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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.20 no.2 São Paulo dez. 2012

 

ARTIGOS DE REFLEXÃO

Reflective Article

 

 

 

Raízes do encontro na psicoterapia: a influência de J. L. Moreno na filosofia dialógica de Martin Buber

 

The routes of encounter within psychotherapy: the influence of J. L. Moreno on the dialogical philosophy of Martin Buber

 

 

Robert Waldl

ph.D., psicoterapeuta, coach, Viena, Áustria

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O Resumo desse Artigo de Reflexão é a sua apresentação pelo Psicodramatista José Fonseca. Na década de 70 defendi uma tese de doutorado que versava sobre as correlações filosóficas entre Martin Buber e J. L. Moreno. As conclusões apontavam para o fato de que ambos foram influenciados pelo hassidismo e pela cabala, apesar da maioria dos autores consultados darem a Buber o pioneirismo do conceito de Encontro. Ao ler o texto de Robert Waldl, o leitor poderá calcular o impacto que suas revelações me causaram. Ele não somente afirma que Moreno escreveu antes de Buber sobre o conceito de Encontro (Einladung zu einer Begegnung, 1914), como defende que o último foi diretamente influenciado pelo estilo e linguagem de Moreno em seu livro Eu e Tu (1923). Em uma troca de correspondência, Waldl contou-me que quando Moreno emigrou para os Estados Unidos, em 1925, deixou uma caixa para que seu irmão mais novo a levasse, posteriormente, para lá. William levou, mas Moreno jamais a resgatou. Em 2006, muito tempo depois da morte dos dois, a caixa foi finalmente aberta. Entre outros papéis, encontrava-se a cópia de uma carta de Moreno a Buber, datada de 1919, atestando que enviava a revista Daimon, nº 4. Segundo Waldl, exatamente este número contém um artigo de Moreno que Buber teria utilizado "quase palavra por palavra" para escrever trechos sobre o Encontro, alguns anos depois. Esses dados desconstroem algumas verdades sobre a correlação entre o pensamento de Moreno e Buber, abrem novas indagações sobre os conceitos filosóficos dos dois, e dão destaque ao pioneirismo do criador do psicodrama.

Palavras-chave: Psicodrama, Moreno, Buber, encontro.


ABSTRACT

The abstract of this reflective article was written by Jose Fonseca, psychodramatist. In the 70's I defended a doctoral dissertation, exploring the philosophical correlations between Martin Buber and J.L. Moreno. According to my conclusions, both authors had been influenced by Hassidism and Kabala, despite the fact that most of the literature I consulted indicated that Buber was the pioneer of the concept of Encounter. Consulting Robert Waldl's text, the reader can imagine what impact his revelations had on me. He doesn't just simply confirm that Moreno had written about the concept of Encounter first (Einladung zu einer Begegnung, 1914 – Invitation to an Encounter, 1914), but also that Buber's book ‘I and Though' (1923) was directly influenced by Moreno's style and language. In our written correspondence with Waldl, he has told me that when Moreno emigrated to the United States in 1925, he had left behind a box for his younger brother, with the expectation that he would take it to the US later on. William had indeed taken the box, but Moreno never collected it. The box was finally opened in 2006, many years after they both had died. Among other documents, it contained a letter written by Moreno to Buber, dated 1919, certifying that he was sending him a copy of the 4th number of DAIMON. According to Waldl, it was exactly this number of DAIMON that contained an article written by Moreno, which then Buber used ‘almost word by word' when writing his excerpts on Encounter a few years later. This new information dismantles some of the truth about the correlations between Moreno and Buber's thinking, it opens up new questions about the philosophical concepts of these two authors, and highlights the pioneerism of the creator of psychodrama.

Keywords: Psychodrama, Moreno, Buber, encounter.


 

 

Conferência apresentada no 62º Congresso da Sociedade Americana de Psicoterapia de Grupo e Psicodrama. Nova York, abril, 2004.1

Robert Waldl,
ph.D., psicoterapeuta, coach, Viena, Áustria

encontro é um dos temas centrais da Psicologia Humanística. Martin Buber, filósofo que até os dias atuais é relacionado ao termo "encontro", bem como seu conhecido livro Eu e Tu, escrito em 1923, ainda parecem exercer forte influência na Psicologia Humanística, assim como mostram publicações recentes. E não é coincidência que se possa encontrar sua obra em uma das livrarias próximas a esta conferência.

