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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.21 no.1 São Paulo  2013

 

ARTIGOS DE REFLEXÃO

Reflective Article

 

 

 

A integração da herança de Moreno

 

Integrating the Moreno's heritage

 

 

René F. Marineau

Professor e pesquisador na área de supervisão na Université du Quebec à Trois-Rivières, diretor de formação no Centro Internacional de Psicoterapia Expressiva em Yamachiche, Canadá

Endereço para correspondência

 

 

 


RESUMO

O foco deste artigo é um roteiro para psicodramatistas e sociodramatistas. Primeiro, alguns marcadores de referência histórica e epistemológica são sublinhados para esclarecer alguns dos desafios e dos problemas relacionados à teoria (ou teorias) de Moreno, sua validação e aplicação. Em seguida, algumas estratégias são propostas para que a nossa própria comunidade possa cumprir sua missão global, ligada ao que Moreno chamou revoluções sociátricas e sociométricas.

Palavras-chave: Psicodrama. Sociodrama. Terapia de grupo. Sociometria. Sociatria. Moreno.


ABSTRACT

The article focuses on a road map for psychodramatists and sociodramatists. First, some historical and epistemological reference markers are underlined in order to make clear some of the challenges and problems in relation to Moreno's theory (or theories), its validation and application. Then, some strategies are proposed so that our own community could fulfill its global mission linked to what Moreno called the sociatric and sociometric revolutions.

Keywords: Psychodrama. Sociodrama. Group therapy. Sociometry. Sociatry. Moreno.


 

 

INTRODUÇÃO

A atual situação da Sociometria, do Psicodrama e do Sociodrama tem de ser reavaliada. Em um mundo em que as abordagens teóricas se propõem a resolver problemas individuais e de grupo, temos de nos manter firmes e fortes. Por ser um profissional reflexivo, penso ser necessária uma responsabilidade constante para responder à seguinte pergunta: "O que faço quando faço o que faço?" (MARINEAU, 2005).

Estive envolvido com trabalho em grupo e métodos de ação por mais de 40 anos. As possibilidades são ilimitadas. No entanto, percebo que a revisão sistemática de nosso trabalho, os limites da disciplina, as especificidades de nossas abordagens, a profundidade da pesquisa, a justificativa para a formação de profissionais ainda precisam ser resolvidas.

Embora existam muitas associações dedicadas ao desenvolvimento do(s) nosso(s) campo(s) de ação (International Association for Group Psychotherapy and Group Processes - IAGP, Federation of Psychodrama Training Organization - FEPTO, American Society of Group Psychotherapy and Psychodrama - ASGPP, Rede de Sociodrama etc.), ainda encontramos em nossa comunidade pessoas com diferentes propostas: isso é ótimo, desde que possamos entender nossas semelhanças e nossas diferenças. Entre os morenianos, há perspectivas diferentes, que também são bem-vindas. Em decorrência dessas considerações, precisamos de maior clareza e alguma unidade de ação.

A herança de Moreno pode trazer respostas à população em sofrimento do século XXI. No entanto, estamos competindo com outros profissionais e não devemos nos satisfazer com o nosso sucesso relativo. Na realidade, mais do que nunca, devemos aproveitar a oportunidade para avaliar o que fazemos. O futuro da herança de Moreno reside em nossa capacidade de torná-la válida e atraente para a comunidade científica de saúde mental atual. No momento, continua sendo difícil estabelecer uma ponte com os responsáveis pelas políticas públicas na área da saúde, assim como com professores, formadores, profissionais e pesquisadores em nosso(s) campo(s) de especialização. Mesmo se não podemos ter o controle total sobre o desenvolvimento de estratégias para o desenvolvimento futuro do(s) nosso(s) campo(s) disciplinar(es), temos o suficiente para facilitar o crescimento da perspectiva moreniana dentro das comunidades acadêmicas e da saúde, assim como da sociedade em geral.

Neste artigo, vou focar um roteiro que poderia nos levar a um futuro mais brilhante. Vou me limitar às perspectivas de Moreno, ciente de que a mesma viagem precisa ser feita com outras abordagens, e que maior integração das diferentes epistemologias deve continuar a ser um objetivo importante para todos nós. Primeiro, vou destacar alguns marcadores de referência histórica e epistemológica para deixar claro alguns dos desafios e dos problemas relacionados à teoria (ou teorias) de Moreno, sua validação e sua aplicação. Depois, vou focar as estratégias que nossa comunidade deveria adotar para cumprir uma missão global ligada ao que Moreno chamou de revoluções sociátricas e sociométricas.

