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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.20 no.1 São Paulo jun. 2012

 

Seção Livre

Free section

 

Um olhar sociopsicodramático sobre as concepções de beleza em famílias negras

 

A socio-psychodramatic perspective of the concept of beauty in black families

 

Listhiane Pereira RibeiroI; Zoé Margarida Chaves ValeII

I Psicóloga; pós-graduada em Psicodrama pelo Instituto Mineiro de Psicodrama Jacob Levy Moreno (IMPSI)
II Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); psicodramatista e docente supervisora pela Federação Brasileira de Psicodrama (FEBRAP); Especialista em Psicologia Clínica, Organizacional e do Trabalho - Conselho Regional de Psicologia - MG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa sobre as concepções de beleza que integram a identidade de duas famílias negras mineiras: uma quilombola (matriarcal) e uma irmandade católica (patriarcal). Partindo do pressuposto que a concepção de beleza se relaciona com a identidade coletiva, foram investigados os aspectos históricos, culturais e de identidade social e familiar que influenciavam as concepções de beleza, com fundamentação nos conceitos do Psicodrama e nas intervenções etnodramáticas realizadas por J. L. Moreno, assim como em estudos filosóficos e culturais-feministas sobre a beleza e a corporeidade. Foi realizada uma pesquisa-ação através de entrevistas, observação participante e intervenções sociodramáticas – o etnodrama – com ambas as famílias. Os resultados revelaram aspectos comuns – padrões éticos de dignidade nas relações interpessoais – e diferenciados nos dois tipos de família. A família de irmandade católica, centrada na autoridade patriarcal, enfatizou a "beleza interior" e os aspectos relacionais como harmonia, união, aceitação e paciência nas relações intrafamiliares. Na família quilombola, centrada na autoridade matriarcal, a beleza se "exteriorizou" na cor da pele e no aprendizado das mulheres em se fazerem e se sentirem bonitas, alicerçado na força dos cuidados e do amor da matriarca. Esta pesquisa, ao retomar análises morenianas do problema étnico-racial, pode contribuir para estudos antropológicos em Psicodrama.

Palavras-chave: Beleza, psicodrama, etnodrama, quilombo, irmandade.


ABSTRACT

This article presents the results of an research about beauty conceptions that integrate the identity of two black families of Minas Gerais: a Quilombola (matriarchal) and a catholic brotherhood (patriarchal). Leaving of the presupposition that the beauty conception links with the collective identity, it were investigated the historical, cultural and identity aspects which influenced the beauty conceptions of the members of the two families, reasoned in the Moreno's concepts of Psychodrama and Ethnicdrama, as well as in philosophical and cultural-feminist studies regarding beauty and corporeity. An actionresearch was conducted through interviews, observing the participants and Sociodramatic interventions – the ethnic drama – with both families. The results revealed common aspects – ethical patterns of dignity in the relationships – and differentiated in the two family types. The family of the catholic brotherhood, centered on the patriarchal authority, revealed an emphasis on "inner beauty" and interpersonal aspects as harmony, union, acceptance and patience in the family and social relationships. In Quilombola`s family, centered on matriarchal authority, the beauty was "uttered" in the color of the skin and in the women's learning of some modes to feel prettier, rooted in the care strength and in the matriarchal love. This research, when retakes Moreno analysis of the social and racial problems, it can contribute to anthropological studies in Psychodrama.

Keywords: Beauty; psychodrama; ethnicdrama; quilombo; brotherhood.


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo teve origem na pesquisa que fundamentou a monografia de conclusão do Curso de Especialização em Psicodrama1. A proposta de pesquisar as concepções de beleza em famílias negras surgiu como referência aos conceitos de identidade coletiva, autoimagem e autoestima relacionados com os conceitos psicodramáticos de matriz de identidade e matriz familiar (MORENO, 1997; MENEGAZZO, 1995; e ZURETTI, 1998).

Os sujeitos da pesquisa foram duas famílias negras da grande região metropolitana de Belo Horizonte, uma residente em um quilombo urbano e outra de irmandade católica. Todas as intervenções aconteceram nas residências das famílias. Os métodos utilizados foram: entrevista semiestruturada com patriarca/matriarca da família e com um familiar por ele indicado (nos dois casos, uma filha); uma observação participante e três atos etnodramáticos. As observações no campo visavam o conhecimento das dinâmicas familiares: como aconteciam o relacionamento dos patriarcas com seus descendentes, os processos de autoridade e comunicação interpessoal na família. Em todos os atos, a pesquisadora contou com a contribuição de uma ego-auxiliar e um observador, ambos também psicodramatistas em formação. No último ato, a pesquisadora fez uma devolução para cada família, simbolizada pela entrega de um álbum que continha fotos e falas dos participantes durante as atividades e comentários da pesquisadora. Embora os atos etnodramáticos tenham acontecido a partir de um roteiro previamente elaborado e igual para as duas famílias, eles sofreram influências ambientais: em uma família os atos aconteceram em ambiente aberto e com 15 participantes, e na outra, em local fechado e com cerca de 6 participantes.

O etnodrama é uma criação de Moreno (1974: 123): "(...) é uma síntese do psicodrama com as pesquisas de problemas étnicos, de conflitos de grupos étnicos". No primeiro ato etnodramático, os objetivos eram: compreender pontos obscuros das entrevistas; investigar aspectos significativos das histórias das famílias e as concepções de beleza ao longo das gerações e identificar a autoimagem das pessoas. Nessa ocasião, o principal método utilizado foi o Etnodrama do Brasão da Família. O segundo ato etnodramático foi realizado através de esculturas e teatro espontâneo, para identificar as autoimagens corporais e as imagens, percepções e concepções que o grupo tem de si e sobre o belo e o feio. Finalmente, no terceiro ato etnodramático, utilizamos um jogo dramático e o psicodrama interno (FONSECA, 2000) para conhecer as formas de discriminação vividas pelas famílias e as formas de enfrentamento. Os métodos e as técnicas utilizados foram: jogo dramático e psicodrama interno, concretização, interpolação de resistência, maximização, inversão de papéis, espelho, solilóquio e duplo.