Ao conhecer o pensamento buberiano, na década de 1950, quando alunos insistiram em que deveria ler os escritos de Buber, Carl Rogers, além de achar agradável a leitura, descobriu a importância do encontro, tanto na prática com seus clientes como na própria reflexão teórica de seu trabalho.

Rogers não foi influenciado pelo pensamento de Buber, mas o que encontrou nos escritos deste confirmou sua opinião sobre encontro e relacionamento humano. Com grande interesse no pensamento buberiano, Rogers surpreendeu-se com a concordância entre as próprias ideias e as do famoso professor de Jerusalém.

Quando ambos se encontraram, em 1957, no famoso "Diálogo"2, a primeira pergunta de Rogers a Buber foi: como este vivia tão profundamente um relacionamento interpessoal e adquiria tal entendimento acerca do ser humano sem ser psicoterapeuta? Rogers ainda manifestou interesse em saber que canais de conhecimento haviam permitido a Buber conhecer o ser humano e seus relacionamentos. Ao ler cuidadosamente a transcrição do "Diálogo", veremos que Buber não respondeu a essa pergunta. Nesta conferência, serão apresentados – seguindo-se a ordem cronológica de acordo com a qual me deparei – alguns fatos que podem ser interpretados como resposta à pergunta de Rogers.

Sou psicoterapeuta centrado na pessoa (rogeriano) e, há seis anos, retornei à Universidade de Viena para estudar Filosofia. Em 2002, escrevi minha dissertação de mestrado sobre os aspectos terapêuticos da filosofia de Martin Buber, cujo último capítulo abordou a influência de Buber nas diferentes escolas de psicoterapia. No intuito de aprofundar-me no assunto, procedi à leitura de livros sobre J. L. Moreno e psicodrama, e, à primeira vista, tudo me parecia claro.

 

 

Desse modo, pode-se depreender que a filosofia de Martin Buber influenciou não só outros fundadores de escolas psicoterapêuticas, como Laura e Fritz Perls e Victor Frankl como também J. L. Moreno.

Entretanto, em seu escrito Convite ao encontro, publicado em 1914, Moreno formulou o seguinte poema, publicado diversas vezes por ele, o qual, além de exercer papel central na filosofia moreniana, deixou-me bastante intrigado:

"Não existe nada intermediário entre eu3 e o outro / estou diretamente no encontro / não estou sozinho no encontro / se sou um Deus, um tolo ou um louco / eu sou reverenciado, curado, libertado no encontro / mesmo que eu encontre a relva ou a divindade."

 

De acordo com o próprio autor do livro, a interpretação do poema acima é a constatação de que essas linhas de Moreno correspondem ao conceito de Eu e Tu, de Buber. De fato, não se pode negar a ligação entre esse poema e o pensamento de Martin Buber. O que não se encaixa aqui é o ano – 1914. Por conta de minha dissertação, eu estava familiarizado com os escritos de Buber e lembro-me claramente de meus pensamentos ao ler o poema pela primeira vez. Desse modo, se Moreno fora influenciado por Buber, já em 1914, ele deveria ter lido textos de Buber que eu ainda desconhecia.

Não foi fácil permanecer tranquilo naquele dia, uma vez que a leitura daquelas linhas significava considerável atraso na entrega de minha dissertação. Por coincidência, outra pessoa deu-me um bom conselho naquele mesmo dia. Minha tese central baseava-se em Victor Frankl e minha bolsa de estudos deu-me a oportunidade de encontrar-me com a senhora. Eleonore Frankl, viúva de Victor Frankl, a qual, pessoalmente, deu-me cópias de cartas de Moreno, Pfuetze e Buber.

