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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.20 no.2 São Paulo dez. 2012

 

CARTA AO EDITOR

Letter to the editor

 

 

 

Pequena reflexão sobre poder, Febrap e "Não deixem o samba morrer"

 

A brief reflection on power, Febrap and "Don't let the samba die"

Geraldo Massaro

Psicodramatista

 

PODER

Poder não é um objeto natural, uma coisa que se possui ou não, e com o qual se negocia para a construção de um poder político. Poder é uma prática social, e como tal, tomado em sua materialidade e constituído historicamente. É dentro dessa prática, dessas relações de poder, que podemos compreendê-lo. Há uma tendência, hoje, de analisá-lo não apenas nas posições de cúpula, nos centros das estruturas sociais, mas na periferia, onde nascem as tensões, os combates, as linhas de força, os pontos de confronto, as formas de sujeição.

É importante reconhecer essas forças, perceber suas técnicas e as estratégias das quais se utilizam para alcançar seus objetivos. Observar semelhanças e dessemelhanças de seus discursos, descrever, mesmo que superficialmente, seus arranjos e suas montagens. Cada força, em sua época, define-se pelas formas materiais visíveis que cria e pelo que formaliza em regras enunciadas. Onde buscar o poder na Febrap? Não apenas nas reuniões da Diretoria Executiva ou em Fóruns de Debates, mas nessa periferia, que engloba as aulas nos Cursos de Formação em Psicodrama, os editoriais da Revista Brasileira de Psicodrama, nos códigos de funcionamento, nos discursos de abertura dos Congressos Brasileiros de Psicodrama, nas camisetas escritas com os nomes das entidades federadas à Febrap que os alunos levam para o congresso, nas novas e nas constantes desobediências a essas normas, nos trabalhos escritos dos alunos de formação, nas diferenças de temário da Revista através dos tempos, nas escolhas das pessoas que abrem um congresso, enfim, onde as tensões sociométricas e ideológicas podem ser percebidas.

 

FEBRAP

A Federação Brasileira de Psicodrama (Febrap) é uma coisa, o Movimento Psicodramático Brasileiro é outra. Sempre existiram estruturas dentro do Movimento Psicodramático com intensas práticas de poder, que não pertenciam à estrutura da Febrap e mantinham com ela relações de cooperação ou confronto. Muita coisa de psicodrama acontece no Brasil que não passa pela Febrap.

Febrap é uma coisa, Diretoria Executiva e suas Áreas são outra. A Febrap é um amplo conjunto de entidades federadas, pessoas e "coisas" psicodramáticas. O poder de ação da Diretoria, a meu ver, é muito menor do que se pensa. Um congresso, por exemplo, depende muito de como a Diretoria faz seus arranjos sociométricos, da temática que propõe e de como organiza o social. Entretanto, o resultado final do congresso, bom ou ruim, depende muito mais de relações de forças que, presentes ou propositalmente ausentes, induzem consequências.

Febrap não é congresso. Embora este seja sua produção mais consistente, são instâncias diferentes. Reduzi-la ao congresso é um grande risco. Hoje, por exemplo, parece haver nos psicodramatistas uma preocupação maior quanto ao local onde será o próximo congresso do que em relação a qual será a nova Diretoria Executiva da Febrap.

Historicamente, a Febrap não é "mãe das filiadas". Ela é filha, ela foi gerada pelas filiadas. A compreensão disso é importante para que se compreendam certas tensões.

 

"NÃO DEIXEM O SAMBA MORRER, NÃO DEIXEM O SAMBA ACABAR"

Essa foi a música cantada pelo grupo de egos-auxiliares que ajudava no gostoso trabalho de encerramento do XVIII Congresso Brasileiro de Psicodrama feito por Milene Féo. No discurso de encerramento do Congresso, a essa letra dessa canção foi reproduzida por Alcione Ribeiro Dias, atual Presidente da Febrap, que substituiu a palavra "samba" por "psicodrama".

No último horário antes do encerramento desse congresso, aconteceu a mesa redonda sobre o poder na Febrap. O número de pessoas presentes foi relativamente pequeno, diante da importância do tema, mas estavam ali pessoas muito significativas no cenário psicodramático: seis gestões de presidência, ex-presidente do Conselho, ex-presidente de congresso, atuais e ex-coordenadores de entidades federadas e membros de comissão científica.

Houve um consenso de que existe uma crise. A palavra de ordem era "cuidar", a mesma palavra usada intensamente no encerramento e, não por coincidência, no editorial de Devanir Merengué na última edição de nossa Revista. Cuidado e medo.

Pessoas diferentes deram motivações diferentes para a crise. Falou-se da crise de valores do mundo e de como isso interfere na nossa estrutura, do nosso descuido perante o ensino de psicodrama nas faculdades de Psicologia, de certa superficialização do Fórum de Debates, da volta do personalismo, de um esvaziamento de lideranças, dificuldades na captação de alunos, de questões financeiras das entidades federadas que lutam para subsistir, do desgaste por enorme esforço da Diretoria Executiva, de algumas tensões entre as entidades e de outras coisas mais. São colocações que trazem verdades e para as quais devemos ficar atentos.

