SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número1Um olhar sociopsicodramático sobre as concepções de beleza em famílias negrasPsicossociologia crítica - A intervenção psicodramática índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.20 no.1 São Paulo jun. 2012

 

Diálogo Eletrônico

Electronic dialogue

 

O consumo de drogas

 

Drug-use

 

Ana Cirene Marques da Cunha

Psicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), psicodramatista pelo Instituto de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo de Campinas (IPPGC) psicoterapeuta (indivíduo/casal-família)

Endereço para correspondência

 

 

Este O diálogo transcrito a seguir aconteceu através de e-mails no primeiro semestre de 2011, com uma experiente psicodramatista e psicoterapeuta. O foco da entrevista a seguir diz respeito ao trabalho institucional com usuários de drogas.

Editor: Gostaria que você contasse como começou a trabalhar com usuários de drogas e como é, em linhas gerais, esse trabalho.

Ana Cirene Marques: Comecei esse trabalho como voluntária em uma Comunidade Terapêutica em Campinas, no setor de triagem. Fazíamos entrevistas iniciais de acolhimento dos candidatos à internação, seguindo extenso formulário de perguntas sobre a situação de vida e história familiar de todos os que lá chegavam, pedindo ajuda para se liberar do uso de álcool e/ou outras drogas. Através dessas entrevistas, fui conhecendo esse universo da vida do usuário de drogas e do tratamento proposto na Instituição.

Em seguida, passei a fazer um estágio de treinamento (teórico e prático) na abordagem sistêmica, na clínica de Psicologia, que funcionava junto ao setor de triagem dentro de uma unidade da Comunidade, essa clínica hoje passou a legitimar-se como prestadora de serviços para a Instituição. Era um grupo ainda em formação, de psicólogos, para trabalhar sob supervisão, no atendimento individual e familiar dos internos, e aberto a projetos e propostas de atendimento grupal – e foi aí que vi a oportunidade que na época buscava: a possibilidade de desenvolver trabalhos grupais de inspiração psicodramática.

Bom, respondi à primeira parte da pergunta, esse foi o começo, mas de lá para cá o mundo já deu muitas voltas, eu com ele, e a Instituição também. Gosto de olhar para a Comunidade Terapêutica (daqui para a frente "CT") como um organismo vivo, sempre em movimento, sujeito a pressões sociais e internas, mutante por definição e constituição. Isso porque, além do fato de as pessoas que lá residem e trabalham (adictos e funcionários) estarem sempre mudando ou trocando de papel ou função, a Instituição está em eterna crise – financeira, de identidade, de lugar social. A luta pela sobrevivência impera em todos os sentidos. Acho que essa característica traz uma plasticidade que a torna interessante como local de trabalho, inspira e seduz nosso poder de ação/imaginação, mas também nos arrebata quando muitos dos esforços resultam em vão.

O funcionamento desta CT é um capítulo à parte. Ele se inspira na proposta de George de Leon, que está em um livro intitulado "A Comunidade Terapêutica – teoria, modelo e método", que recomendo para quem quiser compreender melhor o assunto. Em linhas gerais, o tratamento na CT é baseado no tripé: trabalho comunitário, espiritualidade e conscientização. Os atendimentos e os projetos da equipe de psicologia estão dentro da proposta de conscientização, ou seja, é um ramo dentro de outro ramo do tratamento geral.

Atualmente tem havido um interesse de integração cada vez maior entre as pessoas responsáveis pelos diferentes ramos de trabalho, quer dizer, existe uma equipe multidisciplinar (educadores sociais, conselheiros, monitores, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros, médicos) que busca interagir para tornar mais eficaz, digamos assim, as diferentes formas de intervenção perante os usuários do programa de internação. Além disso, as propostas da equipe de psicologia têm evoluído para oferecer novas formas de tratamento, através do programa de atendimento ambulatorial, em que as pessoas podem frequentar a clínica e as terapêuticas oferecidas sem estar internadas.

Existem também vários projetos em andamento, de prevenção em empresas e escolas, de cursos sobre dependência química para famílias e interessados no assunto, semanas de tratamento intensivo, um dia aberto de acolhimento e informação para a comunidade e para quem sofre com o problema da adição, enfim, são muitas frentes abertas e em constante reformulação, no intuito de atender à demanda que procura ajuda na CT.

Especificamente sobre o trabalho com o usuário de drogas, nos atendimentos psicológicos, procura-se instaurar uma mediação entre o impulso e a ação. Como em todo trabalho terapêutico, vejo eu, a palavra, a busca de signos para a expressão dos afetos, a simbolização das angústias e posteriores reflexão e elaboração que o encontro com o terapeuta proporciona, constitui-se em uma ferramenta necessária para a formação do autocontrole do ser humano, que o torna um ser racional, capaz de dirigir as próprias ações, consequentemente a própria vida.

