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Revista Brasileira de Psicodrama

On-line version ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.19 no.2 São Paulo  2011

 

SEÇÃO LIVRE

Free Section

 

 

Vínculo na prática educativa escolar: um estudo com base na ludicidade e no sociodrama

 

Bonds in the school education: a study based on playfulness and sociodrama

 

Antonia Lucia Leite Ramos*

Estudos e Pesquisa em Educação e Ludicidade Gepel/Faced/UFBA

Endereço para Correspondência

 

 


Resumo

Este artigo tem o objetivo de compreender como a ludicidade e o sociodrama (ludodrama) podem contribuir para a formação e/ou melhoria dos vínculos entre os sujeitos da práxis pedagógica, favorecendo a convivência e a aprendizagem. A reflexão utiliza, como recurso ilustrativo, uma pesquisa de intervenção realizada em uma escola pública na cidade de Salvador/BA, com dois grupos de estudantes do ensino fundamental. O ludodrama é uma prática educativa que surge da junção da ludicidade com o sociodrama e tem, por princípio, a plenitude da experiência e a ação-reflexão-ação, vivenciadas nas práticas lúdicas e sociodramáticas. Os fundamentos teóricos que sustentaram a pesquisa prática procedem do ideário de Jacob Levi Moreno, Cipriano Luckesi e Paulo Freire. Os resultados apontam que o ludodrama encoraja o grupo, por meio de práticas lúdicas e sociodramáticas, a uma vivência plena e traz a possibilidade de formação dos vínculos através de um trabalho lúdico, reflexivo, contextualizado, ajudando a solucionar os problemas num clima de jogo e liberdade.

Palavras-chave: Prática pedagógica, ludicidade, sociodrama, vínculo.


Abstract

This article aims to explore how playfulness and sociodrama (ludodrama) can contribute to the development and/or improvement of relationships between the subjects of pedagogical practice, favouring acquaintanceship and learning. For illustration we present a research intervention carried out in a public school in the city of Salvador (Bahia) with two groups of elementary school pupils. Ludodrama is an educational approach that has emerged from joining together playfulness and sociodrama, and has as its principle the fullness of experiences and action-reflectionaction, as experienced in a playful and sociodramatic practice. The theoretical foundations behind this practical research come form the ideas of Jacob Levi Moreno, Cipriano Luckesi and Paulo Freire. The results indicate that, through playful and sociodramatic means, ludodrama offers groups full experiences, and enables the development of relationships through a playful, reflective and contextualised work, helping to solve problems in an atmosphere of play and freedom.

Keywords: Pedagogical practice; playfulness; sociodrama; relationships


 

 

INTRODUÇÃO

Este relato se tece em torno de uma pesquisa-ação, de natureza qualitativa do tipo intervenção, com o objetivo de compreender a importância do vínculo para a aprendizagem e a convivência. O trabalho se fez com estudantes do ensino fundamental de uma escola pública estadual, em Salvador/BA, nos anos de 2005 e 2006. A abordagem metodológica foi escolhida pela possibilidade de confluir, num mesmo movimento, a intervenção com pessoas concretas e vivas no contexto escolar e que, no diaa- dia, expressaram seus conflitos, seus medos, seus saberes, seus ódios, seus amores, na realidade dos vínculos estabelecidos e no drama vivido em tempo presente, atualizados no ludodrama - junção da ludicidade com o sociodrama, abordagens afins na construção do vínculo entre os atores escolares.

O estudo partiu do pressuposto de que o vínculo é fundamental para a aprendizagem e a convivência escolar. Poderá ser facilitado e ou desenvolvido pela qualidade do movimento das pessoas, nas atividades lúdicas e sociodramáticas, quando o prazer é residente e espontâneo. Sendo assim, é expresso em movimentos rítmicos, como um corpo que dança com graciosidade, leveza e liberdade, com agradável excitação em direção ao objeto do conhecimento ou do desejo. Nas atividades em que os participantes se sentem obrigados a manter a participação, a qualidade do movimento e o grupo são prejudicados, fato observável na corporeidade, no comportamento de proximidade ou distância em relação uns aos outros, nos conflitos relacionais e no índice de violência expresso nessas atividades.