Gostaria de usar esta carta, que nasce naquela reunião, para expor minhas ideias sobre essa crise. Para isso, vou me ater um tanto em uma leitura sobre a história da Febrap, principalmente relatando, sempre em uma leitura pessoal, focos de tensão e confrontos ideológicos.

Alguns intelectuais afirmam que, por sermos descendentes de europeus, não somos nem colonizadores, nem colonizados. Diferentes, nesse sentido, da colonização norte-americana e da América espanhola. Se tudo é estrangeiro, nada o é. Uma consequência disso é que nossos produtos culturais costumam vir de fora, mas ganham uma dimensão de coisa nossa. Esse fenômeno, que pode acontecer em qualquer nação, seria mais intenso no Brasil. O psicodrama, como produto cultural, surge no Brasil com ideias, estilos e imagens fabricados fora daqui, trazendo marcas de questões que não são nossas, como o american way of life, como a organização sociométrica objetivante como resolução de conflitos sociais e mesmo a intensidade de confronto com a psicanálise. E, ainda, tudo trazido por mãos argentinas. O nascimento da Febrap foi, nesse sentido, uma tentativa de dar nossa tonalidade ao psicodrama. E uma tomada de posse e um "pegar para nós". Vejam que na Argentina, nunca houve uma "Febrap". Nesse "pegar para nós", pessoas de constelações ideológicas muito diferentes se uniram, apararam diferenças. A primeira tomada foi um predomínio conservador, com normas e fiscalizações, talvez pelo temor de ser confundidos com tantas "práticas alternativas" que surgiram na época. Uma tentativa de mostrar seriedade.

Se os antecessores argentinos tinham ligação direta com Moreno, fomos nós lá também reverter isso; e no famoso evento do Masp, em 1970, coroamos nossa conquista dessa ligação. Os estudiosos do Brasil argumentam também que, sendo um povo de diversas origens, não temos grandes orgulhos de raça e de nacionalidade. A resposta para isso é quase sempre um personalismo, no qual, muitas vezes as estruturas ficam secundárias, pois se buscam mais as pessoas representativas do sistema. Assim, passado aquele primeiro momento de confluências, as divergências ideológicas começam a surgir. E aparecem através de um viés personalístico, travestido de discussões teóricas. Entretanto, se olharmos revistas da época, em anais de congressos ou em nossas lembranças de discussões teóricas, tudo era bastante superficial. Não havia uma reflexão mais profunda, esta viria a ocorrer apenas uma dezena de anos depois. Discutia-se se um tapete substituiria um tablado ou qual deveria ser o ritual de abertura de uma sessão. Um fenômeno interessante, nessa época, foi o morenismo, que persiste diminuído até hoje. Não apenas a ligação direta com Moreno importava, mas também as releituras sobre o fundador do psicodrama. Como se existisse uma unidade teórica em Moreno e como se ele nos emprestasse sua autoridade, a cada um de nós, que tínhamos uma leitura mais verdadeira sobre seus ensinamentos. Simulacros de Moreno surgiam para todos os gostos e tingiam nossas discussões. Essas questões são eminentemente políticas. O saber é, portanto, objeto de política. A teoria se transforma em política. E, nessa fase, de uma política personalística. Os exemplos são inúmeros, mas, por questão de espaço, abstenho-me de colocá-los aqui.

O saber, enquanto dispositivo político, interfere no delineamento de uma subjetividade psicodramática.

Nossa teoria continua fragmentada, mas começa a ganhar contornos mais fortes, iniciando-se com contribuições de José Fonseca e Miguel Navarro sobre a Matriz da Identidade. A partir dessa teorização, muitas e importantes contribuições teóricas se formam.

Aos poucos, o personalismo foi se reduzindo e sendo substituído por embates entre as entidades federadas. E não foram poucos. Como conquistar alunos, quem poderia ser terapeuta de alunos da entidade, quem daria aulas? Tudo isso passa a ser trazido à tona. Mais uma vez, acompanhem o temário das edições da Revista Brasileira de Psicodrama da época e perceberão essas questões lá embutidas. As camisetas com os nomes das entidades que alguns psicodramatistas em formação usavam nos congressos formam excelente representação desse contexto.

A disputa entre uma maneira paulista de pensar e agir e o contraponto nordestino formaram um dos focos mais intensos que existiram. Culminou em um esvaziamento deliberado do congresso de 1982, no Paraná. Basta olhar o temário do congresso para perceber que inúmeras "vacas sagradas" paulistas lá estiveram, mas pouco se apresentaram. Muitos de nós, paulistas, acreditávamos que existia uma diferença quantitativa no saber psicodramático, enquanto para outros essa diferença era qualitativa, graças às diferenças regionais. Entre outras razões igualmente importantes, essa resultou em uma busca da regionalização.

