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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.19 no.2 São Paulo  2011

 

SEÇÃO TEMÁTICA: Psicodrama público: Por quê? Para quê?

Thematic section: Public Psychodrama: What for? Who for?

 

 

Por que realizar psicodramas públicos?

 

Why organise public psychodramas?

 

 

Marcia Almeida Batista*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP

Endereço para Correspondência

 

 


Resumo

A partir de conceitos morenianos a autora entende que são os psicodramas públicos que permitem o questionamento da sociedade e se justificam, portanto, como ação terapêutica para a mesma. Do ponto de vista da teoria e da técnica, ele é o espaço onde se pode efetivar sua potencialidade e auxiliar psicodramatistas a compreenderem a força do método, bem como fazê-los refletir sobre o cotidiano de suas tarefas clínicas.

Palavras-chave: Matriz sociométrica, realidade externa, estrutura social, papéis, cena.


Abstract

Based on Morenian concepts, the author of this paper explores what are public psychodramas that allow an examination of society, and thus can be considered and understood as therapeutic action for society. From the perspective of theory and technique, public psychodrama is a space where psychodrama's potential can be accomplished/brought out, and it can help psychodramatists understand the power of this method, as well as how to reflect on the everyday aspects of their clinical work.

Keywords: Sociometric matrix; external reality; social structures; role; scene.


 

 

Se pensarmos, como nos diz Moreno (2008), que a realidade externa, a matriz sociométrica e a realidade são estruturas em permanente tensão, podemos entender que é através de a solucionarmos ou não que mudamos a forma como nos relacionamos.

Nossas relações se dão através de papéis que contêm em si a expectativa de uma sociedade, de como esta espera que nos relacionemos. Trabalhar com sessões abertas é ter a possibilidade de exteriorizar estas tensões, permitindo que se reflita sobre elas e se criem soluções para que cada um assuma sua responsabilidade.

Stella Fava1, em discussão num grupo de estudo2, afirma que devemos ter ciência de que as ações são individuais, mas suas consequências nunca. Ainda que realizemos um ato isolado na privacidade de nossa casa, este tem uma consequência social. No palco do psicodrama público, a intervenção que realizo com os outros personagens da cena ocorre concretamente, e não pode ser excluída a partir de nossa imaginação. Podemos verificar isto quando, por exemplo, convidamos para atuar no "como se", alguém que, estando no papel de público, sugere este ou aquele palpite a um participante da cena. Poucas vezes o palpite funciona. Na maioria das ocasiões a pessoa se dá conta de que questões vistas de fora não estavam incluídas em sua ação.

Nestes anos todos, em que tenho assistido e dirigido psicodramas abertos, são destas possibilidades que me alimento.

Quanto mais aberto o local onde o psicodrama é realizado, mais colocamos em relação pessoas que, de outra forma, pela rigidez da estrutura social, dificilmente dialogariam.

O aluno de classe média de uma boa universidade se vê conversando com o morador de rua e juntos se responsabilizam pela construção de uma cena comum. Muitas vezes vemos relatos de espanto por se perceberem igualmente humanos e partilhando sentimentos semelhantes aos dos moradores de rua. Há um novo alinhamento de semelhanças e diferenças calcadas em critérios diversos dos que normalmente sustentam nossa estrutura social. Sabemos que, dependendo da faculdade em que este aluno estuda, ele até poderá conversar com o morador de rua, a fim de realizar um trabalho proposto pelo professor, mas dificilmente o fará sem ser no papel de pesquisador. Na maioria das vezes, estarão respeitando a relação pesquisador/pesquisado, que faz de um objeto da pesquisa de outro. A cena construída conjuntamente no palco psicodramático permite que esta relação Eu /isto crie caminhos para a relação Eu/Tu.