 

A HERANÇA DE MORENO

Moreno era um gênio, tanto na forma de pensar como na de agir. Ele nos deixou uma herança rica, porém complexa. Desenvolveu uma visão de mundo fundamentalmente limitada e simples. No entanto, seu desejo de criar uma nova epistemologia levou-o a desenvolver, em um grande território (o mundo, o cosmos), uma nova linguagem que evoluiu em tempo próprio, em algumas ocasiões chegando a um produto mais acabado (Psicodrama), em algumas outras apenas esboçado (Sociatria) (MARINEAU, 1989, 1994).

Quanto ao território disciplinar, Moreno afirmou claramente o seu âmbito em Quem sobreviverá?

Um procedimento verdadeiramente terapêutico não pode visar menos do que toda a humanidade. Entretanto, nenhuma terapia adequada poderá ser prescrita enquanto a humanidade não for, em alguma medida, uma unidade e enquanto a sua organização permanecer desconhecida. No início, isso nos ajudou a pensar, mesmo não tendo uma prova definitiva de que a humanidade é uma unidade social e orgânica (MORENO, 1953).

Essa frase é muito importante: fala sobre o território disciplinar, o processo de mudança e o conteúdo necessário para alcançá-la.

Primeiro, vamos considerar o território disciplinar. Para Moreno, o objeto de sua busca foi o conjunto da humanidade, nomeadamente o "privado" e o ser humano social. Ele considerou como sua missão reunir toda a comunidade sob um guarda-chuva científico único, para compreender e transformar toda a humanidade. Sua ideia básica era a de que cada um de nós participa simultaneamente do que hoje chamamos "numerosos sistemas". Para funcionar adequadamente, todas as pessoas e os sistemas (o que Moreno chamou "ecologia") devem estar funcionando de acordo com uma unidade planejada, que é o propósito básico e o objetivo maior de sua filosofia. Vamos citá-lo novamente:

Torna-se evidente o fato de que a biologia do homem é, de muitas maneiras, um reflexo de seu entorno, que a evolução humana está acontecendo em ritmo acelerado, que a variação, a seleção e a taxa diferencial de fecundidade e mortalidade são realidades biológicas afetadas pela situação social. [...] O homem civilizado é um organismo forçado a fazer uma adaptação excepcional, de modo que nenhum fisiologista ou psicólogo possa estudar o homem como um organismo, exceto à luz de sua ecologia e de seus amplos antecedentes sociais (MURPHY e MORENO, 1937).

Esses comentários são parte do preâmbulo editorial de uma Revista lançada por Moreno em 1937, Sociometria: Revista das Relações Interpessoais (MURPHY e MORENO, 1937).

A teoria de Moreno implica que a pessoa não pode ser extraída de seu(s) ambiente(s) e que muitas subdisciplinas convergem e se combinam para explicar o destino das pessoas, desde a Biologia e a Psicologia até a Sociologia, a Antropologia, os estudos das religiões e as ciências políticas. Em sua opinião, a Sociometria (ciência das relações interpessoais) e a Sociatria (ciência da saúde mental do indivíduo são) seriam a integração supraciências que serviria como um guarda-chuva para as outras ciências.

Enquanto desenvolvia seu pensamento, Moreno envolveu-se em diversos projetos de trabalho, com diferentes grupos de acadêmicos e profissionais de maneira sempre significativa, mas um pouco fragmentada (MARINEAU, 1989, p. 141). O filósofo e pesquisador fala para os cientistas sociais enquanto o terapeuta, melhor dizendo o "psiquiatra", conecta-se com os terapeutas. Estava envolvido em pesquisa sociométrica na prisão de Sing Sing, bem como na criação de uma pequena comunidade de saúde mental com um palco de Psicodrama em Beacon.

