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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.20 no.1 São Paulo jun. 2012

 

Seção Temática

Psicodrama e consumo

Thematic section

Psychodrama and consumption

 

 

Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? Psicodrama e consumo

 

What are you thirsty for? What are you hungry for? Psychodrama and consumption

 

 

Valéria Cristina de Albuquerque Brito

Psicóloga. Psicodramatista didata-supervisora. Mestre e Doutora em Psicologia Clínica e Cultura

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ensaio sobre a inserção do Psicodrama no campo das psicoterapias na sociedade brasileira contemporânea. Com base em uma discussão sociocultural do sofrimento humano e de suas possibilidades de compreensão, superação e tratamento em diferentes períodos da história recente, argumenta-se em favor do Psicodrama e seu potencial na sociedade contemporânea como discurso de resistência à homogeneização dos modos de existência.

Palavras-chave: Psicoterapia, consumo, psicodrama, sociedade pós-industrial.


ABSTRACT

Focusing primarily in the Brazilian Psychodrama, this essay endorses Psychodrama as a powerful psychotherapeutic method in contemporary society. Considering the social and cultural context in which human suffering has been understood, surpassed and treated in recent times, the author argues that Psychodrama is a resistance discourse facing the homogenization of life styles.

Keywords: Psychotherapy, consumption, psychodrama, post industrial society.


 

 

A gente não quer só dinheiro A gente quer dinheiro e felicidade
A gente não quer só dinheiro A gente quer inteiro e não pela metade
(Comida, Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto )

Em tempos pós-modernos, muito se fala sobre os malefícios do consumo e de seus derivados. Na esteira dessas críticas, desenvolve-se um discurso banalizado que pode nos impedir de realizar uma crítica rigorosa e necessária aos desvios e aos excessos da sociedade pósindustrial. No âmbito das psicoterapias e do Psicodrama, em especial, cabe questionar como uma noção de subjetividade emerge desse contexto e de que modo a saúde ou o bem-estar subjetivo podem ter se tornado bens de consumo. Neste ensaio pretendo discutir essas questões sob um enfoque socionômico, seguindo o mote moreniano de propor respostas que gerem mais perguntas.

Para tanto, peço sua colaboração, leitor(a), com a forma que adoto na redação do texto com vistas a tornar meus argumentos mais consistentes. Empregarei nas referências à obra moreniana o idioma original em que foram escritas (inglês), por entender que muitas deficiências que são atribuídas aos seus textos e, por decorrência, às suas ideias derivam de traduções e edições equivocadas ou amadorísticas. Entendo que a referência no original me permite citar com mais precisão, oferece a você leitor(a) acesso à minha tradução/interpretação da ideia e permite cotejá-la com outras. Em muitas das ideias que apresento para traçar um panorama da sociedade contemporânea, baseio-me nas obras de alguns autores(as), a saber, Costa (2005), Freedheim et. al. (1992) e Mancebo (2002), que estão incluídas entre as demais referências bibliográficas, mas que não são apontadas individualmente no corpo do texto. Esta escolha visa manter a fluidez do texto, tendo em vista que a dimensão sociocultural é o contexto, mas não o foco da argumentação, e retrata que a visão que apresento sobre esses temas é um mosaico dessas leituras no tempo, é impossível determinar exatamente suas origens.

Inicialmente, discuto o surgimento das psicoterapias, métodos exclusivamente psicológicos de compreender e tratar o sofrimento humano, no âmbito do desenvolvimento das ciências humanas no início do século XX, e procuro identificar a originalidade da proposta moreniana. Na sequência, argumento acerca da história do Psicodrama brasileiro apontando algumas de suas especificidades e concluo com uma apreciação de algumas contribuições da nova geração de psicodramatistas brasileiros, considerando a sociedade brasileira contemporânea.