 

 

Ao ler o poema pela primeira vez, essas cópias estavam sobre minha mesa, e eu ainda não as havia lido. Nessas cartas desconhecidas – a cuja leitura dei início imediato e repetido – Moreno escreveu, em 1958, que havia influenciado o Eu e Tu, de Buber, com seus primeiros escritos, os quais foram publicados nove anos antes do principal trabalho de Buber. Eis uma descoberta que a mim soava ao mesmo tempo extraordinária e lógica.

Ao procurar meu orientador, professor doutor Klaus Dethloff, no intuito de contar-lhe o que havia descoberto – a propósito ele nunca ouvira falar de Moreno – ainda me lembro de vê-lo folheando cópias e livros, dizendo que se tratava de algo muito excitante e que eu deveria concentrar-me no assunto. E assim o fiz pelos dois anos que se seguiram.

Em 2002, foi-me impossível encontrar todos os primeiros escritos de Moreno nas bibliotecas austríacas, mas como eu desacreditava o fato de ele não ter deixado mais cópias nas grandes bibliotecas de Viena, passei a procurar com mais afinco. Seis cópias de seus escritos perderam-se na biblioteca da Universidade de Viena.

 

 

 

Sabe-se que, nessa época, Moreno era conhecido como Jacob Levy. Ao ver, acima, a primeira página de um livreto de Moreno, de 1914, pode-se perceber que um bibliotecário perdeu informações sobre ele. Alguém, portanto, adicionou o nome do editor à mão, e à letra "J" seguiu-se o nome "Jacob". Entretanto, um erro ocorreu, e este e outros cinco livretos perderam-se no sistema da biblioteca por um longo período. Como o bibliotecário não conseguia ler o nome "Levy" corretamente, uma vez que lia o "L" como "G", os livretos foram categorizados como "Gevy", até que eu os encontrasse. Encontrei-os após checar milhares de livros com a palavra-chave Begegnung, que significa "encontro".

O resultado de minha busca, em 2002, na biblioteca da Universidade de Viena, trouxe seis livros do autor desconhecido Gevy, que de fato é Moreno. A propósito, não encontrei escritos de Moreno, mas apenas seis cópias de três publicações que permaneceram indisponíveis por muitos anos.

 

 

A palavra alemã Begegnung significa "encontro" ou "reunião" e não só é a palavra-chave para encontrar os livros de Moreno, mas também para compreender toda a questão Moreno-Buber. E o ponto central para eventuais influências de um sobre o outro, em qualquer direção, é o que Moreno escreveu e o que e quando Buber escreveu.

 

 

Em 1914 e 1915, Moreno escreveu poemas expressionistas, textos curtos e publicou-os juntos em um livreto sob o título Einladung zu einer Begegnung, que significa "Convite ao encontro". Para diferenciá-los, deu ao texto diversos subtítulos.

Esses "Convites ao encontro" não tinham somente a intenção de ser textos literários; eram, de fato, um convite para conhecer pessoas. No primeiro livreto, Moreno divulgou um endereço por meio do qual poderia ser contatado e para aonde cartas e convites poderiam ser enviados. No segundo livreto, Moreno tornou-se mais concreto e escreveu que consideraria apenas as cartas que pretendessem um encontro face a face.

O ponto central de todas as páginas de seu livreto é o encontro vivo. Afinal, Moreno escreve sobre encontro, falando. Ele descreve encontro como "encontrar-se em silêncio face a face". Moreno escreve sobre encontro por meio de olhares.

 

 

 

Convite ao encontro

O reino do silenciar é a mais transparente urna.
Não esconde, não revela e não perece.
O mundo dos espíritos esconde-se
das sombras, revela-se e também perece.
O silenciar é o lado oposto do céu:
podemos apenas ver a metade azul.
O reino do silenciar entreabre a imagem de Deus:
visível ou invisível na urna.
O silêncio da própria consciência de Deus.

Eu sou o fruto de Seu silenciamento.
E convoco todo o esforço para a colheita.
Eu sou a colheita, eu: altar de Deus.
Posso fenecer descuidado no silêncio.
Enquanto meu corpo cresce na escuridão,
sou sua juventude e liberação.
Eu creio em minha crença: como primeiro
ou como último amigo quero encontrá-la.
O novo dia está ai: eu sou o mais jovem.

