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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.20 no.1 São Paulo jun. 2012

 

Seção Livre

Free section

 

Sociedade de controle e pedagogia psicodramática

 

Society of control and psychodramatic pedagogy

 

María Alicia Romaña

Pedagoga pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e psicodramatista (Argentina)
Professora (1958-1976) e reitora (1973) da Escuela de Bellas Artes Prilidiano Pueyrredón, Buenos Aires.
Iniciadora da prática pedagógica do psicodrama na Argentina e no Brasil.
Didata-Supervisora na Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama (ABPS)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com a intenção de mostrar por que a Pedagogia Psicodramática constitui instrumento pedagógico apropriado para enfrentar as características da sociedade atual, este artigo convida a encontrar o todo no fragmento e no detalhe. Para tanto, oferece conceituações que solicitam uma nomenclatura adequada e microanálises decorrentes, de forma a constituir uma composição que convoca saberes provenientes de outras ciências sociais, além da educação em conjunto com as vozes fraternas dos professores. Nele a autora aborda a prática educativa que chamamos pedagogia psicodramática, arrisca opiniões sobre o sistema em que vivemos, merecedor do nome de sociedade de controle, e aproxima breves relatos como amostras concretas de situações de aprendizagem para chegar a considerações conclusivas, com base nos princípios valorizados no corpo do artigo.

Palavras-chave: Sociedade de controle, pedagogia psicodramática, educação, microanálises, fragmentos de sentido.


ABSTRACT

With the intention of presenting the reasons why Psychodramatic Pedagogy has become an appropriate pedagogical instrument to face the characteristics of modern society this article is an invitation to find the whole in the fragment and the detail. In order to do so, it offers concepts which require a clarifying proper nomenclature and micro analysis. This article constitutes a composition that includes the knowledge of not only the educational science but of other social sciences as well attuned to the fraternal voices of teachers. The author deals with the educational practice she defines Psychodramatic Pedagogy, venturing opinions on the social system we live in which among other names can be called Control Society. She offers brief stories that show concrete learning situations reaching, in this way, the conclusions founded on the principles exposed in the body of the article.

Keywords: Control society, Psychodramatic Pedagogy, education, micro analyzes, fragments of meaning.


 

 

"Mais importante do que a evolução da criação é a evolução do criador".
(Divisa, L. Moreno , J. L.)

 

PROCURANDO RESPOSTAS

Entre os pensadores que marcaram a segunda metade do século XX, Theodor Adorno (1903/1969) veio oferecer com as suas ideias, a uma sociedade carregada de frustração e ceticismo, um horizonte que, invertendo conceitos e saberes aparentemente imutáveis, poderia aproximar um perdido otimismo e guiar por um novo caminho. Avançando por essa trilha, especialmente no que diz respeito à comunicabilidade e às contradições que ela comporta, espero esclarecer alguns aspectos que permitiriam a uma proposta pedagógica enfrentar a rede sufocante da sociedade de controle. Adorno opinava que se deveria resistir à tendência irrestrita de comunicar imediatamente tudo aquilo que considerarmos verdadeiro, tendo apenas esse argumento como princípio. A comunicação requer seletividade (o que produz uma das suas contradições), além de uma reflexão para determinar quando e através de qual suporte essa comunicação terá de ser feita. E, completando o panorama inicial, não poderemos esquecer que também ele chama a atenção sobre o fato de que na medida em que se critica o sistema imperante (que denominou "existente"), dever-se-ia levar em consideração que estamos inevitavelmente contaminados por sua ideologia, suas práticas e seus vícios. Pretendo escrever sobre o "existente" que neste momento dispara minhas reflexões e minhas ações.