Claro que tudo dependerá também do diretor, que terá ou não internalizado os princípios morenianos que regem o trabalho de grupo, em que a estrutura externa também atua. Espera-se nesta estrutura que a autoridade saiba e diga o que deve ser feito. Somos também sujeitos a esta pressão, o que exige permanente atenção do diretor para não sucumbir às conservas culturais presentes em toda relação. No nosso caso, mais comumente a ideia de que o diretor, líder formal da sessão, saiba mais do que qualquer um dos participantes o que é melhor para aquele grupo.

Abrir espaço para a explicitação da matriz sociométrica constituída pelo grupo, no trabalho, exige que o diretor saia da posição do que sabe, e que possa dirigir para o melhor caminho. Como em todo conhecimento somos capazes de repetir os princípios socionômicos, mas vivenciá-los nos levam muito além. Cida Davoli3 tem nos mostrado em nosso grupo de discussão de psicodrama, no Getep, como a direção resvala muitas vezes para a compreensão do que se passa com determinado indivíduo mais do que para explicitação das forças presentes em determinada cena, que, ao serem apontadas, abrem caminhos para novos posicionamentos individuais.

O início de um trabalho tem a estrutura sociométrica muitas vezes ditada pelos preconceitos sociais que refletem a ideologia daquele grupo. Pode ocorrer que os mais bem nascidos, ou pertencentes à classe dos estudados, num primeiro momento tenham um olhar de aparente abertura condescendente para os outros. É durante a realização deste trabalho que estes preconceitos são confrontados, e, se nem sempre mudados, são necessariamente vividos de forma clara. Criamos uma sociometria que escapa da estrutura social fixada por princípios ditados por interesses de forças, nem sempre explicitados, dos que detêm o poder. Abrimos possibilidade de novos critérios sociométricos.

Claro que não temos garantia de que isto ocorra, daí a importância de conhecermos os princípios morenianos que apontam, em primeiro lugar, para a relação de corresponsabilidade. Todos são responsáveis pelo que ocorre neste trabalho.

Numa atividade que abre espaço para a matriz sociométrica, saberes são confrontados e lidera quem tem respaldo sociométrico para isto. Em outras palavras: aquecer os presentes para este trabalho, criando possibilidades de reconhecimento do grupo presente, dando espaço e palavra para os que desejam utilizá-los. A partir daí temos a possibilidade da coconstrução de um trabalho dramático que, pela suspensão das regras "do que é" para as múltiplas possibilidades do "como se", permite a conexão com as forças espontâneo/criativas presentes em cada um e, muitas vezes, coartadas pelas exigências das conservas culturais que, frequentemente, predominam em nossas ações.

Só por estas possibilidades já me parece justificável que realizemos psicodramas e sociodramas públicos. Poderia, porém, ampliar minha defesa destes espaços pelo trajeto realizado nos atendimentos psicoterápicos. Não estou criticando sua realização e acredito que tenham ainda relevante papel na nossa sociedade. Há muito tempo as correntes psicológicas vêm tratando seus pacientes individualmente e valorizando este trabalho; apesar de a terapia de grupo ter sido proposta há mais de 80 anos, vem sendo ainda vista como uma terapia menos eficiente e recusada, como recurso, por muitos pacientes.

Os argumentos em favor da terapia individual são nossos velhos conhecidos, e ganham especial valor numa sociedade em que o espaço pessoal é altamente valorizado. Em pesquisa recente, apresentada num canal brasileiro de televisão, mais de 74% das pessoas gostariam de morar sozinhas4. Nas casas da classe média, é comum que cada um tenha seu quarto, seu aparelho de som, sua televisão, seu telefone, seu carro, seu "personal trainer" e assim por diante. Neste ambiente, que nos faz olhar para os que têm que dividir coisas e espaços, a terapia em grupo é desvalorizada. Como falar de meus sentimentos e emoções diante de mais de uma pessoa? Não terei espaço para colocar minhas questões. São justificativas comuns para buscar atendimento individual, sempre acreditando que a terapia se faz através do relato de suas questões e problemas, o que não é essencialmente verdadeiro.

Mesmo alguns terapeutas não vêem com bons olhos o atendimento grupal. Para muitos ainda a terapia individual é espaço de reflexão mais profunda. Não pretendo achar que a terapia individual seja melhor ou pior, mas acredito que o trabalho em grupo permite algumas reflexões que considero importantes nos dias que vivemos.

