maneira especial de
compartilharem...o amor de um pelo outro.

Stephen Michael King

1. Introdução

Quando reflito sobre este tema - Psicodrama público: por quê? para quê? me vêm à mente a justificativa e a finalidade do projeto Psicodramas Públicos no Centro Cultural São Paulo, em desenvolvimento desde 2003, quase 8 anos de experiência com a população que lá se encontra todos os sábados, das 10:30hs às 13:00hs. Ora, que conexões existem entre POR QUÊ e justificativa e entre PARA QUÊ e finalidade?

Do ponto de vista construtivista piagetiano, a construção de conhecimento é articulada pelas respostas às perguntas O QUÊ, POR QUÊ, COMO e PARA QUÊ, e estas podem ser compreendidas pelos eixos estrutural e funcional que regulam a espiral majorante do conhecimento - aqui conhecimento é compreendido por conhecimento sobre si e sobre o mundo ao redor, nas perspectivas socioafetiva e cognitiva, o qual se processa por intermédio de ações, ações interiorizadas e coordenações das ações interiorizadas. Assim, se o conhecimento se organiza por intermédio desta articulação entre estrutura e função, podemos pensar que um acontecimento relacional também se organize, pelo sujeito, seguindo a mesma teleonomia e teleologia e, então, as respostas ao O QUÊ podem desenhar os objetivos de uma determinada ação, as respostas ao POR QUÊ, a sua justificativa, sinalizando o eixo estrutural, assim como as respostas ao COMO podem desenhar os métodos, o caminho, o modus operandi da ação, e as respostas ao PARA QUÊ a sua finalidade, pontuando o eixo funcional.

Aqui a finalidade é compreendida pela perspectiva biológica do conhecimento: o para quê define-se pela possibilidade que a adaptação biológica assumiu na escala evolutiva - o Homem portador da inteligência, a qual se organiza na relação constante com o meio, desenhando formas e padrões de relação numa direção majorante.

Dessa maneira, estrutura e função são os dois eixos que fundamentam uma ação, de uma perspectiva construtivista e existem com tal articulação que não sobrevivem uma sem a outra, como os dois lados de uma mesma moeda: uma estrutura pede atualização, por intermédio de ações e a funcionalidade das ações retroalimenta a estrutura e /ou transforma-a. Dessa forma, os conhecimentos, derivados de ações, ações interiorizadas, ações coordenadas instauram-se, cristalizam-se, transformam-se. Uma ação tem objetivos e justificativa que podem ser retroalimentados pelos métodos utilizados e pela finalidade, mas também, ao mesmo tempo, transformando-se os caminhos de execução da ação e suas finalidades, pode-se modificar os próprios objetivos e justificativa da ação. A tomada de consciência sobre as ações, quer da perspectiva individual, quer da grupal, a qual envolve, sobretudo, o trabalho de tornar coconsciente o que é da ordem do coinconsciente, nos quatro vértices articulados, é, do meu ponto de vista, a morada das transformações. Este ponto de vista é nomeado de genético, ou seja, aquele que se preocupa com a gênese dos acontecimentos, fruto da epistemologia genética.

Estudando um pouco a história da Filosofia, podemos dizer que mesmo Spinosa já mostrava em seu pensamento uma concepção construtivista, dramática, em que a causa explicativa do Ente (estrutura na qual existe um sujeito e sua ação que o qualifica) e do objeto tinha a ver com a constituição interna dos mesmos, definindo tanto o ser como ação tomada em si mesmo como a "coisa" pelo fazer, pelo seu modo de produção, instaurando, assim, singularidades. Embora tenha sido visto como racionalista, cartesiano, criticado por Hegel, ao ser um representante do pensamento racional que apontava para um universo homogênio e universal, sem tempo e sem espaço, onde a transcendência (causa de fora) tinha lugar e não a imanência (causa de dentro), onde a Identidade tinha a ver com um UNO único e geral e não com as multiplicidades, as singularidades, foi considerado um eleata, qualidade atribuída aos seguidores de Parmênides, que viam o mundo desta perspectiva1.

Dessa maneira, para Spinosa, as respostas ao o quê estavam diretamente articuladas ao como, e o por quê saía da esfera dos atributos externos, passando a ser sincrônico com o conteúdo das ações. No entanto, para o autor (Spinosa) o para quê não fazia sentido, pois para ele a natureza não tinha finalidade última. Apesar disto, a concepção genética já podia ser identificada no pensamento deste pensador, que considerava o Universo múltiplo e não Uno, como criticava Hegel: Nas palavras de Rezende (2010): "Não é, pois, a"separação" mas a interdependência e a complementaridade entre o "ser e o parecer, a ideia e a matéria, o fundo e a forma, o interior e o exterior" que a definição espinosana do círculo se prestaria a metaforizar" (p. 14).

Será neste caldo de ideias e conceitos que refletirei sobre o Psicodrama público no Centro Cultural São Paulo, projeto tão caro a mim e a todos que estão envolvidos, trazendo fragmentos de direções que realizei como disparadores destas discussões.

Revisitando o início do processo destes trabalhos no Centro Cultural e a brochura que fizemos em 2007, tendo a afirmar que os objetivos e a justificativa das ações que engendram os trabalhos e, portanto as respostas ao O QUÊ e ao POR QUÊ foram transformando-se ao longo do tempo, à medida que os métodos e finalidade - respostas ao COMO e PARA QUÊ das ações também mostraram um alargamento de campo. Embora num sentido amplo, os objetivos e justificativa, assim como o caminho para sua atualização e finalidades podem parecer os mesmos, pois sempre pensamos grande, tendendo às antecipações e vislumbrando um futuro; uma reflexão mais fina e detalhada poderá sempre ser feita, perseguindo a lógica do próprio processo e suas transformações.

Assim, poderemos referendar que nossos objetivos sempre tenderam à possibilidade de podermos oferecer, por um lado, umlocus fértil para a saúde coletiva, justificado pelo fato de o paradigma dominante de saúde ser galgado no individualismo e na separatividade das classes sociais, por outro, um espaço de resistência cultural que permita a convivência em oposição ao isolamento, ambos compatíveis com uma postura desalienada e desalienante. Assim, os métodos socionômicos, fundando a corresponsabilidade e a implicação no grupo, junto com a finalidade dos trabalhos, que atualizam uma função social, os cidadãos pensantes e críticos, quer na esfera dos diretores de grupo, quer na dos sujeitos que lá interagem, retroalimentaram nossos tão caros objetivos e justificativas.