 

SUJEITO SUPOSTO PODER

As psicoterapias são um dos produtos da Modernidade, da noção do ser humano como um sujeito. Neste ponto cabe lembrar que no Dicionário (Michaelis on line, 2011) sujeito é definido como:

adj. (lat subjectu) 1) Que está ou fica por baixo. 2) Que se sujeitou ao poder do mais forte; dominado, escravo, súdito, submisso. 3) Que se sujeita facilmente à vontade de outrem; dócil, obediente. 4) Que se conforma; que se deixa guiar por outrem ou por alguma coisa. 5) Adstrito, constrangido. 6) Que não tem ação própria; cativo, domado, escravizado. 7) Comprometido a obedecer; dependente; submetido. 8) Que se acha na obrigação de se submeter. 9) Que pode dar lugar, ocasião ou ensejo a alguma coisa. 10) Que tem disposição ou tendência para; atreito. 11) Que está naturalmente disposto, inclinado ou habituado a alguma coisa. 12) Que é de natureza a produzir certos efeitos. 13) Exposto a qualquer coisa, pela sua natureza ou situação: Sujeito a privações. sm 1) Gram. e Lóg. Ser, ao qual se atribui um predicado. 2) Filos. O ser que conhece. 3) Indivíduo indeterminado que não se nomeia em qualquer discurso ou conversação familiar. 4) Homem, indivíduo, pessoa. (http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php? lingua=portugues-portugues&palavra=sujeito)

Ou seja, o termo sujeito, tanto em seu uso original como adjetivo como em seu uso corrente como substantivo, não é uma denominação com um valor universal e reificado, é um termo que denomina não todas, mas uma, entre muitas, modalidades de existência humana. O termo sujeito como designação de ser humano, e por decorrência, o termo subjetividade, apontam para a especificidade sócio-histórica da experiência humana. Empregar o termo sujeito é tomar como modelo o estilo de vida humana que se espalhou da Europa para o restante do mundo e estabeleceu-se como o modo de vida hegemônico na cultura ocidental.

No modelo ocidental de vida, que se tornou hegemônico na Idade Moderna, os seres humanos são definidos como unidades isoladas, indivíduos, e não mais como membros de clãs, tribos e famílias. Paradoxalmente, esse indivíduo mais livre dos mandatos atávicos da natureza é ao mesmo tempo mais dependente do trabalho dos outros e vive cada vez mais próximo de desconhecidos e aos cuidados de entidades abstratas, as instituições do Estado.

O sujeito que emerge na Idade Contemporânea se delineia como protagonista de uma vida pautada pelo conflito, que não é apenas externo, mas sobretudo interno. Estamos divididos entre o que podemos e o que devemos fazer, entre o que desejamos e o que se espera de nós. Se como sujeitos da cultura ocidental moderna, temos a liberdade de ser e escolher, também temos as exigências do aparecer/aparentar e do possuir/obter. E, no mais das vezes, mesmo tendo conquistado as condições materiais que permitem a privacidade, vivemos esses conflitos, inter e intrapessoais, sob os olhares de muitos, sob diversos agenciamentos de controle, na amplidão da vida urbana.

E como corolário desse triunfo da modernidade, nosso poder para vencer a natureza e a nós mesmos, desenvolvem-se as ciências, com suas promessas de progresso por meio do conhecimento e da tecnologia, em última instância, promessas de uma vida sem sofrimento. E de fato, nos últimos 500 anos as ciências tornaram a vida mais longa para muitos, mais fácil para quase todos, mas certamente não menos sofrida para cada um. Em meio às maravilhas da tecnologia, o mal-estar de que nos falava o pioneiro da psicoterapia (Freud, 1930/2006), parece ainda persistir, enredado ou escondido, ou até mesmo domado, mas longe de ter sido superado.

As disciplinas psi, Psicoterapia, Psicologia, Psiquiatria, têm origens múltiplas e oposições históricas, não há acordo sobre o significado de sua raiz comum. Segundo ampla variedade de linhas e abordagens que se interpenetram, dispomo-nos a estudar/tratar a alma, a mente, o sistema nervoso central, o sujeito, o indivíduo ou pessoa ou ser humano. Esse objeto difuso jamais nos permitiu cumprir totalmente o ideal de ciência moderna, pautada nos princípios positivistas. Nosso status como ciências, como discursos diferenciados e mais consistentes e precisos que os discursos normativo, religioso, artístico e político. foi sempre precário ou parcial. Como apontou Popper (2000) a respeito da Psicanálise, as teorias psicológicas/psiquiátricas/psicoterápicas pela própria natureza dos conceitos métodos e meios que empregam para a investigação da vida privada e da experiência íntima, dificilmente são "falseáveis". Assim, o discurso das ciências humanas – em especial das disciplinas psi – tem/teve um status sempre precário no contexto das ciências, particularmente daquelas com mais triunfos tecnológicos, como as engenharias e algumas de suas aplicações nas ciências da vida. Se, por um lado, hoje sabemos bem o porquê de muitos de nossos sofrimentos no âmbito do corpo e somos capazes de tratar de boa parte deles, ainda nos defrontamos com enormes sofrimentos derivados de nossas relações com nós mesmos e com os outros. Não por acaso, a psicoterapia desenvolve-se aí, precisamente para tentar compreender os limites do controle da razão sobre as escolhas. A psicoterapia trata das modalidades de sofrimento que não derivam de condições que não podemos ver, prever ou controlar, mas que na prática conhecemos melhor e nos atrevemos a combater, como doenças ou acidentes por exemplo, mas sim das relações que em princípio estabelecemos por vontade própria e com base em critérios pautados pela razão. Como bem resume a piada: "se você quer resolver suas dores de barriga, vá ao médico. Se o médico não as resolver, consulte um terapeuta para conviver melhor com elas".