Moreno (1984) inicia sua pesquisa após a primeira guerra quando vê destruída uma civilização que se acreditava distanciar mais e mais de povos primitivos e bárbaros. Para ele, diante de toda a destruição resta ainda um homem que não só destrói, mas que é capaz de reinventar e reinventar-se. Começa a pesquisar a espontaneidade, que julga ser inata no homem e fundamental para este processo de reinvenção.

Segundo suas próprias palavras, poderia ter inventado uma religião, mas optou por fazer ciência e assim iniciar seu processo investigativo.

Em 1934, já nos Estados Unidos e em fase de consolidação de sua teoria, lança uma obra com o título "Quem sobreviverá?", em que se aprofunda no método sociométrico, na terapia de grupo e no sociodrama. (Moreno, 2008)

Para Moreno (2008), nos relacionamos através de papéis que são parte de um "script" que é histórico, social e culturalmente determinado; e parte uma construção subjetiva.

Somos constituídos na relação de coexperiência, convivência e coação, e é desta forma também que podemos evoluir, quando, através de vínculos, nos permitimos visualizar o que são determinações da cultura em que estamos inseridos e de dialogar com elas. Em nossos consultórios, vemos, através dos tempos, que algumas questões se tornam mais ou menos presentes, dependendo do diálogo que realizamos com as conservas culturais.

Nos atendimentos individuais, na maioria das vezes nosso foco é o mundo interno de quem é atendido; no grupo, as determinações sociais ficam explicitadas, e podemos focar as cenas de forma mais clara e expressa.

Moreno, ao discutir as possibilidades sociométricas está embasado na proposta filosófica de corresponsabilidade, de como e quanto sou responsável pela cena ou cenas que se desenrolam e naquelas nas quais estou implicada.

Esta postura também se explicita no atendimento grupal, quando a direção se sustenta em critérios sociométricos e não apenas na estrutura formal, que coloca o terapeuta como o principal responsável.

Ao verificar as opiniões de profissionais sobre Wellington, o rapaz que perpetrou a chacina do Realengo5, podemos ver que a sociedade busca em sua história pessoal algo que explique o ocorrido. Esta forma de lidar com o evento nos coloca em mundos diferentes de Wellington: ele é o doente, eu não tenho esta doença. Perguntamo-nos, aturdidos: como alguém pode fazer isto? E, claro, não seríamos capazes de fazê-lo.

Acredito que, se pensarmos o ser humano como um socióide, como diz Moreno, eu sou eu e minhas relações, e o entrelaçamento destes socióides se constituindo em redes sociométricas, começo a entender que Wellington está relacionado comigo. Ainda que ele não pertença ao meu átomo social, pertencemos a uma mesma cultura , que oferece a todos os mesmos papéis, e, em última instância, estamos inseridos a rede sociométrica que une, como diz Moreno, toda a humanidade. Tenho também à minha disposição a possibilidade de exercer o papel de assassino. Moreno (1999) no protocolo Hitler, aponta quantos Hitlers se reconhecem na plateia, a partir do trabalho com o protagonista. É reconhecendo em mim a possibilidade de vivenciar o papel de assassino que abro caminhos para compreender Wellington para além de determinações psíquicas, que acredito também estarem presentes.

Eu e Rosalba Filipini6 começamos a realizar sessões abertas na clínica psicológica Ana Maria Poppovic, da PUC São Paulo.

Após três semanas esperando sem que uma alma viva aparecesse, tivemos nossa primeira participante. Ela chegou decidida e trouxe sua cena já quase pronta. Queria falar com sua mãe, contar algo que lhe ocorrera na infância e que a mãe não sabia. Sabia o que é psicodrama e vinha preparada para ele.

Fomos para dramatização após cinco minutos do início, pois ela já trazia a cena pronta. Sua história era de abuso de uma menina de seis anos. Trabalhamos o impedimento que ela trazia de contar a sua mãe o que sofreu nesta idade. A cena foi intensa e trabalhamos várias possibilidades.