Não existe intermediário entre eu e o outro.
Eu sou imediato: no Encontro.
Eu não sou único: sobretudo no Encontro,
se eu for um Deus, um louco ou um tolo,
serei reverenciado, curado ou libertado no Encontro,
se eu chego à relva ou à divindade,
serei a árvore: apenas minhas folhas são visíveis.
Obedece minha fala, deixa as palavras
e entra no palácio de teu rei.

Eu não sou vaidoso: para mim não és espelho.
Mesmo sem irmãos, feliz eu posso deixar-vos.
Eu não sou cobiçoso: beber o vinho dos outros.
Eu não devo me fundir com uma multidão desconhecida,
eu não vou a Deus, Deus não vem a mim:
não devemos querer, mas encontrar
Eu não sou professor, arauto ou mensageiro

daquilo que agora me deslumbra,
eu sou o próprio mito de todo o Existir.

Pois o curador que me abraça fortemente
traz-me o entusiasmo do fim alcançado.
Eu cantei meu convite
se meus passos sempre fossem segundos.
[...]

Moreno compõe seu texto em estilo expressionista, e seus poemas – nem todos de fácil compreensão – são escritos com palavras fortes, arcaicas, poderosas. Algumas frases quase sangram; outras movem-se com sensibilidade.

Para Moreno, esses livretos foram de grande importância, e sabese, por anúncios, que ele os vendeu em Viena durante, ao menos, oito anos.

 

 

[Não existem meios entre eu e outros.
Eu sou real no encontro.
Não sou único: somente pelo encontro.
Se eu sou um Deus ou um tolo,
eu sou consagrado, curado, libertado pelo encontro.]

O poema mostrado no início dessa conferência foi publicado no primeiro livreto, e Moreno repete esses versos algumas vezes como um credo. Essas breves cinco linhas são um mistério e constituem a essência da questão Moreno-Buber. Até este momento, o poema tem sido a prova de que Moreno fora influenciado por Buber, e se alguém pudesse formular o Eu e Tu em versos, certamente o faria da mesma maneira. O poema será retomado na análise dos escritos de Buber.

Em 1918, quando Moreno exercia a função de médico em Bad Vöslau, uma pequena cidade próxima a Viena, e obviamente em melhores condições financeiras, deu início à publicação da revista Daimon, que, um ano mais tarde, recebeu o nome de Nova Daimon, e, após um ano, Die Gefährten5. Daimon tornou-se a revista dos expressionistas austríacos, na qual Moreno conseguiu reunir os mais importantes escritores desse estilo literário.

 

 

Buber deu-nos duas versões sobre quando teria escrito Eu e Tu. Diversas vezes, mencionou que, em 1916, possuía um plano inicial para sua obra. De fato, essa é a versão oficial, e todas as biografias de Buber fazem referência a esse, assim chamado, "plano inicial" até os dias atuais.

A resposta para a citada versão é que, de fato existiam planos; porém, estes datam do início da década de 1920, conforme demonstra Rivka Horwitz, ilustre especialista em Buber, em seu trabalho Buber's way to "I and Thou"7. O primeiro rascunho que se poderia considerar um plano para Eu e Tu data de 1918.

Conforme demonstra o esboço ilustrado acima, os importantes termos Eu, Tu e encontro ainda não constam da reflexão de Buber datada de fevereiro de 1918.

É possível pensar que talvez haja um plano de 1916 que não tenha sido encontrado. Portanto, analisemos o pensamento e os escritos de Buber dessa época, isto é, do período que precede o ano de 1918.

Buber era 14 anos mais velho que Moreno e, além de suas novas interpretações acerca dos contos hassídicos, escreveu ensaios históricoculturais. Nestes, seu ponto de vista era místico e não dialógico. Buber concebia de forma mística a crise da sociedade, e acreditava que esta poderia ser resolvida somente por um renascimento mental no íntimo do ser humano. Ele ocupava-se da experiência interior mística do indivíduo e não tinha a perspectiva do encontro e do diálogo.