Moreno criou duas revistas: uma direcionada à pesquisa e à prática social (Sociometria: Revista das relações interpessoais, em 1937); e a outra dedicada a intervenções psicodramáticas individuais (Sociatria: Revista de terapia de grupos e intergrupos, em 1947). Essa opção de trabalhar em duas frentes diferentes – o que revela alguma forma de split no próprio Moreno – direcionou, em longo prazo, também uma divisão entre colegas, alunos e seguidores. Havia o Moreno sociometrista e sociodramatista e o Moreno psiquiatra e psicodramatista. Essa mesma divisão tornou-se também verdadeira para a maioria de estudantes e seguidores.

Em 1955, Em 1955, Moreno transferiu a primeira Revista (Sociometria: Revista das relações interpessoais) para a Associação Sociológica Americana e, a partir desse ponto, o Sociodrama e a Sociometria tomaram um lugar mais secundário em sua agenda diária. Na realidade, Moreno optou por dedicar mais tempo ao Psicodrama ("o indivíduo privado") em vez de concentrar-se no outro lado do continuum, o tratamento dos conflitos sociais com o Sociodrama.

Dizendo sem rodeios, Moreno tentou definir um novo campo disciplinar que abrangesse toda a humanidade: segundo ele, para obter a unidade de nossa espécie, precisávamos estar envolvidos com todos os segmentos da sociedade, desde o indivíduo e seu "mundo privado" até as entidades nacionais e internacionais. Ele trabalhou com diferentes grupos, era ativo em diferentes contextos de vida, porém, a magnitude da tarefa tornou difícil alcançar e transmitir um senso real de integração. Mesmo a intenção sendo a unidade da espécie, mesmo que Moreno tenha desenvolvido métodos próprios para alcançar seu objetivo, ele permaneceu confinado a um território limitado: o palco psicodramático tornou-se sua principal ferramenta, e ele deixou o fator biológico de lado, e em alguns aspectos, a integração social para trás.

Com o passar do tempo, Moreno também, de certa forma, abandonou o mundo acadêmico e o mundo acadêmico o abandonou. Quando viajou para a Europa, no início dos anos de 1950, o terapeuta nele estava em primeiro plano, mesmo tendo conseguido atrair a atenção de muitos acadêmicos europeus conhecidos e mobilizá-los para áreas muito interessantes de pesquisa. Contudo, carregar nos ombros a magnitude da(s) nova(s) "disciplina(s)", cujo escopo era o mundo inteiro, foi demais para uma pessoa ou uma equipe pequena. Ele precisaria, usando seu próprio termo, de "um exército de cientistas" em todas as regiões do mundo, que trabalhassem juntos, coordenando meios de integrar suas descobertas e criando formas adequadas para traduzir tudo isso em métodos de ação. Chegou perto de conseguir boa parte disso, mas falhou, por diferentes razões, em unir e integrar suas teorias em uma teoria mais global.

Moreno criou uma nova forma de olhar para a raça humana: seu foco era o relacionamento entre as pessoas, os métodos centrados na ação eram suas principais ferramentas. Desenvolveu novos conceitos, dezenas deles, em alguns momentos criando uma maneira nova e original de olhar para a experiência do momento, em outros trabalhando duro para diferenciarse de Sigmund Freud ou Kurt Lewin. Surgiu todo um novo "corpo de conhecimento", cujos limites eram todo o universo. Seu esforço para marcar uma nova teoria, uma verdadeira teoria moreniana, era tanto um sucesso como um fracasso. O sucesso estava na sua capacidade de dar uma visão integrada do mundo, em sugerir formas significativas para resolver conflitos intrapsíquicos e interpessoais, em criar institutos para os praticantes em formação. No entanto, por querer ser o Criador, o Gerador de um novo sistema, minimizou a contribuição dos Criadores do passado e era bastante relutante em incluir cocriadores do presente em seu átomo social. No final de sua vida, escolheu se associar a outras Escolas de pensamento (criação da IAGP1), mas em seu coração permaneceu o Criador entre os Criadores.

Quando Moreno morreu, deixou para trás um legado que se traduz em conceitos e pessoas. Podemos pensar sobre Psicodrama, Sociodrama, Sociometria, Sociatria, Tele, Teoria de Papel, Teoria da espontaneidadecriatividade e centenas de outros termos. Podemos reconhecer que esses conceitos estão incorporados em milhares de pessoas que ainda seguem os seus passos como sociometristas, psicodramatistas e sociodramatistas.

