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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.21 no.1 São Paulo  2013

 

ARTIGOS INÉDITOS

Original Articles

 

 

 

Homens e mulheres envolvidos em violência e atendidos em grupos socioterapêuticos: união, comunicação e relação

 

Men and women involved in violence and attended/treated in socio-therapeutic groups: union, communication and relationships

 

 

Maria Eveline Cascardo Ramos

Psicóloga e mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília (UnB), psicodramatista didata e supervisora pelo Centro de Psicodrama de Brasília (CPB), terapeuta de famílias e casais pelo Instituto de Pesquisa e Intervenção Psicossocial – (Interpsi), professora da Universidade Católica de Brasília (UCB) e coordenadora do Núcleo de Enfrentamento à Violência e outras Vulnerabilidades da Universidade Católica de Brasília (NEVV - UCB).

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho é realizado com homens e mulheres envolvidos com violência intrafamiliar em Brasília. Após entrevista individual, essas pessoas são encaminhadas pelo Ministério Público ou pelos juizados para grupos em que mulheres e homens poderão ser atendidos separadamente ou em conjunto. Participam homens e mulheres, casados(as) e descasados(as) – com ou sem seus companheiros(as). Todos se dizem vítimas um do outro e apontam a agressão como estratégia de defesa e de educação dos filhos. No trabalho socioterapêutico com modelo sociodramático, preponderou a informação dos casais sobre sua união em pouco tempo de relacionamento e as fantasias individuais, não reveladas, como orientadoras da forma de comunicação que expressa a frustração mútua.

Palavras-chave: Violência. Violência contra a mulher. Comunicação. Psicodrama.


ABSTRACT

This work was developed with men and women involved in domestic violence in Brasilia. After being individually interviewed, these people are referred by the Department of Justice or judges to groups, where women and men can be treated separately or together. The groups can be attended by both women and men, whether they are married or single, together or without their partners. All of them consider themselves victims of the other gender, and consider violence to be a mechanism of defense and educational strategy for their children. During the socio-therapeutic work using a sociodramatic model, it transpired that the information given by these couples about their short-term relationship and their unrevealed individual fantasies inform the communication patterns of such couples that are characterized by mutual frustration.

Keywords: Violence. Violence against woman. Communication. Psychodrama.


 

 

INTRODUÇÃO

A violência e suas expressões, principalmente a partir o final do século XX, têm instigado profissionais da Saúde, da Justiça, da Educação, dos Direitos Humanos, ao estudo e à pesquisa quanto à etiologia e à prática contra a criança e a mulher. Sabe-se que é um problema complexo, multifatorial, que demanda a atenção de diversas instâncias governamentais e não governamentais.

Tanto os homens como as mulheres em situação de violência parecem sentir necessidade de se defender e de defender seu lugar na família e, principalmente, no casal, como se fossem pessoas em competição pela autonomia. Isso porque um só se percebe reconhecido quando se sobrepõe ao outro, não quando se vê em situação de igualdade. Em especial o homem, na população estudada, percebe o equilíbrio na diferença que tende para a superioridade masculina. A cooperação e a harmonia, nesse contexto, dão lugar à competição pelo comando da relação. A linguagem possível passa a ser a da agressão, que se transforma em estratégia de defesa e de educação nessas famílias, tornando-se um padrão de comunicação tanto para homens como para mulheres nos papéis conjugais e parentais, o que vulnerabiliza os respectivos subsistemas (RAMOS; SANTOS; DOURADO, 2009).

Imerso nessa realidade surge este relato de experiência socioterapêutica que apresenta uma pesquisa em intervenção em andamento, cujo trabalho segue o modelo sociodramático de intervenção com grupos.

O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), pelo Setor de Medidas Alternativas (Sema) e o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), mantém, com universidades locais, parcerias para o trabalho jurídico e psicológico com os autores de fatos de violência. Desse modo, a equipe do Núcleo de Enfrentamento à Violência e outras Vulnerabilidades da Universidade Católica de Brasília (NEVV - UCB), vem trabalhando desde 2007, com homens e mulheres envolvidos em situação de violência contra a mulher.

Há um ano iniciamos o trabalho com um grupo composto por homens e mulheres, casados – com ou sem seus companheiros(as) – e descasados, todos envolvidos em violência contra a mulher, das classes C e D, como a maioria da população atendida pelos Semas, é a esse grupo que nos referimos neste estudo.

