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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.20 no.2 São Paulo dez. 2012

 

ARTIGOS INÉDITOS

Original Articles

 

 

 

Páginas que se espelham: ensaio inicial sobre psicodrama e literatura

 

Pages that mirror each other: an introductory essay on psychodrama and literature

 

 

Luiz Contro

Psicólogo, psicodramatista didata-supervisor pelo Instituto de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo de Campinas (IPPGC-FEBRAP), doutor em Saúde Coletiva pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este escrito é um ensaio inicial sobre as interfaces do Psicodrama com a Literatura. Trata-se de um exercício que visa estimular reflexões sobre a epistemologia psicodramática, ao estabelecer conexões com este outro campo, por ele se mostrar compatível. Ao mesmo tempo, relata situações de aplicação do método psicodramático nas quais a conexão com o território literário agregou elementos importantes.

Palavras-chave: Psicodrama, Literatura, Psicologia, método psicodramático, fenômeno protagônico.


ABSTRACT

This is an introductory essay on the interface of Psychodrama and Literature. This is an attempt aiming to promote reflection on psychodramatic epistemology by establishing links with this other field, as it seems to be compatible with it. It also gives account of situations where the application of the psychodramatic method, interlinked with the realm of literature, has brought forward significant elements

Keywords: Psychodrama, Literature, Psychology, psychodramatic method, protagonic phenomenon.


 

 

IMAGENS DE CONTEXTO

Uma das fontes motivadoras para a exploração deste tema decorre de minha retomada do contato com o universo literário. Redescobrir algo é como visitá-lo pela vez primeira. Tenho desembarcado neste novo mundo e carregado algumas de minhas bagagens que prezo como essenciais. Sendo uma delas o Psicodrama, vislumbro com suas lentes, em certos momentos, as inusitadas paisagens. Por vezes, esses óculos não me servem, pois o cenário se mostra com suas próprias e ricas imagens. Em outras, é a Literatura que tem me apontado perspectivas psicodramáticas. Assim, todos esses quadros e suas miradas me deixaram com sede de ver mais.

Tornou-se quase lugar-comum afirmar que a Literatura se coloca como um dos meios artísticos potentes e belos de percepção, elaboração e expressão do humano, embora não em todas as suas páginas. Configura, com propriedade, conflitos, romances, épicos, dramas, tramas, comédias, inquietações e ainda uma lista infindável de dinâmicas próprias da vida como ela é ou lhe parece. E que o faz por ângulos que a Psicologia, a Sociologia e os estudos afins nem sempre alcançam. Aquele que se ocupa da prosa ou do verso se municia da sensibilidade, da habilidade, do conhecimento e, digno de nota, de muito esforço, entre outros quesitos, para produzir a mimesis, ou uma imitação ativa e criativa da natureza do homem. Em um processo que pode atingir recônditos anteriormente tidos como inimagináveis.

Desse modo, mais que observar, nesta reaproximação passei a buscar conexões com o Psicodrama, o qual também reconheço por suas eficácias. Por ser um método de intervenção e pesquisa das relações, estabelecese um território propício a identificações, diferenciações e trocas com a proposta literária. Como consequência, conformou-se a vontade de compartilhar algumas experimentações e reflexões feitas ao vasculhar possibilidades desse intercâmbio.

Para além desses meus desejos e espreitando viabilidades de construção do conhecimento, pergunto-me qual o sentido de buscarmos outras articulações com a arte, uma vez que o Psicodrama já tem urdiduras com o teatro, que ocasionam boas tramas?

A justificativa parte do pressuposto de que o Psicodrama tem um braço nas ciências humanas e outro na arte. E que podemos conceber que ele, tanto quanto as ciências humanas e a arte, não se presta a descobrir novos acontecimentos, como o fazem as ciências naturais. Seu objeto de estudos é conhecido e não é um âmbito de sua posse exclusiva, embora ele o faça com singularidade. Pelo contrário, é mais ou menos mapeado pelos não especialistas ou por especialistas em métodos que contemplam área similar, mesmo que por outras portas de entrada.