Para análise do fenômeno em questão, tomamos como referência o sociodrama pedagógico, contribuição de Jacob Levy Moreno (1993a), como um método de ação profunda que trata das relações interpessoais e das ideologias coletivas; nos estudos de Cipriano Luckesi (2000), em que a ludicidade é vista a partir da experiência interna do sujeito que a vivencia -sentir, pensar e agir integrados propiciam a plenitude da experiência; na educação libertadora de Paulo Freire (1987), Miguel Arroyo (2000), dentre outros.

Inicialmente, faço uma incursão em algumas ideias buscadas nas leituras dos autores a que acabo de me referir e de outros, para apresentar o tema focando o vínculo, a aprendizagem e a convivência na prática educativa escolar; em seguida, descrevo alguns aspectos da intervenção investigativa que, na sua totalidade, traz as interfaces de uma iniciativa lúdica e sociodramática, acompanhada pelo fluxo da alegria, da beleza, do conflito, da reflexão, da ação e da plenitude como processo vital.

 

 

Vive-se hoje, na escola, um clima de mal-estar e tensão, advindos de violências e necessidades diversas, que apontam para a busca de saídas e intervenções coletivas urgentes. São válidas e proféticas as palavras de Paulo Freire (1987, p. 29), quando coloca como tarefa pedagógica a humanização e diz: "O problema de sua humanização apesar de sempre haver sido o problema central, assume hoje, caráter de preocupação iniludível". Miguel Arroyo (2000), com muita propriedade, diz que o momento exige que se traga para o centro do palco os educandos, que estão nos obrigando a enxergá-los; dar-lhes vez, voz, espaços e tempos, de modo a propiciar um novo foco e sentido à sua trajetória escolar. Afirma, ainda, que "Recuperaremos o direito à Educação Básica universal para além de "toda criança na escola", se recuperarmos a centralidade das relações entre educadores e educandos, entre infância e pedagogos" (2000, p. 10). É, portanto, necessária uma educação que viabilize a sala de aula como espaço da interação de um coletivo de sujeitos, não mais numa concepção "bancária", marcada pela indiferença, quando não por violências, mas numa relação com o conhecimento, com o outro e com o mundo construída no acolhimento, respeito e diálogo. Uma prática que propicie, ao mesmo tempo, o crescimento biopsíquico e espiritual dos participantes do processo educativo.

Observe novamente a cena na página anterior.

O aluno vai ao banheiro; ao voltar, o funcionário o vê no corredor, agarra-o pelo colarinho, empurra-o e diz: vai pra sala, demônio.

A partir da cena e tendo presente o dia-a-dia e a forma como se apresentam os vínculos entre educando-educador, educandos entre si, funcionários etc., vive-se um campo tenso e incontornável. De modo geral, o ambiente escolar atravessa um período crítico no que diz respeito a formas saudáveis de convivência. Falando sobre a agressão e os distúrbios que acontecem em sala de aula, Leonel Correia Pinto (1978) diz que a psiquiatria moderna atribui, cada vez menos, a causa real dos distúrbios a causas biológicas, e, cada vez mais, a falhas humanas, à ausência de comunicação e de consenso válidos, aos déficits da interação social, às desordens da educação. Na escola, estudantes e professores colocam-se em campos opostos, o que inviabiliza as relações e os vínculos saudáveis. Vejamos as falas.

Os alunos referindo-se à professora:

-"Será que aquela cachorra vem dar aula hoje?";

-"Aquela vagabunda marcou minha prova... mas deixa estar... se eu me prejudicar, ela vai ver comigo"; -"aquela professora é um cavalo batizado, é uma estúpida... mandou a gente parar de cantar o parabéns." (por ocasião do aniversário da professora, em que ela rejeitou a festa que os alunos fizeram, segundo a aluna)

Os professores referindo-se aos estudantes:

-"São uns estúpidos, não respeitam mais ninguém";

-"São uns marginais, vêm pra aula só bagunçar";

-"Só venho dar aula porque não tenho outro jeito, mas eles não querem nada";

-"Eu vou falar a verdade... tem hora que a gente perde a paciência e diz o que não devia, mas eles provocam".

