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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.19 no.2 São Paulo  2011

 

SEÇÃO LIVRE

Free Section

 

 

A ausência de questões ligadas à sexualidade na obra de Moreno

 

The absence of issues related to sexuality in Moreno's work

 

José Carlos Landini*

IPPG CAMPINAS

Federação Brasileira de Psicodrama

Endereço para Correspondência

 

 


Resumo

O autor procura refletir sobre a ausência da sexualidade na obra de Moreno. Estimulado pelo trabalho terapêutico e após ter visitado a cidade de Pompeia, na Itália, e o Museu de Arte Precolombino, em Santiago do Chile, onde havia uma exposição sobre a tribo Moche, que viveu no Peru do século I ao VIII, e trazendo bibliografias sobre a sexualidade destes povos, foi possível notar semelhanças de costumes destas populações, tão distantes no tempo e espaço uma da outra, e ainda a extensa bibliografia do Egito. Estes conhecimentos, somados às mudanças revolucionárias da sexualidade feminina, a partir do final do século XIX e início do XX, deram ânimos ao autor para refletir sobre o tema e escrever este artigo, por certo polêmico. Embora Moreno se sustente teoricamente no binômio espontaneidade/criatividade, o autor sempre sentiu falta de como age o sexo na personalidade humana, pois, sua prática, sem espontaneidade e criatividade, torna-se vazia; mas, e na formação da pessoa, ele tem algum valor, alguma função? Respondo que sim, se Freud o fez como centro da personalidade e na formação do EU, Moreno o ignorou, sendo sobre isto que o autor se propõe a refletir.

Palavras-chave: Sexo sagrado, espontaneidade, sexo na humanidade, socionomia.


Abstract

The author of this paper reflects on the absence of sexuality in Moreno's work. Inspired by his therapeutic work, having visited the Italian city of Pompey and an exhibition at the Museum of Pre-Colombian Art in Santiago de Chile about the Moche tribe who lived in what today is Peru between the 1st and 8th century, and having red about the sexuality of these cultures as well as the extensive bibliography about Egypt, the author observes similarities between the customs of these populations living at great geographical and temporal distances from each other. Bringing these experiences together with the revolutionary changes in women's sexuality that took place at the end of the 19th and the beginning of the 20th century, inspired the author to reflect on this subject and write this somewhat polemic paper. While Moreno's theory is underpinned by the spontaneity/ creativity binomial, the author always felt it lacks considerations regarding how sex contributes to human personality, as in the absence of spontaneity and creativity sex becomes an empty exercise; therefore the author wonders whether sex would have any particular value or function in our personal development. He believes that is has, and explores why Moreno might have ignored this subject, when Freud saw it as central in the development of the personality and self.

Keywords: Sacred sex; spontaneity; sex in humanity; socionomy.


 

 

O Sexo está entranhado em todos os aspectos da vida. Por isso, as histórias aparentemente sem conteúdo sexual podem evidenciar a sexualidade de quem as conta, e aquelas com conteúdo claramente sexual podem referir-se a temas muito distantes da sua sexualidade.

Tomas Moore - A alma do sexoito.

 

INTRODUÇÃO

Achei por bem iniciar minha exposição com duas respeitáveis afirmações de Jaques Ruffié (1988):

"O sexo e a morte são dois tributos que pagamos ao progresso evolutivo. São dois fenômenos complementares, mas surpreendentemente contrastados. O primeiro ocorre na alegria, no prazer, e na esperança; o segundo no sofrimento, no horror e no vazio"

e

"A morte é um fenômeno biologicamente necessário, sem o qual a sexualidade estaria sem objetivo". Poeticamente ele completa que o cadáver de uma jovem em flor poderia estar dizendo "viram em mim o que sois/ sereis o que sou".

