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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.20 no.1 São Paulo jun. 2012

 

Reportagens

Reports

 

Psicodrama na rave

 

Psychodrama and rave

 

Ana Maria Pereira de Souza

Psicóloga pelo Centro de Ensino Universitário de Brasília (CEUB), psicodramatista e didata em formação pela Associação Brasiliense de Psicodrama e Sociodrama (ABP)

Endereço para correspondência

 

Toda vez que o assunto surge, a expressão de espanto das pessoas sempre é seguida por duas perguntas: "o que você foi fazer numa rave?" e "como fez psicodrama lá?"

A resposta sempre é iniciada com a explicação de que o título rave é derivado do inglês, usado para se referir a um estado de exaltação ou euforia diferentes do cotidiano. Os Festivais de Trance Psicodélico realizados ao redor do mundo atualmente inspiram-se no Psy-trance surgido nos anos de 1960, nas praias de Goa (Índia), no qual hippies e viajantes se reuniam no intuito de fugir da vida urbana, buscando harmonia e integração com a natureza. Definem-se como celebrações em que se busca alcançar diferentes estados de transe e elevação espiritual através da estimulação sensorial propiciada pela música eletrônica desenvolvida na década de 1990, com suas batidas repetitivas e melodia progressiva, complementada por sons, cores, luzes, substâncias alucinógenas e movimentos de dança.

Inaugurado no ano de 2000, o Universo Paralello-Festival de Arte e Cultura Alternativa (UP) é um dos maiores e mais conhecidos do Brasil. Por um período de oito dias, com música durante 24 horas, esse evento celebra a passagem do ano, aglutinando diferentes expressões de arte, cultura, autoconhecimento e espiritualidade. Recebe público, em sua maioria, entre 16 e 40 anos, de todas as regiões do Brasil, além da média de mil estrangeiros. Desde sua 4ª edição (2003/2004), a UP é realizada na praia de Pratigi, Costa do Dendê, baixo sul da Bahia, região marcada por dificuldades econômicas e sociais profundas, cujo PIB é aumentado pelo evento. Na praia coqueiral semideserta, sob supervisão da Secretaria do Meio Ambiente, é montada uma infraestrutura de três palcos para música e shows; área de alimentação; feira mix; zona cultural; cozinha comunitária e camping completo para oito mil usuários.

Minha filha era coordenadora do CircuLou-Zona de Preservação das Culturas, área da UP dedicada à participação das mais variadas artes e saberes, responsável por toda a parte artística, cultural e terapêutica do festival. Ela sabia de meu interesse por trabalhar com grandes grupos em espaços públicos (afinal, muitas vezes já tinha sido ego-auxiliar ou propagandista nos Sociodramas da Aids) e também da minha curiosidade por conhecer aquele evento, que havia quatro anos que a levava para longe da família nas festas de fim de ano. Várias vezes me dissera que eu e mais quem eu convidasse seríamos muito bem-vindos para ir apresentar trabalhos.

Em 2005, na 6ª edição, uma acupunturista, massoterapeuta, biodanceira e um "natureba biodanceiro" amigos toparam se juntar a mim. Planejamos atividades em cada uma das abordagens, um ajudando na do outro ou misturando técnicas. Ao nos inscrever, os organizadores nos solicitaram que assumíssemos também a coordenação do Círculo Solidário – Zona de Ação Social e Cidadania, área que cuida do contato e da integração do festival com a população local. Em uma de suas vertentes, auxilia coletivos do Brasil e do exterior a realizar, em regime de voluntariado, oficinas e shows para a comunidade. Na outra, divulga as culturas regionais ao público visitante, através de apresentações no festival. Aceitamos, e deu tão certo que a fórmula foi repetida nos dois anos seguintes, com algumas variações na parceria.