Nesta pesquisa os atos etnodramáticos foram planejados e realizados de acordo com a sequência do Ciclo Vivencial Psicodramático de Aprendizagem (CVPA), desenvolvido por Vale (2005). O CVPA é um ciclo com as etapas: aquecimento (de chegada, corporal, grupal e temático); atividade dramática; compartilhamento; conexão (com os papéis sociais) e processamento (sobre o tema, objetivos de cada ato e com foco nos processos interpessoais e intragrupais e destes com o contexto social). Nestas duas últimas etapas, a direção tece com o grupo as junções entre vivência e outras experiências dos participantes, buscando problematizar e enlaçar as conclusões ou reflexões que o tema e a vivência podem levar para a vida dos sujeitos.

A fundamentação teórica destaca alguns conceitos originais de Jacob Levy Moreno necessários à compreensão do tema da identidade coletiva, como Matriz de Identidade, "co-consciente", coinconsciente e fator tele e, em especial, suas reflexões sobre identidade coletiva advindas de atos etnodramáticos. Sinalizamos também a contribuição psicodramática contemporânea de Zuretti (1998), que analisa o desenvolvimento humano em sucessivas matrizes – genética, materna, de identidade, familiar, social e cósmica – que apresentam "um intrincado nó de ligações" e "um processo coinconsciente em ação" (1998: 266), baseados em relaçõestele. Também abordamos as concepções de beleza e as reflexões sobre o corpo negro, da filosofia grega às contribuições dos estudos culturais e feministas.

 

MATRIZES DAS IDENTIDADES INDIVIDUAL E COLETIVA

A identidade é um processo de desenvolvimento contínuo que se inicia na infância, através da matriz de identidade. Moreno (1997, 1974 e Fox, 2002) aponta que, da gestação até o nascimento, mãe e filho compartilham o mesmo locus (ambos habitam o mesmo corpo) e o bebê se alimenta da placenta (matriz materna). Logo ao nascer, o corpo e o eu não existem ainda para o bebê, tampouco existe o eu e uma pessoa distinta da criança. Há uma identidade do bebê com a mãe. Diz-se, então, identidade com esse sentido: é o estado do bebê em que mãe, o próprio bebê e tudo o mais (na experiência sensorial do bebê) constituem um todo único (MORENO, 2002). Em um primeiro momento da vida (matriz indiferenciada), a criança não realiza distinções entre ela e os outros, é como se todos fossem extensão dela mesma. Em um processo lento, a criança começa a diferenciação e descobre a própria imagem, o que propiciará o reconhecimento de um si mesmo separado do outro. É nesse momento que se inicia sua matriz familiar, que é uma rede de vínculos que se forma a partir da interação dos papéis familiares (MENEGAZZO, 1995).

Somente a partir do reconhecimento do outro é que a criança pode aprender a ter empatia, ou seja, a se colocar no lugar do outro (fase da inversão de papéis). Através do desenvolvimento da empatia e da inversão de papéis, a criança se insere na matriz social. Portanto, a criança passa de um estado-matriz de identidade indiferenciada, no qual só há a unidade, para o gradativo reconhecimento de si (diferenciação, construção da identidade) e posterior reconhecimento do outro, na verdade de muitos outros: eu e não eu; eu e pai, mãe e irmãos (papéis familiares, in-group); o eu e os que não são da mesma família (out-group).

Segundo Zuretti (1998), o homem desenvolve sua vida a partir de sucessivos acontecimentos fundantes (matrizes): genética, materna, de identidade, familiar, social e cósmica. Isso não significa, porém, que para todos os seres humanos isso será uma passagem evolutiva linear; mas é a partir dessas matrizes que emergirão os papéis que serão os construtores de um ego diferenciado. Para Moreno e para Zuretti, o ego é um mosaico, composto por todos os papéis que o integram e formam suas várias formas de se vincular.

Após o nascimento, a criança passa da matriz genética (presente na gestação) para a matriz materna ou de identidade total indiferenciada. Passa a existir um conhecimento coinconsciente partilhado entre mãe e bebê. Tanto o bebê como a mãe recorrerão aos próprios recursos genéticos e de experiência vivida na relação: cada experiência de vida e de relação se torna um ato criativo e será o início do processo coinconsciente ativo que dá sentido à vida humana (ZURETTI, 1998: 267).

A matriz de identidade, por sua vez, enraíza-se em uma matriz familiar, que lhe oferece modelos de conduta, códigos fisionômico e corporal (de comunicação) usuais daquela família e sua cultura. É também por meio dessa matriz que a criança se depara com a existência do pai e começa a reconhecer a si e ao outro; percebendo as diferenças entre o mundo interno e o externo.

A matriz social surge com as demais relações que se vinculam ao mundo infantil: a vizinhança, os colegas, a escola, a igreja. Cada grupo de que a criança faz parte deixa um aprendizado, uma forma nova de se relacionar. Por outro lado, a mãe e os familiares em torno do bebê estão ativamente inseridos em uma matriz sóciocultural e, dessa forma, passam para a criança, de forma vivencial, valores e padrões de comportamento
próprios de determinada sociedade, comunidade ou grupo social.

A matriz cósmica diz respeito ao que é universal na existência humana. A partir dela, cada um traz em seu código genético uma marca, que traz em si a memória da vida de seus antepassados. Um diferencial entre a matriz cósmica e a genética é que a primeira está presente quando ocorrem memórias de eventos anteriores ao nascimento. Podemos falar também em processos coinconscientes transgeracionais que transmitem valores,
histórias, segredos e traços familiares singulares e marcantes.