Um aluno falando de um funcionário:

-"Ele me deu um safanão (agarrou por trás do pescoço), empurrou e disse: 'Vai, demônio, pra sala de aula'".

A amostra acima, registrando falas e imagens que retratam o modo de relação predominante na escola, explicita alguns dos impedimentos a uma aprendizagem saudável, pois, como bem diz Rubem Alves (2004), toda experiência de aprendizagem inicia-se com uma experiência afetiva. A palavra afeto vem do latim affecare, que quer dizer "ir atrás", é um movimento em direção ao objeto do desejo, dos sonhos. O afeto não coaduna com práticas escolares autoritárias e excludentes; requer, como afirma Porto, a "reconstrução da instituição como instância acolhedora, multifacetada, inclusiva, interessada na diversidade, na interação" (2001, p. 187). O problema das relações e dos vínculos, principalmente para aqueles que se dedicam à educação de crianças e jovens, é um labirinto em busca de saídas ou soluções desejáveis, tendo em vista a formação. Para tanto, o universo da relação, do vínculo precisa ser revisitado para a reconstrução da escola como espaço de aprendizagem, diversidade, interação e, por que não dizer, de prazer?

O trabalho docente é uma atividade que traz a marca das relações humanas; nesse ambiente, perpassam diferentes relações afetivas, como ressentimentos, indiferenças, simpatias, amizades, companheirismo, em que podem tanto ocorrer vínculos saudáveis de aceitação quanto de anulação simbólica ou concreta do outro. Para uma intervenção competente na educação, é importante compreender que os educandos e educadores estão no centro da práxis pedagógica, e que os processos interativos são fundamentais para a aprendizagem, para o crescimento pessoal e para a própria humanização do ato educativo; representa não um aspecto periférico do trabalho do educador, mas, o núcleo de ações que, no seu conjunto, influenciam sobremaneira o processo de educar. É o que defende Freire (1994), Vigotsky (1998), dentre outros.

A palavra vínculo é derivada do latim vinculu, significa tudo que ata, liga ou aperta, segundo o Dicionário Aurélio (1986, p. 1777): 1. De modo geral, pode ser traduzida pelo termo "relação". O vínculo se refere ao modo de relacionar-se, aos laços que se estabelecem em torno de cada indivíduo, aos indivíduos com quem uma pessoa está relacionada emocionalmente ou que, ao mesmo tempo, estão relacionados com ela, ou seja, o seu átomo social (Moreno, 1993b, p. 239). Em função disso, foram priorizados os atores escolares com suas experiências de sentido, suas histórias, narrativas, necessidades, com possibilidades de vivenciar a transformação no "como se"; os estudantes foram percorrendo as sendas e mistérios da convivência no devir, na cotidianidade vivida, antes que conhecida, em que os desafios não foram transformados em limites, mas, numa oportunidade para aprofundamento, participação e crescimento.

Além de Freud e Pichón-Riviére (1998b), Jacob Levi Moreno (1993a) é considerado um pioneiro da psicologia do relacional, por seus escritos em torno do vínculo. Suas contribuições vêm fundamentar a compreensão e a transformação das instituições pelo desenvolvimento de conceitos sobre a formação e a dinâmica dos vínculos, o tratamento dos grupos e das relações; vêm, também, subsidiar as metodologias e epistemologias pósmodernas, pela busca da verdade contextualizada na ação e na complexidade relacional dos sujeitos. Para Moreno (in Nery, 2003, p. 16): "Nossa personalidade é a resultante dos vínculos que estabelecemos, do conjunto de papéis que exercemos, dos papéis que estão contidos ou reprimidos, da nossa modalidade vincular, assim como das nossas predisposições hereditárias."

Segundo Paulo Freire (2005, p. 65):

Quanto mais analisamos as relações educador-educandos, na escola, em qualquer de seus níveis (ou fora dela), parece que mais nos podemos convencer de que estas relações apresentam um caráter especial e marcante - de serem relações fundamentalmente narradoras, dissertadoras.