 

REFERENCIAL TEÓRICO

Moreno (1975) afirma que a união conjugal implica a união dos átomos sociais dos parceiros. Embora nenhum dos dois conheça todas as relações emocionais do outro, cada um traz de seus átomos particulares os elementos com os quais, juntos, vão formar um terceiro átomo social. A par disso, ambos ganham outros papéis como o de marido, esposa, dona de casa, provedor.

Os papéis adquiridos com o casamento, e o próprio casamento, resultam em satisfações novas, mas também trazem novos conflitos. São papéis e contrapapéis a aprender e a desempenhar sem ensaio. Pode-se, então, entender que os dois cônjuges mudam de comportamento em função das relações que vêm dos papéis novos que chegam com a união (MORENO, 1975).

Quando Moreno formula a Teoria dos Papéis, ele os conceitua como uma unidade cultural de conduta e os apresenta como um conjunto de possibilidades identificatórias do ser humano. Os papéis psicodramáticos, como expressão das distintas dimensões psicológicas do "eu" apresentam a versatilidade potencial das representações mentais. Moreno propõe, ainda nessa teoria, o papel como "uma cristalização final de todas as situações em uma área especial de operações por que o indivíduo passou..." (MORENO, 1975, p.206).

Diante dessas considerações, percebemos que papéis como o de companheiro e companheira de vida se estruturaram nas identificações e na diferenciação do "eu", bem como na bagagem cultural significativa de cada um. O desempenho do papel de companheiro(a), assim como o de outros papéis, pode revelar ou sugerir representações mentais acerca dos relacionamentos afetivos vividos ou percebidos individual e transgeracionalmente pelas pessoas, além de representar a tradução dos elementos introjetados durante o desenvolvimento psíquico. Como o desempenho do papel é a expressão psicodramática do papel aprendido, ele envolve a comunicação verbal e não verbal que encontra no outro – o receptor de sua mensagem.Temos ainda que os papéis se desenvolvem em função do gênero, o que nos leva a pensar as relações a partir dos papéis de gênero.

Em uma perspectiva sociocultural, Madureira (2010) enfatiza a dimensão cultural com cunho relacional e político. Contemporaneamente, as mulheres, pela situação de desvantagem, começaram a questionar posições calcadas no gênero a partir do patriarcado, que dava ao homem o lugar de poder e controle e à mulher, o de subordinação. Na metade do século XX, Simone de Beauvoir (1949)1, citada por Toro-Alfonso (2010), já via a inferioridade da mulher como fruto de doutrinamento cultural, distinguindo sexo e gênero e abrindo espaço para mudanças nas relações entre homens e mulheres, inclusive no casal.

A assimetria com o ganho para o homem se mantém, no sentido de corresponder aos estereótipos sociais. Têm-se as masculinidades atreladas à independência, à autoridade, à superioridade, à infidelidade, enquanto às mulheres é solicitada uma adequação ao masculino, que implica oposição e ajustamento ao homem e em dependência, submissão, fidelidade e passividade. Esse olhar binarista e reducionista, embora seja, até certo ponto, explicativo das expectativas acerca do papel da mulher, pode ser responsável pela naturalização da violência masculina e pela invisibilidade da violência praticada pelas mulheres.

As relações homem-mulher têm mudado nos diferentes contextos, desde o profissional até o casamento. A família hoje se apresenta em configurações tradicionais como pai, mãe e filhos ou em organizações mononucleares, chefiadas por mulheres sozinhas (DINIZ NETO e FÉRES-CARNEIRO, 2005), o que revela uma independência da mulher em relação ao homem.