Assim, um dos modos de avançar na epistemologia psicodramática se dá, creio, ao perceber distintos ângulos dos fenômenos relacionais já sabidos. Outra maneira seria aprimorando as relações funcionais entre componentes do próprio corpo ou estabelecendo pontes com outros. Ou seja, agregando elementos teóricos e técnicos a partir de seu referencial ou na interlocução com diversos − desde que os ingredientes que habitam a intersecção entre os campos sejam compatíveis (Contro, 2011). Esses diálogos com a Literatura, portanto, inserem-se neste segundo tipo de pertinência.

No entanto, o leitor não encontrará aqui discursos conclusivos. O próprio título deixa claro que este é um ensaio ou artigo inicial e, nessa qualidade, pretende cartografar esses passos principiantes, abrir o leque, angariar parcerias, provocar questões, delinear compreensões, para que possam ser retomadas mais adiante e reforçadas ou rechaçadas.

 

INTERFACES E REFLEXOS

Na peculiaridade do método psicodramático, como e onde podemos conceber interfaces e reflexos com a Literatura?

 

PSICODRAMA E LITERATURA

Procurando relatos que já pudessem ter perseguido esta trilha, encontrei o de Fernando Dotta, uruguaio, que escreveu um texto no livro Por amor al arte (2002) com o título: "Psicodrama y Literatura" (p. 145-154). O objetivo do autor, contudo, não foi o de pesquisar conexões entre os dois domínios, mas sim o de "vislumbrar nuevas territorialidades surgidas en el devenir de um grupo de formación de psicodramatistas" (p. 145). A Literatura aparece, principalmente, como alternativa ao questionamento feito pelo autor sobre como fazer a descrição de uma dramatização a posteriori. Perguntando-se "cómo vestir una historia?", pede ajuda a uma citação de Cortazar: "Nuestra verdad posible tiene que ser invención, es decir, escritura, literatura, pintura, escultura, (...) todas las turas de este mundo"1 (p. 149). Assim, a resposta encontrada é que sempre faremos um retrato inventado, mesmo quando tentamos ser o mais fiéis possível ao acontecido. Temos aqui, então, um preceito fenomenológico, psicodramático e − daí a utilização do termo no título de Dotta − literário. Ele assume o registro feito por ele de uma dramatização acontecida em um grupo de formação de psicodramatistas como literário.

Entretanto, mesmo não tendo sido essa a premissa dorsal do autor, ele nos faz pensar na zona de fronteira entre Psicodrama e Literatura, no que diz respeito à descrição escrita. Sobre ela, acredito que o que vai distinguir um texto pelo seu pertencimento a um campo ou outro seria a intenção, na Literatura, de dar asas à imaginação, distinguindo-se da inevitabilidade de darmos nossa versão quando descrevemos alguma etapa do método psicodramático. Existe uma circunscrição permeável, mas ela existe. Podemos até produzir literariamente a partir de cenas psicodramáticas, mas será Literatura. Como bem o fizeram Brito e Merengué (2010).

Dotta (2002) ainda nos oferece um pequeno trecho que quero dividir com o leitor e do qual me utilizarei mais adiante como endosso a uma proposição. Na dramatização que relata utilizou-se da técnica de concretização (consiste em expressar corporalmente um vínculo, uma emoção, uma fantasia) em diversos momentos. E, sobre ela, o autor reflete: "Las concretizaciones son como las figuras de Dante, personificaciones de los sentimientos del protagonista; el psicodrama se entrecruza com la poesia"2 (p. 150). Para enfatizar o que concebe, faz uma citação de Otavio Paz: "Por medio de la personificación, el poeta traza um puente entre lo invisible y lo visible, la idea y la cosa..."3 (p. 150). Temos, desse modo, instantes de intercurso, por meio da técnica de concretização, entre o Psicodrama e, mais especificamente, a forma literária poética.

Por ser este o único escrito psicodramático encontrado alusivo ao tema, vejamos o que a Psicologia nos diz, embora se trate de apenas um autor averiguado. Uma extensão de investigação modesta, mas pertinente às pretensões destes passos iniciais.