A questão da afetividade na relação educativa é reforçada por esse autor em foco, quando diz que: "a competência técnica científica e o rigor acadêmico, de que o professor não deve abrir mão no desenvolvimento do seu trabalho, não são incompatíveis com a amorosidade necessária às relações educativas" (Freire, 1996, p.11).

Cuidar do vínculo entre os atores escolares exige um estado de sensibilidade e predisposição para o educador acolher, sustentar e confrontar de forma amorosa, permitindo, desse modo, a expressão criativa, espontânea para o educando ser, aprender e viver a plenitude da experiência na relação. Para romper com esse círculo vicioso de insatisfação, de distância e indiferença, que permeia a relação professores e estudantes, é mister, portanto, cuidar da relação, construir vínculos mais sintônicos que permitam a convivência e o aprendizado como funções fundamentais da escola.

 

A ludicidade e o sociodrama (ludodrama ) mediando o drama escolar

Certa noite, assistindo o BA-TV, noticiário local, fiquei chocada com o assassinato de um aluno numa escola pública estadual, onde, no primeiro semestre, havia ministrado uma oficina para professores e estudantes. Esse fato me tocou profundamente, não só pelo que vi e ouvi dos relatos de professores e estudantes, em relação ao medo e à violência que haviam se instalado naquele espaço, mas, também, pela minha implicação com uma metodologia que utiliza o jogar-brincar como possibilidade de observar e intervir in loco na atividade educativa, objetivando além do ensino, uma convivência saudável entre os parceiros da comunidade escolar. Esse é um grande nó da escola: a falta de investimento para promover atividades que possibilitem o aprender a conviver, o aprender a ser. Nesse sentido, mesmo verificando a necessidade, usa formas paliativas e com esses paliativos, a violência vai fazendo impiedosamente muitas vítimas.

Diante dos links com esses fatos, comecei a pensar: como a ludicidade e o sociodrama podem contribuir para a formação de vínculos entre os sujeitos da práxis pedagógica, e como esse vínculo pode interferir na aprendizagem e convivência entre educadores e educandos? A expressão ludodrama, usada aqui, refere-se a uma prática educativa que utiliza atividades lúdicas e sociodramáticas para o grupo expressar e vivenciar suas dúvidas e inquietações, de forma plena, simultânea (mente, corpo e emoção), num clima de jogo e liberdade.

Etimologicamente, ludodrama é formada por dois vocábulos: ludo [do latim ludu]+ drama [do grego drâma,] - O primeiro, segundo o Dicionário Aurélio (1986, p. 1051), significa "1. Tipo de jogo em que as pedras se movimentam seguindo o número de casas indicado pelos dados. 2. Jogo, brinquedo, divertimento." O segundo vocábulo: "Drama é uma transliteração do grego, que significa ação, ou uma coisa feita".

O psicodrama foi definido como "a ciência que explora a "verdade" por métodos dramáticos" (Moreno, 1993a). O seu criador foi o médico judeu Jacob Levi Moreno, considerado um homem à frente do seu tempo; sua história e sua biografia registram feitos e vivências que o colocam como criador dos métodos baseados na ação e na relação social numa perspectiva de mudança de paradigma. Suas técnicas sociométricas deram uma contribuição valiosa para a integração grupal e criação de uma teoria pedagógica. É mais conhecida como psicodrama quando o drama é individual; denominado sociodrama, quando o drama é coletivo.

Nesse contexto, a ludicidade é considerada no sentido de jogo, brinquedo, brincadeira, porém com um diferencial significativo: não restringir somente do ponto de vista utilitário a atividade lúdica, não ser apenas um passatempo ou momento divertido; o conceito se amplia para uma compreensão que tem a ver com a experiência interna do sujeito que a vivencia, concepção de Cipriano Luckesi (2000, pp. 21-22), cujas ideias peculiares trazem um novo olhar para a prática educativa, enquanto considera que:

"A atividade lúdica propicia um estado de consciência livre dos controles do ego, por isso mesmo criativo. O nosso ego, como foi construído, em nossa história pessoal de vida, na base de ameaças e restrições, é muito constritivo, centrado em múltiplas defesas. Ele reage à liberdade que traz a atividade lúdica em si mesma. Por isso, uma educação centrada em atividades lúdicas tem a possibilidade, de um lado, de construir um eu (não um ego) saudável em cada um de nós, ou, por outro lado, vagarosamente, auxiliar a transformação do nosso ego construtivo num Eu saudável. Educar crianças ludicamente é estar auxiliando-as a viver bem o presente e preparar-se para o futuro. Educar ludicamente adolescentes e adultos significa estar criando condições de restauração do passado, vivendo bem o presente e construindo o futuro."