No entanto, ao longo destes quase oito anos, pudemos perceber que os objetivos do processo instituído foram se transformando, embora sempre educativos, sociointegrativos, culturais e políticos, assim como sua justificativa, uma vez que o novo paradigma de saúde já estava sendo assimilado e transformado pelo grupo, um processo que é objeto de pesquisa, com uma natureza ideológica e política. Assim, à medida que muitos caminhos puderam ser trilhados aos sábados de manhã, alargando o campo metodológico e dando mais vozes aos sujeitos, os objetivos e justificativas foram também se desdobrando: de um processo que se pretendia um foco mais em atos, com objetivos quer educativo, quer terapêutico, passou a ter foco maior no processo vivido como educativo/psicoterápico para um subgrupo. De uma justificativa alicerçada num paradigma de saúde em que o foco era o individualismo, passou para a experiência de um paradigma no qual o foco precisou ser o aprendizado com o diferente, com o outro singular e a consequente tolerância. Já vislumbrávamos, antecipávamos, mas a reflexão leva-nos a uma constatação. Assim como desdobramentos outros: filhote deste projeto em Campinas, todas as primeiras quintas-feiras do mês. Alargamento de função, diferenciação estrutural, ou seja, reorganizações vividas pelos sujeitos por intermédio das respostas (ações) geradas pelos diferentes métodos, cumprindo a finalidade de seres pensantes, cidadãos e corresponsáveis levaram à diferenciação nos objetivos e justificativas.

Dessa maneira, na tentativa de desconstruir a primazia das perguntas Por quê e Para quê Psicodrama público, recolocando a necessidade do movimento entre as perguntas O quê, Por quê, Como e Para quê Psicodrama público, este artigo tem o objetivo de, por meio da apresentação de fragmentos de direções minhas no Centro Cultural São Paulo, tecer reflexões sobre o ato/processo vivido pelos frequentadores, apontando as diferenças e semelhanças entre eles, e respondendo, até onde conseguir alcançar, às perguntas articuladas: O quê, Por quê, Como e Para quê Psicodrama público. Nas considerações finais, tecerei sobre a questão Psicodrama, uma ciência ética?

 

II-Fragmentos de algumas direções

1) Direção: 07 de outubro de 2006 - Jornal Vivo: Desafios, Brasil Novo

Havia passado uma semana do primeiro turno das Eleições e deu segundo turno...o que será que as pessoas pensam a este respeito, o que será que querem para nosso Brasil?Será este o tema que os frequentadores dos psicodramas públicos do Centro Cultural irão escolher para trabalhar? Estes eram os pensamentos que me acompanhavam durante a semana que precedeu o sábado, dia 07/10...Então, resolvi propor um Jornal Vivo, método por excelência sociodramático, em que as pessoas poderiam decidir a notícia que desejariam trabalhar, cocriando seu enredo e dramas....

...

Convidei-os para o palco, onde iniciamos um aquecimento inespecífico : ao mesmo tempo que íamos nos apresentando como grupo, íamos contando notícias dos subgrupos formados. Dessa maneira, montamos subgrupos dos que estavam pela primeira vez no Centro Cultural, dando notícias do que esperavam... uma estudante de Psicologia diz que foi recomendada para vir e que queria aprender com o trabalho; o subgrupo de pessoas que já eram frequentadores dos Psicodramas Públicos, aos sábados, no Centro Cultural (maior número) conta notícias de que este lugar é das pessoas que frequentam...que lá podem discutir o que querem...; ... ...; outros subgrupos: quem votou em quem para Presidente?.. Nesse momento, os diálogos "pegaram fogo", todos queriam falar, dar sua opinião...e a diretora precisou cortar a palavra de um dos componentes do subgrupo que votou no Lula, pois intuiu que este tema poderia ser o protagônico e que teriam espaço suficiente no momento posterior, mas, ao colocar limites criou um clima de descontentamento, fazendo reagir o sujeito "barrado", o qual denuncia o ocorrido: aqui no Centro Cultural a gente pode falar, você não pode me impedir...a diretora, recoloca que ele ficou chateado com aquele limite e que teria outro momento de expressão...então, pergunta para o grupo sobre outros critérios de formação de subgrupos e um dos elementos da roda propõe o que se quer do Centro Cultural. Daí seguiram as notícias ...um lugar onde se possa lidar com as diferenças...onde se tenha liberdade de expressão... onde vários poderes possam coexistir...onde possam existir competição, destrutividade, cooperação, construtividade...

A cena protagônica: trouxe um conflito em torno dos personagens Presidente Lula e mídia, em que a trama desenhada foi uma mídia que atacava cada fala do presidente aos seus ministros e ao povo (representado pelo aluno e professor). O Presidente chamou para uma reunião os Ministros da Cultura e Justiça e o Ministro da Defesa também apareceu, condenando os pilotos americanos do Legacy que bateram contra o boing da Gol e mataram 150 brasileiros...Presidente fala da importância da cultura neste país, lugares como o Centro Cultural Vergueiro....O Presidente diz que precisa abrir seu gabinete para falar com aqueles que representam o povo - o aluno e o professor.A mídia entra e extra, extra, Presidente convoca reunião urgente neste momento que sabe que vai perder no 2º. turno...fica fazendo lobby com o povo porque sabe que vai perder... A diretora abriu espaço para múltiplas falas da plateia, no papel dos personagens, os quais puderam engrossar o caldo de subjetividades presentes. Falas a favor do Presidente: deve ser muito difícil governar este país com toda essa herança de corrupção... esperam que eu seja um Deus... e falas contra sua gestão e pessoa: ele só bebe, fala palavrão, vai viajar e não tem formação... Falas a favor da mídia: é isto mesmo, seu presidente, para de fazer média... com o povo... Falas contra a mídia: é preciso ter uma mídia não tendenciosa, que passe informações e não deforme... No final, a diretora pede para que cada personagem da cena se interiorize e constate o que está pensando/sentindo e fechamos com uma imagem, na verdade uma imagem em movimento: 1o movimento: os personagens em cena se dividiram entre o "Comando presidencial e sua comitiva" X povo, sendo que o Ministro de Justiça fazia uma banana com o braço e o 2o movimento exibia uma imagem de interação amistosa entre a "cúpula" e o povo.

Compartilhar: falas: reflexivo, vou sair daqui melhor do que entrei.. acho que está difícil esta eleição...estou me convencendo que está bem dividido esta eleição para o 2º. turno...vamos ver o que vai dar, não ficarei surpreso...mas vou brigar para obter boas informações...ah, que bom ter este espaço para debater...e conhecer... A moça que, durante o aquecimento, contara que estava lá pela primeira vez e que viera recomendada pela faculdade de Psicologia diz : aprendi que aqui a gente vive e sente o que se pensa...