 

PSICOLOGIA E LITERATURA

Dante Moreira Leite (2002), no livro Psicologia e Literatura, assim se pronunciou sobre a arte literária: "Se continua viva como obra de arte, isso se deve, entre outras coisas, ao fato de exprimir, além das condições sociais em que apareceu, uma condição humana, válida em situações muito diversas" (p. 32).4

Esta citação nos remete ao evento protagônico. Uma boa estória, ou um poema, sobrevive aos tempos e torna-se um clássico em função de manter-se, de algum modo, representativa de assuntos que perpassam as décadas. Aqui se abre a chance de fazermos leituras sobre o que de protagônico determinada prosa, ou poesia, contém, sem a pretensão de esgotar ou enquadrar a criação literária. Em uma via de duas mãos, o conceito de protagonista do arsenal psicodramático pode jogar luzes sobre a obra e esta iluminar o que de protagônico ainda se mantém em nossas vidas. O conceito de protagonista diz respeito ao personagem que, emergente do grupo ou, no caso de um trabalho em bipessoal, do contexto social de onde vem, centraliza naturalmente a construção do enredo durante a dramatização justamente por catalisar um tema protagônico.

Tomemos por parâmetro Dom Casmurro (2008), publicado por Machado de Assis em 1900. Continua sendo lido e despertando curiosidade e discussões até hoje. O que traz de protagônico dos nossos dias?

Sem a presunção de gerar uma criteriosa análise literária, pois não tenho instrumental para tanto, mas detendo-me em uma possível análise do fenômeno protagônico inerente a essa obra e mantido atualizado, podemos dizer que o mote da triangulação amorosa se destaca. Corporificado na relação entre Bentinho (Dom Casmurro), sua mulher Capitu e o amigo Escobar, remonta, como bem o sabemos, à mitologia grega. A estória de Édipo foi significativa na contribuição para que Freud estruturasse um dos pilares da Psicanálise. Assim, essa complexa triangulação ainda nos é, e creio que sempre será, assunto intrincado, provocador, desafiador e demasiadamente humano.

No entanto, isso talvez não seja tudo para sabermos sobre o interesse que Dom Casmurro continua despertando. O tema é potencializado e ganha cores do insuportável ao trazer o debate sobre o adultério: Ezequiel, filho do casal, tem a cara e, com o tempo, os jeitos do amigo Escobar. Um conflito sugerido que ganha tintas de tragédia, embora essas páginas machadianas sejam classificadas como romance. Essas cores trágicas, no entanto, são expressões do emaranhado das relações entre os homens, desenhadas como gênero literário por Aristóteles. Tragédia que carrega as dores da contradição, da luta entre os opostos. Bentinho é um personagem que incorpora a consciência angustiada, já no próprio nome. Em Bento Santiago coexistem guerra e fusão de movimentos díspares: a de Santo (Bem) e Iago que, no drama Otelo de Shakespeare é alma cruel (Mal). São representações de nossas ambiguidades insolúveis. Aliás, Otelo poderia ser outro clássico escolhido aos nossos fins, este ainda mais caracterizado como tragédia, ao colocar em pauta a luta pelo poder, a infidelidade, a traição e a morte.

Para além de toda sorte de exame dos fatores protagônicos constituintes desse livro, que em si já denotam a perspicácia de Machado de Assis na escolha dos temas, não podemos deixar de reconhecê-lo por seus grandes méritos de escritor. Trata-se de uma triangulação tão bem insinuada que, por vezes, leva-nos a imaginar que Bentinho está tomado por um ciúme exagerado. Em outras, temos certeza de que Capitu o traiu. Assim, um suspense e uma inquietação tomam conta do leitor e se mantêm durante a leitura e para além de seu término.

Retornemos a Moreira Leite (2002), na continuidade da citação anterior, pois há outro tópico a comentar. Ao discorrer sobre os recursos que a Psicologia contemporânea teria para lidar com a produção literária, o autor afirma que:

[...] as hipóteses e as teorias psicológicas são ainda muito esquemáticas ou muito imprecisas; além disso, embora façam referência ao universo social, não têm recursos teóricos para sistematizar ou explicar as inter-relações indivíduo-grupo, tanto no caso do criador da obra de arte quanto no caso do espectador [...] (op. cit., p. 32-33. Os grifos são meus).