 

FRAGMENTOS DE SENTIDO

Dar importância aos fragmentos tem a ver com a necessidade de pensar alternativas a uma tendência que impregna grande parte de nossas reflexões, ao ponto de aparecer como a única expectativa possível. Estou me referindo à tendência de ficar satisfeitos só quando atingimos o todo harmonioso e conciliador, passando muitas vezes por cima das evidências de incompatibilidade dos termos a combinar. Ou seja, há ocasiões em que se escolhe forçar ou impor a solução que temos idealizado, antes de aceitar que existem situações, seres ou fenômenos que são simplesmente diferentes. Pela lógica da dialética (método considerado o mais acertado para a análise das contradições), tudo seria resolvido avançando-se através de três momentos ou movimentos: tese, antítese e síntese (universal abstrato, particular concreto e espírito absoluto ou razão). É justamente o momento de síntese, ou razão absoluta, o que vem sendo questionado na pós-modernidade. Considera-se que ele elimina a subjetividade e a liberdade do sujeito ao prevalecer o universo das ideias. Essa mentalidade de considerar a síntese como a única forma de chegar a uma resposta favorece a homogeneidade, a igualdade imposta e a repetição, tanto que, negando a sua presença como imprescindível, estaríamos resgatando o diferente, o singular de cada ser, coisa ou de cada situação. Aquele resto que se rebela contra o absolutismo da ideia (que podemos chamar de fragmento) nega para afirmar, abrindo novas possibilidades de criação de instrumentos para transformações pessoais e sociais. É assim que na época pós-moderna surge uma articulação com o negativo, que não oferece o peso do rejeitado, mas nos faz recuperar o direito de pensar o outro. Podendo esse outro ser um pensamento ainda não pensado, outro ser humano concreto e diferente ou um fenômeno não catalogado.

 

NEGANDO PARA AFIRMAR

Aparece assim o conceito de dialética negativa, introduzido por Adorno já em 1966, que se complementa com o de não-lugar ao não mais se dar limites e perfis precisos ao mundo fático e tecnológico em que estamos submersos.

O termo identidade nos oferece vários significados como: nacionalidade, evidência de pertencer a determinada família, lugar geográfico, cultura ou sociedade; como documento, classificação ou lugar dentro de determinada escala. Utilizando identidade neste último sentido, pode-se compor um mundo organizado ao nosso gosto, que acontece só no campo das ideias, e não na realidade. Nesta situação, a coisa, o ser ou o fenômeno pode ainda não estar catalogado ou pode partilhar de várias delas na composição da própria identidade. Quando isso acontece, especialmente na arte, utiliza–se o termo hibridação (Canclini, 2008). E no caso de se acentuar a falta de identificação, não forçando sua existência, poderíamos falar, como Deleuze (1925-1909), em não-identidade. A lógica do sistema nos solicita constantemente para atribuir um lugar determinado para cada ser, para cada conjunto de ideias, para cada coisa ou existência. No entanto, o lugar de que o sistema fala está predeterminado por ele. Na medida em que tudo deve encontrar seu lugar no "já existente", o sistema exerce a manutenção de sua estabilidade. Em contrapartida, o não-lugar é aquele que aparece como possível dentro da perspectiva de que, sendo os seres únicos e diferentes, também podem sê-lo as ideias e as aspirações que dizem respeito de sua existência. O não-lugar é mais uma fenda que um espaço DI PAOLAy YABKOWSKI , 2008).

 

DISCIPLINA E CONTROLE: PRIORIDADES DA SOCIEDADE

Depois da Segunda Guerra Mundial, foi introduzida nos Estados Unidos uma estrutura social que pretendia dar contenção à cidadania afetada pela conflagração. Esse modelo, com o nome de New Deal, oferecia certo grau de proteção do estado no que dizia respeito à saúde, à assistência social, ao trabalho, à habitação, aos subsídios e ao reconhecimento das organizações sindicais. Posteriormente, a Europa incorporou o New Deal com adaptações próprias, legitimando as conquistas da cidadania. Fortaleceram-se os papéis sociais e foram mais bem afixados os lugares para seu desempenho. No geral, não havia dúvidas para entender o que era uma família, uma escola, um hospital e qual o lugar para os bandidos, os loucos e os rebeldes. Da mesma forma, não se duvidava sobre o que se podia esperar de pais, professores, médicos, policiais etc. Michel Foucault (1926-1984) mostrou que a estrutura desses lugares era a reprodução, em outra escala, dos mesmos princípios de repressão e punição que tinham sido combatidos. No caso, o próprio New Deal estaria otimizando a disciplina do sistema, enquanto a disciplina legitimava o New Deal.