Contudo, a grande crise, nunca totalmente solucionada, foi a tensão existente entre crenças diferentes do significado da Febrap perante as entidades. A falência do Estatuto no final da década de 1980 e a dificuldade em reorganizá-lo, quase levou a Febrap a um desmanche. Muitas entidades clamavam por uma Febrap mais catalisadora de eventos e movimentos, e menos fiscalizadora e normativa. Em outras palavras, questionava-se o poder de ingerência da Febrap nas entidades. Existiam pessoas da Diretoria Executiva que advogavam uma relação direta dos psicodramatistas em formação com a Febrap, incluindo no aspecto financeiro. Essas questões todas trazem à tona maneiras diferentes de conduzir o Movimento Psicodramático.

Toda estrutura tem formações ideológicas que tensionam e exigem mudanças. Toda estrutura tem também formações ideológicas mais conservadoras, cuja principal função é reorganizar o resultado das mudanças oriundas das tensões. Como se as duas forças fossem necessárias, para que cada uma, do seu jeito, auxilie na possibilidade de resolução das diferenças ideológicas. No caso em questão, foram levantados pelo Conselho da época focos de tensão, que resultaram em uma pesquisa da qual fez surgir novo Estatuto.

Apresentei algumas crises históricas e algumas resoluções. O personalismo, o morenismo, o uso disfarçado do saber como força política, as tensões regionais, o embate entre formações ideológicas distintas, a briga mercadológica das entidades federadas, a tensão com o que vem de fora, o poder paulista... Como essas crises foram solucionadas?

Aqui se concentra minha questão, minha tentativa de contribuição. Estruturas não governam territórios, governam pessoas e suas relações, inclusive com as coisas. A maneira como a Febrap faz seus arranjos delineia a subjetividade psicodramática. Essas são questões importantes para todos nós, incluindo aí a própria existência da Febrap.

Qual é a crise, então? Embora eu aceite todos os argumentos que nos foram passados, naquela reunião, acho que dessa vez existe uma crise de outra dimensão.

Todos esses focos que procurei apontar e outros tantos foram resolvidos, de alguma maneira. Podemos questionar a profundidade de algumas resoluções e suas eficácias. No entanto, elas foram suficientes para que continuássemos produzindo psicodrama, ensinando psicodrama, teorizando psicodrama, aprendendo psicodrama, inventando psicodrama. Enfim, fazendo psicodrama.

As resoluções eram políticas. Trazíamos conflitos e confrontos à tona, brigávamos e brigávamos por nossas ideias, mas conseguíamos compor a partir das diferenças. Não é uma espécie de Encontro, essa ideia de, através das diferenças, compor o novo?

Hoje não há mais discussões ideológicas. Parece haver medo dos confrontos e dos conflitos. Não há mais política, pelo menos não na Febrap como um todo. Os discursos são quase sempre estabilizadores, a qualquer custo. Tensão política virou nostalgia.

Sou terapeuta, costumo trabalhar com sentimentos e emoções, mas fico perplexo como algumas vezes artificializam-se sentimentos e emoções para encobrir conflitos ideológicos. Para encobrir jogos de poder, ou na verdade para esvaziar jogos de poder.

A palavra de ordem tem sido modernidade. Qual é o compasso que mede isso? Fala-se a todo o momento em interesses mercadológicos. Daqui a pouco não haverá mercado para vender esse produto ou não haverá produto a ser vendido.

Tínhamos certo perfil revolucionário. A ausência do jogo político esvaziou isso, com algumas exceções. Tudo isso passa para nossas formações e compõe o perfil de nossos psicodramatistas em formação. Em quantas entidades, de tantas que temos, existe hoje uma produção reflexiva mais profunda? Tenho acompanhado, a distância, mas com admiração, a produção do pessoal de Campinas. Com certeza, existem outras entidades, mas tantas?

O que foi feito de nossas divergências? Como crescer sem diferenças? Por que tamanho medo? A opção é permanecer pasteurizados?

Passeiem os olhos pelas nossas produções...

É essa a contribuição que procuro trazer, porque nela acredito. A atual crise é, antes de tudo, uma crise política. Ou melhor, uma crise de ausência de política. Não há mais quem tensione, pois quem tensionava envelheceu ou desistiu ou busca outras terras. Não há mais quem reorganize, pois não há o que reorganizar. Há pouca reflexão, pouca transformação, poucas novas lideranças. E as que surgem, quase sempre, já nascem dentro dessa dimensão.

Sigam a psicanálise. Ela não entrou nesse jogo. Pelo menos não tão intensamente.

Entre acertos e erros, Moreno era um humano preocupado com humanos. Com revoluções e transformações. Nesse sentido, era um político nato. Nesta estranha época em que vivemos, estamos sendo dignos dele?

 

 

Endereço para correspondência
Geraldo Massaro

Rua Pamplona, 33, casa 2 Bela Vista
São Paulo, SP CEP 01405-000
e-mail: geraldo_massaro@terra.com.br