No caso do atendimento com as famílias de usuários (entenda-se aqui família como pessoas significativas afetivamente, que participaram da história ou participam hoje do contexto de vida do adicto), consideramos que a dependência se desenvolve e sustenta-se em uma relação, comumente conhecida de codependência, mas, em linguagem psicodramática, penso que devemos utilizar outros termos. Esses atendimentos também buscam mediar essas relações, para favorecer a comunicação e a expressão dos afetos, estimular a reflexão sobre as funções e os papéis de uns em relação aos outros, recolocar os valores éticos em questão, enfim, proporcionar um espaço de encontro e escuta grupal, que possibilite uma reorganização do sistema de apoio familiar, de modo que todos possam vir a se beneficiar e construir um futuro com esperança de crescimento, dentro de um acordo entre os limites e as potencialidades de cada um.

Editor: Do seu ponto de vista, o adicto é protagonista de algo? Se sim, do que ele fala? Qual a falência social que estaria presente nas dificuldades dessa pessoa?

Ana Cirene Marques: Em primeiro lugar, e de modo geral, acho que o adicto é protagonista da própria vida, como todos nós, ele tem a tarefa de encontrar um sentido para sua existência. Contudo, como ele se expõe a riscos com maior frequência, isso pode se tornar algo muito perigoso, tanto para ele quanto para os que estão em torno dele.

Nesse ponto precisamos diferenciar algumas categorias dentro do termo adição. Porque existem adictos de todos os tipos, em todas as classes sociais, com diferentes níveis de escolaridade e inserção social – inclusive aqueles que não usam drogas, como as adições por jogos, compras, internet, sexo, dietas, esportes e até mesmo trabalho. Além disso, existe toda uma discussão sobre o uso compulsivo de açúcar, café, chás, chocolate, que alguns consideram drogas também.

Há pelo menos três níveis crescentes de uso de drogas: os que usam, os que usam abusivamente e os que se tornam dependentes químicos. Além disso, temos as drogas lícitas socialmente – álcool, tabaco, tranquilizantes, ansiolíticos, antidepressivos etc. –, e as ilícitas – maconha, cocaína, crack, LSD (ácido lisérgico), solventes, injetáveis, comprimidos e tudo mais que se puder inventar e vier por aí.

Então, de que usuário estamos falando? A que drogas estamos nos reportando?

Existe uma grande diferença entre o alto executivo que toma um uisquinho quando chega em casa para relaxar, um antidepressivo para levantar, e o Zé-ninguém que anda de shorts, descalço pela cracolândia, certo?

Talvez possamos identificar temas protagônicos comuns nesses dois casos extremos, mas certamente as falências sociais e as respectivas dificuldades não seriam as mesmas para essas pessoas.

Enfim, o uso de drogas está tão disseminado no modo de vida atual, que fica realmente difícil generalizar, seria muito simplista como explicação e de fácil solução – coisa que sabemos que não é.

Acho importante lembrar que o uso de drogas sempre esteve presente na história da humanidade. Se antes ela se associava a rituais espirituais ou ficava restrita a determinados segmentos sociais, segundo o momento histórico, é com a modernidade e a globalização econômica que a droga entra massivamente para o consumo acessível a todos e passa a ser um fenômeno social. Esse problema está interligado à economia atravessada pelo narcotráfico e pelo tráfico internacional de armas.

Então... a coisa é grande, né? São muitos os conflitos de interesses em questão.

Editor: Ana, acho que seria interessante, nesse sentido, que pudesse nos falar de como você percebe o problema de um possível e suposto protagonismo em seu cotidiano com os adictos. Seria possível traçar algum perfil daqueles que são atendidos por você?

Ana: Não acho que seja possível falar de um protagonismo dos adictos a priori, mas sim de várias possibilidades de protagonismo.

Vejo o uso de drogas como um sintoma de um mal-estar existencial do sujeito social, por isso suponho que ele carrega consigo potencialmente um apelo, que diz algo de si e do grupo com o qual convive, do ponto de vista relacional e da cultura onde se insere. São muitas variáveis que podem se conjugar nas histórias de vida de formas diferentes. Isso porque depende da função que a pessoa delega à droga na sua vida, no seu cotidiano e do benefício que extrai desse uso, dos significados que vai atribuindo nesse percurso, que inclui sempre outras pessoas à sua volta.