Contudo, o mundo assim organizado sofreu transformações geopolíticas sem resolver as problemáticas de base relacionadas com a aceleração da tecnologia, o ritmo da evolução do capitalismo e a impossibilidade de absorver as sequelas da Guerra Fria. Desse modo, ao se firmar a corrida neoliberal, foi sendo desqualificada a tão prezada disciplina. A sociedade, novamente indisciplinada, com um mercado global ávido e destrutivo, começou a operar com as mais diversas formas de controle: reais, simbólicas e virtuais. E a subjetividade foi novamente postergada em nome de outros interesses.

 

EFEITOS COLATERAIS DO CAPITALISMO

Um dos motivos pelos quais a abordagem do aspecto estrutural de qualquer situação ou objeto de reflexão se torna difícil, a ponto de evitá-lo na maioria das vezes, é o fato de ele exigir um estudo (mesmo que seja elementar como este) do capitalismo e de sua evolução, como padrão da organização das relações humanas na sociedade atual. Apesar de o termo capitalismo ser bastante indefinido, podemos tentar algumas aproximações para lhe outorgar maior consistência. Situa-se sua aparição na Europa no século XIV, organizando-se, no início, de forma rudimentar e posteriormente (utilizando uma linguagem atual) através de três eixos: apoiar as maiores empresas comerciais, favorecer diversas formas de especulação e tornar mais sofisticado o sistema financeiro. Fatos posteriores vieram fortalecer essas expectativas:

1. A era dos navegantes que fez dos séculos XV e XVI tempos da descoberta de novos territórios e oportunidades, revigorando a competição entre os diferentes mercados (competição nem sempre pacifica).

2. A Revolução Industrial que, no século XIX, abriu novos horizontes para o comércio com a produção massiva, acabando paulatinamente com as fronteiras sociais para o consumo.

Nesta altura de nossa explanação, podemos começar a vincular o fenômeno educativo com a existência do sistema capitalista, uma vez que toda a estrutura social sofre as consequências da sua hegemonia. O capitalismo vincula decisões a respeito da utilização de recursos naturais, da produção de políticas internas e externas dos estados-nação e, atualmente, das configurações territoriais, chegando a intervir nos critérios de desenvolvimento (no sentido de progresso) dos aspectos culturais e, dentre eles, a educação. Temos de lembrar que o primeiro estágio da evolução capitalista é a expansão (Hardt e Negri , 2002), levando esse anseio à necessidade de descobrir ninhos renovados para a produção e o consumo. Nas primeiras fases de sua evolução, o regime capitalista exige um ponto de partida (capitais, portos, países ou regiões) a partir de onde são procurados fora os locais mais apropriados para a reprodução da sua ideologia. À medida que a produção vai se tornando mais importante, avança-se para a etapa da acumulação. A consequente dependência do consumo e o submissão às regras do mercado vão fazendo-se mais complexas, diversificando as formas de capitalizar os lucros. O modelo assim disseminado não se satisfaz com o resultado apenas econômico, mas procura se introduzir nas formas de ver o mundo e de os indivíduos se realizarem dentro dele. Desse modo, o capitalismo entra na fase de colonização e no seu avanço no imperialismo, à procura da amplitude mundial para sua expansão. A globalização é a fórmula mais recente, que transforma a estrutura mundial em uma sociedade de mercado, também chamada de império (Hardt e Negri, 2002), nome atribuído pela falta de centros a partir dos quais operar, sendo todo território considerado uma possível área capitalista. É essa a estrutura atual que merece o nome de capitalismo tardio (Di Paola y Yabkowski , 2008). Para completar essas considerações, nunca é demais lembrar que economia e capitalismo não são a mesma coisa. O capitalismo é uma das formas de orientar a economia, bem-sucedida em suas aspirações de favorecer lucro e controle, mas com efeitos colaterais destrutivos com frequência e perversos em não poucas ocasiões.