Temos de ponderar que se trata de um texto de 1964, embora revisado em todas as suas edições posteriores pelo autor. Portanto, a Psicologia evoluiu nesse período. No que diz respeito ao Psicodrama faço algumas observações em relação às linhas grifadas. Ele nos municia como método para trabalhar com seu objeto de estudos, justamente as inter-relações. Nesse sentido, apontamos um extenso campo a ser explorado "tanto no caso do criador da obra de arte quanto no caso do espectador". O conceito de Papel, que contempla denominadores coletivos e diferenciadores individuais, pode muito bem se colocar a serviço desta investigação. Do mesmo modo, o de Conserva Cultural, por se ocupar do processo, da efetivação e das ressonâncias provocadas por uma obra criada. Ou seja, os fluxos entre indivíduo e grupo, lacuna existente apontada por Moreira Leite, encontram respaldo para a sua apropriação através do arsenal psicodramático.

 

PSICODRAMA NA LITERATURA

Em outra vertente, as imagens vindas da própria Literatura e que espelham faces psicodramáticas talvez sejam ainda mais significativas, uma vez que se trata do território com o qual estamos interagindo. Destaquemos duas delas, pois o universo literário é infindo e inalcançável em sua totalidade.

Comecemos pela frase de um autor que relata a vivência decorrente do seu fazer: "Poder-se-á dizer que, letra a letra, livro a livro, tenho vindo a implantar no homem que fui as personagens que criei" (JOSÉ SARAMAGO, 2010). A frase de Saramago nos permite verificar que a criação de personagens dos quais nos utilizamos deve muito à arte literária, embora tenhamos emprestado da mina do teatro pedras preciosas. O próprio teatro, muitas vezes, como o cinema, colhe desse manancial para adaptar estórias anteriormente escritas. Não estabeleço com isso uma hierarquia de importância. Apenas constato e realço, em função dos objetivos deste estudo inicial, haver essa similaridade que pode, talvez, ser potencializada. Afinal, o princípio literário a que se referiu Saramago, se assim podemos dizer, tem parentesco estreito com um dos que habitam o tronco do Psicodrama: conhecer nossos íntimos, e ao mesmo tempo coletivos, enredos, agregando novas alternativas, através dos personagens por meio dos quais improvisamos no exercício criativo.

Como decorrência, algumas questões se colocam. Parece-me que alargar o conhecimento que se tem das produções literárias pode trazer ao psicodramatista uma visibilidade maior de sua área de manejo. Alguns personagens, não por acaso, em fenômeno similar ao que descrevemos anteriormente em relação a textos, tornaram-se clássicos. Quantos superheróis, quantos Édipos, quantos Patinhos Feios, quantos Sísifos, quantos Narcisos, quantas vítimas e quantos algozes já habitaram os contextos dramáticos? Creio que quanto mais deles soubermos, no âmbito da Literatura, um pouco mais iluminados estarão os labirintos percorridos. Isso não em função de estabelecermos categorias classificatórias, mas para aumentarmos o número de inserções pelas quais podemos pesquisar. Perazzo em Perséfone e o mendigo (1999), ao fazer analogias com a mitologia grega e Naffah Neto, em O psico-socio-drama da Pietá (1980), ao realizar um paralelo da imagem produzida em cena com a escultura de Michelangelo, já nos sinalizaram sobre os ganhos obtidos ao relacionarem personagens, frutos da produção psicodramática, com, no caso, a mitologia e a escultura.

Outro comentário diz respeito à utilização do Psicodrama com vistas à criação de contos ou poemas. Creio que seja um tanto óbvio imaginarmos que os personagens e os enredos paridos no palco, quando retomados e novamente trabalhados pela escrita, podem alimentar a verve literária. Mesmo assim, mais adiante trago um relato prático sobre essa possibilidade.