Assim, o advento da psicoterapia, mais precisamente do conceito de inconsciente, constituiu-se, ao contrário do que previa S. FREUD (1930/2006), menos como um alento para o sujeito moderno – uma ferida narcísica a ser aceita – e mais como uma nova demanda a ser cumprida – um sintoma. Em termos mais simples: saber que há dimensões da experiência que permanecem invisíveis, mas são permeáveis a determinado tipo de intervenção, convoca o sujeito moderno a resolver-se. A angústia, o sofrimento subjetivo, parece-nos um problema a ser resolvido e não uma condição a ser compreendida. Assim, a psicoterapia foi absorvida pela cultura ocidental menos como uma ciência com métodos peculiares de investigação e mais como um discurso normativo, como uma modalidade de princípios higiênicos ou educacionais, que devem promover a saúde, entendida como funcionalidade e produtividade.

Em vez de sermos mais compreensivos, generosos e tolerantes com as diversas formas em que as dimensões não racionais e não controláveis da existência humana se manifestam, assumimos algumas delas como as mais aceitáveis. Reduzidos a transtornos, as manifestações de sofrimento subjetivo adquirem cada vez mais nomes, siglas e códigos, na tentativa, muitas vezes vã, de minimizar a dor a elas associada, por meio da relativização dos estigmas. Iludimo-nos com a esperança de que sejamos todos depressivos ou ansiosos, ou hiperativos ou bipolares ou que possamos ser todos, com e sem diagnóstico, perfeitamente normais se empregarmos os tratamentos apropriados. Na ânsia de conquista e controle, os sujeitos contemporâneos têm dificuldade de reconhecer que estar doente, sofrer de forma aberta em algum momento de nossa vida, não é um fato que pode ser definido por uma sigla, a ser resolvido por outra, como um problema matemático, mas sim um papel social, uma dinâmica relacional complexa, com seus devidos desafios em termos de tele e espontaneidade e de complementaridades.

 

QUEM DEVE SOBREVIVER?

Nesse contexto, a Socionomia, o Psicodrama como modalidade psicoterápica, teve seu boom nos anos de 1970 e 1980, no século XX, quando representou um contraponto à "caretice" da Psicanálise, naqueles tempos, associada aos discursos mais conservadores. Contudo, atravessa nos últimos anos uma crise de identidade e de público, que pode ser resumida pelo seu efeito visível, uma "guinada para o mercado". Esse termo, que foi propalado em uma reunião de formadores quase como uma exortação à batalha, refere-se a um conjunto de procedimentos e escolhas institucionais que visam "atrair" novos alunos e clientes (o termo paciente é, para muitos, politicamente incorreto) por meio de uma "adequação" aos ditames da sociedade de consumo que transformou a educação, que deveria ser um projeto de cidadania, em um plano de investimento, no qual os títulos acadêmicos são obtidos não para demonstrar conhecimento, mas para aumentar as chances de vitória na corrida pelos melhores empregos.