 

EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA PSICODRAMÁTICA

Nesse contexto contraditório, o que resta para a educação fazer?

Se as decisões ficarem em um plano superficial (como ocorre na maioria dos casos), trocam-se tecnologias, modificam-se os programas com o intento de atualização e fixam-se novas disciplinas, que tentam diversificar as especialidades profissionais, mas pouco mudam a natureza do ensino. Ou seja, adiante da impossibilidade de dar conta da transmissão dos conhecimentos acumulados pela humanidade, acentuam-se os erros. Entre eles estão a segmentação dos conteúdos, os saberes prefixados e repetidos, a aprendizagem com suporte na atividade racional, o esquecimento das áreas dos sentidos, os afetos, corpo e sociabilidade, que compõem a subjetividade. O exagero e o abuso na utilização do nominalismo (cada coisa com seu nome encaixada no seu lugar, definições, burocracias) e do quantificismo (quantidades, valores, avaliações estatísticas), próprios do século XX, são muito difíceis de superar no dia a dia do professor. Trabalhar em profundidade torna-se uma batalha diária para o educador que aspira fornecer aos estudantes, subsídios para que estes aprendam a pensar certo (com clareza e fazendo relações significativas), antes de mais nada (FREIRE, 1996). As relações significativas são fundamentais para que eles componham as futuras ações criativas indispensáveis para sua sobrevivência na idade adulta.

Inspirada no psicodrama moreniano (MORENO , 1889-1974), no que ele tem de original e revolucionário, a pedagogia psicodramática (ROMAÑA, 2010 a) fornece ferramentas concretas para enfrentar a sociedade de controle, no que diz respeito à educação, mostrando uma alternativa à sua aspiração à repetição, à reprodução e ao homogêneo. A pedagogia psicodramática tem como principal alicerce a teoria própria do psicodrama (matriz de identidade, teoria dos papéis, conserva cultural, teoria da espontaneidade-criatividade-tele, conceitos de aqui e agora e de locus nascendi e elementos da sociometria). Como recursos da sua didática participativa são usadas as técnicas básicas e secundárias (Romaña, 2004). O exercício dos papéis psicodramáticos comporta uma resposta que integra sentimentos, emoções, pensamentos e ações. A palavra recupera seu sentido, convoca argumentos, produz responsabilidades. A inclusão de valores se constitui em algo natural, não algo programado necessariamente com antecedência. Abre a passagem de mão dupla entre o imaginado e a realidade. Socializa o conhecimento e permite a criação de saberes não pensados desde o currículo escolar. A calma para a reflexão, e também um resultado natural, as tensões e a violência podem ser superadas mediante cuidadosa utilização da sociometria. Como complemento, incorpora referências do pensamento de Vygotsky (1896-1934) e de Paulo Freire (1921-1997) conformando um complexo pedagógico biopolítico que aspira fortalecer os seres humanos, ao acrescentar o componente da historicidade no pensamento.

 

VIDA, SAÚDE E APRENDIZADO

RELATO I – O ÊXODO DE JUJUY (EL ÉXODO JUJEÑO)