Não é tarefa fácil identificar e menos ainda provar o que veio primeiro - o sexo ou a espontaneidade -; é razoável pensar-se que o fator e é bem antigo na espécie humana, talvez, mais precoce do que Moreno tenha pensado e imaginado. A este respeito e como fio condutor, transcreverei algumas palavras de Moreno (1993), que foram citadas e comentadas por Martin (1984) "(...) a espontaneidade é o fator que faz parecerem frescos e flexíveis todos os fenômenos psíquicos. É o fator que lhes confere a qualidade de momentaneidade". Aceitando-se esta definição, e eu a aceito, ela estará presente no sexual tornando-o saudável, além disto, acrescento e lembro que ele chamou o fator e de "centelha divina". Independentemente de ser ou não tal afirmação metafórica, aqui nos veremos diante de uma situação ímpar: quem disse isto? Moreno terapeuta ou Moreno profeta? Não cabe aqui aprofundar esta discussão, embora tenda a pensar na presença de sua religiosidade, mas, vale a pena, ainda embasando em Garrido Martin, citar e transcrever posições de Moreno que acabam por ser contraditórias, as quais trazem dificuldades a nós, psicodramatistas, discernir algumas de suas ideias. Na obra de Garrido Martin encontra-se a seguinte frase de nosso autor "O homem deve ser estudado como homem e não em consequência de haver sido, filogeneticamente, um animal. O ser humano deve ser estudado como é, em sua atuação, sem comparações bastardas com seres de categoria inferior".

Nesta afirmação e em outras tantas, como bem disse Garrido Martin, fica clara a agressividade de Moreno, sobretudo quando confronta sua teoria com a freudiana. Para mim, ele foi infeliz na frase acima citada, pois, ao usar categoria inferior, nos dá ideia de um juízo de valores e, quanto ao uso de bastardo, é difícil entender o que ele quis dizer com esta palavra, pois, se a entendo como um filho que não é do matrimônio, posso pensar que ele quis aludir a uma dicotomia entre as espécies que se sucederam na evolução humana. E, comentando suas palavras grifadas por mim, o que entenderia ele por inferior? Cito outra afirmação em que ele se contradiz: "O lugar do fator e numa teoria universal da espontaneidade é uma importante questão teórica. Surgirá o fator e somente no grupo humano ou a hipótese e poderá ser ampliada dentro de certos limites, aos grupos subumanos e aos animais inferiores e plantas?" (1993) Se na primeira definição ele foi taxativo em relação a seres "inferiores", nesta segunda ele torna sua hipótese de tal forma abrangente que se permite incluir as plantas, mas ainda chama de subumanos aos nossos antecessores, embora esta palavra não esteja de todo incorreta.

Faço estas ponderações porque, para uma maior compreensão da sexualidade, parto dos "supostos seres inferiores" ou "subumanos", pois sou adepto da teoria evolucionista de Darwin e dos pós-darwinianos, que trouxeram novas luzes à teoria evolutiva e, na concepção evolucionista, não há lugar para dizer que houve solução de continuidade entre os seres que sucederam a cada um dos anteriores. Toda e qualquer aquisição vantajosa era fixada em nosso cérebro dando ao descendente a vantagem do adquirido, assim nosso encéfalo mantém em pleno funcionamento aquisições desde o primeiro sistema nervoso central, o reptiliano. (Landini, 1998)

Os primeiros seres vivos que surgiram na terra foram os unicelulares, nos quais a reprodução se dava de forma assexuada, isto é, cada pai dividia- se em dois filhos, que eram absolutamente idênticos a ele, isto é, com o mesmo cromossomo. É o que diz Jaques Ruffié (1988).

 

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A EVOLUÇÃ O HUMANA

Na direção da flecha do tempo (evolução), as células se agruparam dando origem aos pluricelulares e, na sequência (dou aqui um salto na continuidade evolutiva para chegar nos vertebrados e mamíferos), instaura- se então o sexo ou a reprodução sexuada. A questão teórica que se impõe é: estaria presente nesta aquisição o fator e? A resposta é difícil, mas é provável que não, poderia se pensar no, chamado por Fonseca Fº (2000) instinto de relação, do qual falarei adiante.

Temos, portanto, duas formas de reprodução, a sexual e a assexual. A primeira apresentou inúmeras vantagens reprodutivas e evolutivas, promoveu a redistribuição dos genes, o que encerra profundas repercussões, faz com que cada geração seja diferente da anterior, pois os genes se associam aleatoriamente, fazendo com que cada filho seja diferente de seus pais e também dos irmãos, exceto os gêmeos univitelinos. Diz Ruffié (1988) que esta é uma condição sine qua non da evolução, enquanto esta versatilidade não é encontrada nos assexuados.

Para falar de sexo e, se possível, combinando as duas afirmativas de Moreno citadas, tenho que retroceder na flecha do tempo em pelo menos quatro a cinco milhões de anos. É o momento em que os ainda não humanos adquiriram a posição bípede permanente e foram batizados com o nome de australopithécus.