Responder à segunda questão sempre é mais difícil. Foram tantas e tão diversas as atuações, tanto no papel de psicodramatista como de coordenadora. Imediatamente um filme começa a passar na minha cabeça. As dificuldades enfrentadas no exercício constante da flexibilidade, na parceria com outros profissionais, na disponibilidade para replanejar, enfrentar o novo e encontrar respostas. Milhares de pessoas, diversos locais: tendas na praia; salas de aula; ginásio de esportes, praças. O Encontro entre pessoas (aparentemente) muito diferentes promovido pela disponibilidade, pela abertura, pela valorização de cada ser humano em sua identidade e pela superação de preconceitos por meio da constante troca de papéis. Como é impossível relatar todos, usarei o critério afetivo, escolhendo algumas das imagens preferidas. Belas e cuidadosamente guardadas em mim!

 

OFICINA DE RESGATE DO FEMININO

Nesta oficina foram realizadas apresentações e compartilhamento das dificuldades cotidianas do papel da mulher. Dirigimos a fala para os orixás femininos do culto afro-brasileiro, perguntando e pedindo aos presentes que nos falassem dessas figuras tão populares em suas vidas. Escolhidas cinco entidades, formaram-se grupos para aprofundar o debate e montar cenas de apresentação. Na dramatização, vimos o desfilar de mulheres belíssimas, tanto acolhedoras como justiceiras, atuantes na família e na sociedade. Em especial, uma mulher muito humilde cresceu e se iluminou, brilhou ocupando quase toda a sala ao apresentar a história da deusa mãe criadora da humanidade, diante do espelho se descobrindo em sua beleza. Todos os presentes choraram, abertamente ou em silêncio. Depois dançamos.

 

ROLE-PLAY COM OS MORADORES CONTRATADOS PARA TRABALHAR NO FESTIVAL, NOS SERVIÇOS DE APOIO, LIMPEZA E SEGURANÇA

O evento contou com mais de 70 participantes no turno da manhã e outros tantos no da tarde. Calor infernal no ginásio coberto de zinco. Quem se importava? Estavam todos brincando, dançando e se divertindo. Foram feitos aquecimento corporal, exercícios posturais, ética profissional. Em seguida, levantamento e montagem de cenas temidas, divididas por quatro grupos. Os talentos teatrais apareceram: a senhora de mais de 60 anos representa a garota drogada que não sabe de seu celular, o rapazinho franzino, um segurança que põe ordem na pista de dança fervente; o senhor semianalfabeto recepciona "os gringo" e fornece indicações da localização de cada setor. Ao final, víamos a grande roda de rostos atentos, olhos brilhando agradecidos: "não sabia que fazer teatro era tão bom!".

 

VISITA À ZONA DE PROSTITUIÇÃO, ACOMPANHANDO O COLETIVO BALANCE – REDUÇÃO DE DANOS

Começo sem graça, a "dona do bar" disfarça, não sabe direito do que estamos falando. Conversa vai, conversa vem, manda chamar uma "menina" que está dormindo, depois outra... Em breve estamos sentados com várias, alguns clientes da mesa vizinha se juntam. Oferecem-nos cerveja, um peixinho frito, então, conversamos sobre o uso da camisinha como "uniforme de trabalho", qual a percentagem de grávidas e abortos etc. Em minha cabeça, Moreno e Viena.

 

ABERTURA Do CircuLou

Início com a recepção e o acolhimento de aproximadamente 350 circulantes: artistas, malabaristas, terapeutas, palhaços... Em seguida, a apresentação com jogo das redes sociais. Cada um escolhe uma palavra que vira um estandarte, que representa sua mensagem durante o festival, passeia exibindo-a. Pedimos, então, para irem se escolhendo, aglutinando as mensagens, até formarem seis grupos. Nos grupos, cada um vai ao centro da roda e declara sua palavra de várias formas, a roda em volta faz eco. A seguir é feita a montagem da mensagem final englobando todos os grupos e a roda em volta da área CircuLou. Por fim, há o encerramento com o "corredor da glória", no qual todos passam e são aplaudidos enquanto dizem seu nome. Um dos participantes declara: "eu nunca tinha sido homenageado e aplaudido antes de apresentar meu trabalho, só por estar presente".