Estamos na escola primária Gabriela Mistral, da rede pública da localidade de Santa Rosa de Calamuchita (Córdoba - Argentina). A professora de ciências sociais está explicando na 6ª série que os governantes do recentemente emancipado Virreinato Del Río de La Plata (1810) deviam difundir as ideias revolucionárias em toda a extensão do seu território e, ao mesmo tempo, ter de enfrentar as forças militares dispostas a reprimir aqueles rebeldes em nome da Espanha. A mais poderosa delas era a do Virreinato do Alto Perú, contra a qual foi enviada uma coluna mais ou menos improvisada, a mando do general Manuel Belgrano, advogado de profissão, que se transformara em militar pela força dos acontecimentos. Na história nacional argentina, é reservada uma página especial dedicada ao fato de Belgrano ter de escolher entre apresentar batalha contra um exército poderoso que estava próximo da cidade de Jujuy ao norte do país (vizinha da atual República da Bolívia) e ser derrotado por ele, ou pedir para os habitantes deixarem a cidade para salvar suas vidas e alguns animais, documentos e víveres. A professora (com treinamento em pedagogia psicodramática) relata os fatos conforme a história oficial. Ela procede dentro dos parâmetros de uma didática clássica. A seguir, porém, abre para investigar os fatos em outra dimensão, ao propor aos alunos para escolher as cenas significativas daquela história e reproduzir o acontecido em 1810, tomando os papéis dos protagonistas daquele tempo. A classe se mobiliza e rapidamente surge um Belgrano (H) e uma menina (M), liderando a organização da população. H surpreende à professora porque apesar de ser um garoto com grande dificuldade de expressão verbal, como Belgrano, caminha de um lado para o outro fazendo solilóquios sobre a difícil decisão, e a seguir enfrenta a população falando com fluidez e convicção.

H tinha perdido o pai havia pouco tempo, em um acidente de moto em um dia chuvoso, no qual não queria que o pai saísse (intuição? premonição? tele?). Até tinha esvaziado os pneus da moto para impedi-lo e sofrido um castigo por isso. M também surpreendeu a professora porque é uma menina boliviana, tímida e solitária, que por regra, desaparece no grupo. Pertence a uma família humilde de imigrantes bolivianos, que há pouco tinha-se instalado na região, e só liga para cuidar dos seus irmãozinhos que estudam nas séries inferiores.1 O que desejo assinalar aqui é como fatos acontecidos há 200 anos, em um aprendizado que oportuniza a expressão de sentimentos e emoções alinhados com um pensamento fortalecido pela ação, permitem a elaboração em alguma medida, como valor agregado, de experiências de vida com forte carga de dor e violência.

Fragmentos de sentido para pequenas vidas.

RELATO II – 30 MIL DESAPARECIDOS

Estamos na escola secundária Dalmácio Vélez Sarsfield, da rede pública da localidade de Santa Rosa de Calamuchita (Córdoba - Argentina). Estou enfrentando uma situação inédita na minha vida. É o ano de 2007 e estou participando, com outras pessoas, de um evento por ocasião da implantação, por intermédio da lei do Congresso Nacional, do dia 24 de março como Dia da Memória, para não nos esquecermos do terrorismo de Estado e os crimes de lesa-humanidade perpetrados pela ditadura militar que assolou o país entre 1976 e 1983. Entre eles, o desaparecimento de 30 mil pessoas, especialmente jovens, na extensão de todo o território da nação argentina. Deviamos falar para os estudantes (entre 13 e 18 anos) e seus professores reunidos no pátio da escola, em cadeiras que cada um tinha trazido para o lugar. Na minha vez, comecei explicando os antecedentes ideológicos – políticos que no meu entender foram provocadores daquele terror. A audiência escutava atentamente mas, enquanto falava mostrando a diferença entre o herói reconhecido e o herói mártir – anônimo, fui sentindo que eles não deveriam ser considerados totalmente anônimos. Foi assim que surgiu a ideia de utilizar os conhecimentos matemáticos para supor que se aventássemos nomes comuns, nós, umas 150 pessoas, aproximadamente, seria bem provável que, proporcionalmente, grande parte desses 30 mil desaparecidos tivessem aqueles nomes. Feita a proposta, todos de pé, primeiro timidamente e logo com mais força, fomos falando: - Carlos, Marcelo, Ana María, Francisco, Elsa, Ricardo, Susana... Chegada certa altura, aquelas palavras pareciam uma música e algum professor arriscou dizer —"PRESENTE", e outros o disseram no seu coração, lembrando dos que de fato tinham sido nossos conhecidos; colegas, amigos ou parentes dentre aqueles 30 mil. Pensamos que, quanto mais lembrados forem, menos desaparecidos estarão.