Esta nova postura provocou, ou melhor, promoveu inúmeras e quase que imediatas transformações, tais como: a verticalização do corpo e cabeça, o que, por sua vez, proporcionou mudanças nas práticas sexuais: aqueles seres passaram a copular face a face, o que diferenciou completamente o homem de outros animais, até mesmo dos primatas mais próximos aos sapiens. (para um aprofundamento deste tema, recomendo a leitura de 1998 e 1988). Outra modificação de suma relevância foi a liberação do polegar, permitindo àqueles possibilidades de, por exemplo, manufaturar armas e outros objetos que foram chamados, por Moreno, de conserva cultural. Disse ele (1993):

"deve ter sido difícil para as mentalidades primitivas de uma cultura primitiva, inferior - ou para os primeiros estágios da nossa cultura - desenvolver a ideia de momento e mantê-la (...) Aos nossos ancestrais deve ter sido muito mais útil e valioso empregarem todas as suas energias na promoção das conservas culturais e não confiar nas improvisações momentâneas no caso de emergências individuais e sociais (...) As conservas culturais serviram para dois fins: eram prestimosas em situações ameaçadoras e asseguravam a continuidade de uma herança cultural (...)"

Abro um parêntese para realçar contradições morenianas: ele se refere aos primitivos, novamente, como inferiores, para, em seguida, dizer nossos ancestrais (antropologicamente correto), portanto, concluo que Moreno não abdica completamente da teoria evolutiva; além disso, não seriam estas aquisições produtos da inventiva humana? Aceitando-se esta minha leitura, tem-se a conclusão de estarmos diante da espontaneidade como fator que impulsionou aqueles seres a sobreviver e dar sequência ao processo evolutivo, construindo prestimosos objetos que lhes proporcionaram a sobrevivência. A favor desta hipótese, faço referência à afirmativa de nosso autor, de que conserva cultural e espontaneidade são polares, "uma é polo da outra". (1993)

Houve outras mudanças morfológicas e psíquicas na sequência evolutiva (ver Fonseca, 2000). Cada mudança, por sua vez, provocava novas alterações. Copular face a face proporcionou intensas e importantes modificações - psíquicas e comportamentais - como, por exemplo, a oportunidade de se olharem e se verem mutuamente. Com esta nova maneira de ser, ficou possível perceber sensações e sentimentos estampados nas expressões faciais, o que favoreceu ou promoveu o desenvolvimento da sensualidade e, aceitando-se esta curva evolutiva - cuja sequência aqui é apenas pedagógica - houve, como consequência, a descoberta do sexoprazer. É provável que esta aquisição não tenha acontecido neste estágio da evolução, mas, a partir do Homem de Neanterthal, que viveu entre cem a cento e cinquenta mil anos atrás. Citei acima a possibilidade, teoricamente provável, de que a confecção de armas e utensílios poderia ser fruto da presença e, portanto, da aquisição da espontaneidade; comprovada tal hipótese, ter-se-ia que concluir que o fator e já corroborou e possibilitou a descoberta do sexo-prazer, portanto, esta importante aquisição terá que ser datada da pré-história.

Falam, a favor desta hipótese, as cerâmicas encontradas por arqueólogos e que mostram a sexualidade no período anterior à descoberta da escrita, como, por exemplo, a Vênus encontrada em Willendorf, na Áustria. Dizem Regina Navarro Lins e Flavio Braga (2005) que, nesta época, reinava o matriarcado, as mulheres mais velhas eram as chefes do clã numa sociedade de parcerias, mas cabia a elas administrarem a produção e distribuição dos frutos da terra, que pertenciam a todos.

A Vênus foi representada com nádegas e seios imensos, quadris largos, barriga proeminente e fenda vaginal bem visível (reprodução em Lins e Braga, 2005).