 

MITODRAMA "A JORNADA"

Baseado na jornada jungiana do herói, foram trabalhados os seis arquétipos atuantes na formação do ego. Iniciamos com aquecimento corporal, apresentação com nome dos participantes e do personagem com o qual se identificam no momento. Foram utilizados cartazes com a representação de cada uma das figuras. Depois foram feitas: a escolha de uma das figuras que mais atrai os participantes, a formação dos seis grupos, a montagem e a apresentação de cena com a figura escolhida. Os participantes passeiam pelas várias figuras, aproximando/afastando-se de cada uma, fazem solilóquios sobre situações na própria vida. Então, são realizadas a escolha do protagonista e a dramatização com os outros heróis interferindo, ajudando. Ao término, todos compartilham com palavra/ sentimento, afirmando ter se descoberto como herói da própria vida.

 

PUM ECOLÓGICO – COMBINAÇÕES ALIMENTARES E PROCESSO DIGESTIVO

Teatro espontâneo em que os participantes montaram o texto "Núpcias alimentares: antes, durante e depois". Na apresentação, os alimentos namoravam e noivavam. Ao se apresentar ao juiz de paz/diretor, este aceitava ou rejeitava o casamento. A seguir, houve a elaboração por todos de um almoço saudável a ser compartilhado. Muitos, mas muitos risos mesmo...

 

TARDE CircuLou

Na cidade que começa e termina em uma rua, bem no meio da estrada que leva à praia, portanto também ao festival, em frente à igreja foi realizada uma apresentação de teatro para crianças de até dez anos. Nas árvores em volta, o coletivo Tecidos Acrobáticos ensina aos mais velhos a se pendurar, torcer e balançar artisticamente. Nas mesas em frente à padaria/mercearia, o coletivo Balance distribui preservativos e conversa com homens e mulheres. A professora do grupo escolar sorridente, uma senhora na janela, declara aliviada: "eu tava só vendo ocês sempre passando, já cum medo que ocês não vinha esse ano" (sic).

 

OLHO NO OLHO

Na boleia do caminhão que atravessa o areal, às 5h30 de uma manhã, levando os jovens ituberabanos que formam o grupo Boca de Lata para realizar a abertura da pista principal no festival, o motorista fala da alegria de trabalhar todo ano no festival, não só por causa do dinheiro extra, mas porque é diferente, acha aquele povo divertido . E completa: "vocês falam olhando no olho da gente, é como se a gente fosse gente".

 

OFICINA TRANCE ORGÂNICO

Nesta oficina crianças e jovens constroem instrumentos musicais com materiais reciclados e aprendem a tocá-los no ritmo trance. O barulho é incrível, mais das pessoas do que dos instrumentos. No meio disso, o facilitador musicoterapeuta – uma figura de quase dois metros de altura, incrível mistura de hippie com trance – enrolando seu cigarro de palha com uma mistura ecologicamente balanceada, agacha-se sobre as próprias pernas e fica, assim, na mesma altura dos alunos. Quando ele se vira para nós, só diz:"LINDO! ADOREI!" E precisa mais?

 

Referências

CircuLou – ZONA DE PRESERVAÇÃO DAS CULTURAS. Material de divulgação UP#7, criação Quick e Milene, edição Milene Sodré, Projeto Gráfico/diagramação Estúdio Astronauta Mecânico, São Paulo, dezembro 2006.

TRANCE PSICODÉLICO. Disponível em <http://www.cosmicadesign.com.br/etno/ psy/psy.htmhttp://www.cosmicadesign.com.br/etno/ psy/psy.htm>. Acesso em 20 de maio 2011.         [ Links ]

UNIVERSO PARALELLO–FESTIVAL DE ARTE E CULTURA ALTERNATIVA. Material de divulgação UP#6, coordenação geral Nathy, realização Universo Paralello. <http://www.universoparalello.art.br>. Apoio Estação Gráfica, Indianópolis, dezembro 2005.

 

 

Endereço para correspondência
Ana Maria Pereira de Souza
SHIGS-705 – Bloco O - casa 29
70350-715 Brasília, DF
e-mail: souza.anamarya@gmail.com