O escritor Buber produziu ensaios extremamente estéticos sobre a crise cultural, e seu pensamento era apolítico e não social; atitude que lhe conferiu uma delicada posição no que dizia respeito à Primeira Guerra Mundial, recebida por ele como mágica e poderosa durante bom tempo, e sobre a qual escreveu com palavras bizarras e sombrias. Buber defende o direito alemão de invadir e ocupar outros países europeus. De acordo com sua perspectiva mística, a guerra conduziria todos a uma sociedade melhor, e ele apontava similaridades com guerras mencionadas na Torah8.

Em 1916, Gustav Landauer, anarquista alemão e importante amigo de Buber, proibiu-o de realizar qualquer declaração pública a favor da continuidade da Guerra Mundial, e, diante disso, Buber entrou em verdadeira crise. Posteriormente, em sua vida, ele próprio passou a referirse a essa época como um período de "autocorreção", mas o verdadeiro pano de fundo não é mencionado nas biografias de Buber. Registro isso para mostrar que não havia, de fato, pensamento nem termos dialógicos nos escritos de Buber durante esse período.

Após 1916, Buber modifica-se. Influenciado por Landauer, passa a formular as próprias ideias anarquistas, sociais e românticas. Em maio de 1918, em Viena, em um discurso anunciado meses antes, Buber descreveu Jesus como um anarquista em luta contra Roma. Durante sua visita a Viena, é provável que tenha encontrado Moreno pela primeira vez, época em que teve início uma longa cooperação editorial.

 

 

[Martin Buber. Meu caminho para o hassidismo. Editado por Rütek & Loening, Frankfurt e Main.]

Nessa edição da revista Daimon, documentou-se, pela primeira vez, a longa e contínua cooperação entre Moreno e Buber. O texto de Buber encontra-se logo abaixo do de Moreno: "Einladung zu einer Begegnung" ("Convite ao encontro").

Buber nunca mencionou ter conhecido Moreno. Este, por sua vez, escreve, em sua biografia, que se conheceram em Viena, no famoso Café Museum. Entretanto, livros de Buber passaram a ser anunciados, dessa época em diante, nas revistas de Moreno.

A propósito, a publicidade do livro de Buber aparece logo abaixo do anúncio dos folhetos de Moreno, "Einladung zu einer Begegnung" ("Convite ao encontro"). Um homem como Buber certamente conhecia a fundo a revista que publicava seus escritos.

 

 

["[...] – Senhor do Mundo, nós não temos mais força para dizer. E Deus falou. – Senhor do Mundo, diz tu mesmo, diz tu mesmo: – Eu perdoei!"]

 

JAKOB MORENO LEVY
CONVITE AO ENCONTRO A DIVINDADE COMO ORADOR

Falam:

O orador

O ouvinte, irmão Martin

Eu

Lugar: auditório

O orador folheia um texto.

Irmão Martin anda para lá e para cá. Irmão Martin: Eu vejo! Tu és o orador. Tende piedade e responda para um pobre!]

 

 

 

[MARTIN BUBER HISTÓRIAS DE BERDYCZEWER (RABINO LEVI JIZCHAK VON BERDYCZEW, GEST. 1810) SEU COGNOME

O cognome do rabino L. J. era "Caridoso", e com esse nome, que entretanto não era de seu pai [...]

[...] que terminava na mesma página em que o texto de Moreno "Einladung zu einer Begegnung" começava.

 

Em 1919, Buber publicou um conto hassídico em Der neue Daimon, que foi colocado ao lado do texto "Einladung zu einer Begegnung", de Moreno.

O relacionamento interpessoal aparece no pensamento de Buber em 1918, quando, de alguma maneira, mantinha contato com Moreno.

Não sou o primeiro a ver o súbito aparecimento do tópico "encontro" nos escritos de Buber em 1918. Paul R. Mendes-Flohr, ilustre Buberscientist9, escreve que, nesse mesmo ano, algo deve ter lembrado Buber de seu prólogo de 1916, e assim ele percebeu a importância do encontro e do relacionamento interpessoal. Penso que agora é possível ver como Buber foi lembrado, tornando possível a ele avançar para seu pensamento dialógico.