A partir dessas observações, três conclusões são propostas:

– A herança de Moreno é rica e ainda atual (ou até mais atual hoje do que há um século). Se o século passado foi centrado na pessoa, este pode ser mais comunitário ou centrado no grupo. A quantidade de conflitos em todos os níveis, desde casais e famílias até comunidades e nações, exigirá mais e mais terapias centradas em sistemas.

– Há a necessidade de integrar as propostas de Moreno e traduzi-las para uma linguagem que fale com as pessoas do século XXI. Diferentes disciplinas precisam encontrar maneiras de falar e interagir umas com as outras. Sem perder suas identidades, elas precisam reconhecer que nenhuma pode explicar o todo da humanidade. Os conceitos de Moreno sobre unidade/unicidade e os métodos de ação podem auxiliar a encontrar um terreno comum e a inserir novas descobertas na compreensão da vida individual "privada" e de sua interação com os outros. Todas as comunidades científicas e todas as disciplinas precisam ser parte de uma nova integração do conhecimento relativo à humanidade.

– A integração deve estar enraizada em contextos da vida real e incluir teoria, pesquisa, formação e prática. É necessário acabar com a fragmentação e com o isolamento. Se a perspectiva moreniana é a de ajudar, precisará garantir um conhecimento de todas as fontes, explicar seu raciocínio, validar através de muita pesquisa e traduzi-la em métodos adaptados a este século. Haverá a necessidade de obter melhor compreensão da filosofia de Moreno, sem medo de torná-la atraente para a geração atual, em que os meios de comunicação são radicalmente diferentes daqueles experimentados pelo próprio Moreno. Como animais ou pássaros na primavera, as propostas de Moreno podem precisar de um casaco novo, de novas penas.

 

DESAFIOS À FRENTE

Dito isso, vamos refletir sobre quatro áreas.

Primeiro, precisamos reidentificar nosso(s) campo(s) de ação, recapturar as propostas de Moreno em relação ao território apropriado para trabalhar e reavaliar o alcance de nosso trabalho.

Um procedimento verdadeiramente terapêutico não pode visar menos do que toda a humanidade. No entanto, nenhuma terapia adequada poderá ser prescrita enquanto a humanidade não for, em alguma medida, uma unidade e enquanto sua organização permanecer desconhecida.

Moreno afirmou que "um procedimento verdadeiramente terapêutico não pode visar menos do que toda a humanidade e exige esforço para a sua unificação e para o conhecimento de sua organização" (MORENO, 1953). Essa declaração é clara: define um novo território disciplinar ou, pelo menos, uma nova maneira de olhar para o universo que pede por cooperação de uma série de disciplinas que estão envolvidas no bemestar da humanidade. Moreno milita a favor de intervenções que cubram todos os segmentos da população. Na realidade, de certa forma, ignorou a contribuição de dois segmentos básicos: o que chamamos hoje de neurociências e a psicossociologia clínica.

Hoje, com o progresso da ciência, há essa oportunidade única de focar a unidade da pessoa. Permitam-me citar Cozolino:

Usando a evolução como um princípio organizador, começamos com a suposição de que nossos cérebros fortemente sociais foram moldados pela seleção natural porque unindo-se em grupos aumenta-se a sobrevivência. Quanto mais entrelaçados formos como grupo, mais olhos, ouvidos, mãos e cérebros teremos à nossa disposição. Sabemos que a expansão do córtex em primatas corresponde ao aumento dos grupos sociais e do desenvolvimento da linguagem, resolução de problemas e habilidades abstratas. Nosso cérebro maior e mais complexo não apenas permite maior variedade de respostas a situações desafiadoras e em ambientes diversificados, como também processar a vasta quantidade de informações sociais necessárias para apoiar a comunicação e a coordenação do grupo (COZOLINO, 2010, p. 177).