Mais uma interface percebida vem deste trecho do conto Menino a bico de pena, de Clarice Lispector (2009). Imaginando um bebê e suas interações com a mãe, escreve:

Quase desfalece em soluços, com urgência ele tem que se transformar numa coisa que pode ser vista e ouvida senão ele ficará só, tem que se transformar em compreensível senão ninguém o compreenderá, senão ninguém irá para o seu silêncio ninguém o conhece se ele não disser e contar, farei tudo o que for necessário para que eu seja dos outros e os outros sejam meus, pularei por cima de minha felicidade real que só me traria abandono, e serei popular, faço a barganha de ser amado, é inteiramente mágico chorar para ter a troca: mãe.

Até que o ruído familiar entra pela porta e o menino, mudo de interesse pelo que o poder de um menino provoca, para de chorar: mãe. Mãe é: não morrer. E sua segurança é saber que tem um mundo para trair e vender, e que o venderá. (p. 24).

Quase sem fôlego, reproduzindo na forma escrita as descobertas, a angústia e o choro da criança, Clarice, no final da quarta linha, toma o lugar do bebê, mergulha subitamente no personagem e fala como tal, recurso recorrente em outros de seus contos. Nada melhor para compreender o momento do outro que experimentar ver com os olhos dele, sentir com os sentimentos dele. Pois, colocar-se no lugar do outro, bem sabem os psicodramatistas, é um fundamento valioso que orienta a teoria e a prática do Psicodrama.

Além disso, ao se colocar no lugar do menino, ela passa a relatar a constituição de uma dinâmica relacional, por meio de um solilóquio, que, se reiterada por outras durante a vida que venham a endossá-la, poderia se transformar em um dos veios da Matriz Socioemocional dessa criança, caso não fosse um personagem literário. Esclareço ao leitor menos afeito aos conceitos psicodramáticos que o conceito de Matriz Socioemocional diz respeito, grosso modo, às vivências pelas quais o indivíduo e os grupos a que pertence passam pela vida e que influenciarão na constituição de suas dinâmicas relacionais. Prefiro essa denominação, cunhada por Moreno, do que a de Matriz de Identidade, por acreditar que esta última induz a configurações mais individualizadas do fenômeno da matrização.

Poderíamos lançar mão dessas poucas linhas do conto em um curso de formação para exemplificar como se dá o acontecimento desses dois representativos referenciais psicodramáticos. O que temos aqui e na frase de Saramago, então, é o Psicodrama na Literatura ou o Psicodrama em linguagem literária.

Vejamos agora algumas experimentações práticas sobre a conexão que perseguimos.

 

O CONTO QUE AQUECE, RESSOA E PRODUZ CONTO

A primeira intervenção em que propus mais intencionalmente articular formas literárias às psicodramáticas foi durante a direção de um psicodrama público no Centro Cultural São Paulo (CONTRO, 2009). Na ocasião, convidei o escritor Tadeu Sarmento e pedi a ele que lesse, no início de nosso trabalho, três contos de seu livro Breves fraturas portáteis (2005). As ressonâncias provocadas, entre sentimentos, reflexões, sensações, cenas, foram compartilhadas e, a partir delas, chegamos a personagens emergentes. A plateia, colocada no papel imaginário de quem estava folheando um livro de contos em uma livraria, escolheu um deles que quis ver em cena, nosso personagem protagônico confirmado como tal no contexto dramático.

A Literatura, neste caso o conto, serviu como disparador de fluxos que passaram a atravessar o grupo a partir daquele instante, ou que foram tornados perceptíveis em função da reverberação incitada pelas leituras. E em função disso, deu-se todo o psicodrama público.

Além disso, estimulado pela cena construída coletivamente pude, posteriormente, elaborar um conto. Temos, então, possibilidades complementares: a conserva cultural literária estimulando a criação psicodramática e esta promovendo a produção literária.