 

2) Direção: 30 maio 2009 - Jornal Vivo : Sociedade à beira do suicídio: Existe vida após o trabalho ?

...

Pergunta para C (aqui definido como o emergente grupal), para contar um pouco sobre a manchete...e qual o personagem que iniciaria a cena...

C: diz que a manchete, para ele, dizia de uma cena vivida com um participante dos trabalhos no Centro Cultural...que ele havia lhe mandado um e-mail se despedindo...

Dir: então você fará este personagem que está enviando um e-mail se despedindo da vida...Ok? Me conta onde você está...Como é o seu nome?

P: Pedro... estou no meu quarto...sentado na cadeira do computador, aqui atrás dessa mesinha...

Dir: então, coloca o computador, a mesinha, onde está a cama... a janela... sente-se na cadeira e escreva o e-mail...

P: é para os meus amigos...

Dir: escolhe os amigos...

P: (chama algumas pessoas da plateia e a diretora pede para sentar-se um pouco afastado da cena do quarto)... serão Luciana e Zé

P: Pedro retoma e diz que está no quarto pequeno, tem pouca luz...

Dir: pede para alguém ser esta janela com pouca luz...vem alguém da plateia...pede para ficar no cenário...retoma com Pedro e pede para ele pensar alto (solilóquio)

P: é 2ª. feira, estou ficando louco...fico pensando na garota que escolhi entre duas e ela me deu o fora...tenho muito trabalho na empresa ...até aos sábados, mais de 12 horas...não aguento mais...

Dir: Muita pressão, né...mas quem são as garotas?

P: Uma é jovial, idealista, revoltada contra o sistema...a Fabiana...outra é separada, tem 2 filhos, trabalha muito, quer ser alguém, tá indo bem na empresa, trabalhamos juntos...a Lúcia

Dir: Chama dois egos-auxiliares para serem Fabiana e Lúcia, pede para Pedro conversar com elas, uma de cada vez... Pede ainda que Pedro tome o papel de Lúcia e converse com o Pedro.

P. como Lúcia: você é fraco...estamos trabalhando juntos, você já tem 35 anos, tem que tomar decisão na sua vida, ter pé no chão...ter segurança...o que eu quero de você é a coragem...

Dir: agora tome o papel de Fabiana e converse com o Pedro:

P. como Fabiana: eu quero essa sua disposição, vigor, revolta contra o sistema...admiro isso...

Dir. pede para inverter os papéis e Pedro escutar das garotas.

Fabiana para Pedro: acho que este vigor, idealismo tem que vir de dentro de você..não espere de mim...

Lúcia para Pedro: você que tem que ter essa coragem...você é fraco...

P: não tenho essa vontade, nem coragem, nem idealismo...prefiro ficar no escuro...

Dir. pede para o personagem "janela com pouca luz" se manifestar:

Janela com pouco luz: ressoa uma cantiga: que luz é essa que vem lá do céu...

P: escuto mas não penetra...me irrita...

Dir: está tudo escuro mesmo...não entra luz, né...parece que está anestesiado... é preciso conversar com esta escuridão que te habita, essa vozes internas que te exigem coragem e idealismo e que você se sente fraco para enfrentá-las, o que acha?

Pede para Pedro escolher alguém para ser ele - vem alguém da plateia - e convida Pedro para ser estas personagens (vozes) internas - idealismo e coragem para enfrentar a realidade - instruindo que mostre o que as personagens fazem com o Pedro, corporalmente.

Pedro no lugar das personagens: pressiona Pedro (ego-auxiliar da plateia) corporalmente e fala o que tem que fazer... Pedro começa a sentir-se fraco, pequeno... e dir. pede para inverter os papéis...Pedro no seu próprio lugar experimenta os sentimentos diante do bombardeio de suas personagens internas e dir. pede para que a plateia vá nomeando, no lugar de Pedro, quais os sentimentos despertados: medo, solidão, tristeza, raiva. Pedro confirma... dir. pergunta, então, que personagens da sua história isto lembra...

P: traz seus pais repressores - Stela e João - e dir. pede para ele escolher seu pai e sua mãe. P: chama da plateia uma mãe (um homem) e esta pessoa se recusa e, então, outra disponibiliza-se...chama um pai, também, o qual aceita.

No palco, dir. pede a estes pais falarem com Pedro, espontaneamente...

Pai para P: ... já tem 35 anos e está sem dinheiro...eu na sua idade já era casado com uma oriental...e tinha família...

Mãe: Você não casou...fica andando com essas mulherzinhas...onde já se viu...com 35 anos...e sem dinheiro...

Pedro fica paralisado, sem reação... dir. pede para as antigas personagens - idealismo e coragem para enfrentar a realidade , as vozes - poderem ajudar Pedro para ele poder ter o enfrentamento com seus pais que não acolhem e o "castram".....como seria possível você ser habitado por personagens que te ajudem, que sejam colaborativas e não exigentes/ repressoras? Vamos tentar aqui?

A plateia se mobiliza e sobem ao palco algumas pessoas para criar uma "cama flutuante", mas segura, com o entrelaçamento das mãos e braços, personificando um outro contrato interno com as personagens internas de Pedro: agora idealismo e coragem para enfrentar a realidade se mostram colaborativas com Pedro e não mais exigentes e coercitivas... Pedro experimenta se jogar nesta "cama flutuante e acolhedora", um útero materno que embala, acolhe (maternagem) e, ao mesmo tempo, dá coragem para o enfrentamento da realidade, dos limites (paternagem). O movimento continua e a cantiga da janela sem luz agora se espalha e ressoa no ambiente, entoada por todos: que luz é essa que vem lá do céu...

A diretora pede que Pedro experimente esta sensação corporal, os sentimentos que ela desperta...e pontua que com este novo contrato interno ele vai de-va-ga-ri-nho sair desta cena e registrar isto tudo na sua alma... para continuarmos...

Pedro se despede e as personagens que cocriaram este novo acolhimento e limites, nesta realidade suplementar, também desfazem a cena. A diretora pede, então, para Pedro chamar, novamente, seus pais - Stela e João.

Pedro enfrenta os pais de outra maneira:

P: Eu sei, pai, que eu voltei do Japão e que agora preciso de você para morar na sua casa por um tempo...até eu arrumar trabalho...

Pai: Tudo bem...mas você precisa ajudar lá no meu negócio...na padaria... não dá para folgar...você já é um homem, tem 35 anos, não dá pra te sustentar sempre...(aqui a forma do pai falar já estava mais branda... menos castradora).