Naquele momento, o homem ignorava sua participação na procriação, o que só veio a descobrir muito mais tarde. Provavelmente, observando os animais, "perceberam" que as ovelhas mantidas em cativeiro não procriavam. Neste período, anterior a 3.500 anos a.C., cultuavam-se as deusas, como a Rainha dos Céus; a Nammu, "a mãe que deu à luz os céus e a terra", segundo os autores acima citados; havia outra deusa, nomeada por Nanshe de Lagash, "a que busca justiça para os pobres e abrigo para os fracos". Não era difícil aos homens concluírem pela certeza de que eram as mulheres que reproduziam, afinal, a gravidez é claramente observável, enquanto a contribuição masculina exigia raciocínios mais abstratos, talvez pouco ou nada desenvolvidos. Os homens colocavam na natureza o fenômeno da procriação (engravidar), por exemplo, - o vento era um sopro da mãe natureza, a chuva que fertilizava a mãe-terra foi também responsabilizada pela complementação da gravidez e, novamente, temos um elemento facilmente observável, pois com as chuvas as plantas cresciam e se reproduziam. Este era um fato concreto.

Outra interpretação era que os TOTENS lutavam na barriga da mulher, e se o TOTEM DO HOMEM era mais forte, daria origem à gravidez (Auel, 2003). Se o macho ignorava sua participação na procriação, não se pode pensar em sexo procriativo; vejo-me então, diante de uma instigante e intrigante pergunta: por que copulavam, era puramente instintivo? Ou o instinto de relação, como disse Fonseca Fº? Havia, sem dúvida, a prática sexual, pois a gravidez é prova inconteste, mas o que pensar então, já que um dos lados - o masculino - ignorava que era copartícipe da ação procriativa? Posso pensar em duas hipóteses: a primeira é que o sexo-prazer já se fazia presente, hipótese que levantei logo acima; segunda, estando descoberto o prazer, a espontaneidade estaria instaurada e iluminava e dava brilho à copula. É o que me resta pensar, pois se os homens desconheciam a coparticipação procriativa, pensar no prazer auferido pelo sexo tornou-se um bem evolutivo indiscutível e responde à pergunta: se ignoravam a coprodução na criação, por que copulavam? Em favor desta hipótese vale lembrar Moreno:

"(...) Somos favoráveis à hipótese de que o fator e não é, estritamente, um fator hereditário nem, estritamente, um fator ambiental. No estado atual das pesquisas biogenéticas e sociais, parece ser mais estimulante supor que, no âmbito da expressão individual, existe uma área independente entre a hereditariedade e o meio ambiente influenciada, mas não determinada pela hereditariedade (genes) e as forças sociais (tele). O fator e teria uma localização topográfica nessa área. É uma área de relativa liberdade e independência das determinantes biológicas e sociais, uma área em que são formados novos atos combinatórios e permutações, escolhas e decisões, e da qual surgem a inventiva e a criatividade humana. (...)" (1993)

Será que hoje, com os progressos da neurociência, poderemos elucidar esta hipótese? A pergunta fica em aberto.

Moreno, repito, fala de forma sucinta e esparsa sobre a sexualidade; colocarei aqui algumas de suas frases que, para mim, se apresentam com grande força e profundidade: "o contato corporal do bebê com a mãe é precursor do ulterior papel sexual" (1993). A frase, com seu entusiasmo afirmativo, pode ser relacionada, em parte, à teoria da libido, com a qual nosso autor tanto se confrontou.

Cito de Moreno uma frase para melhor compreensão dos objetivos deste artigo:

"É a própria 'dimensão' (destaque do autor) da situação psicanalítica que provoca a aparição da neurose de transferência e resistência, por causa: a) do condicionamento físico, que consiste em um divã e um médico sentado atrás do mesmo; b) da situação irreal entre terapeuta e paciente (o paciente compartilha um mesmo local, com um observador que constantemente se abstém de interatuar); c) da relação de uma pessoa superior versus outra subordinada; d) a posição horizontal sobre o divã, de onde o paciente não se pode levantar, se relaciona em sua mente com dormir, sonho e sexo (grifo meu) com subordinação, retração da realidade e relação amorosa. Em vez de sustentar que o fato da transferência constitui a prova mais irrefutável de que as forças impulsoras da neurose residem na vida sexual, por que não invertermos (itálica do autor) a afirmação dizendo que a situação física e psicológica da psicanálise se estrutura de tal maneira que convida (grifo do autor) o paciente a produzir a transferência e enamorar-se do terapeuta? Quando isto ocorre no curso do tratamento, talvez se deva a uma intenção inconsciente do método: consolidar a respectiva teoria" (1993).

Não há o que discordar de sua conclusão, mas tal afirmativa é válida para qualquer teoria. Segundo Judd Marmor (1973), "Quando um pesquisador inicia um trabalho com a intenção de demonstrar um ponto determinado, a tendência inconsciente pode permitir-lhe prová-lo, influenciando sutilmente sua escolha de casos, bem como suas percepções e julgamentos...".