À parte desse movimento mercadológico, que demonstra inclinações academicistas e não propriamente acadêmicas e que, por estar ainda em curso e pelas variadas facetas em que se manifesta, não permite uma avaliação mais concreta, é possível aventar alguns percalços nessa proposta de disseminação do Psicodrama. A Socionomia nasce de uma crítica intensa às concepções científicas tipicamente modernas, ou seja, dedicadas a explicar, promover e controlar o sujeito ocidental. Para tristeza de muitos que nele buscaram evidências de um discurso moderno no campo das disciplinas "psi" e sociais, J. L. Moreno (1889-1974) colocou-se em toda sua obra contra as principais teorias e filosofias modernas, incluindo o capitalismo/marxismo e a psicanálise/psiquiatria. Por ser um judeu sefardita de origens europeias bem pouco firmes ou por ser um entusiasta do american way of life dos idos das décadas de 1950 e 1960, o fato é que Moreno colocou-se como um defensor do bem-estar e de nenhuma forma considerou que este fosse sinônimo de conforto e estabilidade e resultado de explicação e controle da vida humana.

Cabe relembrar que Moreno não compartilhou com os demais pioneiros da psicoterapia a aderência ao modelo ocidental de ser humano – o sujeito – e não construiu nenhuma teoria sobre seu funcionamento a partir de experiências controladas, em ambientes controlados. Ao contrário, definiu-nos como deuses e criou um método de pesquisa e investigação que relativiza os lugares de poder de quem pesquisa e é pesquisado e que pode ser realizado em qualquer lugar e/ou no lugar imaginário do palco. E, ao contrário do pioneiro da psicoterapia, Moreno não pretendeu criar uma ciência modernista, ateia, ancorada na neutralidade, e sim uma ciência que diríamos hoje, pós-moderna, um discurso que não se opõe aos discursos tradicionais, como os das religiões, mas procura integrá-los para gerar novas possibilidades: "(…) the origins of my work go back to a primitive religion and my objectives were the setting up and promoting of a new cultural order."1 (Moreno, 1953/1993).

E mesmo seu entusiasmo com a democracia e a diversidade cultural da América do Norte dos pós-guerras era menos uma adesão a um modelo socioeconômico ou científico bem-sucedido e mais uma admiração por um contexto sociocultural distinto daqueles que geraram as lutas europeias e uma esperança de que novos modelos pudessem ser criados:

Sociometry can assist the United States, with its population consisting of practically all the races on the globe, in becoming an outstanding example of a society which has no need of extraneous ideas or of forces which are not inherent in its own structure. (MORENO, 1953/1993)2.

Nesse sentido, o legado de Moreno não poderia ser mais avesso aos usos que dele se tem feito na contemporaneidade com a, talvez bemintencionada, ilusão de empregá-lo, como disse uma colega dirigente de uma federada uma vez: "uma tecnologia social eficiente". Ou seja, um aparato a serviço dos ideais modernos, a serviço de um sujeito que se integre aos grupos, menos para solidarizar-se e criar em conjunto e mais para produzir indefinidamente, por mais tempo, em menos tempo.

Esse sujeito produtivo e eficiente não tem tempo para sofrer, não conta com o grupo para apoiá-lo quando está sofrendo. Aos grupos, incluídos aí os especialistas em saúde, cabe decifrar rapidamente de que sofrem os improdutivos e, assim que seja classificado o mau funcionamento, encontrar, também eficientemente, os meios e os modos de correção, reprogramação ou, no mínimo, supressão dos efeitos do transtorno. A expectativa é de que as "tecnologias sociais" façam com que os sujeitos e os grupos respeitem os limites impostos pela ânsia de poder e controle, travestida de conforto e rapidez prometidos pelo mundo governado pela máquina, e simultaneamente, extrapolem os próprios limites naturais: o cansaço, o conflito, a velhice, a dor e a morte.

O Psicodrama, não entendido como sinônimo de Socionomia como acontece entre a comunidade psicodramática, mas simplesmente como técnica, algo que se repete de modo previsto e com resultados esperados, como popularmente somos conhecidos, presta-se com muita dificuldade a essa função atribuída às psicoterapias, sob o registro de uma compreensão moderna de sujeito e subjetividade. Primeiro, porque, como uma metodologia derivada de uma matriz fenomenológica da Ciência e fortemente influenciada pela Arte, é bem pouco afeita a previsibilidade e controle e, mesmo quando os alcança, seu efeito é negativo. Uma boa obra artística deve ser sempre surpreendente, mesmo que o final seja feliz como todos almejamos, é preciso que até o final haja uma tensão, algo que gere forças imprevistas. A habilidade técnica deve estar a serviço dessa tensão e não como alternativa a ela, uma apreciação artística que sublinhe ou se restrinja à perfeição técnica é, geralmente, uma crítica negativa.