A violência no casal, entretanto, não pode ser vista apenas como violência de gênero, mesmo porque a violência sempre esteve presente nas relações humanas. É, como coloca Mynayo (1994), biopsicossocial e precisa ser estudada em sua dimensão sócio-histórica, buscandose entender momentos e atravessamentos políticos, psicológicos, da individualidade, do direito, das instituições. A perspectiva de gênero, quando única explicação para a violência conjugal, induz a uma guerra dos sexos, que impede a autoavaliação, leva à vitimização dos envolvidos e à impossibilidade de negociação. No casamento, a violência está ligada, entre outros fatores, às expectativas entre os cônjuges, à dinâmica conjugal e, principalmente, à comunicação construída por eles durante o relacionamento. Hirigoyen (2006) expõe sobre a violência psicológica, dando-lhe tanta importância quanto à violência física e colocando-a como ainda mais devastadora. Essa colocação releva a importância da violência psicológica que também ocorre por meio da comunicação, embora sutil, e impõe humilhação a(o) outro(a). A violência física, por seu turno, acontece por uma comunicação corporalmente agressiva, mas traz, em si, a dor moral do aviltamento, da inferioridade. Isso mostra que a violência psicológica é inerente a todas as formas de violência, mesmo sendo de difícil reconhecimento por não deixar marcas visíveis fisicamente.

Para falar de violência no casal ou qualquer tipo de violência, é imperioso abordar alguns postulados da teoria da comunicação. Pode-se, primeiro, lembrar que o processo comunicacional ocorre através da troca de códigos que transmitem significados individuais na tentativa de manter uma interação linguística (GRANDESSO, 2011). Se esse código não estiver disponível aos envolvidos – emissor e receptor – a comunicação acontecerá de qualquer forma, pois, como disseram Watzlawick, Beavin e Jackson (1978, p. 44): "é impossível não comunicar". Entretanto, a comunicação pode não ocorrer de forma clara, embora comunicação não seja uma palavra fiel, se pensarmos que ambos os comunicadores enviam e recebem a mensagem impregnada de significados pessoais, o que pode enviesar tanto a emissão quanto a percepção. Por outro lado, mesmo quando o código está disponível ainda ocorrem equívocos, uma vez que o relacionamento humano gera a linguagem e, principalmente, a compreensão do conteúdo. Essa compreensão está ligada à reconstrução do significado, que é um investimento individual, desenvolve-se desde o nascimento, mas é, também, produto dos relacionamentos. Gergen (1994)2, citado por Grandesso (2011, p. 64), pressupõe que "não é o indivíduo que preexiste ao relacionamento e inicia o processo de comunicação, mas as convenções de relacionamento é que permitem que a compreensão seja alcançada".

Por fim, considera-se o conteúdo da mensagem, tal como Watzlawick, Beavin e Jackson se referiram a este e à relação dos comunicantes, como pertinentes à definição de "eu" e "outro", pois os fatos comunicados são os que ocorrem dentro da relação e não fora dela (WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 1967). A aceitação do "eu" do outro permite a aceitação do conteúdo da mensagem e a concordância no nível da relação.

Nesta experiência destacamos alguns tipos de comunicação, principalmente aqueles diretamente ligados à agressão e à violência. Começamos pela desqualificação da comunicação do outro, que implica rejeição, uma vez que nega que essa pessoa possa falar – fazer ou ser – algo que interessa. Entretanto, mesmo sendo humilhada, a pessoa que fala tem sua existência reconhecida. Outro conceito, o de desconfirmação, pode ser considerado como uma punição cruel, por ignorar o outro. A desconfirmação do outro leva-o à alienação total e, se persistente, até à perda do "eu". Portanto, é uma comunicação patológica. Significa: você não existe (WATZLAWICK; BEAVIN; JACKSON, 1967).

Como este trabalho e toda a intervenção foram construídos a partir dessas compreensões, apresenta-se, a seguir, a trajetória metodológica.

 

METODOLOGIA

O trabalho se inicia após o encaminhamento de um juiz de Direito e do Sema para um grupo misto, que envolve casais, homens e mulheres, reunidos pelo mesmo motivo: violência contra a mulher. Toda a intervenção é calcada no exercício da percepção de si e do outro e na comunicação intraconjugal e intrafamiliar. Os encontros priorizam alguns temas decorrentes das características dos participantes e à demanda em si e, quando há emergência de alguma situação de conflito ou dificuldade, ela é privilegiada.

Este é um grupo aberto com, em média, 30 participantes por encontro, composto de homens e mulheres, com ou sem seus companheiros(as), todos envolvidos em situações de violência contra a mulher. Esses grupos são reunidos aos domingos, em uma escola da comunidade e se desenvolvem em 16 a 18 encontros, cada um com três horas de duração, o que corresponde a um semestre letivo.