O psicodrama aplicado à Educação utiliza o sociodrama, que é um método de trabalho com grupos que possibilita não só a experiência de relações humanas, mas, também, o desenvolvimento da espontaneidade/ criatividade, a aprendizagem de papéis, conceitos, atitudes através da vivência sociopedagógica. Através dessa metodologia, são trabalhados os conteúdos da educação formal (ensino) e também a aprendizagem relacional e crítica da realidade nos grupos pesquisados, propicia a leitura dos grupos e da rede de relações, numa perspectiva de educação pela e para a ação.

A pesquisa teve uma abordagem pedagógica e não terapêutica, cuja diferenciação decorreu nos objetivos e não nas técnicas psicodramáticas. Enquanto o psicodrama terapêutico aprofunda as questões pessoais, permitindo que o indivíduo exteriorize o seu problema representando-o, o sociodrama atua no grupo no âmbito das questões pedagógicas, relacionais. Para Luckesi (2000, p.38) "[...] as atividades lúdicas são catárticas, o que quer dizer liberadoras das fixações do passado e construtoras das alegrias do presente e do futuro"; de forma semelhante Schutzenberger (1970, p.23) diz que "o psicodrama libera inibições, dificuldades, traumatismos passados, por seu ressurgimento"; essa autora considera que o psicodrama é concomitantemente pedagógico e terapêutico, porque o limite de separação é muito tênue entre eles. Portanto, o ludodrama pode ser considerado uma socioterapia, por ser um método de educação terapêutica e ensejar, no desempenho de papéis, a organização dos demais papéis dos atores escolares. Encoraja, ainda, o grupo a uma vivência plena, a estar inteiro naquilo que faz, ou seja: expressar a sua criatividade/espontaneidade, a individualidade/ potencialidade na solução dos seus problemas.

 

O vínculo no cotidiano escolar: visão de sobrevoo

Na condição de narradora, vou mostrar a recorrência de fatos, emoções, ações, no sentido de expressar o que vi e vivi no cotidiano de uma escola pública, quando do convívio e da vivência de atividades lúdicas e sociodramáticas no ensino fundamental, na busca de compreender a importância do vínculo para a aprendizagem e a convivência entre os estudantes. Os personagens desse enredo são adolescentes cheios de vida, entre 11 e 16 anos, que, no cotidiano escolar, expressaram seus conflitos, seus medos, seus saberes, seus ódios, seus amores, na realidade dos vínculos estabelecidos e no drama vivido em tempo presente, atualizados no ludodrama.

Na fase inicial da intervenção, no segundo semestre de 2005, os resultados dos instrumentos utilizados, questionários, entrevistas e teste sociométrico, indicavam que a relação entre os estudantes do grupo A estava muito ruim. A turma estava com alguns problemas identificados -defasagem idade/série, problemas de aprendizagem, indisciplina -e trazia o indesejável rótulo de "turma dos repetentes". De modo singular, o teste sociométrico, cujo critério foi escolher um colega para sentar ao seu lado em sala de aula, tornou visível, através dos sociogramas (gráficos que mostram as correntes psicológicas e as eleições dos sujeitos), a força de atração, a repulsa e a indiferença entre os estudantes. Depois de um semestre de convivência, três estudantes não foram escolhidos por ninguém da turma; não havia também, nas escolhas, reciprocidade: Edu escolheu Ney, que escolheu Eric, que escolheu Crispin, e assim escolhiam pessoas que lhes eram indiferentes; o grupo dos meninos estava isolado das meninas, dois grupinhos fechados entre si; somente dois meninos escolheram duas meninas, com reciprocidade. Essa desarmonia mapeada no sociograma era confirmada na prática, nos jogos e nas brincadeiras: não queriam pegar nas mãos dos colegas, demonstravam receio de falar e se expor, constantemente se agrediam física e verbalmente. Foi diante dessas dificuldades e de todas as reações que essas tensões provocam, que ficamos frente a frente: a pesquisadora, com uma proposta lúdica/sociodramática, e a turma, pedindo para melhorar a agressividade, a violência, a convivência em sala de aula -estava clara a necessidade da melhoria nas relações (vínculo), com urgência.