Garrido Martin (1984) faz referência à coincidência de Freud e Moreno escolherem uma mulher como caso típico para desenvolverem suas teorias: o primeiro encolheu Ana O, e o segundo, Bárbara.

Sim, o sexo está presente no raciocínio de Moreno, ele interpreta - palavra que uso não no sentido da dinâmica psicanalítica - que a técnica e, especificamente, a presença do divã são facilitadoras do surgimento de algo sexual; sendo este o seu caminho, temos que convir que nosso autor não ignorava a força da sexualidade na formação da identidade humana e, a partir de suas afirmativas referindo-se à psicanálise, posso pensar o quanto o sexo é importante para ele, não devendo ser desprezado. E no tablado - palco - ele não se apresenta? Posso responder à pergunta que faço dizendo que sim, e acrescento a importância das ferramentas que temos para lidar com ele, seja no aqui e agora ou no ontem, pois ele estará presentificado na dramatização pela atemporalidade do inconsciente (Landini, 1998).

Ainda no mesmo sentido do confronto Moreno versus Freud, cito: "(...) o divã isola o indivíduo , separa-o da realidade, paralisa a ação, incita ao monólogo da livre associação com predomínio da palavra, condiciona a matéria do monólogo: sexualidade, sonho (...)" (Moreno, 1993) Posso concordar em parte com nosso autor, mas a pergunta que paira no ar é: por que ele enxerga sexo provocado pelo isolamento do indivíduo no divã e não o encara no palco e nas técnicas psicodramáticas? E, mais ainda, não só ele não se refere ao sexo no tablado como também o ignora na sua brilhante teoria.

Moreno investe contra a livre associação, entretanto, diz "no psicodrama a livre associação é substituída pela livre ação, mas a contém", ou, numa frase mais simples, ele diz, "a ação precede a palavra e a inclui" (1993).

Continuando com citações dele,

"Jonathan prefere a troca de papéis com sua mãe, mesmo podendo conseguir uma inversão mais completa com o pai, dada a semelhança de sexo. (grifo meu) Porém a configuração física da pessoa com quem inverte papéis é secundária. O fator principal é aparentemente a pessoa (destaque do autor) e não a sexualidade dessa pessoa" (1993).

Aqui, novamente, ele se insurge contra a sexualidade, como uma negação da possibilidade de que a sexualidade poderia estar presente na relação com a mãe. Será que o confronto com o Édipo freudiano não ofuscou sua visão? Ainda no mesmo sentido, teria ele a neutralidade suficiente para enxergar a sexualidade do filho com a mãe, esposa de Moreno? Não uso aqui o termo neutralidade tal qual proposto pela psicanálise, mas sim num sentido de ter um distanciamento afetivo da cena ou do evento, distanciamento também necessário quando se dramatiza com 'estranhos'. Não entendam distanciamento como isolamento ou inexistência de sentimentos. Aliás, Moreno deixa bem clara a necessidade de distanciamento da cena em seu livro Hipnodrama e Psicodrama (1950); ali ele diz que, ao colocar em cena o ego-auxiliar, o diretor fica livre das projeções transferênciais, que podem ter um fundo sexual do protagonista. Acima trouxe Moreno dizendo o quanto o divã influiria nos sentimentos para com o terapeuta, e neste texto que relato, ele deixa claro que a transferência só não é avassaladora para com o diretor porque na cena o ego-auxiliar elimina a relação direta do protagonista para com o diretor. Não fora isto, a relação com o diretor seria a mesma do divã?

O Édipo freudiano não é totalmente negado por Moreno, ele apenas o complementa e lhe dá uma maior amplitude, isto é, um Édipo relacional: "A trama das relações das três pessoas, os atritos produzidos entre elas, os choques entre seus complexos, determinam o processo psicossocial (itálicas do autor) efetivo de suas inter-relações, que difere qualitativamente do que aparece se olharmos exclusivamente para Édipo" (1993).

Na atualidade podemos acrescentar, para reflexões, nas famílias homoafetivas e assim pensarmos na função de pai e na função de mãe, ou então papel de pai e de mãe.