Tomo essa citação como um exemplo da compreensão do ponto de vista de Moreno por um neuropsicológo clínico. Moreno olhou para a unidade e, cada vez mais, há provas disso. Na verdade, nem todos os cientistas têm essa perspectiva ampla e aberta. Há neurologistas que tendem a ver o cérebro completamente separado dos contextos sociais, com uma tendência de "curar" o cérebro, de aliviar a dor por meio de medicamentos ou de tratar o sintoma usando um corredor muito estreito. No entanto, sem excluir todas as vias, se cooperarmos, por exemplo, com neurocientistas clínicos, poderemos descobrir que a hipótese de Moreno de unidade interna da pessoa está ganhando terreno e validade. Mais e mais pesquisas em Neurofisiologia e Neurobiologia apoiam os pontos de vista de Moreno, e poderíamos encontrar conforto em obras de Bessel A. van der Kolk (1994, 1996), Cozolino (2010), Siegel (2007), Badenoch (2008) e Porges (2011), só para citar alguns. O que está implícito é a importância para os Morenianos em reconhecer o valor das ciências biológicas, que em troca podem reconhecer a validade de pontos de vista de Moreno.

Por exemplo, no Psicodrama, podemos destacar a importância de voltar a uma experiência traumática e produzir uma catarse de sentimentos reprimidos antes de visar a reconstrução da personalidade.

Comparando com a visão de Kolk:

As respostas fisiológicas muito intensas que acompanham a lembrança de experiências traumáticas que aconteceram há anos, às vezes há décadas, ilustram a intensidade e a intemporalidade com que memórias traumáticas continuam a afetar a experiência atual (VAN DER KOLK, 1994).

Em outras palavras, mesmo que outras abordagens possam focar a terapia verbal, ou ficar longe do passado, há indicações de que a terapia voltada para a organização mais arcaica do cérebro vale a pena e tem mais significado. Quando se trabalha com traumas muito arcaicos, que tiveram lugar na fase pré-verbal, o cérebro reptiliano ou sistema límbico são de grande ajuda para entender a função da catarse e da reestruturação futura. Por outro lado, o surgimento de uma depressão pode ser avaliado não apenas a partir da estrutura do cérebro, mas também da ecologia do ambiente próximo. Dizendo de outra forma, os cientistas de todas as esferas da vida, hoje, podem nos dar as mãos para ajudar a compreender e lidar com a doença mental e sua prevenção. Eles podem validar nossos métodos, o Psicodrama, por exemplo, e mostrar que a unidade da pessoa é uma realidade.

No outro extremo do espectro, precisamos prestar mais atenção às questões que revelam um mundo em mudança: famílias e casais do presente são completamente diferentes daqueles da época de Moreno; tensões relativas à raça e à religião estão pervertendo as relações em todos os níveis, das comunidades às nações; a tecnologia e sua rápida evolução estão mudando a maneira como as pessoas se relacionam, muito além do que imaginou Moreno. Ele estava muito sintonizado aos contextos em que viveu. Nós precisamos fazer o mesmo. Sobreviver é se adaptar. A teoria de Moreno precisa abordar mais as questões reais e, finalmente, conectá-las com a dinâmica individual. Por exemplo, Psicodrama e Sociodrama não devem ficar tão separados como estão agora: são de fato irmãos gêmeos de um mesmo ser. Isso não significa que todos precisam usar os dois métodos, mas a consciência de uma relação entrelaçada entre eles deveria estar sempre presente.

Nosso campo de ação deve ser o mundo todo, intrapsíquico e interpessoal, e a cooperação de todos os cientistas deveria ser bem-vinda. No entanto, nossa intenção e nossas estratégias pedem para manter o foco na importância dos relacionamentos como se revelam em cada momento e em situações concretas.

Segundo, precisamos fomentar a pesquisa.

Quando voltamos para a década de 1940 e olhamos para o conteúdo das revistas, podemos ver um número enorme de pesquisas realizadas tanto em Sociometria como em Psicodrama. Naturalmente, a II Guerra Mundial foi bastante instrumental na promoção de trabalhos de pesquisa com grupos, treinamento de liderança, intervenções pós-traumáticas etc. Naquela época, as ideias de Moreno eram populares entre os acadêmicos, na Psicologia social e na Sociologia. Em relação à terapia, a Revista de Sociatria estava cheia de artigos que incluíam pesquisa-ação e estudos de caso. Aos poucos, os acadêmicos tomaram um caminho diferente daquele que Moreno tomou, mais focado no tratamento. A Revista de Sociometria tomou um caminho diferente em relação à Associação Sociológica (MARINEAU, 2007) e a Revista de Sociatria, renomeada várias vezes, foi entregue à Heldref Publicações e encontrou muitas dificuldades. No entanto, nunca morreu e agora está mais viva do que nunca, sob o comando da American Society of Group Psychotherapy and Psychodrama (ASGPP). Dito isso, a pesquisa tem sido vista como cada vez mais importante, especialmente em alguns círculos acadêmicos.