Em todas as matrizes permeiam os estados "co-consciente" e coinconscientes: conteúdos comuns conscientes e inconscientes criados pelas pessoas nos vínculos. Estão presentes entre parceiros que vivem relações íntimas: famílias, casais, grupos, amigos etc. "Eles estão ligados através dos 'encontros'; são as experiências da vida que se desenvolvem entre eles e formam uma 'interpsique', um fluxo estruturado de estados "co-conscientes" e coinconscientes." (MORENO, 2008: 2).

O coinconsciente se refere a uma história da qual as pessoas não têm consciência, inclui o que há de secreto nas relações, sejam elas reações corporais não reconhecidas, experiências sociais desconhecidas, ou a longa história dos antepassados de uma família. Se, por um lado, as famílias podem abrigar segredos conscientemente protegidos, existem também informações coinconscientes, não nomeadas (mas declaradas), que circulam entre seus membros, na partilha de experiências e comunicações (verbais e não verbais), que contêm valores e concepções e influenciam o modo de agir e a identidade do grupo familiar.

Moreno, em um relato de um ato etnodramático em que um casal de negros foi protagonista (1997), desenvolve um conceito fundamental nas relações étnico-raciais, que é o de identidade de papel. Segundo Moreno, este princípio que distingue os in-group (membros do grupo) dos out-group (estranhos do grupo) exerce forte influência nos vínculos: "(...) para os não negros, por exemplo, todos os negros são considerados idênticos. (...) Esse princípio de identidade também funciona ao inverso. Os negros consideram a si mesmos um coletivo singular, o negro, uma condição que submerge a todas as diferenças individuais" (1997: 442- 443). A identidade de papel é um reflexo coletivo, que generaliza e ao mesmo tempo restringe, ao ressaltar em um indivíduo apenas um papel que ele desempenha, excluindo seus demais papéis e interações de outros contextos, que compõem sua subjetividade e singularidade. A identidade de papel é a representação do todo (o ego com seus múltiplos papéis, vínculos e interações sociais) por uma única parte (por exemplo, "ser negro").

Moreno (1997) distingue identidade de identificação. Para ele, a identificação pressupõe que há um eu constituído, que tenta encontrar a identidade com outro eu também já constituído. Ou seja, a identificação só pode ocorrer após o crescimento da criança e de sua capacidade de colocar-se separada de outra pessoa, que acontece a partir do segundo universo da matriz de identidade (FOX, 2002).

Para Moreno (1997), existem duas formas de identificação: a subjetiva e a objetiva. A primeira refere-se à projeção de um sentimento individual (relativo a alguém conhecido) em outro indivíduo (desconhecido). Essa identificação pode corresponder ou não com a realidade. Já na identificação objetiva, a experiência de uma imagem ou situação de uma pessoa é exata, correspondendo com a realidade. A projeção de um sentimento individual em uma pessoa, presente na identificação subjetiva, quando distorcida, é a expressão da transferência, que é um processo intersubjetivo que revela incongruências de escolha no campo inter-relacional. É também responsável por uma situação de não encontro (PERAZZO, 1994). A identificação objetiva facilita a experiência de tele. O fator tele, ao contrário da transferência, é o fator que propicia o encontro ou relação Eu-Tu, pois se refere à ideia de mutualidade e reciprocidade, que pode ocorrer tanto na escolha recíproca de atração e união como na escolha recíproca que afasta e separa as pessoas.

A identidade é, portanto, um processo dinâmico e permanente, influenciada por todas as pessoas, situações e espaços que os indivíduos conhecem e percorrem durante sua vida (suas matrizes fundantes). No decorrer das relações, surgem as identificações, as transferências, o fator télico, o "co-consciente" e coinconsciente, que são apenas alguns dos inúmeros elementos que compõem o complexo tecido das relações humanas e influenciam as relações sociais e étnico-raciais.

 

ALGUMAS CONCEPÇÕES DE BELEZA: DA FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA AOS ESTUDOS CULTURAIS E FEMINISTAS

Segundo Lody (2006), as concepções de beleza se relacionam a motivos, temas e interpretações socioculturais e históricas, integradas a modos de compreender e simbolizar o mundo, a natureza e o ser humano. Em definições filosóficas, o belo se refere a um juízo estético que qualifica o que causa prazer e admiração. Estética (do grego aisthésis significa percepção, sensação) é um ramo da filosofia que tem por objeto o estudo da natureza do belo e dos fundamentos da arte. Para Baumgarten (citado por Tiburi, 2004), existe uma beleza universal que se expressa através da ordem, visível no discurso, no gesto e na exposição dos conhecimentos.

Na Grécia Antiga, os pitagóricos (século VI ao IV a.C.) não usavam o termo beleza, mas harmonia, que estava ligado ao número, à medida e à proporção. Sócrates compreendia a beleza associada ao prazer e à busca de amor. Em Platão, encontramos a tríade Belo, Bom e Verdadeiro; o belo é distante, pois a verdadeira beleza está presente em um plano do idea – um plano superior, do conhecimento, que é absoluto e estático. Aristóteles traz uma noção de beleza que tolera imperfeições e mudanças, e que coloca o homem como figura central, pois ele é criador e se distingue dos demais seres vivos. Kant considerou a subjetividade do observador, porém associou as sensações e a corporalidade às mulheres, em detrimento ao pensamento científico e racional, destinado aos homens.