Desse modo, pode-se dizer que seria impossível haver um plano para o livro Eu e Tu em 1916, uma vez que ele tinha um pensamento completamente diferente na ocasião, e Buber não detinha o conhecimento necessário para formular o que se poderia chamar de plano. Nesse momento, torna-se claro que haja dúvidas acerca da segunda e posterior versão sobre a gênese de Eu e Tu.

No ensaio sobre a história da filosofia dialógica, Buber escreve, em 1954, que havia formulado a ideia de Eu e Tu em 1907. Essa afirmação só pode ser concebida como uma lenda, visto que Buber desenvolveu o pensamento dialógico em 1922, quando escreveu seu famoso livro Eu e Tu.

Em 1958, Buber foi confrontado com a declaração de Moreno mostrada no início dessa conferência. Nessa declaração, Moreno escreve de forma clara e detalhada que não pode ser visto como influenciado por Buber, uma vez que seus folhetos foram publicados nove anos antes de Eu e Tu. Dr. Pfuetze, professor de filosofia na Geórgia, nos Estados Unidos, enviou essa declaração para Buber. Até onde se sabe, essa foi a única situação em que Buber foi questionado sobre o assunto, e, de forma breve, respondeu a Pfuetze que desconhecia os escritos de Moreno. Disse, ainda, que havia lido somente um texto do referido autor e que não o havia compreendido. Em seguida, Buber reafirma a própria lenda de que a criação de suas ideias para Eu e Tu deu-se em 1907.

Ao sintetizar a linha do tempo de como Buber formulou a filosofia dialógica, tem-se o seguinte quadro:

 

 

Diante do questionamento sobre o que Buber recebera de Moreno, encontram-se quatro tipos de influência moreniana no livro Eu e Tu. Há influência nas ideias centrais da teoria de Buber. Em alguns pontos, é possível perceber que Buber apossou-se de frases inteiras dos primeiros escritos de Moreno, além de haver paralelos no uso de termos significativos. Desse modo, há similaridades no que denomino arquitetura do Eu e Tu. Por fim, mostrarei o lema de Buber para sua filosofia, o qual decidiu não publicar.

Buber recebeu de Moreno as ideias centrais para seu Eu e Tu. O tópico fundamental encontrado por aquele nos primeiros escritos e poemas deste é o encontro vivo. Buber não só julgou o termo encontro uma excelente formulação, mas também tomou dos escritos de Moreno alguns contextos significativos de encontro.

Moreno escreveu que o encontro é limitado no tempo, e o mesmo pensamento é encontrado na filosofia de Buber. Moreno discorre sobre a cura pelo encontro e, novamente, Buber faz o mesmo em seu livro. Moreno escreve sobre a responsabilidade de um indivíduo quando convida ao encontro. E, do mesmo modo, são encontradas similaridades na obra de Buber. Moreno demonstra preferência pelo "aqui-e-agora", a qual é também identificada em Eu e Tu.

Constata-se, portanto, que o princípio é o mesmo em todos esses pontos. Buber encontrou esses pensamentos nos poemas e nas peças de Moreno e formulou-os com mais detalhes em seu livro. Buber encontrou algumas dessas ideias de uma forma bem elaborada nos escritos de Moreno.

Os trechos abaixo demonstram que Buber apropriou-se de algumas ideias de Moreno quase palavra por palavra.

As ideias foram mencionadas duas vezes anteriormente. Lembre-se de que esses trechos, até então, são provas de que Moreno influenciou Buber e não o contrário.

O jovem Moreno, escritor talentoso que era, criou essa frase genial, de modo que Buber não conseguiu evitar de tomá-la quase de forma literal. Pode-se afirmar que se trata de algo inacreditavelmente irônico, porém real, que uma das citações mais conhecidas de Buber na língua alemã deva ser vista, de fato, como uma citação de Moreno.

Infelizmente, a genialidade do poema de Moreno se perderá na tradução, mas tentarei fazê-lo:

Não há meios entre eu e os outros / eu sou verdadeiro no encontro.

Essa breve linha pode ser interpretada como:

Não existe nada entre eu e você / eu sou real no encontro.