Outras falas e posturas de pai aparecem...eu sou duro com você porque acho que isto vai te fazer bem...eu até queria te abraçar, mas não consigo...um movimento tímido de tentativa de aproximação corporal, mas um recuo.

P: ...mas eu quero um abraço...

Falas da plateia: amor acima de tudo...

P: Mãe, vou ficar pouco tempo, ainda tenho aquele quarto...

Mãe: Ok, filho, mas você precisa seguir em frente...precisa ajudar seu pai na padaria...Pai, você não está vendo que seu filho está diferente... (uma tentativa de acolhimento).

Outras falas de mãe: é preciso aceitar as pessoas...

A diretora pede para que Pedro volte ao quarto escuro, sente na sua cadeira em frente ao computador e escreva um e-mail para os amigos...

P: ...estou melhor, me sinto mais acolhido, por mim mesmo... me sinto mais forte...

Amigos (subiram ao palco mais pessoas da plateia para fazer este papel de amigo): que alívio...estávamos preocupados com você...nossa, Pedro, que bom receber seu e-mail, estava muito preocupada...mas vejo que está melhor e mais forte...Ok,amigo...eu moro só, se você quiser morar comigo pode...até uns 3 meses...

A diretora fecha a cena e pede para que todos guardem o que foi cocriado dentro de si...a história viva que apareceu na 1ª página do nosso Jornal Vivo do Centro Cultural no dia 30 de maio de 2009... todos espontaneamente batem palmas...a Dir. chama para o compartilhar no contexto grupal.

Compartilhar:

Foi intenso... e se iniciou com a pessoa que viveu a personagem Pedro: fico refletindo sobre o meu potencial..me perguntei se a voz é de cobrança... acho que tenho muito desta personagem...foi difícil, mas fiquei reflexivo... outras falas: o Pedro que me habitou também nos habita, me habita e como é importante escutar e aprender a cuidar deste Pedro frágil, refazendo os nossos contratos internos..;o papel que vivi me angustiou, foi difícil viver os dois Pedros: o frágil e o agressor...;todos que têm o pedaço do Pedro podem lembrar da luz... eu nunca havia vivenciado a escuridão... se alguém falar que me viu no palco é mentira... (a pessoa que fez a janela sem luz); quando fui chamada para ser mãe resisti... minha mãe é muito castradora..não queria fazer esta mãe castradora...cruel, tentei ser neutra... fui mais sensível e tentei sensibilizar o pai.. .é importante salvar nossa criança...; não volta para o Japão não... o Brasil é muito bom...: pensei que o idealismo era idealização... a gente se espelha em outros, como encontrar este idealismo dentro de mim..; me vi na cena.... e conseguir recontratar comigo mesmo é importante... mas percebo que, pra mim, é aceitar que aquele abraço com o pai eu não ia receber..; vi que se jogar naquela caminha acolhedora levou ao conforto...; o silêncio também fala... não é fácil deparar-se com essa manchete... essa solidão, tristeza... essa luta interna...; que trabalho lidar com nossas emoções, reconhecer os sentimentos ... estou mais feliz agora do que entrei...

Palavras finais: reflexivo, leve, forte, satisfeito, com mais valores, contente de poder olhar paras o outro, denso, clareza, esperança, fortalecido.

 

3) Direção: 19 março 2011 - Jornal Vivo "adaptado"

Chegamos ao Centro Cultural um pouco antes das 10:00hs daquela manhã de sábado nublado e fomos tomar um café num bar, perto do Centro Cultural, quando na TV o noticiário continuava falando dos massacres de Kadafi, do desastre nuclear no Japão, das mortes por causa tsunami, da visita de Barack Obama, do cotidiano que retrata nosso mundo... Isto referendou minha intencionalidade2 perante minha direção: precisava, sim, trazer estas cenas para dentro do palco e desenhar suas ressonâncias. ...

Pesquisei os subgrupos que vem ao Centro Cultural mais que 2 vezes ao mês - subgrupo dos assíduos; subgrupo dos casuais e os que vieram pela primeira vez (maior grupo). Pedi para os subgrupos dos assíduos e dos casuais apresentarem o que vêm fazer no Centro Cultural de forma analógica, por uma imagem, onde cada um poderia se apresentar na frente do seu subgrupo e, a partir daí, seu subgrupo, enquanto um "coro grego", repetiria o movimento, a imagem feita. O subgrupo da primeira vez cumpriu a tarefa de ressoar, nomeando, o que haviam capturado da conversa: o que aquelas pessoas vêm fazer aqui? Que projeto é este? E puderam ser referendados pelos grupos de origem. As ressonâncias a partir do subgrupo dos assíduos foram: Cuidar e pensar; abraçar e cumprimentar; trocar, tirar coisas da cabeça e pulsar o coração; pular, pôr prá fora; chorar e sorrir; olhar bloqueado e abrir o olhar - com binóculo. As ressonâncias a partir do subgrupo dos pouco frequentadores - casuais- foram: enxergar diferente, tirar máscaras, novas amizades, se abrir mais, externar emoções, ligação mente e corpo, desbloqueio (surdez), dá um medo do desconhecido, desenvolver percepções, perder preconceitos, reconhecer, pertencer. ...

A direção trouxe cinco notícias(1, 3, 4, 5, 6) e o grupo construiu mais quatro (2,7,8,9) Assim, 9 cenas foram apresentadas, na seguinte ordem:

1. Obama: B. Obama de costa, em silêncio, para o povo brasileiro. Algumas falas do povo: Só vai falar para quem é importante...

2. Aumento da tarifa do ônibus em Sampa: Um ônibus muito cheio com as pessoas apertadas e reclamando... um cobrador que não permitia a um passageiro passar sem pagar, mas este alegava que não tinha dinheiro... algumas pessoas querem pagar para ele e ele se sente humilhado, revoltado, pois diz que não quer aceitar gorjeta... Diretora congela e pergunta o que fazer? Ele diz que o jeito é roubar, então... já que não tem trabalho... Alguém sugere fazer um abaixo-assinado, fazer rede - um dia R$0,30, 5 dias R$1,50, 10 dias R$ 3,00. Um assaltante entra e tenta roubar os passageiros, enquanto há um vendedor de doces dentro do ônibus...

3. Tsunami - grupo 1: Um casal de namorado in love e de repente começam a brigar e rompem. O moço reflete que está sozinho, poderia ter valorizado mais quando estava junto com a namorada, ter sido menos apegado às coisas materias..."como tudo é relativo"...vem o arrependimento, tristeza, raiva, reconhecimento da intolerância, vulnerabilidade e amadurecimento. Dir. propõe uma 2a chance após a reflexão e há um diálogo em cena para reconciliação, onde a tônica foi - perdas podem transformar, e o carinho, preservar .