Um ponto em comum em todos esses filósofos e nos pensadores da Igreja Católica na Idade Média (Santo Agostinho), é que as mulheres ocupavam um não lugar ou um lugar inferior, sem acesso à razão, à ciência e à política. A mulher foi assim mantida como se essa fosse sua "essência", natureza e função. O feminino estava associado mais ao sentir do que ao pensar; uma vez que as mulheres estavam entregues à ignorância e à pecaminosidade (original) da carne (IVANOV , 2009).

A influência dos estudos culturais e feministas, a partir dos anos de 1950, foram fundamentais para o surgimento de correntes sociológicas contrárias a essa tendência sexista e essencialista. As concepções de beleza passaram a ser vistas como representações culturais e sóciohistoricamente determinadas.

O objetivo do Movimento Feminista é a luta pela igualdade de direitos. Ao longo dos anos, esse movimento transformou seu modo de conceber o corpo feminino, que deixou de ser visto como mero produto da natureza – sem, entretanto, negar as diferenças sexuais –, para ser um objeto político-social, um tecido cultural, um corpo social (Grosz, 2000). O feminismo avançou para além do dualismo mente e corpo, abrindo espaço para que novas noções de corporalidade pudessem surgir, inclusive a masculina, ao mesmo tempo em que as mulheres ampliavam seu espaço em produção cultural e de conhecimento.

Apesar de todas as conquistas do movimento feminista, o corpo das mulheres ainda é visto como objeto de consumo e se mantém a ideia de um ideal de beleza. Cosméticos, exercícios, dietas e cirurgias ditas "corretivas" crescem em número e em variedade, em prol de corpos (sejam eles femininos ou masculinos) que possam ser cada vez mais próximos de um padrão desejável de beleza nas sociedades contemporâneas.

É importante refletir que a busca pela beleza está intimamente relacionada com a autovalorização, sendo esta a base da autoestima. Autoimagem e autoestima são constituídas na infância, no processo das relações mais próximas da criança, porém são atualizadas continuamente, ao longo da vida (pelas matrizes de identidade, especialmente a familiar e a social). Autoconsciência, consciência cultural e política e autoaceitação – em termos de identidade pessoal e coletiva – seriam o caminho para se sentir bem com o corpo que se tem, independentemente dos padrões externos, que são muitos e mudam constantemente.

 

O CORPO NEGRO

A depreciação estética e cultural, juntamente com o argumento da inferioridade da raça negra e de sua suposta ausência de alma inferida pela Igreja Católica foram as justificativas utilizadas para que europeus (considerados belos e superiores) dominassem e escravizassem africanos e afrodescendentes. Como o belo existe por comparação e contraposição ao feio, foi vetada ao negro a possibilidade de ser belo; fato que ainda tem resquícios, em pleno século XXI, observável através das discriminações presentes na mídia, no mercado de trabalho, nos contextos privados e públicos, inclusive nas escolas.

O questionamento dessas teorias da inferioridade das pessoas negras vem ocorrendo há décadas em virtude da luta por organizações de combate à discriminação racial e por movimentos sociais de valorização da cultura negra, que vêm se refletindo no cotidiano de comunidades quilombolas e de irmandades, predominantemente negras. As famílias quilombolas e de irmandades exercem grande influência na constituição identitária de seus membros, incluindo a autoimagem e a concepção de beleza. No interior dessas famílias e comunidades, a identidade negra é construída e reconstruída continuamente como pertencimento a um grupo étnico-racial, cultural e social, através dos processos de interação – pela socialização, pelo diálogo, pelo conflito e pela negociação. O amparo da família e da comunidade é fundamental para a constituição da autoimagem valorizada e para preparar a criança para lidar com as diferenças étnico-raciais e culturais quando se deparar com o mundo exterior.

Mais do que diferenças ocasionadas por traços fenotípicos, é importante refletir como essas crianças estão preparadas para enfrentar o preconceito, a discriminação e a intolerância, especialmente no contexto escolar. Segundo Silveira Silva (2005): "Em um país como o Brasil, a ideologia dominante internalizada pelos professores não é sensível às diferenças, no sentido de respeitá-las, mas apenas no sentido de apontálas como 'perigosas' ou 'lamentáveis' para o seu ideal de cultura". Os alunos negros não se veem representados nas imagens de família, religião e comunidade que predominam nas escolas. Felizmente, também por influência política dos movimentos negros, já existem no Brasil políticas públicas voltadas à inclusão de diferentes culturas e etnias no currículo e no cotidiano escolar, especialmente a Lei nº 10.639/20032.

Os movimentos culturais e sociais das décadas de 1980-1990, aliados às políticas públicas deste milênio, tornam-se movimentos de resistência ao preconceito e à discriminação e trazem uma afirmação positiva das referências negras. O corpo negro passa a ser considerado um suporte da identidade negra e o cabelo crespo um forte ícone identitário (GOMES, 2003). A indústria cosmética e da moda (vestuário e penteados) se ampliam para os cuidados com a beleza negra, de mulheres e homens. A linguagem corporal – formas de saudação, danças, rodas de capoeira e de samba –, cultos e melodias, culinária, símbolos, joias e objetos de origem afro-brasileira ou relacionados à cultura negra ganham visibilidade e valorização social (SANSONE, 1996 e 2000). "Assumir a beleza é também assumir lugares de pertencimento, de resistência e conquista da cidadania" (LODY, 2006). Como as famílias estudadas assumem sua beleza negra e esses lugares de pertencimento, de resistência e conquista da cidadania?

 

ESTRUTURAS E CULTURAS DAS DUAS FAMÍLIAS PESQUISADAS

A família de Aparecida (67 anos em 2010) residia em um quilombo urbano no município de Belo Horizonte, um de quatrocentas comunidades de remanescentes quilombolas em Minas Gerais. Os quilombos ("acampamentos guerreiros na floresta") eram locais que abrigavam escravos negros fugidos e/ou alforriados. Se nos quilombos tradicionais, formados no período colonial, havia forte ligação dos escravos com o seu território, também nos quilombos contemporâneos essa ligação territorial se faz presente, como espaços onde memória, cultura e identidade dos afrodescendentes são preservadas.