Assim, ainda que se realize o Psicodrama, aqui entendido como qualquer dos métodos sociátricos, com o objetivo de ser apenas técnico, há sempre um risco de que aquilo que se desenrola no palco, na cidade ou nas empresas seja ou excessivamente previsível como um mau teatro ou excessivamente linear como uma aula enfadonha ou como um comício. E aí, mesmo quando dá certo e atinge-se o resultado esperado, não se constitui como uma nova experiência, ou seja, um recurso para os próprios participantes empregarem, mas uma mágica, algo reservado a pessoas especiais.

Aliada aos ditames da cultura ocidental nos moldes da modernidade, ou seja, transformada em uma tecnologia, um bem de consumo, em serviço prestado para promover a domesticação de pessoas e grupos, mesmo a psicoterapia mais artística e popular em suas origens, torna-se um bem descartável, em suas versões mais baratas ou um patrimônio reservado a uma elite que pode arcar com o custo das celebridades.

Outras formas de psicoterapia cumprem melhor essas funções e são mais econômicas, tanto porque seus praticantes são treinados em técnicas mais simples, replicáveis e com resultados mais rápidos e garantidos. Portanto, seus praticantes têm de investir menos tempo e menos dinheiro em sua formação, como porque os transtornos de seus clientes podem ser descritos e explicados em bases mais concretas e com termos mais compreensíveis e os tratamentos ser comparativamente mais rápidos. Assim, sobrecarregam menos os orçamentos de seus grupos de referência, sejam as famílias, as empresas, os convênios, seja o Estado.

Como também ouvi de uma aluna ainda na graduação em Psicologia:

Se vou gastar uma grana numa formação, ela tem que me dar um título e uma forma de ganhar dinheiro rápido. Não vou passar anos estudando só (grifo da autora) para compreender melhor as pessoas, ou a mim mesma, isso eu já faço na graduação. Então, não importa a linha, vou fazer um curso reconhecido pelo MEC, que vai dar um título que vale para concurso ou um desses treinamentos de fim de semana, que a gente já sai sabendo fazer alguma coisa e não tem que ficar anos pagando terapia.

Nesse contexto, não me parece que possamos competir "para valer" com abordagens mais tradicionais ou mesmo com as mais inovadoras. O Psicodrama da forma como se tornou conhecido, como já proclamam alguns, está mesmo próximo do fim se procurar adequar-se aos ditames do consumo e ser uma "tecnologia social", uma psicoterapia do sujeito e da subjetividade, calcada nos moldes epistemológicos definidos pela ciência moderna.

 

AS PALAVRAS DOS FILHOS

O fim do Psicodrama moderno talvez aponte os limites dos tempos modernos e anuncie uma nova era. No Brasil, os ideais da geração que enfrentou os anos de chumbo, em suas múltiplas vertentes, parecem cada vez menos úteis para uma geração que nasceu na Nova República. No mundo, a ciência moderna, pautada pelos princípios racionais em seus primórdios e, mais recentemente, tornada sinônimo de positivismo, também parece estar em xeque em um mundo pós-moderno, virtual. A física defronta-se com um universo ilógico, a sociologia com relações líquidas.

Um grupo de jovens colegas psicodramatistas escreve:

Cremos que esta capacidade de resistir e reinventar a realidade, mesmo que em longos e dolorosos processos, significará a diferença entre saúde e doença, para cada ser, instituição, categoria ou grupo profissional. Os novos tempos não trazem apenas inimigos cotidianos, mas também aliados preciosos, como as novas tecnologias que nos permitem estender os limites do tempo de tempo e espaço. (CAMPOS, M. G. C., SARDA, S. C., DIAS, M. e CUNHA, L. C., 2010, s. p.).

Esse texto, bem como muitos outros não publicados e até nem escritos, engendrados fora das convenções das entidades de formação ou mesmo como reação a elas dentro delas mesmas, mostra que o Psicodrama vive. Entretanto, vive uma vida não oficial, nova, provavelmente diferente daquela que as gerações anteriores anteviram, mas não menos interessante.