4. Tsunami - Grupo 2: todos caídos no chão em volta de uma pessoa aparentemente morta/desmaiada. Dir. pergunta: que luto é este? Muita tristeza...quem são vocês? Somos a união, a solidariedade, os sobreviventes e vamos reconstruir. O que queremos reconstruir aqui hoje no C.Cultural? Dignidade, respeitar e ser respeitado, direitos, atitude de dizer o que penso, aceitar os limites físicos, reconstrução de projetos sociais, recuperar perdas de amigos, tolerância, amor ao próximo, resgatar princípios e valores, ética, gostar mais de mim, amor entre.

5. Ditadores: Pai ditador e violento discute com o filho, e o pai pergunta por que o filho anda faltando à escola? Inicia um xingamento do pai e o filho balbucia: se "ele não me alimentasse, tomaria o poder...". Em seguida, uma nova cena, onde um chefe também ditador grita com seus funcionários: por que não trabalham, seus imbecis? Aparece o personagem Hitler e, com seu gesto de levantar a mão, faz todos os presentes o cumprimentarem com Hi, Hitler!... entoando: agora vamos mudar o poder, é meu o poder... o poder do povo...você limpa o chão, você limpa a roupa..., continuando a dar ordens aos oprimidos e fracos: Calem a boca, eu sou o líder...cadê o poder? Que poder? Poder/Foder? Há um silêncio em todo C. Cultural quando este personagem aparece com sua intensa dramaturgia, arrebatando a todos. A dir. deixa as cenas fluírem e depois fala alto o que pensa: parece que não tem jeito, todos que entram no poder é pra foder... vamos ver a cena do pai/filho novamente? Será que tem alguma chance de transformação? Pai e filho voltam ao cenário e o pai mais velho quer ter um diálogo com o filho, o qual não corresponde. Dir. pede inversão de papel e o pai, no lugar do filho, experimenta a história daquele filho sempre oprimido pela violência... quando retoma ao seu papel de pai, fala: desculpe-me filho, eu fui muito mandão, violento com você..tudo foi minha culpa... O filho responde que não adianta ele querer refazer agora, como numa mágica, o que não se preocupou durante a vida toda...a dir. fala como o filho: tenho muita raiva de você... agora, se quiser reconstruir, precisa reconhecer meu tempo, meus vazios e não continuar ditando as ordens...mesmo que sejam amorosas e de perdão... o filho concorda e o pai aceita.

6. A questão nuclear e a indiferença mundial: um líder com o detector de energia nuclear passa-o no corpo das pessoas e faz surgirem duas filas: as que estão contaminadas e as que não estão. A falta de critério é explícita e a hipocrisia humana prevalece, com interesses sutis. A dir. dá visibilidade para o implícito: impotência, indiferença, perda de valores, consentimento.

7. Muita solidariedade: um grupo, embaixo de muita chuva, e uma pessoa com um único guarda-chuva. Aparecem muitos guarda-chuvas e um táxi, que faz 2 viagens. A solidariedade contagia, aos poucos.

8. Escândalo da deputada: uma funcionária pública e sua assistente conversam e a funcionária exige que a assessora dê propinas "por fora" numa reunião para contribuir com as eleições. Ela não vai à reunião, ficando indignada e frustrada com o pedido.

9. Fechamento do Belas Artes: Um personagem representando a especulação imobiliária anuncia o aluguel do prédio do Cine Belas Artes para várias lojas. Um grupo dos adeptos do Cinema argumenta que é uma mercantilização da cultura e que o dinheiro vale mais que a mesma, pedindo apoio à população. Um "bate-boca" se instaura, uns contra, outros a favor, alguns argumentos: poderíamos pedir apoio para construírem bons cinemas na periferia... aí sim, seria uma cultura para o povo, e outros argumentos contrários: o Belas Artes era um cinema para o povo..., e a dir. pede para ver a cena pela última vez, posto que a vida continua e as crianças que estavam no Centro Cultural estavam no palco jogando aviãozinho e brincando, representando a vida que continua...: "ver o fim é como perder um filho, já vi esta cena..causa muita indignação, é um descaso, um conformismo." Outros do grupo saíram da cena original e entraram na cena com as crianças, podendo viver as alegrias possíveis.

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Já estávamos atrasados, mas, mesmo assim, as pessoas compartilharam algumas situações: Foi muito forte a ressonância do ditador Hitler em mim, eu vi como o poder é forte e dá energia.... Foi muito terapêutico eu ter visto a recriação em cena da relação entre o pai e filho, e ver que os vazios e cicatrizes ficam e que não adianta somente uma desculpa...mas o tempo e a consciência da história deles vai ajudando...o trabalho foi muito intenso, saio daqui mais confiante nos rumos que poderemos tomar...

A diretora agradece a todos e fecha o trabalho, compartilhando que muitas cenas com seus dramas e tramas apareceram, junto com algumas possibilidades de resolutividade, pois pudemos dar visibilidade para os ditadores, os tsunamis, os desastres da hipocrisia que nos habitam, os valores que queremos escolher para conviver e para algumas possibilidades de transformação, assim como para algumas alegrias que a vida nos proporciona - a vida continua...!

 

III- Reflexões a partir da prática

Estes fragmentos foram escolhidos por uma dupla perspectiva: primeiro, por serem representantes de psicodramas públicos, que marcam um largo tempo de Kronos: de 2006 a 2011; segundo, por darem visibilidade à pergunta: quais os objetivos coconstruídos pelos encontros representados por estes fragmentos? Foco no ato, com desdobramentos educacionais, culturais, terapêuticos? Foco no processo educacional/psicoterápico para um subgrupo? Quais as justificativas para tais ações grupais? Quais os métodos vivenciados? Qual a finalidade?

Os fragmentos das três direções apresentadas nos contam de uma tendência à visibilidade para datas, situações específicas do cotidiano vividas no momento das direções que falam das subjetividades que envolvem nossa cidade, o Brasil, o mundo e também daquelas que envolvem as tramas e dramas coconstruídos pelo subgrupo que vive os trabalhos como um processo.