Alguns participantes, no final do trabalho, pedem para continuar e sempre são aceitos em seus pedidos; por isso falamos em média de participantes, pois a frequência, algumas vezes, excede o número encaminhado regularmente e poucas vezes há desistência de algum membro do grupo.

Desenvolve-se o modelo sociodramático de intervenção com grupos, obedecendo às três etapas: o aquecimento, momento em que eles são acolhidos em seus sentimentos, queixas e avaliações; segue-se a ação que contempla o resgate das relações pessoais e objetais por meio de dramatizações e outros recursos psicodramáticos e, por fim, o momento de compartilhar e analisar o que foi vivido.

As intervenções se realizam em grupos socioterapêuticos (RAMOS, 2008), com abordagem sociodramática. Estes encerram uma proposta que se destina ao atendimento de pessoas que têm problemas com a lei, com as convenções sociais, com a alteridade. Têm caráter investigativo, preventivo e de tratamento e facilitam condições de promoção da qualidade de vida, bem-estar e saúde social e mental da clientela atendida. Nessa intervenção, o enfoque é o tripé indivíduo-lei-sociedade, envolvendo aspectos intrapsíquicos e de identidade social que dão suporte às interações interpessoais e comunitárias. Como o problema é estreitamente relacionado às interações, os papéis individuais e os limites sociais são os primeiros objetos de atenção e tratamento na intervenção socioterapêutica.

O trabalho socioterapêutico caracteriza-se pela busca do esclarecimento sobre a qualidade dos vínculos sociais estabelecidos pelo sujeito e suas consequências diretas e indiretas sobre os relacionamentos que desenvolve. Como os vínculos interacionais, na maioria das vezes, envolvem afetividade, emoção e intenção, o método socioterapêutico facilita ao sujeito percepções e análises próprias que terminam, não raro, por elucidar as motivações, os desejos e as expressões afetivo-emocionais presentes nas ações humanas em geral e naquelas especificamente em questão.

Neste trabalho, os conteúdos intrapsíquicos são relevantes por serem inerentes às pessoas, mas não são privilegiados como nos processos psicoterapêuticos. Entretanto, seu desvelamento pode ser o iniciador para mudanças pessoais e sociais.

Os norteadores do trabalho com os grupos são: a relação subjetiva – eu comigo –; a relação intersubjetiva – eu e tu e eu e os outros/sociedade –; a relação com a lei.

Outro importante instrumento utilizado, além das técnicas psicodramáticas, é a elaboração da Linha da Vida Amorosa, ocasião em que são relatados fatos da vida do casal, desde o conhecimento até o presente ou até a separação. Nela são percebidos padrões de comportamento que evidenciam atitudes diante da mulher, o enfrentamento de dificuldades próprias dos ciclos de vida familiar a que McGoldrick (2003) se refere e, frequentemente, a prazeres que se perdem na rotina da família ou são sabotados pelos cônjuges.

Fala-se de grupo aberto pela possibilidade de pessoas entrarem até o momento em que se trabalha o "eu", o "tu" e o "nós" e os modelos de identificação; é aberto, também, no sentido dado por Moreno (1975, p. 237) segundo o qual grupos abertos são os formados por "numerosos sujeitos que compartilham da mesma síndrome mental ou cultural. Assim, por muito vasto que seja o público, é como um paciente coletivo, que consiste em componentes individuais". Os grupos têm, ainda, uma ação mobilizadora e facilitadora da interação e da aprendizagem e ensejam a descoberta de diferenças subjetivas da percepção e da qualidade do desempenho dos papéis sociais que aparecem na recriação dos fatos (MORENO,1975; BUSTOS, 1979).

Neste artigo estão focados os encontros em que foram trabalhados aspectos ligados ao acolhimento e ao entendimento da proposta, aos papéis conjugais e à comunicação entre os casais, e os resultados encontrados.

 

ACOLHIMENTO – TRABALHANDO o "EU"

A percepção de si, das queixas e a compreensão são inexistentes no início. Com o reconhecimento do espaço como de escuta, reflexão e compartilhamento, sem julgamentos ou censuras, os participantes se mostram à vontade para falar na primeira pessoa.

 

AUTOPERCEPÇÃO E PERCEPÇÃO DO OUTRO. TRABALHANDO O "EU"-"TU", O "EU" E O "OUTRO"

Reflete-se sobre a mulher e o homem contemporâneos, papéis de gênero e heranças transgeracionais na construção desses papéis. Trabalham-se as expectativas próprias e as do outro quanto à relação. São identificados sentimentos próprios das vivências conjugais e familiares, as ações e a harmonia destas com o pensamento e o sentimento.