Então, se um psicodramatista ainda ousa iniciar uma frase afirmando que crê – e no texto citado são quatro autores – e crê não nos ditames do mercado ou do consumo, mas em longos processos e no valor das novas tecnologias como aliados, Moreno ainda é uma referência atual. Talvez as raízes de seu pensamento nas tradições antigas não tenham sido soterradas pela poeira gerada pelas máquinas de destruição e sua antevisão de uma ciência feita pelo povo e para o povo tenha gerado frutos que se alimentem de máquinas de criação. Então, nesses tempos pós-modernos, a comida mudou, mas a fome permanece. O noticiário intenso e veloz nos propõe perguntas complexas: como alimentar sete bilhões de pessoas em um mundo em que em um país os Estados Unidos, consome-se quatro vezes mais do que se produz e em um continente, a África, menos da metade? Precisamos mesmo ir tão rápido de um lugar ao outro, se aviões consomem tanta energia e podemos ver e falar com o mundo todo sem sair de casa? Como tratar de 40% dos sete bilhões de pessoas, espalhadas pelos países ricos e pobres, que terão algum tipo de transtorno mental incapacitante ao longo de suas vidas? Como as conexões virtuais podem contribuir para aproximar as pessoas, em vez de apenas fazê-las se esconder atrás de novas máscaras, de corpos modificados?

O legado moreniano, a Socionomia como metodologia de conhecimento acessível a muitos por sua simplicidade de meios e complexidade de resultados é ainda hoje revolucionária. E talvez mais do que nunca, em uma sociedade em que as pessoas mais diferentes procuram integrar comunidades, que incluem desconhecidos, que simultaneamente escondem e revelam suas matrizes, tenhamos algo a oferecer que valha mais do que o dinheiro pode comprar (parece que para isso já temos os cartões de crédito), algo que dê sentido e significado ao nosso sofrimento.

Assim, talvez o Psicodrama, entendido como psicoterapia prêt-àporter, já tenha sido suficientemente consumido e possamos encarar esse consumo, no sentido de término e não de objetivo e esse fim, de um ponto de vista mais espontâneo-criativo:

Make space for the unborn, make space for the newborn, for everyone born, Every time a new baby is born make space for him by taking the life of an old man or an old woman. (…) sociometric democracy in which the unborn, the living, and the dead are partners-instead of keeping the unborn and the dead of our partnership.3 (MORENO, 1953/1993).

 

Referências

Campos, M G. C., et al. Axiodrama: uma possibilidade de resignificar o tempo e a impaciência na pós-modernidade. Textos do XVII Congresso Brasileiro de Psicodrama, Águas de Lindoia, Febrap. Disponível em: <http://www.febrap.org.br/publicacoes/ arquivos/15_654_REVISADO_2.doc>. Acesso em: 31 de out. 2011.         [ Links ]

Costa , S. Amores fáceis: romantismo e consumo na modernidade tardia. Novos estud. - Cebrap, 73, Nov. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0101-33002005000300008&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em 31 de out. 2011.         [ Links ]

Freedheim, D.K. (ed.) et al. History of psychotherapy: a century of change. Washington, DC, US, American Psychological Association, 1992.         [ Links ]

Freud, S. O mal-estar na civilização (1930). Volume XXI. Ed Imago, Rio de Janeiro, 2006.         [ Links ]

Mancebo , D. et al. Consumo e subjetividade: trajetórias teóricas. Estudos de Psicologia, 7(2), 325-332, 2002.         [ Links ]

Moreno , J.L. Who shall survive? First Student Edition. Based on the Second edition, 1953. American Society of Group Psychotherapy & Psychodrama, Royal Publishing Company, Roanoke, VA, 1993.         [ Links ]

Popper, K. R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo, Cultrix, 2000.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Valéria Cristina de Albuquerque Brito
SHIGS 706 - bl. C - casa 3 Brasília, DF
valeriacristinabrito@gmail.com

 

 

NOTAS
1
. "(...) as origens de meu trabalho podem ser traçadas a partir de uma religião primitiva e meus objetivos são criar e promover uma nova ordem cultural."
2. "A Sociometria pode auxiliar os Estados Unidos, que têm uma população composta por praticamente todas as raças do globo, a tornar-se exemplo de uma sociedade na qual não há necessidade de ideias ou forças alheias à própria estrutura."
3. "Abra espaço para o não nascido, abra espaço para o recém-nascido, para todos os que nascem. Cada vez que um novo bebê nasce, abra espaço para ele tirando a vida de um homem ou mulher velho. (…) a democracia sociométrica, na qual o não nascido, os vivos e os mortos são parceiros, em vez de manter o não nascido e o morto fora da parceria."