Moreno usou duplo significado para a palavra unmittelbar de forma tão precisa que Buber não resistiu a dela se apossar. Hoje, unmittelbar significa "imediato" e "direto". Em um sentido etimológico mais antigo, o termo significa que não há nada no meio, isto é, que nada há entre duas pessoas se elas se encontram unmittelbar.

Moreno estabelece correspondência entre as palavras unmittelbar e mittel, observando-se que a última significa "método" ou "meio". Desse modo, unmittelbar assume o sentido de "sem métodos". Buber reacomoda as palavras e alonga a sentença, mas usa o mesmo significado rico em expressividade, o qual é a razão de a citação de Buber ter-se tornado tão atrativa para os psicoterapeutas. Essas frases de Buber são famosas e usadas com frequência em livros de língua alemã, além de ser um dos motivos pelos quais dei início a meu trabalho na filosofia dialógica de Buber.

Conforme o quadro abaixo, existem outros trechos de uso significativo dos termos morenianos de que Buber se apropriou:

 

 

Ao tentar traduzir os versos de Moreno, temos o seguinte: Eu não sou único: somente pelo encontro. Se sou um Deus ou um tolo, sou consagrado, curado, liberto pelo encontro. Ao tentar fazer o mesmo com Buber, eis o que se tem: Bom e mau, sábios e tolos, belas e feras, um após o outro e um tu, [...] único e oposto e então ele pode ajudar, curar, educar, desenvolver e libertar.

Os termos significativos e idênticos são: único, tolo, cura e libertador.

Em língua alemã, o texto de Buber soa como uma ressonância. A mim, porém, isso parece se perder na tradução. Na medida em que Buber formula uma frase mais longa, escrevendo uma prosa mais detalhada do poema curto e preciso, observa-se um mesmo sistema de produção escrita. Em seguida, temos mais frases do livro Eu e Tu inspiradas nos primeiros escritos de Moreno:

 

 

Não há tempo para explicar os próximos exemplos com tantos detalhes. E devo dizer que esses exemplos não são tão espetaculares como o primeiro, mas não se pode perder de vista que há mais de um paralelo, os quais nem sempre são as palavras em si, mas sim seu uso significativo. Tanto Buber como Moreno descrevem o encontro direto entre pessoas, com termos similares e incomuns. A questão é que os livretos de Moreno foram publicados nove anos antes.

E o que isso significa hoje? É claro que Buber não encontrou o Eu e Tu completamente formulado nos primeiros escritos de Moreno. O encontro é essencial para a filosofia dialógica, mas é somente uma parte. Os assuntos que Buber encontrou nos escritos de Moreno aparecem com muito mais detalhes em seu livro. É provável que Moreno tenha sido o encontro inicial para que Buber progredisse em seu pensamento dialógico.

Ao comparar a filosofia dialógica de Buber com um prédio, podemos ver tijolos de grande importância, os quais ele recebeu de Moreno. Sem esses significativos elementos, a construção da filosofia dialógica de Buber seria muito diferente.

Contudo, não existem somente elementos singulares que Buber recebeu de Moreno. Ao darmos um passo para trás e olharmos para o Eu e Tu, verificamos que toda a arquitetura do trabalho de Buber foi influenciada por Moreno.

Nos textos publicados na revista Daimon, Moreno escreveu sobre as condições do encontro vivo. Em suas peças, criou diálogos por meio dos quais atores são acusados de se esconder atrás dos papéis teatrais e de não desejarem relacionar-se de forma autêntica com as pessoas. Moreno dá início a uma perseguição aos autores a fim de realmente encontrá-los.

O mesmo acontece com palestrantes e pessoas do teatro. O Moreno jovem e radical exige encontrar a pessoa inteira no "aqui-e-agora" e não somente pelos ouvidos e pelos olhos de uma plateia. Moreno descreve tanto as condições que propiciam um encontro vivo como as que impedem pessoas de se conhecer. E é sobre essa dualidade de encontro e não encontro que o livro Eu e Tu trata. Buber inicia o livro com o seguinte pensamento: "Para o homem, o mundo é duplo, de acordo com sua dupla atitude". E, de fato, não abandona essa ideia até a última página.