Retomando a fala anterior sobre Jonathan-mãe-Moreno e aproveitando- me desta proposta do Édipo moreniano, e sendo Moreno um dos vértices do triângulo - Zerka, Moreno, Jonathan -, teria ele plena consciência de suas relações com cada um deles e também deles com ele, e dele com os outros dois? Parece-me difícil, mesmo a um gênio como o foi nosso autor.

Garrido Martin, na obra citada, faz o seguinte comentário sobre as afirmações de Moreno, no que concerne a Jonathan e sua mãe:

"Sua crítica ao complexo de Édipo, baseada na experiência de seu filho, generalizada pela sua afirmação de que a criança não leva em conta o sexo, mas a outra pessoa, é infundada. A experiência com seu filho não se passa na idade edípica, mas numa etapa anterior; Jonathan não havia completado três anos. Sua teoria da socialização através da identificação com papéis, ultrapassa o que Moreno considerava pequenezas psicanalíticas" (1984).

O confronto com Freud, tão claramente mostrado por Martin, é aproveitado por mim para ilustrar e me ajudar naquilo a que me propus, a ausência do sexo na socionomia. O tema do confronto - Moreno versus Freud - pode ficar encerrado com as palavras do próprio Moreno, ao fazer uma tentativa de "junção" do psicodrama com a psicanálise. Diz ele, "o divã continua presente em e sobre a cena e em todas as suas dimensões: vertical, horizontal e de profundidade" (1984).

Continuo garimpando na obra de Moreno suas menções sobre sexo, transcrevo esta colocação de Garrido Martin que é bem ilustrativa e confirmativa da falta que faz na sociometria este tema:

"É imperdoável a sua (refere-se a Moreno) omissão no que diz respeito ao reconhecimento científico da psicanálise quando, ao aplicar seu método sociométrico ao estudo das idades para fixar as etapas evolutivas da sociabilização, utiliza, entre outros critérios, o sexual. Os resultados numéricos teriam sido um argumento irrefutável para justificar a teoria freudiana da evolução da criança, porém Moreno se omite completamente, tornando-se culpado por traição" (1984).

Neste mesmo item, Garrido Martin diz que Klineberg participa do mesmo pensamento.

Não fosse sua preocupação em confrontar suas ideias com as de Freud e tentar provar que a sua era superior, é bem provável que sua genial teoria, sua espontaneidade e criatividade não tivessem passado desapercebidas e em nada seriam desvalorizadas se tivesse voltado seus olhos e reconhecido o valor do sexo na formação da personalidade humana. Acredito que, na verdade, sua teoria estaria enriquecida, tanto para se entender a "normalidade" como o patológico.

Continuo minha pesquisa sobre o sexo na obra de Moreno e verifico que, pela suas citações, justificaria a ele aprofundar o tema.

Cito outro exemplo, quando Moreno conceitua as redes de comunicação sociométricas: "As redes são, sem dúvida, um dos elementos essenciais à constituição do grupo e por isso, quanto mais antigos forem estes, mais estarão desenvolvidas e mais influirão no indivíduo ao nível inconsciente" (1993).

Após esta afirmação, Moreno (apud Garrido Martin 1984) classifica as redes da seguinte maneira: "(1) segundo suas causas: a) correntes sexuais (destaque meu) b) raciais, c) sociais, d) industriais e e) culturais; 2) segundo o princípio de sua formação: a) correntes positivas e negativas, b) correntes espontâneas e contracorrentes, c) correntes primárias e secundárias, d) correntes iniciais e terminais, e) correntes principais e laterais". (1984 p. 202)

 

Nesta transcrição fica novamente patente a importância que ele próprio confere ao sexo na pessoa humana, o qual ele cita mas não desenvolve.

Deixo aqui de garimpar suas afirmações sobre sexo, que, embora valiosas, não são desenvolvidas e não raramente ficam como elementos negados ou relegados, pois lhes faltam aprofundamento.

Garrido Martin argumenta que Moreno "reconhece implicitamente a transcendência alcançada pela psicanálise e não se atreve a ignorá-la. Tenta miná-la num assédio progressivo para, finalmente, fixar-se uma meta bem clara: superá-la" (1984).

Entre nossos expressivos psicodramatistas contemporâneos, José de Souza Fonseca Filho ousou e desenvolveu uma teoria da sexualidade humana no Psicodrama (2007). Fiel ao conceito de matriz de identidade ou sociométrica, encontramos em seu livro os seguintes temas: "A sexualidade como instrumento relacional, Identidade sexual, Homossexualidade, Sociometria sexual, Tipos de sexualidade e Sexualidade e evolução pessoal" (2000), e elaborou uma Matriz Sexual.