Geraldo (64 anos na época da pesquisa) era o patriarca de uma família ritual de irmandade católica. Durante toda a escravidão, foi vedada ao negro sua livre expressão religiosa. Foram, então, criadas as Confrarias ou Irmandades religiosas para que os negros pudessem dedicar sua devoção a santos católicos, como Nossa Senhora do Rosário e santos negros. As irmandades funcionavam como sociedades de ajuda mútua ou famílias rituais e, como era permitido incluir certos rituais de origem africana (coroação de reis e rainhas, instrumentos de percussão, danças e músicas), elas contribuíam para a construção de identidades sociais significativas para os negros, como ainda acontece nos dias atuais.

A maioria dos membros das duas famílias residia junto ou próximo da residência do/da patriarca/matriarca. A renda do núcleo familiar de Geraldo, para 7 pessoas que moravam juntas, era de 10 salários mínimos e da família da Aparecida era de 3 salários mínimos para manter 9 pessoas. Os dois se casaram uma única vez: Aparecida casou-se por obediência à mãe, enquanto Geraldo, por escolha. Ambos conduziam as famílias solitariamente, pois eram viúvos e não tinham companheiros. Também os dois não tinham outros familiares vivos, de modo que suas famílias se resumem em seus descendentes.

O patriarca e a matriarca dessas duas famílias viveram dificuldades econômicas que os fizeram trabalhar ainda na infância. Na residência da família de Aparecida (quilombo), até recentemente (2005), não havia energia elétrica. Em entrevistas, os dois ressaltaram as melhorias econômicas das famílias: em 2010 apresentavam mais recursos, oportunidades de acesso a meios de comunicação, objetos de uso pessoal e serviços em geral (inclusive de cuidados com a beleza).

Percebe-se que Geraldo assume uma postura mais imperativa que Aparecida: "pra mim é assim: se não provar que eu tô errado, vai seguir o que eu quero" (sic). Em todas as atividades em grupo, Geraldo sempre solicitava que alguém chamasse as pessoas para o início das atividades. Em alguns momentos Geraldo respondia em nome do grupo, em outros, ficava como observador de sua família. Aparecida, ao contrário, por ocasião das atividades era quem chamava e reunia as pessoas, além de participar ativamente. Sua família se tornou matriarcal desde antes do falecimento de seu marido, que, por ser alcoolista, demandou que ela assumisse o controle da família. As separações e a ausência da figura masculina reforçam o padrão matriarcal. Prevalece em Aparecida, entretanto, uma postura maternal, pois ela mais ajuda seus familiares do que impõe ordens.

Nas duas famílias existem distinções em relação aos papéis femininos e os papéis masculinos. Na família de Geraldo, o modelo feminino transmitido é o de submissão aos homens (pai e marido, que devem ser provedores); a maternidade e o cuidado com a família são funções femininas e valorizadas. Enfatiza-se a indissolubilidade do casamento, tendo em vista que é uma "união de Deus, e não dos homens". Geraldo aponta, inclusive, que os casamentos dos filhos ajudaram a fortalecer os costumes da família, pois todos os genros seguem os mesmos valores que ele aprova, são atuantes nas atividades (festas e comemorações em geral). Verifica-se maior reverência dos mais jovens em relação aos mais velhos, o que acontece inclusive entre pares (irmãos). Isso foi visualizado em um ato etnodramático, durante a confecção do Brasão da família. Nesta família os problemas são velados, como se não existissem. Como Geraldo demonstrou uma participação menos ativa nos atos etnodramáticos, isso pode ter influenciado a pouca exposição de sua família.

Na família de Aparecida era valorizada a virgindade, os afazeres domésticos e o cuidado com os filhos como funções femininas. Aos homens caberiam os serviços braçais. Essas funções, normas e valores em relação aos papéis de gênero se tornaram mais flexíveis com o tempo e com as novas gerações. Quanto ao casamento, não houve imposições a respeito. Dos filhos de Aparecida, por exemplo, dois são separados, uma é viúva e uma é mãe solteira por escolha própria. Trata-se de uma família de muitas mulheres, o que acaba alterando a ideia de mulher frágil e passiva – prevalece a ideia de mulher como pilar emotivo. Há mais expressão de sentimentos, proximidade afetiva e diálogo entre filhos, netos, mães e a matriarca, o que gera mais liberdade e, provavelmente, também mais desentendimentos. Apesar de o respeito existir, ele não é um imperativo.

Ambas as famílias percebem que ao longo das gerações se abriram mais ao mundo exterior e também os relacionamentos internos estão mais abertos do que outrora, inclusive a pesquisadores sociais.

Nas duas famílias existe a busca de um sentido religioso na vida. Na família de Aparecida, há a junção de várias religiões. A família era católica, mas se dedica à prática do candomblé. Os membros da família participam juntos das festas juninas (São Pedro e São João), de São Cosme e São Damião (celebrada pelo vínculo com o Candomblé) e de alguns dias santos, também de acordo com o Candomblé. A participação não é obrigatória, em geral os membros mais velhos da família e a comunidade participam mais.

Na família de Geraldo, ao contrário, a fé, centrada na religião católica, é impulsionada pela irmandade de que todos participam ativamente. Comemoram com rituais de congado também o dia de São Benedito (santo negro) e a festa de Nossa Senhora do Rosário.

As duas famílias comemoram o dia 13 de maio e o dia 20 de novembro, datas da Abolição da Escravatura e da Consciência Negra, respectivamente.