Por fim, mas não menos importante, existe um ponto essencial no lema do Eu e Tu que mostra a dimensão da influência de Moreno no pensamento de Buber.

Como vimos anteriormente, o jovem Moreno era duro com os escritores. Dizia que não podiam entrar em contato com seus leitores por intemédio dos livros e que a única legitimação para a escrita seria a descrição de um encontro ou um convite ao encontro. Moreno estabeleceu, de forma rigorosa, a diferença entre encontro vivo e o ato de escrever sobre encontro. Buber tanto percebeu que estava escrevendo sobre encontro vivo, que tentou sair dessa cilada com a escrita de um breve prefácio, ao qual deu o nome de "lema do Eu e Tu". Sua tentativa foi a de falar aos leitores na segunda pessoa do singular, e começou com as seguintes palavras:

"Tu que estás lendo aqui, o que lerás aqui, é falado a ti [...] Eu não te conheço, como posso chamar-te[...]."

Buber não publicou esse lema, o qual foi encontrado com os manuscritos de Eu e Tu, mas cujas palavras remetem a Moreno. Penso que Moreno desconhecia o lema. Se colocarmos, entretanto, seus comentários a respeito do Eu e Tu ao lado dos escritos de Buber, um diálogo imaginário entre Buber e Moreno ocorrerá.

Como palavra final, usemos os comentários de Moreno em 1959: "O autor Buber não fala com seu eu para um tu do leitor. O eu de Buber não sai do livro para encontrar esse tu. Buber e o encontro estão presos no livro. O livro é abstrato e na terceira pessoa. É uma abstração do encontro vivo e não do encontro em si."

 

CONCLUSÃO I

A resposta para a pergunta de Rogers exposta no início desta conferência é a seguinte: o canal de conhecimento de Buber sobre encontro tem um nome. E esse nome é J. L. Moreno, uma vez que foi dele que Buber recebeu o termo encontro com diversas implicações relevantes.

Buber não era psicoterapeuta, mas apropriou-se das ideias de um jovem que, de fato, estava a caminho de tornar-se um psicoterapeuta autêntico.

 

CONCLUSÃO II

Além dos nomes e das pessoas, como o conhecimento é gerado?

O significado do encontro para tornar-se uma pessoa e para o setting terapêutico não foi revelado somente pelo pensamento filosófico; foi, primeiramente, descoberto com a experimentação de vários settings (majoritariamente grupal) de ajuda e cura.

 

CONCLUSÃO III

Ao falar sobre relacionamento Eu-Tu e sobre encontro vivo (unmittelbar begegnung), a sugestão é não mencionar Buber. Devemos, sim, citar Moreno.

Desse modo, sugiro que se use o termo encontro vivo do modo como Moreno o fez ao pensar no processo terapêutico.

 

 

 

Endereço para correspondência
José Fonseca

Daimon – Centro de Estudos do Relacionamento
Rua Havaí, 78 Sumaré
São Paulo, SP
CEP 01259-000
secretaria@daimon.org.br

Robert Waldl
Robert@waldl.com

Recebido: 05/06/2012
Aceito: 29/06/2012

 

 

Nota:

1.Tradução do original em inglês por Cecília Zylberstajn. Trechos em alemão traduzidos por Antônio Carlos Cesarino.

2. Diálogo entre Martin Buber e Carl Rogers", em 1957, na Midwest Conference, Universidade de Michigan. (N. do E.)

3. Gramaticalmente, o correto seria "mim". No entanto, para manter a poesia/filosofia, optamos por deixar "eu". (N. do R.)

4. "Psicologia e Literatura" aparece como artigo publicado em 1958 e 1961. Em 1964, foi apresentado como tese de livre docência. Utilizo-me de sua quinta edição em livro, revisada.

5. Die Gefährten significa "Os companheiros" (N. do T.).

6. Convite ao encontro: a divindade como autor (N. do T.).

7.O caminho de Buber para Eu e Tu (N. do T.).

8. Bíblia hebraica, Velho Testamento, Pentateuco (N. do T.).

9.Estudioso de Buber (N. do T.).

10. O termo das Zwischenmenschliche significa "interpessoal", "inter-humano" (N. do T.).