Fragmentos de história, memória e justiça.

RELATO III – AULA DE TEATRO

Estamos na escola Acre, da rede municipal do Rio de Janeiro. Na matéria "O Brasil é aqui", a repórter e produtora de cinema, Raquel Freire Zangrandi, conta no nº 53 da revista Piauí, suas experiências ao partilhar durante um semestre do dia a dia da escola. Entre seus comentários destaca-se o relato sobre uma aula de teatro que começa com uma original chamada (Zangrandi, 2011):

— Reginaldo? — mico-leão dourado.

— Rosinha? — tartaruga.

Os alunos presentes devem responder dando a eles mesmos o nome de um animal. Não podem repetir o bicho que outro colega já tenha falado. Dessa forma, a professora consegue recuperar a disciplina treinando atenção e memória. A jornalista acrescenta que, infelizmente, o espaço para encenação é muito reduzido, embora a Acre possua uma quadra esportiva e um amplo auditório. Coisa rara nas escolas municipais. Isso porque a quadra só pode ser utilizada para a prática de esportes e o auditório está interditado por ter-se convertido em depósito de móveis quebrados. Mesmo com essas e outras dificuldades, os alunos da Acre são aprovados no mínimo com R de regular; o I de insuficiente praticamente não existe. Da nossa parte, podemos acrescentar que quando o interesse pelos animais tiver sido esgotado, em seu lugar podem dizer nomes de cidades, rios ou frutas dentre outros:

— Reginaldo? — Campo Grande.

— Rosinha? — Joazeiro.

Ou acrescentar adjetivos como:

— Reginaldo? — mico-leão roxo.

— Rosinha?— tartaruga branquela.

E, após a chamada à aula, poderiam continuar diálogos como estes:

— Por que o mico-leão está roxo?

— Está bravo porque vai ser extinto!

Propondo entrar no "como se fosse", a aula de teatro incorporaria a espontaneidade das crianças dando, sem dúvida, sequência a um exercício inesperado. Todavia, pensando bem, será que a professora já não faz isso? Há nos professores um enorme potencial de criatividade adormecido aguardando para ser ativado e canalizado (LEALl, 1993).

Fragmentos de conhecimentos com criatividade, amor e felicidade.

 

PRODUZINDO RESPOSTAS

Os relatos têm sido incorporados ao texto como amostras de fragmentos de sentido. No fragmento, no detalhe, encontraremos o todo se conseguirmos fazer as conexões necessárias. Neles podemos observar que os fatos referidos constituem-se em não-lugares para aprender um conhecimento ainda não identificado, em uma dialética que não opera na expectativa de conciliar, mas de confrontar a "outridade". (ROMAÑA, 2010 b).