A metodologia básica foi realizada em três etapas: o aquecimento, feito com jogos e brincadeiras; o desenvolvimento, com dramatizações de temas trazidos por eles e, em seguida, o compartilhar, com trocas de ideias, opiniões sobre os sentimentos e conteúdos vivenciados. A vivência dos jogos, brincadeiras proporcionavam o contato com os conteúdos, emoções in status nascendi, isto é, da forma como apareciam, o que dava uma oportunidade de resposta também espontânea e criativa, para atender a demanda através de uma condução não pautada no autoritarismo e nem no poder, para impor qualquer ordem aos educandos. Esse foi um dos grandes desafios, devido aos comportamentos inadequados, instituídos, hábitos trabalhosos para serem ultrapassados. Foi grande o desafio e, muitas vezes, como pesquisadora, fiquei num dilema, sem saber que jogo jogar, diante da falta de limites, da indisciplina, agressividade e da falta de um ambiente propício à aprendizagem.

A principal estratégia de ação que favoreceu novos modos de interagir e se comunicar nesse grupo, inicialmente, foram as atividades lúdicas: pela energia que emanava do estado lúdico e fluía na brincadeira do grupo, deixando o ambiente agradável; depois, as atividades sociodramáticas. As primeiras, oportunizaram a manifestação dos conflitos, as relações de exclusão e rejeição; aos poucos, através do clima afetivo e lúdico, foram revitalizando e reconstruindo as relações. Quando fizeram o sociodrama "Um dia na escola", mostraram, com muita espontaneidade, três cenas: a droga na escola, a discriminação racial e a forma como eram tratados em sala de aula. Após dois meses de atividades, o comportamento começou a mudar; assim que chegavam, tiravam, com boa vontade, as carteiras da fileira, dispunham em círculo e se colocavam à disposição para começar.

Ao final da intervenção, um dos saldos mais positivos foi observar que os estudantes considerados indiferentes aos colegas, no início da pesquisa, se integraram ao grupo; os que participaram das atividades cooperavam entre si, ficaram mais unidos; não sei se realmente posso dizer que a intervenção influenciou totalmente na aprovação final, mas o certo é que, dos nove que frequentavam regularmente, somente uma estudante foi reprovada, enquanto, dos dez restantes que não frequentavam as atividades de vínculo, somente um foi aprovado, apesar de serem multirrepetentes. Essa turma precisava de um cuidado especial, como diz Clarice Lispector (1998, p. 39): "Não sei a quem acusar, mas deve haver um réu".

A experiência mostrou que é mais difícil criar vínculos quando não se cuida da integração com a turma no início do ano letivo e também quando a confiança entre os estudantes é quebrada também no início, o que exige um trabalho de reconquista. Foi a maior dificuldade enfrentada por esse grupo. Baseada nessa crença e na experiência com o grupo ("A"), resolvi continuar a intervenção com outro grupo ("B"), no início de 2006, pela possibilidade de ter, nesse grupo, oito estudantes do grupo anterior, que foram aprovados para a 6ª série.