A maioria dos adictos que atendo são dependentes químicos e são eles mesmos que chegam pedindo ajuda, porque é quando a relação se inverte, e a pessoa passa a ser dominada pela vontade do uso da droga, e sente-se escravizada nessa relação, o desejo é de libertação. Se no princípio ela usava a droga para viver, passa a viver para usá-la, cada vez mais e mais, até chegar ao famoso "fundo do poço" – uma metáfora que se materializa de diferentes formas para cada um, mas que tem algo a ver com um confronto com a própria finitude, com a possibilidade da morte.

Existe um perfil-padrão desse tipo de dependente, geralmente é um indivíduo ansioso, solitário, centrado em si mesmo, impaciente, impulsivo, intolerante, sem controle sobre as emoções, com pouca capacidade reflexiva, que não consegue se conectar com seus sentimentos, muito menos com os dos outros. Para seguir adiante no seu uso, começa a driblar a realidade, as pessoas, o cotidiano, com mentiras, manipulações e fantasias, e com isso vai ficando cada vez mais onipotente, talvez como forma reativa diante da impotência que sente para viver bem sem se drogar. A relação com a droga é como a relação dos super-heróis com seus superpoderes. A pessoa passa de um estado de ser ou sentir-se menos para outro muito melhor, pelo menos por certo tempo, e isso se assemelha a um esforço de automedicação por sofrimento psíquico.

Quando observamos esse indivíduo no âmbito familiar, isso tudo ganha cores e se conecta em uma trama e história que vai muito além dele mesmo. E aí ele é sempre o protagonista, ou bode expiatório também, porque se oferece em sacrifício, colocando em risco a própria vida.

Então, qual seria a tênue, porém profunda, diferença?

No âmbito social, o adicto em tratamento fala da sua tremenda dificuldade de reinserção, pois tudo o leva ao retorno do uso da droga. E aí vemos quanto é necessária uma revisão nos valores éticos fundamentais que o nortearão em sua empreitada.

Daí, podemos supor que seu papel de adicto na sociedade tem uma função... Protagonista ou bode expiatório?

Convido vocês a pensar juntos sobre essa questão, pois se por um lado a necessidade de anestesiar-se diante das múltiplas exigências e pressões sobre o homem pode estar presente nessa onda de adição na sociedade atual, por outro, o não reconhecimento disso refletido nos que adoecem pode deixá-los simplesmente na categoria dos "perdedores", dos fracassados, daqueles que vão sendo excluídos, até sucumbir. E nós com isso? Como nos posicionamos?

Editor: Muito interessante o que você diz... Ou seja, embora nós, enquanto terapeutas, tenhamos de tratar o indivíduo ou a família que aí se apresenta, não podemos deixar de pensar na conexão com o grande mundo, a economia, a história. Uma sociedade de mercado, na qual ser um perdedor ou um ganhador passou a ser o mais importante. O consumo lícito ou ilícito de drogas, mais ou menos potentes, mais ou menos letais, é uma válvula de escape importante. E cada instituição vai dando seu sentido: a polícia, as igrejas, as empresas... Como pensar em espontaneidade criadora dentro de um quadro tão complexo?

Ana: É, fica realmente difícil acreditar que as pessoas, estando tão apegadas à repetição de atos compulsivos, possam ter a liberdade e o desejo de criar espontaneamente alguma coisa. Contudo, acho que pode ser uma saída, quem sabe também uma válvula de escape da própria prisão em que as pessoas se encontram, dentro de um "cárcere privado", cercadas de padrões que se repetem em cada tribo, protegidas do próprio medo de arriscar algo diferente.

Criar uma vida nova, o próprio e único estilo, mais próximo de seus desejos e afetos não é tarefa fácil em uma sociedade tão massificada e opressora em termos de opções de consumo, por exemplo. Na família, no trabalho ou no lazer, é preciso fazer um esforço para não cair na tentação das escolhas fáceis do dia a dia, porque não temos muito tempo, há um ritmo que se impõe em nossas vidas, temos pouco espaço para o improviso e a criação de novas possibilidades.

Em primeiro lugar, romper com a preguiça, acreditar que vale a pena, pelo próprio processo e não só pelos possíveis resultados, mas quem é que compra essas ideias hoje?

Editor: Ana, agradeço muitíssimo sua disponibilidade para o diálogo. Com certeza, você levanta questões que estimularão novas questões. Um grande abraço.

 

 

Endereço para correspondência
Ana Cirene Marques da Cunha
Rua Pilar do Sul, 219 Chácara da Barra
Campinas, SP
e-mail: anacmarquesc@gmail.com