Na PUC-SP foi uma verdadeira conquista: um ambiente mais afeito à terapia individual, pouco a pouco se abre para o atendimento grupal e inova agora com sessões abertas, numa clínica escola.

Saímos do atendimento e começamos a compartilhar e nos perguntamos: Teria a cena a mesma intensidade num atendimento processual?

O que nos levou, psicólogas experientes e professoras de psicodrama, a ter mais dificuldade em propor a cena dramática no dia a dia do consultório? Novamente nos vemos como iniciantes maravilhadas com a intensidade e abertura de possibilidades que a cena revela.

Por que fazer psicodrama público é a proposta desta edição da revista, e esta cena, primeira, com apenas uma participante, começa a nos revelar o porquê. É nele que nos encontramos com a filosofia de Moreno e sua ideologia de trabalhar o que ocorre sem se apropriar de um processo que pertence, de fato, àquele que nos procura, e não ao terapeuta.

Não é sem consequências que nos expomos a estas sessões, elas modificam de forma intensa também o nosso dia a dia da clínica. Se atender é abrir espaço para o novo, para o inusitado, é na tarefa de acolher os participantes de um psicodrama público que exercitamos nosso papel de psicodramatistas, neste aspecto que o atendimento processual encobre, fazendo continuação do que deveria ser único.

Vitor Dias7 dizia em suas aulas que é no trabalho grupal que a potência do psicodrama se faz realidade. Dizia ainda que se aqueles que nos contratam tivessem noção da potência transformadora deste trabalho, não nos contratariam.

Moreno (2008) alerta para necessidade de treinarmos nossa espontaneidade como forma de sobrevivermos.

O psicodrama aberto propicia um trabalho que põe a nu a necessidade de vermos a cena e suas implicações, sua força que traz a possibilidade de o sujeito se perceber como centelha divina, força criadora. O tornar público o que a ideologia pretendeu privado é outra das consequências importantes para se buscar mais espaços para ele.

 

Referências

MORENO, J. L. Quem sobreviverá? São Paulo: Daimon, 2008.         [ Links ]

______. O Teatro da Espontaneidade. São Paulo, Summus, 1984.         [ Links ]

______. Psicoterapia de Grupo e Psicodrama. Campinas:Livro Pleno, 1999.         [ Links ]

 

 

Endereço para Correspondência
Rua Guaraná, 529 cj. 65,
São Paulo-SP
e-mail: mab5151@hotmail.com

 

 

* Psicóloga (USP, 1975), psicodramatista, terapeuta didata e professora supervisora pela Febrap, pós graduada em terapia sistêmica, psicotrauma e terapia sexual, terapeuta de EMDR e Brainspotting. Mestre, doutora e pós-doutora em psicologia clínica (PUCSP). Doutoranda em psicologia e disruptivo (Universidad del Salvador, Buenos Aires, 2011). Coordenadora do departamento de ciência e ensino da F&Z Assessoria e Desenvolvimento em Educação e Saúde Ltda. Diretora de ciência e academia da Abrapahp: Associação Brasileira de Programas de Ajuda Humanitária Psicológica
1 - Psicóloga, psicodramatista.
2 - Grupo de estudos de Moreno (GEM) que ocorre no Daimon-SER, sob a coordenação de José de Souza Fonseca Fo. e Antonio Carlos Cesarino.
3 - Psicóloga psicodramatista, coordenadora dos psicodramas públicos do Centro Cultural São Paulo.
4 - Programa Mais Você, da rede Globo de televisão, maio de 2011.
5 - Wellington invadiu uma escola e assassinou e feriu vários alunos de uma escola estadual no Realengo, bairro do Rio de Janeiro.
6 - Psicóloga, psicodramatista, professora da Faculdade de Ciências Humanas e Saúde da PUC-SP.
7 - Psiquiatra, psicodramatista, coordenador da Escola Paulista de Psicodrama.