 

A POESIA EM BUSCA DO PROTAGÔNICO

Uma segunda intervenção direcionada ao fim de sondar a intersecção em pauta se deu novamente em um psicodrama público no CCSP, no ano seguinte (Contro , 2010). Dessa vez o convidado a contribuir literariamente foi o escritor Edson Cruz. Minha proposta foi a de que nos municiássemos da ideia do "poeta como antena do coletivo", ou como reza a expressão "antena da raça", tantas vezes propagada. À medida que o trabalho se desenvolvia, Edson, como mais um membro do grupo e na função de ego-auxiliar, no linguajar do referencial psicodramático, deixava ecoar a produção grupal em si mesmo e criava poemas. A cada nova lavra sua interrompíamos a dramatização para compartilhar ou para ouvir o que fora gerado, deixando reverberar em nós. Dávamos continuidade a partir do que passávamos a incorporar.

A poesia talvez seja uma das formas mais eficazes de realizar sínteses, condensar atravessamentos, aglutinar sentidos, com agilidade. O filósofo Gaston Bachelard, também garimpeiro de uma doutrina da espontaneidade (reconhecendo ser essa uma "louca ambição"), buscava-a em seu modo mais puro, no qual se apresentava aerizada: "nos veios das palavras, nas imagens literárias, na imaginação ativa, na linguagem poética" (1990, p. 25-28).

Por isso mesmo, no relato descrito, mostrou-se potente na incumbência de captar o que emergia do grupo e, ao mesmo tempo, acrescentou novos conteúdos, inserindo-se como mais um ingrediente da criação coletiva. Colocou-se a serviço do fenômeno protagônico. Principalmente durante a dramatização e o compartilhar, pois na etapa do aquecimento a produção grupal ainda é bastante incipiente.

Dessa vez, a produção literária ocorreu em status nascendi, o que, convenhamos, é algo bastante psicodramático. Contudo, poderíamos, do mesmo modo que com os contos, pensar na criação psicodramática como estímulo à produção poética posterior.

Feito esse jogo de espelho inicial entre os dois campos, retratemos, em breve retrospectiva, as interfaces e os reflexos acontecidos e vejamos que outras imagens se insinuam como novos quadros.

 

EPÍLOGO E ESQUETES DE CENAS DOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS

Na zona de fronteira entre Psicodrama e Literatura, observamos, por lentes psicodramáticas, a existência protagônica de alguns poemas e prosas, caracterizando-os como clássicos justamente por perdurarem no tempo como obras ainda fortemente representativas da inter-relação humana. E que, justamente por assim serem compreendidas, passam a merecer atenção por continuarem a nos sinalizar temas importantes sobre os quais o Psicodrama pode se deter ainda mais.

Outro diálogo viável pode ocorrer tendo em vista a oferta psicodramática diante da lacuna existente no que tange os conhecimentos que abordem as articulações entre indivíduos e grupos. Os conceitos de Papel e de Conserva Cultural, como protótipos de conteúdos teóricos a exercerem essa incumbência, podem servir como veículos de investigação dos papéis de escritor e leitor, bem como permitir um olhar sobre a obra produzida.

O maior conhecimento da produção literária, por sua vez, pode fornecer ao psicodramatista maior visibilidade do próprio território. A constituição de personagens mais elaborados e ricos a incrementar a realidade suplementar seria uma opção.

Vimos também como o Psicodrama se coloca a serviço da produção de prosa ou poesia, a partir do momento em que provoca ressonâncias, atravessamentos e reverberações.

Além disso, identificamos a tomada de papel e o conceito de Matriz Socioemocional, em suas formas literárias, em um pequeno trecho de um conto de Clarice Lispector. Podemos concebê-los, ali, como resultado de uma inserção do Psicodrama na Literatura, embora não tenha sido essa a intenção da autora. Ou também qualificar essa espécie de antropofagia como exemplo de um mesmo acontecimento sendo retratado por diferentes abordagens ou linguagens.

Nas intervenções relatadas, pudemos perceber como o conto aquece, ressoa e pode produzir outros contos, assim como a poesia pode instrumentar a configuração do fenômeno protagônico. A poesia, aliás, qualifica-se pela agilidade e pela eficácia para a aglutinação de sentidos que o momento da cocriação pede.