Constatou-se que a família de Geraldo se fundamenta no modelo tradicional, com uma identificação mais coesa em torno do patriarca e em termos religiosos e culturais. Já a família de Aparecida se tornou mais permeável às mudanças e às transformações sociais, culturais e tecnológicas que influenciam as outras famílias contemporâneas.


CONCEPÇÕES DE BELEZA SEGUNDO AS FAMÍLIAS PESQUISADAS: RELATO E ANÁLISE DOS DADOS

FAMÍLIA 1: UMA IRMANDADE CATÓLICA (PATRIARCAL )

Sobre definição de beleza, Geraldo diz: "Beleza pra mim não é apresentação, a pessoa andar bem-arrumada. Andar arrumado é um dever, uma obrigação, porque é a maneira de você se apresentar. Mas a nossa beleza é interior". Sobre a beleza dos outros, Geraldo cita a própria esposa: "eu gostava muito dela, casei com ela por escolha minha, mas a verdade é essa: não tinha condição de ter uma Miss Brasil dentro de casa. Minha esposa, mesmo, não era uma mulher linda, mas a qualidade dela..."

A respeito de como os membros da família cuidam da aparência, Ester (filha de Geraldo) cita que todos se cuidam bem. Um destaque é o Felipe (14 anos), porque cuida muito do cabelo: "Ele relaxa, escova, arrepia, fica horas no banheiro. Faz tudo que uma mulher faz". Há também outro adolescente (sobrinho de Ester) que raspa o cabelo conforme a bandeira do time de futebol pelo qual torce, além de fazer variações de arrepiados no cabelo. Ester diz: "Beleza pra mim é essencial, porque eu acho que não tem aquela pessoa que não vai querer arrumar um cabelo, fazer uma unha. Isso é até bom pra se apresentar pras outras pessoas". Entretanto, Ester lembra que tem familiares que se arrumam por obrigação ou porque outras pessoas lhes questionam. Cita o caso de um irmão que é sempre perguntado pelo pai "se ele não vai fazer a barba, cortar o cabelo". "Se a gente não falar, pra ele tá bom. Pra ele qualquer coisa tá bom. Não se preocupa" (sic). É importante destacar que o irmão citado participou dos atos etnodramáticos, é o José, que representou uma barriga que não se preocupa com suas formas avantajadas.

Citamos algumas representações de beleza obtidas nos atos etnodramáticos com a família de Geraldo: "a beleza está em um Sorriso largo que cativa as pessoas"; "nas Pernas belas que atraem e seduzem"; "na Mente paciente, calma e que pensa antes de fazer as coisas"; "nas Mãos que cumprimentam e recebem as pessoas"; "no Coração que tenta perdoar; na Barriga que se gosta mesmo que os outros não a considerem bela"; "nos Cabelos que enfeitam o rosto"; "nos Olhos que veem as coisas belas da vida"; "está em cada parte e ao mesmo tempo no Todo".

Na família de Geraldo foram enfatizadas as noções de beleza interior, que não está apenas na aparência: "A beleza às vezes está só por fora, só na casca". "Beleza não é tudo". "(Minha esposa) não era uma mulher linda, uma Miss Brasil, mas a qualidade dela..." Uma beleza que está intimamente relacionada com o autocuidado e que também pode ser um dever – seguir um padrão social de autoapresentação – mais do que um prazer. "O importante é estar em paz consigo mesmo".

A beleza da família de Geraldo está valorizada nas qualidades pessoais e, principalmente, de socialização e coesão familiar: "A beleza está na forma de lidar com os outros, cultivar a beleza interior" – na paz interior, na sinceridade, no encanto, na sedução, na paciência, na receptividade, na tentativa de perdoar. Surgem poucos atributos de valorização individual como: desistência de mudar algo que incomoda (os outros); (fazer algo) que é bom aos próprios olhos; na inteireza e na completude. Percebe-se uma tendência para que os mais jovens, que interagem mais com o mundo exterior, manifestem mais vaidade que os outros homens da família: "Faz tudo que uma mulher faz" (Ester ao citar seu irmão Felipe). Isso demonstra uma busca de identificação objetiva com outros jovens, facilitando sua adaptação ao "modo de ser jovem", atual, e propiciando mais abertura do clã familiar patriarcal ao mundo cultural contemporâneo.

Na família patriarcal de irmandade católica estudada, percebemos uma ênfase na identidade coletiva familiar e na importância de cada parte para formação de um todo, buscando proteger a família das influências do mundo exterior. Os valores tradicionais do patriarca influenciam a concepção de beleza e os modos de ver e cuidar do corpo. A concepção de beleza se aproxima do modelo ideal platônico, em que o belo é distante do corpo; o que é belo deve estar em um plano superior da alma e da razão.

A família de Geraldo talvez ainda precise encontrar um caminho eficaz de não perder a riqueza cultural de uma família de irmandade católica, sem perder também a autonomia e espontaneidade de todos e a abertura para as mudanças sociais.

FAMÍLIA 2: QUILOMBOLA MATRIARCAL

A concepção de beleza na família quilombola se centra na grande influência da matriarca, Aparecida, pela ausência da figura paterna em termos reais e simbólicos. Aparecida demonstra grande interação com o meio ambiente, a terra do quilombo: "o que eu acho bonito, no meu modo de pensar, é a natureza. O cantar dos pássaros...". Ela fala da influência das dificuldades financeiras da família no passado, em termos de cuidados com o corpo: "A gente pegava o sabão da cozinha e tomava
banho. (...) Não tinha um ordenado suficiente pra comprar os produto. Se desse pra comprar, comprava uma coisa baratinha, porque não tinha condição de pagar, mas era ruim, não adiantava
." (sic).