O grupo "B" enfrentou dificuldades no relacionamento, porém, em escala menor que o grupo "A"; a relação do grupo entre si e com os professores, desde o início da pesquisa, foi bem melhor. Como falei anteriormente, o trabalho de integração deve ser iniciado nos primeiros contatos da turma, antes que percam a confiança e iniciem as desavenças. No final do semestre, não houve evasão no grupo "B", somente uma estudante foi transferida, e o grupo, como um todo, se relacionava bem, desenvolveram vínculos entre si, o clima em sala de aula era amistoso. Vejamos alguns depoimentos dos estudantes, após a intervenção:

-"Fiquei melhor nas notas, com os colegas, com a família e com os professores" (Erik - 13 anos); notou mudança em você? "Quando eu parei de filar as aulas. Quando eu comecei a frequentar as aulas principalmente as de vínculo". (Cely - 14 anos); os colegas mudaram? "Vários pararam de perturbar alguns outros colegas" (Jesy - 14 anos); "Eles começaram a ficar mais mansos, porque eles eram uns colegas agitados". (Mary - 12 anos); "Antes eu ficava abusando na sala e as professoras não me suportavam, porque eu era um menino abusado, eu irritava os professores". (Ney - 13 anos); "Sim! Mudou, minhas notas aumentaram e bastante". (Katy - 12 anos); "Eu mudei depois das aulas de vínculo e é melhor ficar quieto na sala". (Ney - 13 anos); o que aprendeu? "Que devemos ficar mais unidos, mais amigos, para superar as brigas e serve para o resto de minha vida" (Lino - 13 anos); participando me senti... "Mais leve, mais amada, mais querida, mais amiga, mais adorada, mais enturmada. Acho que eu precisava dessa aula de vínculo" (Uíse - 13 anos). "Que as aulas continuem assim boas e cheias de alegria". (Cely - 14 anos).

Ao cerrarem-se as cortinas desse drama escolar, o ideal é que a escola não continue colocando os seus atores fora dela, que não fiquem com suas dimensões vitais silenciadas, pois educandos e educadores têm muito a dizer nesse palco, para tornar esse ambiente, fecundo de ideias, sentimentos, alegrias e esperanças, um viver melhor.

 

Considerações conclusivas

A intencionalidade é uma forma de viver e refletir sobre as consequências do nosso fazer. Voltando ao foco da propositividade da pesquisa, posso afirmar, pelos resultados já descritos, que os objetivos foram alcançados. Os resultados confirmaram a eficiência do ludodrama. O grande diferencial dessa metodologia é dar condições para a construção de um espaço relacional continente e possibilitar, num campo relaxado, o aparecimento dos conflitos, que ficavam camuflados por um ideal de escola, com estudantes sentados em fileiras, contidos em seus corpos e emoções, na ilusão de que é possível conseguir resultados satisfatórios, sem considerar o ator aprendiz como o principal centro de referência da ação educativa. No momento em que foi possibilitada a expressão dessas vozes e desses corpos, o espanto e o impacto eram constantes, ao mostrar em suas histórias versões da realidade que permitiam entender e transformar os mitos e fantasias com os quais convivemos, sem saber o quanto afetam nossa qualidade de vida.

A partir desse olhar, sustento que tanto pela observação do desenvolvimento do vínculo entre os estudantes quanto por meio da reflexão sobre seus depoimentos, pelos resultados na aprendizagem, principalmente do Grupo "B", cujo trabalho foi desenvolvido em condições mais favoráveis que o Grupo "A", é possível afirmar que esses jovens cresceram como seres humanos, e tudo isso foi intermediado pela ludicidade e pelo sociodrama, ou seja, pelo brincar e amar.

Acredito que a escola, para recuperar-se como espaço de crescimento intelectual e desenvolvimento humano, como ambiente fomentador de encontro de mentes e corações - no qual o autoritarismo, a discriminação, a agressividade, o desrespeito e a opressão não sejam modos costumeiros de viver, mas, fragilidades e erros ocasionais da convivência - deve proporcionar espaço à racionalidade, à emoção e à ludicidade, como possibilidade de pensar e conviver na atmosfera do vínculo amoroso.

 

Referências

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Endereço para Correspondência
Av. Leovigildo Filgueiras, 422 Ap. 304, Ed. Sol Nascente. Garcia
CEP 40100-000, Salvador -BA
e-mail: aluramos@yahoo.com.br

 

 

* Mestre em Educação pela Faced/UFBA; especialista em Psicodrama Pedagógico pelo Centro de Psicodrama e Sociodrama, CEPS/BA; membro participante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Ludicidade Gepel/Faced/UFBA