Estamos falando de um foco em ato e processo, quer educacional, quer cultural, à medida que os fragmentos aqui recortados possibilitaram aos frequentadores casuais e assíduos debaterem sobre os temas transversais à educação formal, podendo dar vozes ao que pensam, percebem, sentem, intuem, saindo com indagações sobre si e sobre os acontecimentos. Se o objetivo, o o quê aponta para um foco educacional/cultural em ato ou processo, a justificativa, o por quê aponta para a necessidade de a população ter um espaço de pertencimento onde opera o grupo e não mais o individualismo e a separatividade de classes, assim como um espaço de resistência cultural que permita a convivência em oposição ao isolamento. Mas, ao mesmo tempo, para os frequentadores ditos assíduos vemos um processo psicoterápico em curso - por exemplo, nas falas da primeira direção aqui recortada: ... este lugar é das pessoas que frequentam... podem discutir o que querem... aqui no Centro Cultural a gente pode falar, você não pode me impedir... ...um lugar em que se pode lidar com as diferenças... em que se tenha liberdade de expressão... em que vários poderes podem coexistir... em que podem existir competição, destrutividade, cooperação, construtividade... Aqui percebe-se que o objetivo (o quê) tende a ser aquele que aponta para a necessidade de vivências de pertencimento, de apropriação de um ocus suficientemente generoso que permita a expressão das diferentes matizes de sentimentos humanos. Ora, uma reprodução dolocus psicoterápico, onde a generosidade e limites são fundantes? Que tal, ainda, uma reprodução de umlocus fértil de aprendizagem? Será que não podíamos pensar que o locus psicoterápico é um setting seguro para dar conta de aprendizagens que não puderam ser feitas ao longo dos vários loci institucionais que a vida propõe: família, escola, outras instituições sociais? Ora, a justificativa - nosso por quê - mora na constatação da falta de dispositivos sociais/institucionais que dêem conta dessa necessidade da demanda. Aí o espaço/ tempo do/no Centro Cultural acaba sendo vivido como uma clínica sociopolítica3, onde o problema do coletivo, como diz Jean Oury (2009) precisa ser compreendido na bifurcação da própria noção de coletivo: "...daí um tipo de paradoxo:colocar em prática sistemas coletivos e, ao mesmo tempo, preservar a dimensão de singularidade de cada um" (p. 19).

Ainda recortando as falas apresentadas na terceira direção para referendar, ainda mais, as reflexões esboçadas: As ressonâncias a partir do subgrupo dos assíduos foram: cuidar e pensar; abraçar e cumprimentar; trocar, tirar coisas da cabeça e pulsar o coração; pular, pôr prá fora; chorar e sorrir; olhar bloqueado e abrir o olhar - com binóculo. Aqui, percebe-se um subgrupo que já tem experiências de pertencimento, em que a apropriação do espaço e de vivências subjetivas - Kairós - no tempo de Kronos permitiu um processo de transformação, em que o objetivo (o quê) do trabalho, então, aponta para um locus de experimentação que dê conta de conexões, de vínculos mais amorosos, o que pressupõe reconhecimento de si e da alteridade. E o por quê, a justificativa do trabalho feito, mora na constatação que temos que ser corresponsáveis pelo processo em curso, ou seja, pelos efeitos da ação que propomos advindas do processo instituído, uma vez que temos consciência de que a natureza dos trabalhos no Centro Cultural é ideológica e política. Ideológica e política, pois estamos propondo umlocus onde o paradigma de saúde/educação é baseado em pressupostos que colocam a relação entre os seres humanos como fonte de construção de qualquer conhecimento, onde a busca é a autonomia, em vez da heteronomia, o que significa ações coconstruídas que possam ser vividas pelos sujeitos como aquelas que, ao lhes fazerem sentido, dêem formas singulares às ausências de forma ou formas singulares àquelas cunhadas pelo desejo do outro. Forma é contorno, regra é também um contorno que regula as relações. Autonomia é a regra em que o próprio sujeito se submete a ela pela sua necessidade de coerência interna - de dentro para fora, apesar das contradições que nos habitam. Heteronomia é a regra colocada pelo outro - de fora para dentro. Dessa maneira, a construção da regra é fruto da interdependência e complementaridade que funcionam como motor para o autorreconhecimento e o reconhecimento da alteridade, por intermédio do conteúdo das ações presentificadas.

Nossa segunda direção nos conta de um ato para aqueles que foram pela primeira vez, com objetivos numa dupla perspectiva: como uma experiência psicoterápica, visto que trabalhamos o sofrimento de um personagem à beira do suicídio, e como uma aprendizagem transversal, principalmente nos dias de hoje, em que o mundo é atravessado por inúmeros casos de suicídios e violências de várias ordens. Assim, nossa justificativa funda-se no sofrimento da demanda que pedia para ter visibilidade e ser simbolizada nos seus múltiplos sentidos. Para aqueles que vivem os trabalhos como um processo, uma vivência de subjetivação, a partir de experiências com os próprios colegas frequentadores dos trabalhos no Centro Cultural: aprendizagens para se lidar com as ressonâncias decorrentes de se ter um colega que pede ajuda, num momento de grande sofrimento, de experimentar o lugar da solidão e fragmentação, de recontratos internos, de se reconhecer por intermédio do outro, de poder simbolizar o que é da ordem do imaginário, abrindo-se para a multiplicidade de sentidos. Dessa maneira, ao mesmo tempo, um objetivo (o quê) psicoterápico e educacional, uma justificativa (por quê) fundada, também, no sofrimento, mas não no sofrimento imagético e, sim, naquele que é tecido nos meandros da própria convivência grupal. Novamente a corresponsabilidade do diretor do dia e gestores do projeto pelos desdobramentos em curso, uma postura decorrente da natureza do trabalho: ideológica e política.

O que existe, então, de diferente entre os focos educacional e psicoterápico, visto que as semelhanças desenhadas ficam na ordem de aprendizagens, quer quando o foco está no ato, quer quando se foca no processo, delineado pelos frequentadores mais assíduos?

Moreno não nos ensinou diferenças de focos na sua larga trajetória, desde os jardins de Viena até a consolidação de sua teoria socionômica nos EUA, no entanto, sua formação passou pela medicina, pelos ensinamentos da psiquiatria e pela descoberta que seus métodos poderiam abrir a porta da alegria à psiquiatria. Não podemos negar que a competência do papel âncora de formação do profissional pode dar o diferencial para a compreensão dos fenômenos psíquicos, quer individuais, quer grupais, no entanto, cada vez mais, se faz necessária a interlocução entre os vários saberes, sendo a transdisciplinaridade um novo projeto do mundo contemporâneo. Dizer que o objetivo dos psicodramas públicos, aqui recortados, tiveram, também, um vértice psicoterápico é discutir, sobretudo, a demanda da população que lá frequenta, suas necessidades e a falta de políticas públicas que dêem conta dessa demanda. No entanto, já temos este lugar - Centro Cultural e outros lóci de psicodramas públicos - que, embora possam não ter como objetivo geral um trabalho no foco clínico, podem tê-lo como efeitos dos próprios trabalhos, exigindo que a leitura do momento da demanda possa estar em consonância com a competência do arsenal de encaminhamentos que o profissional possui; portanto, exige conhecimentos sobre si e sobre o grupo, o reconhecimento de seus próprios talentos e limites. Podemos pensar que o objetivo (o o quê) da segunda direção aqui recortada foi psicoterápico, à medida que a diretora teve a leitura da necessidade da demanda e, ao mesmo tempo, propôs um método (como), um modo de produção que desse conta do o quê foi apreendido, colocando seu saber a serviço do sofrimento do personagem (o por quê), um frequentador do Centro Cultural que estava ausente, naquele momento, mas ressoava, materialmente, entre os presentes. Um encaminhamento, ainda sociodramático, pois a partir da cena representante de todos, o sofrimento que habitava o grupo, todos que quiseram/ puderam dela participar, e as múltiplas vozes, vivências e sentidos puderam ser experimentados.