 

SIGNIFICADO DO CASAMENTO E DOS PAPÉIS CONJUGAIS. TRABALHANDO "EU"-"TU"-"ELE"; "NÓS", "A FAMÍLIA"

Abordam-se o valor do companheirismo, o respeito ao outro, às diferenças, tarefas e obrigações que cada um exige do outro. Neste ponto do desenvolvimento do grupo, atém-se, mais profundamente, ao padrão disfuncional de comunicação do casal e às possíveis mudanças comportamentais decorrentes da mudança desse padrão.

 

PERTENCIMENTO À SOCIEDADE E RECONHECIMENTO DAS LEIS

Este tópico é importante pela ilegalidade do ato cometido. Os papéis sociais são revisitados a partir de suas relações com as convenções sociais e as leis. Trabalha-se a temática dos direitos humanos, da proteção pessoal e do companheiro e da segurança necessária para a autonomia e a liberdade nas interações sociais, principalmente no casamento.

 

CORRESPONSABILIDADE PELA QUALIDADE DA RELAÇÃO

As reflexões começam pelo conceito de harmonia, conflito e violência e como se aplicam à vida conjugal e familiar. Um dos exercícios utilizados é a elaboração da Linha da Vida Amorosa do Casal, anteriormente explicada. O casal conta sua história, um de cada vez, colocando episódios importantes de sua vida em comum. Pede-se que, à medida que se lembrem, coloquem os pontos que julgam positivos acima da linha norteadora e os negativos abaixo da linha. .

 

PROJETO CONJUNTO PARA O FUTURO

O trabalho sobre os projetos para o futuro teve início com uma discussão sobre os sonhos do casal. Embora devesse ser um projeto anterior ao casamento, pois diz respeito à vida da futura família, os casais envolvidos com a violência, em geral, não o realizaram antes nem depois de se unirem.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Na Linha da Vida Amorosa, é comum termos a avaliação de um mesmo fato como positiva para um e negativa para o outro, o que leva à discussão sobre o tema e à reflexão sobre como resolveram o problema na época e como o resolveriam agora. Ambos percebem quanto deixam guardados desentendimentos importantes, que os problemas não se resolvem por si, apenas se acumulam em uma caixinha de mágoas (tal como eles se referem). Algumas vezes, o casal propõe uma solução alternativa para o conflito durante o próprio exercício. Destacam-se dois fatos que surgiram neste instrumento e que são da maior importância: as circunstâncias em que o casal se conhece e as expectativas de cada um em relação ao outro. Os casais deste e de outros grupos similares se conheceram em lugares públicos como o metrô ou o ponto de ônibus; nenhum deles foi apresentado por algum amigo ou conhecido. A partir daí, começam o relacionamento e se unem – casando ou morando juntos – em uma média de três meses, tempo que não permite que eles se conheçam e aprendam a conviver, segundo eles mesmos.

A importância do conhecimento do outro é confirmada quando se questiona sobre os projetos do casal. É percebido pelos casais que esses planos não existem, que os projetos são individuais, ligados a sonhos, fantasias e expectativas de cada um. Como eles se conhecem e se unem em tempo muito curto, muitas vezes já à espera de um filho, não têm oportunidade de conhecer os desejos e os planos um do outro. A vida se torna uma atuação no "aqui-e-agora" sem planejamento e sem diálogo, mas frequentemente com muita cobrança porque cada um espera do outro o que pensa que é o melhor, mesmo que isso não tenha fundamento nos interesses e nas possibilidades do outro, nem na relação conjugal, mas, apenas, nas próprias fantasias.

Ao falar dos sonhos do casal, foi verificado que eles simplesmente não existem; ao se unirem, um não tem conhecimento dos sonhos do outro, isso não é compartilhado, ao contrário, é guardado como um segredo. A grande questão que surgiu, ao se conhecer o sonho do(a) companheiro(a) foi: o que fazer com o sonho do outro: matar ou manter?