Que outras perspectivas teríamos para além dessas aventadas?

Com que outros ingredientes o Psicodrama poderia contribuir para iluminar aspectos presentes em uma obra literária? A noção de coinconsciente poderia ser uma vertente profícua, por exemplo, para oferecer uma leitura pertinente à trama de um grupo de personagens?

Ainda sobre o construto de coinconsciente, não seria ele útil ao escritor, funcionando como balizador para a criação de um enredo?

Gaston Bachelard conta de sua utopia por uma cura pelos poemas. Esse me parece ser um autor que ofereceria elementos significativos a acrescentar na busca pela conexão que estamos empreendendo. O que tem a nos mostrar? O estado de devaneio, as imagens poéticas de que fala poderiam estimular ou ser estimuladas pela realidade suplementar?

O que poderíamos explorar de complementaridade entre os papéis de leitor e escritor?

Por sua vez, acredito que as diferentes narrativas ou produções literárias in loco ou posteriores poderiam abordar diversos ângulos de um mesmo tema protagônico, permitindo sua apropriação mais ampliada.

Que distinções podemos fazer entre o duplo na Literatura e o da técnica psicodramática? Essas não semelhanças seriam fatores que poderiam agregar novos ingredientes aos dois campos?

Questões desse tipo se abrem. O fato de terem sido provocadas denota o cumprimento do objetivo a que me propus nestas primeiras páginas, que deixam a expectativa por novas cenas em novos capítulos.

Referências

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BACHELARD, G.. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.         [ Links ]

BRITO, V.; MERENGU É, D. Segredos. Brasília: LGE Editora Ltda., 2010.         [ Links ]

CONTRO, L. "Diálogos entre campos disciplinares: Psicodrama e Análise Institucional" in Motta , J. M. C; Falivene , L. (org.). Psicodrama – ciência e arte. São Paulo: Ágora, 2011.

__________. Relato da sessão de 23/5/2009. Disponível em: <http://www.psicodramaccsp. wordpress.com/>. Acesso em agosto de 2010.         [ Links ]

__________. Relato da sessão de 6/3/2010. Disponível em: <http://www.psicodramaccsp. wordpress.com/>. Acesso em agosto de 2010.         [ Links ]

DOTTA, F. Psicodrama y Literatura. In: SINTES, Raúl . Por amor al arte. Buenos Aires: Lumen, 2002.         [ Links ]

LEITE, D. Moreira . Psicologia e Literatura. 5a ed. rev., São Paulo: Editora Unesp, 2002.         [ Links ]

LISPECTOR, C. Menino a bico de pena. In: Clarice na cabeceira. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.         [ Links ]

NAFFAH NETO, A. Psicodramatizar. São Paulo: Ágora, 1980.         [ Links ]

PERAZZO, S. Fragmentos de um olhar psicodramático. São Paulo: Ágora, 1999.         [ Links ]

SARAMAGO, J. Jornal Folha de São Paulo, Especial 5, 19/6/2010.         [ Links ]

SARMENTO, T. Breves fraturas portáteis. São Paulo: Fina Flor Editora, 2005.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luiz Contro

Rua Anhandeara, 275 Chácara da Barra
Campinas, SP CEP 13090-650
www.luizcontro.com.br

Recebido: 19/06/2012
Aceito: 04/07/2012

 

 

Nota:

1. Em Português: "A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, escrita, literatura, pintura, escultura, (...) todas as ‘turas' deste mundo".
2
. Em Português: "As concretizações são como as figuras de Dante, personificações de sentimentos
3.
Em Português: "Através da personificação, o poeta traça a ponte entre o visível e o invisível, a ideia e a coisa ...".
4.
"Psicologia e Literatura" aparece como artigo publicado em 1958 e 1961. Em 1964, foi apresentado como tese de livre docência. Utilizo-me de sua quinta edição em livro, revisada. 5. A psoríase é considerada uma doença inflamatória crônica hiperproliferativa e descamativa da pele, com forte impacto emocional nos seus portadores (Ferraz & Reis, 2009).