Assim, o que existe de diferente entre os focos acima citados é o manejo, o como lidar com os acontecimentos vivenciados, que são fruto das ações em curso, em função do processo instaurado, e articulá-lo à leitura sobre a necessidade apreendida (o o quê).

Para complementar esta discussão articulando as respostas às perguntas O QUE É psicodrama público, POR QUÊ psicodrama público, COMO e PARA QUÊ psicodrama público, a partir dos fragmentos apresentados, resta-nos tecer discussões a respeito do COMO e PARA QUÊ. Assim, os métodos escolhidos pela diretora foram eminentemente sociodramáticos - Jornal Vivo, referendando que em espaços públicos a tendência é este modo de produção, uma vez que os conteúdos das ações, quer aquele que represente a justificativa - sofrimento de alguém -, quer aquele que dê visibilidade para o encaminhamento deste sofrimento - métodos - pedem para ser tratados de modo coletivo e não individual, como no consultório privado. No entanto, nossa segunda direção passou pelo vértice individual, desenhando um psicossociodrama, mesmo com o sujeito ausente, mas com as ressonâncias do grupo, sobre ele, presentes. A possibilidade de recriação dos métodos para se dar conta dos objetivos coconstruídos em status nascendi é a centelha divina que atravessa o profissional psicodramatista- pesquisador.

Em relação ao PARA QUÊ - a finalidade - dos psicodramas públicos, a partir da prática aqui recortada, podemos dizer que seria a busca da utopia moreniana, o devir que sempre está em movimento: uma busca incessante de tornar-nos cidadãos ativos corresponsáveis, atores e autores de nossos processos de vida, com direitos e deveres. Vida que é coletiva e individual, ao mesmo tempo!

 

III- Considerações Finais

Neste momento, penso que, oportunamente, faça sentido discorrer um pouco acerca da questão: psicodrama, uma ciência ética, a partir dos fragmentos de direções aqui apresentados, articulando com a implicação da subjetividade do diretor/pesquisador no campo de trabalho.

Para tecermos sobre uma ciência ética, trarei o vértice da crise da razão formulada por Edmund Husserl no seu texto de 1936 - "Crise das ciências europeias e fenomenologia transcendental", pelo texto do filósofo Cristiano Novaes de Rezende (2010) nomeado de Filosofia e Ciências. Também trarei o vértice da Crítica da Razão Indolente - contra o desperdício da experiência, formulada por Boaventura de Souza Santos (2005). Claro que não terei pretensões de esgotar ou resumir as ideias desses autores, mas, sim, de recortar o que me parece oportuno. Assim, quando Husserl propõe o método fenomenológico, que Almeida (1988, 2006) tão bem tematizou para o movimento psicodramático, penso que o formulou em consonância com seu diagnóstico, naquele momento histórico, sobre o êxito da técnica e não êxito da ciência, uma vez que, para ele (Husserl), falar em ciência seria falar de ética e uma ciência na qual não existisse uma interdependência entre a racionalidade dos fins e dos meios, entre forma e conteúdo, não seria uma ciência ética. A técnica seria o território da razão instrumental, utilizada como meio e dissociada dos fins. Dessa maneira o o quê se quer conseguir depende do como se vai conseguir. Sua crítica à crise da razão pertence a este quadro, de perda de uniformidade entre meios e fins, denunciando uma ciência que se resumiu à uma técnica teórica.

Relembremos que o método fenomenológico é uma das raízes filosóficas do método psicodramático, o qual tem como pressuposto básico a intencionalidade. Conceituá-la como um modo de se visar, capturar o fenômeno pela consciência já é dar visibilidade a uma interdependência entre os meios e os fins, entre o o quê se captura e o como se captura, dando ênfase à subjetividade do diretor/pesquisador no campo de trabalho. A intersubjetividade sendo esta "captura" do fenômeno em duplo sentido, uma consciência visando à outra com suas próprias subjetividades, é o mote dos trabalhos dos psicodramas públicos, aqui traduzidos pelos fragmentos das três direções recortadas e, dessa forma, foi explicitada pelos métodos sociodramáticos vividos e aqui apresentados.

Acreditamos que psicodrama é uma ciência ética, quando o diretor pode ter, ao mesmo tempo, uma imersão no campo de trabalho para se afetar o 29 suficiente e um distanciamento reflexivo, também suficiente, que lhe permita ler as necessidades do grupo (o quê), como ato e processo, disponibilizando um como que seja sincrônico com o quê está sendo capturado pelo coconsciente e coinconsciente e, dessa forma, ao ser corresponsável pelos efeitos da ação em curso, poder facilitar a tomada de consciência das ações que engendram sofrimento que pedem para ser transformadas (por quê). Meios e fins interdependentes, uma ética atualizada, uma cidadania pulsante vivenciada (para quê), o devir, o movimento em direção à utopia moreniana que se revela pelas transformações sociais.