A concepção de beleza na família quilombola se centra na grande influência da matriarca, Aparecida, pela ausência da figura paterna em termos reais e simbólicos. Aparecida demonstra grande interação com o meio ambiente, a terra do quilombo: "o que eu acho bonito, no meu modo de pensar, é a natureza. O cantar dos pássaros...". Ela fala da influência das dificuldades financeiras da família no passado, em termos de cuidados com o corpo: A gente pegava o sabão da cozinha e tomava
banho. (...) Não tinha um ordenado suficiente pra comprar os produto.
Se desse pra comprar, comprava uma coisa baratinha, porque não tinha
condição de pagar, mas era ruim, não adiantava
." (sic).

Pelo mesmo motivo, Lorena (filha de Aparecida) percebia que existia uma variedade de penteados, no quilombo e fora dele, mas não podia usufruir deles, pela ausência de acesso a produtos especializados e ao pouco tempo que a mãe dispunha para arrumá-la, uma vez que trabalhava para ajudar no sustento da família. Ainda assim, ressalta o papel da mãe, que sempre trançava o cabelo das filhas: "A minha mãe sempre foi muito muito vaidosa. Até hoje. Agora, as minhas irmãs puxaram esse lado dela. Eu não. Não tenho vaidade nenhuma". Ela cita que, com as melhorias
econômicas da família, atualmente as mulheres podem alisar o cabelo, manter as unhas bonitas, adquirir cremes, roupas e adereços.

Luciana, outra filha, fala da firmeza com carinho da mãe para a construção de sua boa autoimagem: "A mãe nos arrumava com tanta garra e tanta força, que a gente se sentia bonita." "Aprendemos a nos gostar... A geração atual não tem mais tanto preconceito". Essas falas mostram como houve identificação subjetiva positiva com a mãe, importante para a formulação da autoimagem e da autoestima; e como os
vínculos afetivos na matriz familiar podem acolher e preparar as crianças para se deparar com o preconceito e a discriminação, que nem sempre estarão apenas no meio externo (out-group).

Aparecida não percebe a influência da TV e da Internet com relação ao cuidado do corpo que seus familiares têm, exceto com o neto de 14 anos: "Ele viu um cantor com trança na TV e deixou o cabelo crescer pra trançar. Todo mês ele vai trançar, duas vezes por mês. Agora tem salão só pra isso, pra esses penteado. Chama afro, né? Então, ele pôs na cabeça que tem que andar assim". (sic). Portanto, há melhores condições e "permissão" para que a nova geração usufrua dos novos recursos de mercado de estética para pessoas negras.


Na família de Aparecida, a beleza é externalizada, corporalizada e representada através da cor da pele, da boca (se expressa, sorri), das unhas (para ser admiradas e cortar/beliscar) e dos olhos (veem as cores da vida e se comunicam), da postura física e do movimento (que traz o prazer da dança). Surgem também os padrões cognitivos, afetivos e éticos: "a cabeça que cuida, que raciocina e se preocupa", amor, diálogo na família (a boca conversa e reclama, reivindica), dignidade, autocontrole emocional, conscientização e moral.

A beleza na família de Aparecida é associada à segurança, ao prazer, à liberdade de comunicação, ao cuidado, na exposição de si e com a natureza, ao que é agradável. Além disso, a beleza está aberta ao mundo externo e à cultura contemporânea – há prazer e orgulho em ter acesso à variedade de penteados e roupas e na possibilidade de escolhas. Como afirma Grosz (2000: 83-84) "O corpo deve ser visto como um lugar de inscrições, produções ou constituições sociais, políticas, culturais e geográficas. O corpo não se opõe a cultura, um atavismo resistente de um passado natural; é ele próprio um produto cultural, o produto cultural".

Nas intervenções com a família quilombola, houve maior manifestação das dificuldades intrafamiliares e das experiências de discriminação pela cor e pelos traços étnico-raciais, que afetam profunda e diretamente a autoimagem. Lorena diz: "Somos e fomos discriminados por algumas pessoas". Atualmente, já ouviu comentários, mas explicitamente não se percebeu discriminada. Quando criança, era chamada de macaca e feiticeira na escola. Agora adulta não escuta mais nada, diretamente. As discriminações que viveu machucaram-na intensamente. Quando criança se sentia mal e chorava. "Parecia que marcava. Eles falava aquilo e eu dizia: 'não sou, não sou'. Chorei muito na minha infância por causa dessas atitude na escola. Mas passou, como tudo na vida passa." (sic). Apesar de ter "sentido na própria pele" a dor da discriminação, Lorena não pôde, entretanto, evitar que seu filho fizesse o mesmo gesto. Ela conta que ele não queria dançar quadrilha com uma menina na escola porque ela era pretinha (com a pele mais escura que a dele, que também é negro). Lorena percebe nesse gesto a influência da família paterna, que apesar de também ser negra, faz brincadeiras, que menosprezam os negros de pele mais escura. Lorena cita que depois disso, quando foi realizado um censo na escola (em que havia a denominação de raça/etnia de cada aluno, parecido com o do IBGE), o seu filho (então com 9 anos), negou-se a responder. Isso porque no censo não havia a opção negro, tinha somente preto. Ele dizia: "Mãe, não vou marcar porque eu não sou preto, eu sou negro. Eu não sou preto, preto é cor". Nessa ocasião, foi necessário que Lorena fosse à escola e conversasse com a diretora.

Para além da cor, o corpo é um lugar de inscrições sociais, políticas, culturais e geográficas. No caso da família quilombola, mais que um local que abriga pessoas, os quilombos são espaços onde memória e identidade (da família e do indivíduo) são preservadas (Silva , 2008). A valorização da terra e do ambiente é algo que caracteriza a autoimagem dessa família, assim como ela se posiciona e vê a beleza no mundo. Da mesma maneira como o quilombo onde reside a família está aberto à e para a cidade, na família de Aparecida não há muros: "não há cercas, é tudo separado e junto ao mesmo tempo"; os conflitos são expostos e debatidos e as diferenças na exteriorização da beleza são aceitas. A matriz familiar se mostra imbricada na matriz social e cultural do quilombo e da sociedade complexa contemporânea.