Poeticamente e mostrando sempre seu amor pelos complementares, J. L. Moreno disse que cada resposta provoca cem perguntas, do que se depreende que a riqueza do pensar é consequência das novas respostas que surgirem para essas cem ou mais perguntas. Em regra, as perguntas estão ligadas ao desconhecido, às dúvidas, à curiosidade ou àquilo que tenha se tornado problemático. A mentalidade conservadora procura soluções, dando preferência as já experimentadas e bem-sucedidas. Existe um passatempo bastante conhecido, que consiste em unir com só quatro linhas, nove pontos colocados na forma de um quadrado com três pontos por lado e mais um no centro. O problema está dado pelo fato de que as linhas não podem passar duas vezes pelos mesmos pontos. Parece impossível de resolver, no entanto, a resposta consiste em se permitir imaginar dois pontos estrategicamente localizados fora do quadrado. Esse jogo torna-se uma metáfora de situações que a realidade ou o "existente" nos apresenta solicitando-nos para procurar a resposta fora do lugar em que o problema acontece. De alguma forma, as soluções levam à procura para dentro do próprio problema, na intenção de não ter de lidar mais com ele. A resposta é mais pontual e flexível, mesmo exigindo princípios éticos e coerência no sentido de que cada uma delas deverá partilhar dos mesmos pressupostos das respostas anteriores e abrir o caminho para as posteriores, na tentativa de não perder o rigor do fio da sequência ideológica e/ou metodológica (MORIN, 1998). É esse o tipo de pensamento que a pedagogia psicodramática pretende desenvolver nos estudantes, estimulando para que de cada resposta tornem a surgir novas e múltiples perguntas. É evidente que essa aspiração nos empurra ao território inverso do escolhido pela sociedade de controle para se estabelecer. Ela, procurando sempre atingir soluções definitivas, aumenta seus controles e, quando não o consegue por caminhos pacíficos, apela para violência, agressão e intolerância, constituindo-se na principal disseminadora desses ingredientes, que acabam contaminando todos os ambientes. Não se trata de querer enfraquecer o outro, identificado como adversário, na maioria das vezes de maneira irrestrita e arbitrária, mas de nos fortalecer na prática sistemática e crítica dos princípios em que acreditamos. Poderemos fazer nossas as palavras de Michel Foucault, que propõe que os homens não procurem refúgio noutro mundo ou noutra vida, mas construam uma vida e um mundo diferentes (FOUCAULT , 2011). As respostas têm de ser criadas dia após dia sem esmorecer. As ideias são como rios, que se juntam e formam um estuário. É só uma questão de ótica. Sim, a prática da pedagogia psicodramática requer treinamento para os professores, mas, em compensação, eles terão a espontaneidade (e portanto estarão sempre abertos à possibilidade de novas respostas), acompanhando-os em seus desempenhos profissionais (VILASECA, 2010).

E, enquanto vamos aprendendo, não deveríamos esquecer que a saúde mental das novas gerações é um dos maiores tesouros da humanidade, portanto teria de ser preservada sem estar sujeita às oscilações das cotizações do mercado. (ETCHEVERRY, 2008).

 

A CAMINHO DE UMA EDUCACAO BIOPOLÍTICA

Hoje, 11 de março de 2011, estou concluindo estas linhas e o Japão está sendo arrasado por uma das maiores catástrofes ecológicas do mundo em que vivemos. A terra, o mar e a energia nuclear, em uma síntese macabra, dizem-nos que são superiores aos controles da tecnologia e de algumas soluções da sabedoria humana.

Lembro-me de que, na parábola De La salvación por las obras, Jorge Luis Borges narra que, em um outono qualquer dos tempos, 8 milhões das divindades do Shinto, reunidas no Izumo, estavam decidindo castigar o homem por não ter atendido o imperativo da essência pacífica da sua criação. Diante do perigo de a história acabar se as coisas continuassem daquele jeito, era o homem que deveria ser extinto. Entretanto, um dos deuses falou que apesar disso, ele também havia sido capaz de compor uma pequena poesia chamada haikai com apenas 17 sílabas e que, por esse feito, naquela ocasião ao menos, a humanidade mereceria ser perdoada.

Não imaginei que "o existente" chegasse a me solicitar com essa intensidade. Os fatos, porém, têm entrado no meu escrito sem pedir licença, exigindo minha atenção e seu registro. Não posso olhar para o lado e fazer de conta que não aconteceu a catástrofe do Japão e tantos outros fatos que provocam nossa indignação. Não é esse o faz de conta que a gente pratica.

Talvez agora seja nossa responsabilidade chegar a compor novos haikais, novos paradigmas inscritos em uma concepção biopolítica da educação para outorgar melhores condições à pedagogia psicodramática de se tornar mais eficiente como instrumento alternativo à prática irrestrita dos códigos e das expectativas do capitalismo pós-industrial e seus dispositivos de controle.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
María Alicia Romaña

Salta 736, B Gómez 5196 – Santa Rosa de Calamuchita,
Córdoba, Argentina
e-mail: alirumipal@yahoo.com.ar

 

 

Nota:

1. O líder dos trabalhadores cocaleiros bolivianos e hoje presidente da Bolívia, Evo Morales, frequentou, na sua infância, uma escola pública no norte da Argentina.