Se refletirmos sobre o vértice de que nos fala Boaventura de Souza Santos (2005), sobre a crise do paradigma dominante, nos alertando para o paradigma emergente, constatamos que a ciência atinge sua finalidade quando parte do senso comum e volta para ele, tornando-se conhecimento- emancipação, onde a tônica é um conhecimento prudente para uma vida decente. Segundo suas próprias palavras:

"Proponho a ideia de uma dupla ruptura epistemológica...depois de consumada a primeira ruptura epistemológica (permitindo, assim, a ciência moderna diferenciar-se do senso comum) há um outro ato epistemológico importante a realizar:romper com a primeira ruptura epistemológica, a fim de transformar o conhecimento científico num novo senso comum. Por outras palavras, o conhecimento-emancipação tem de romper com o senso comum conservador, mistificado e mistificador, não para criar uma forma autônoma e isolada de conhecimento superior, mas para transformar a si mesmo num senso comum novo e emancipatório" (p. 107)

Ainda para o autor, o senso comum ético é um senso comum solidário, o político é o senso comum participativo, e o senso comum estético é aquele que engendra o prazer. No entanto, longe de ser uma ética/ política/estética neoliberal que se tornou o conceito dominante da racionalidade moral-prática moderna. Esta racionalidade moral-prática fala de responsabilidades e prazeres lineares, sem se dar conta de que o discurso hegemônico não traz para o âmbito das participações decisórias as vozes que deveriam ser escutadas; fala de uma ética antropocêntrica e individualista, que referenda uma dissociação entre meios e fins; fala de uma política que se reduz a práticas sociais setorializadas, sem a devida rede de comunicação que levaria ao conhecimento emancipatório entre as diversas tendências políticas que habitam a comunidade; fala de uma dimensão estética que engendra um prazer de mídia enlatada e uma autonomia da arte, tirando o reencantamento da dimensão da proximidade desconhecida, o mundo das diferenças.

Ainda pelas palavras de Boaventura (2005):

"..a ética liberal funciona numa sequência linear: um sujeito, uma ação, uma consequência... o princípio da responsabilidade a instituir não pode assentar em sequências lineares, pois vivemos numa época em que é cada vez mais difícil determinar quem são os agentes, quais as ações e quais as consequências. Esta é uma das razões por que a neo-comunidade deve ser definida como numa relação espaço-temporal, local-global e imediata-diferida...é uma responsabilidade pelo futuro...a responsabilidade fundamental está em criar a possibilidade de haver responsabilidade..." ( pp. 111-112)

"... um dos processos que levaram a que o equilíbrio entre regulação e emancipação fosse quebrado a favor da regulação consistiu na redução da política a uma prática social setorial e especializada e na rígida regulação da participação dos cidadãos nessa prática...". (p. 113)

"...o prazer é a marca estética do novo senso comum...foi expulso da ciência e ficou confinado a duas esferas aparentemente incompatíveis: por um lado...à ideologia do consumismo; por outro à autonomia da obra de arte...só a ligação à proximidade, mesmo uma proximidade nova e desconhecida, pode conduzir a um reencantamento do mundo.." (pp. 114-115).

Dessa maneira, acreditamos que os fragmentos aqui apresentados traduzem um psicodrama como uma ciência ética e política, visto que a tendência dos trabalhos é promover um novo senso comum emancipatório, traduzido por se levar em conta o o quê se é produzido pelos atos e processo, atendo-se às necessidades da demanda, visando diminuir os sofrimentos dos frequentadores (por quê) e procurando um como para dar conta de torná-los visíveis e digeríveis, o que facilita a tomada de consciência e responsabilidade. Uma ciência ética e política, que engendra um encontro de subjetividades por parte de todos do grupo, incluindo a do diretor/pesquisador. Percebemos que a tendência destes encontros é atravessado pelo prazer, prazer de se estar lá, naquele espaço-tempo, por parte dos diretores e frequentadores, produzindo reencantamento pelo encontro com o diferente, uma estética do novo senso comum.

No entanto, também temos consciência de que ainda estamos longe de uma ciência ética e política no que se refere a novas regulações que implicam novas combinações entre solidariedade e participação, rompendo com o poder decisório ainda setorializado. Quem sabe possamos aprender com nossas experiências e seguir em frente, propondo mais reflexões conjuntas e decisões que impliquem e corresponsabilizem os vários segmentos da comunidade Centro Cultural - diretores e freqüentadores, e quiçá possamos, ainda, criar redes entre os vários frequentadores dos muitos psicodramas públicos que acontecem em São Paulo, Brasil e mundo, onde a população poderá identificar as diversas vozes e tendências políticas para, quem sabe, promover um senso comum emancipatório ético, político e estético.

IV- Referências

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______. Psicoterapia aberta - o método do psicodrama, a fenomenologia e a psicanálise. São Paulo, Ágora, 2006.         [ Links ]

KING, S. M. O Homem que Amava Caixas.São Paulo, Brinque-Book, 1997.         [ Links ]

OURY, J. O Coletivo. São Paulo, Hucitec, 2009.         [ Links ]

REZENDE, C. N. de. Prova Didática no Concurso para a Disciplina de Filosofia na Licenciatura Plena em Ciências da Unifesp - Campus Diadema, 2010.         [ Links ]

WECHSLER, M. P. da F. Relações entre afetividade e cognição: de Moreno a Piaget. São Paulo, Annablume&Fapesp, 1998.         [ Links ]

______. Psicodrama e Construtivismo - uma leitura psicopedagógica. São Paulo, Annablume & Fapesp, 1999.         [ Links ]

______. Pesquisa e Psicodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, vol. 15, n.2, pp 71-78, 2007.         [ Links ]

CESARINO, A.; DAVOLI, C. et alii. Brochura dos Psicodramas Públicos do Centro Cultural São Paulo, 2007.         [ Links ]

SANTOS, B. de S. A Crítica da Razão Indolente - Contra o desperdício da experiência. São Paulo, Cortez, 2005.         [ Links ]

 

 

Endereço para Correspondência
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e-mail: mariwe@terra.com.br

 

 

* Psicodramatista-didata-supervisora pela Febrap; profa. psicodrama no DPSedes e SOPSP-PUCSP; doutora em Psicologia Escolar pela USP; especialista em Terapia Familiar Sistêmica pela Unifesp; Membro da coordenação do Projeto Psicodrama Público no Centro Cultural São Paulo, desde 2004
1
texto construído a partir das aulas teóricas do prof. Cristiano Novaes de Rezende, no grupo de estudo sobre Spinosa no Daimon (2010-2011)
2 O termo intencionalidade aqui utilizado e em todos os outros momentos deste texto empresta o significado tal qual Edmund Husserl (1859- 1938) o postulou pelo método fenomenológico. Assim, intencionalidade é visar o objeto pela consciência onde somente se captura o objeto pela intencionalidade do sujeito que o faz. Edmund Husserl foi o idealizador de uma filosofia descritiva da experiência subjetiva, uma das correntes filosóficas que fundamentam o método psicodramático. No entanto, no campo teórico-metodológico do Psicodrama, alargamos o campo para o coconsciente e coinconsciente, assim, visa-se ao objeto pela intencionalidade - coconsciente e coinconsciente.
3 Esta nomeação de Clínica Sócio-Política foi veiculada por Pedro Mascarenhas no primeiro Debate Pós-Psicodrama que aconteceu no dia 07/05/2011, no qual a autora também estava presente como debatedora.