A reflexão sobre essa questão foi exaustiva por perpassar desejos, sentimentos, objetivos de ambos os cônjuges. Foi discutido se o sonho tem prazo de validade, como se consegue matar o sonho do outro e a facilidade com que isso é feito, afinal basta que não se considere o (a) parceiro(a) ou não se respeite o direito de sonhar. Como saber que se está matando os sonhos do companheiro se estes não são conhecidos? O grupo entendeu que uma das funções do sonho é levar a família para uma vida melhor, porque ninguém sonha piorar ou sofrer; outra é juntar a família em direção à mudança, pois o sonho de um pode ser o sonho dos dois. Alguns se sentiram assassinos de sonhos, outros identificaram o sonho de manter a pessoa que amam, alguns reconheceram que se casaram com um sonho e descobriram que o companheiro também acalentava um sonho, mas, se eles não conheciam o sonho do outro, não podiam sonhar juntos, muito menos, realizá-los.

A importância de se conhecerem melhor é reafirmada quando se abordam os papéis que chegam com o casamento, o de marido e de esposa, por exemplo, pode-se perceber que a aprendizagem desses papéis, para o homem e para a mulher, hoje, seja de difícil realização pela necessidade de se afastar de um papel de gênero cristalizado e avalizado socialmente para a construção de um novo. Como Moreno (1975) pontua, cada um traz consigo os elementos com os quais o casal vai formar um terceiro átomo social, que é do casal e da futura família. Pode-se pressupor, então, que o conhecimento dos relacionamentos emocionais do outro e de elementos de seu átomo social é, no mínimo, necessário para o desenvolvimento da relação. Se isso não ocorre, tem-se a consequente frustração relativa às expectativas de cada um quanto ao casamento e pelo fato de os parceiros não aceitarem os átomos sociais do outro. A cooperação e a harmonia dão lugar, então, à competição pelo comando da relação. Assim, a linguagem possível tem sido a da agressão. Parece que cada um espera que o outro esqueça sua família de origem para se dedicar ao casal, o que não acontece pela própria impossibilidade de abafar afetos com sucesso. Outro aspecto relevante é a transgeracionalidade, que é um legado norteador das formas de resolução de conflitos pela violência, pelo poder e pela força, herança da sociedade ao homem, para que seja o dono da relação e chefe da família.

Por outro lado, com os movimentos feministas, as mulheres, hoje, são chamadas a rever seus valores e a mudar comportamentos, emancipando-se e reivindicando o direito de ser respeitadas pelos homens. Em virtude da dificuldade do homem em compreender essa nova posição feminina, à medida que as mulheres buscam seus direitos, sua autonomia nas relações e a construção do papel profissional, surge uma disputa de poder surda para os argumentos e pródiga em ações e reações impregnadas de agressividade e desrespeito mútuo. E a mulher usa, muitas vezes, as mesmas estratégias ditas masculinas, das quais se queixa, com comportamentos violentos e inadequados em relação à harmonia do casal. Essa disputa está relacionada à falta de diálogo e de negociação: "Ela sabe o que eu gosto e o que eu quero, portanto, tem de fazer...", que têm como resposta: "Ele que faça o que quiser... ele não faz nada para mim..."

À medida que as necessidades da vida em comum vão se instalando na relação do casal, as ações vão se revezando entre exigências e respostas que não correspondem ao esperado, transformando-se em conflitos. As ofensas e as agressões vão se intensificando, tornando-se mais contundentes, mais desrespeitosas e inadequadas, se tivermos como parâmetro a harmonia conjugal e familiar.

Outra constatação se refere à correspondência dos motivos pelos quais homens e mulheres justificam a violência que praticam e a luta pelo espaço de poder dentro da família, que são vistos de maneira particular; as ações são carregadas de interpretação pessoal e as versões de um não são reconhecidas pelo outro, o que leva a pensar na singularidade dos significados como diz Grandesso (2011), e na qualidade de emissão e percepção das mensagens. Nesse grupo de homens e mulheres que protagonizam a violência conjugal, percebe-se que a comunicação intrafamiliar se ancora na desqualificação e na desconfirmação do outro, levando todos à desorganização que culmina na agressão.