Ronaldo Pamplona Costa também publicou um livro (1994), embora numa linha de raciocínio à do Fonseca: traz algo da biologia, da psicanálise e da antropologia.

 

CONSIDERAÇÕ ES FINAIS

A medicina apodera-se do estudo da sexualidade a partir do século XVII-XVIII, mas não estava livre dos conceitos e preconceitos de ordem religioso-cultural, haja vista que a homossexualidade foi tida como enfermidade até o final do século passado.

A partir do final do século XIX e início do XX iniciam-se as grandes transformações da sexualidade e, principalmente, coube às mulheres este desafio daquilo que, num futuro próximo, se nomearia de Revolução Feminista; é mais ou menos nesta época que Moreno publica sua primeira "tese" 12911 (A Divindade como Comediante). Este seu escrito coincide com o movimento feminista, que iria tomar corpo e força num futuro próximo; pergunto: por que Moreno ignorou, se é que ignorou, tais transformações da sexualidade a ponto de não inseri-la em sua teoria? Por que a ausência das questões sexuais na socionomia moreniana? Será que suas propostas tomariam outro caminho, se ele tivesse se ocupado da sexualidade? Acredito que o caminho seria o mesmo, e talvez, mais completo.

Felizmente esta lacuna acabou sendo preenchida por Fonseca Filho (2000), da qual não falarei aqui, por ser extensa e bastante conhecida; destacarei apenas algo de sua introdução:

"(...) a relação humana, como um todo, precede à sexualidade. O homem é movido pelo instinto de relação. A sexualidade é um dos instrumentos relacionais e os distúrbios sexuais seriam, por conseguinte, responsáveis por uma parte dos distúrbios relacionais. (...) Opor-se às clássicas colocações de Freud sobre a sexualidade, mesmo estando no limiar de um novo século e na iminência de novas ideias, não é tarefa cômoda. Mas, depois de tantos anos de clínica, prefiro correr o risco da ousadia e expor minhas próprias concepções" (2000).

De todo o exposto, chego à conclusão, e imagino que será polêmica, de que os confrontos de Moreno com Freud, claramente identificáveis na obra do primeiro, ofuscaram-lhe a visão, deixando o sexo como um outsider em sua obra.

Repito, o sexo não pode ser separado da espontaneidade, sem a qual as práticas sexuais caem no fosso da inadequação e, portanto, sem o brilho do novo e sem a profundidade interacional, faltando aquilo que pode ser chamado de amor.

 

Referências

AUEL, J. M. Os filhos da terra. São Paulo e Rio de Janeiro: Record, 2003 (cinco volumes).         [ Links ]

FONSECA, J. S. Fº Psicoterapia da Relação: elementos do psicodrama contemporâneo. São Paulo, Ágora, 2000.         [ Links ]

LANDINI, J. C. Do animal ao humano, uma leitura psicodramática. São Paulo Editora Ágora, 1998.         [ Links ]

LINS, N. R. e Braga, F. O Livro de Ouro do Sexo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.         [ Links ]

MARMOR, J. (org.) A inversão sexual. Rio de Janeiro: Imago, 1973.         [ Links ]

MARTIN, E. G. J. L. Moreno: Psicologia do encontro. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1984.         [ Links ]

MORENO, J. L. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1993.         [ Links ]

______. Psicodrama e psicoterapia de grupo. São Paulo: Mestre Jou, 1974.         [ Links ]

______. Hipnodrama e Psicodrama. São Paulo: Summus, 1950.         [ Links ] RUFFIÉ, J. Sexo e a morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.         [ Links ]

 

OBRAS CONSULTADAS

LANDINI, J. C. Monografia apresentada para conclusão de curso de Sexualidade Humana - Homofobia Internalizada, na FMUSP, em 2007.

PAMPLONA, R. C. Os onze sexos. São Paulo: Gente, 1994.

SEIXAS, A. M. R. Sexualidade Feminina: história, cultura, família - personalidade e psicodrama. São Paulo: Senac, 1998.

WEIL, P. Mística do Sexo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976.

 

 

Endereço para Correspondência
e-mail: jclandini@uol.com.br

 

 

*Professor supervisor do IPPG CAMPINAS e da Febrap