 

CONCLUSÃO

A Família 1 vivia muito fechada em si mesma (in-group) até o patriarca anterior e, a partir de Geraldo, começaram as trocas mais efetivas com o mundo externo (out-group). Enquanto prevalecia o medo de "perder a identidade familiar tradicional", os familiares do clã ficavam mais presos aos padrões do passado, em uma modalidade de matriz indiferenciada. Contudo, apesar da relativa abertura e da consequente maior diferenciação dos membros entre si e maior identificação objetiva com o meio sociocultural externo, que vem acontecendo por pressão externa e dos próprios membros mais novos da família, ainda prevalecem as relações indiferenciadas, a dependência dos filhos com a autoridade paterna. Como a cultura de sua família de origem foi muito mais fechada e rígida, Geraldo fica no meio de um conflito sociofamiliar, entre a pressão das rápidas e profundas mudanças no mundo social externo e pressão dos próprios membros mais novos da família que, apesar de seu esforço, buscam se adaptar a essas mudanças. A forma considerada "adequada" por Geraldo para manter a coesão da família é manter a tradição de família de irmandade católica, ou seja, ele cultiva as conservas culturais de um modelo de família com autoridade e comunicação centralizadas e pouco permeável às diferenças – uma identidade de papel com pouca espontaneidade (no estágio de roletaking). É um terreno propício para segredos e não ditos; a reduzida comunicação aberta e espontânea alimenta o coinconsciente familiar e tenta proteger o "eu familiar" de influências externas. A união dos membros, embora percebida por eles como algo positivo, pode se tornar mais uma corrente do que um laço (em que as pontas estão livres). Ainda assim, ficou evidenciado que a geração mais jovem se abre para o mundo externo (out-group), o que, consequentemente, representa um papel crucial para a transformação em direção a uma matriz familiar diferenciada. A maior autonomia dos membros provavelmente virá como conquista e resistência e não como "concessão" paterna; e mais à frente terão de enfrentar o dilema de como manter essa autonomia e sua identidade cultural de família de irmandade católica.

Na Família 2, a identidade de papel atinge um estágio de maior espontaneidade, uma vez que a valorização da negritude não se manifesta defensiva nem presa às conservas do passado. Apesar de a família quilombola estar geograficamente afastada do centro urbano (o que poderia favorecer seu fechamento); é ela quem demonstra apresentar uma matriz diferenciada. Consideramos que se apresenta em um estágio de roleplaying da identidade coletiva – relações mais livres e igualitárias permitem que os membros experimentem modos diferentes de estar e se apresentar no mundo, especialmente em relação à beleza e aos cuidados com o corpo. Os conflitos aparecem e há mais espaço para negociação. O encontro com o meio externo, entretanto, nem sempre é amistoso, podendo ser, de fato, ameaçador e exigir atitudes de confronto e resistência ativa. Luciana, ao contrário da irmã Lorena (que des-investiu na própria beleza), trabalha essas dificuldades de forma mais espontânea: fortaleceu-se. Luciana parece resolver com mais espontaneidade o conflito entre cuidar de si, de sua beleza e lutar pela identidade coletiva da família e do quilombo; provavelmente por uma especial identificação objetiva com a mãe, Aparecida: manifesta, como esta, garra, força e próatividade em sua luta constante pelos direitos do quilombo.

As diferenças étnicas estão dadas. Cabe a cada família a escolha de como viver com elas: seja de forma conservadora, seja de forma espontânea. Há de reconhecer que existe riqueza cultural e uma beleza peculiar em ambas as modalidades.

Este tema é complexo, interligado a várias dimensões psicossociais e culturais; as concepções são construídas ao longo de várias matrizes e estão em constante reatualização. Por isso, a variedade de métodos utilizados facilitou sobremaneira o levantamento de dados, a confirmação de algumas hipóteses e posterior análise de dados.

Para outras pesquisas com temas relacionados às culturas e relações étnico-raciais, incluindo a questão da beleza, sugere-se articular com o axiodrama, método proposto por Moreno, que problematiza, através da dramatização, as questões éticas, psicossociais e culturais de determinado problema social de um grupo ou uma comunidade.

Espera-se que este artigo contribua para os que desejam realizar aproximações antropológicas através do referencial sociopsicodramático. Afinal, através do contato e do convívio com a diversidade, é que se pode ter visões expandidas, aceitar e ser aceito nas diferenças, confrontar, negociar, encontrar e se reencontrar.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Listhiane Pereira Ribeiro

Av. Senador Levindo Coelho, 2651 ap. 201
30664-030 Vale do Jatobá Belo Horizonte, MG
e-mail: listhiane@ig.com.br

Zoé Margarida Chaves Vale
Rua Atenas, 465 ap. 302. B. Ana Lúcia
34710-010 Sabará - MG
e-mail: zoemcvale@oi.com.br
skipe: zoe.chaves

 

 

Nota:
1. A monografia, cujo título é "Concepções de beleza em famílias negras: um olhar sociopsicodramático", de autoria de Listhiane Pereira Ribeiro, sob orientação de Zoé Margarida Chaves Vale, foi apresentada ao IMPSI e à Faculdade Metropolitana de Belo Horizonte, para obtenção do título de Psicodramatista, em abril de 2010.
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. A Lei nº 10.639/2003 prevê a inclusão, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-brasileira", nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados (Fundação Roberto Marinho, 2006).