Quanto à comunicação do casal, várias dificuldades são apontadas e nos atemos aos conceitos de Watzlawick, Beavin e Jackson (1967) aqui apresentados. Nos casais atendidos tem-se, frequentemente, a concordância quanto ao conteúdo com a discordância se deslocando para o nível da relação. Os conceitos sobre a comunicação interpessoal presentes na interação dos casais acompanhados neste programa são os de desconfirmação e de desqualificação, ambos com conotação agressiva, que têm significado de humilhação. Um exemplo de desqualificação é:

"Você só fala besteira". "O que você diz não se escreve". Aqui, a mulher é desqualificada, humilhada, mas é vista como alguém que está ali, na sua frente, é uma pessoa. Diferente da fala desconfirmadora: "Ele não me elogia nunca nem diz se gosta ou não do que faço", que implica a eliminação do outro. É como se não existisse para seu marido, não é legitimada por ele como uma pessoa, pois não merece um elogio ou uma crítica.

Alguns aspectos cruciais da interação do casal foram descobertos durante os encontros e os principais se revelaram no processo comunicacional. Os casais criam razões para a violência e culpados por ela. A culpa da cachaça foi devidamente expurgada em uma dramatização do grupo, na qual a bebida era colocada entre o casal, como a culpada de todos os seus infortúnios. Na cena, reconheceram que o álcool servia de intermediário na relação e de justificativa para a agressão, pois a bebida autoriza qualquer ação e, portanto, é responsabilizada pelas consequências. Não se vê, nessas situações, nenhuma preocupação com o parceiro(a), com os atos, com os desdobramentos para a relação conjugal e familiar.

Essas discussões trouxeram outras, como as razões para desprezar o outro em sua subjetividade, suas avaliações, seus desejos, seus valores. A comunicação e seus vieses foram o centro de todo o trabalho, descoberta como a principal causa dos conflitos conjugais e familiares. A violência conjugal foi avaliada por homens e mulheres, ao final do trabalho, diferentemente do início. Foram construídas novas percepções acerca das relações estabelecidas com o cônjuge, dos papéis de gênero, das dificuldades individuais que resultaram nos conflitos conjugais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Brasília é uma cidade de muitas culturas. Nela convive-se com famílias que vêm de todas as regiões, com diferentes usos e costumes, com olhares singulares para a vida. Em algumas regiões do país a agressão à mulher ainda é aceita como uma ação comum. O homem é reconhecido como senhor da casa, da mulher, da família. Entretanto, a mulher não tem mais aceitado essa situação. As diversas campanhas de repúdio à violência contra a mulher têm tido eficácia para criar um sentimento de emancipação no relacionamento, principalmente no que se refere ao direito de a mulher se proteger e denunciar o companheiro que a agride.

Podemos ver que ambos se sentem agressores e vítimas, mas a agressão é justificada pelos dois. Percebe-se também que, com o início do trabalho grupal, à medida que os participantes reconhecem o outro na relação, compreendem seus papéis conjugais e familiares, e se dão conta da qualidade de suas interações e começam a conversar com os (as) companheiros(as) sobre o cotidiano e sobre o que gostam e o que os irrita na relação. Segundo relatam, veem que as relações vão sofrendo mudanças e vão construindo novas formas interacionais e de convívio; e passam a aspirar pela paz e a harmonia. Mais ao final, por volta do décimo segundo encontro, entendem as várias formas de agressão que protagonizam. As mulheres reconhecem suas ações e intenções agressivas dirigidas ao companheiro e o potencial de mágoa contido em alguns de seus comportamentos. Vê-se que esses grupos têm sido uma oportunidade para que homens e mulheres reflitam sobre seus comportamentos e, antes de tudo, sobre suas atitudes diante das diferenças e da vida. Essas descobertas foram acontecendo aos poucos e com sofrimento, mas cada insight era seguido de alívio e de propostas de novidades na relação.

Outro indicador do valor do trabalho com o grupo são os discursos dos envolvidos quanto a novas formas de se comportar na relação com o outro: esposa, esposo, filhas, filhos, namoradas, namorados, mães, pais, irmãs e irmãos – e mesmo com amigos e amigas.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Maria Eveline Cascardo Ramos

SGAS 910 - Cj B - Bloco D - sala 225 Asa Sul -
Brasília, DF CEP 70390-100
e-mail: evelinecascardo@yahoo.com.br

Recebido: 25/07/2012
Aceito: 21/03/2013

 

 

1. De Beauvoir, S. El segundo sexo. Nova York: Random House Mondadori, 1949.
2.
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