Se quisermos sobreviver no século XXI, precisaremos recuperar o espírito de curiosidade intelectual e ocupar o campo da pesquisa. Já podemos ver uma tendência positiva nos últimos congressos da IAGP. Uma vez que o guarda-chuva sob o qual atuamos é amplo e profundo, é preciso visitar, explorar e pesquisar todos os cantos do nosso território. Mesmo se os caminhos mais tradicionais são atraentes, principalmente por razões secundárias, precisamos desenvolver caminhos mais adequados para o tipo de trabalho que realizamos: precisamos ser criativos com nossas metodologias. Necessitamos de pesquisa básica que utilize métodos experimentais, mas muito mais da pesquisa-ação para validar nossas ferramentas e processos. Se quisermos alcançar a unificação do campo, precisamos de pesquisa multidisciplinar que envolva as neurociências e todo o conjunto das ciências sociais: Psicologia clínica e social, Sociologia, Economia, Linguística etc. Também precisamos desenvolver estudos de caso de grupos, não só de indivíduos no grupo, carecemos de pesquisa aplicada do Psicodrama e do Sociodrama. Precisamos desenvolver instrumentos, ferramentas para validação do nosso trabalho.

Acima de tudo, precisamos voltar a entrar nas universidades para o desenvolvimento de projetos de pesquisa, para testar nossas teorias e conseguir alguns subsídios. Naturalmente, isso traria de volta os jovens estudantes às nossas organizações: os alunos são o nosso futuro e realmente precisamos deles. Como cientistas e como profissionais. E, como veremos, precisamos, pelo menos, treinar nossos profissionais como bons usuários de resultados de pesquisa, melhor ainda, preparálos para realizar pesquisa-ação com os próprios grupos. Necessitamos de profissionais reflexivos.

Terceiro, se o nosso objeto científico é o estudo simultâneo de pessoas que se relacionam entre si, precisamos reavaliar nossa forma de desenvolver e utilizar nossos métodos de ação: tradicionalmente, Moreno usava Sociometria, Psicodrama e Sociodrama. No entanto, muitas vezes, como só o Psicodrama é utilizado, alguns pacientes nunca vivenciaram como são afetados pelos contextos sociais mais amplos em que vivem.

O Sociodrama, um dos melhores insights de Moreno, sempre foi a sua criança pobre. Precisamos voltar à ideia original de que cada um de nós está experimentando diferentes papéis simultaneamente, fisiológico, psicológico e sociológico. Precisamos voltar à uma perspectiva mais unificada, na qual o trabalho terapêutico é mais inclusivo da pessoa total e do mundo todo. Isso não significa que todos os Morenianos fazem tudo. No entanto, todos os que trabalham no(s) campo(s) estão cientes e abertos a uma solução melhor: para cada cliente ou paciente é "prescrito" um tipo de terapia que vai de seu mundo privado aos seus envolvimentos sociais, e para todo o planeta também é prescrito um remédio que ajuda a atingir a integração global e a unidade.

Em quarto lugar, é necessário rever nosso programa de formação e ensino.

Formação em Psicodrama era, em determinado momento, bastante presente nas universidades e nas organizações: Harvard, por exemplo, teve seu palco psicodramático enquanto o Hospital Santa Elisabeth, em Washington, oficialmente recrutava e contratava psicodramatistas. Agora, poucos centros universitários têm pesquisa em Psicodrama ou Sociodrama e programa de formação. Aos poucos, a formação tornouse uma questão exclusiva dos Institutos (muitas vezes dirigidos por empresários) e os programas se concentram mais e mais nos aspectos profissionais do Psicodrama e do Sociodrama. Com a estrutura real da sociedade de hoje – as apólices de seguro, por exemplo –, há necessidade de repensar o conteúdo e a apresentação de nossos programas. Estes precisam ser atualizados para levar em conta os resultados das pesquisas e as necessidades da sociedade. O lugar relativo das universidades em relação aos institutos privados também deve ser reavaliado: haveria grandes oportunidades para o currículo misto, no qual parte de um programa é dado na universidade e parte, pelos institutos privados ou escolas profissionais (MARINEAU, 2004). Poderia ser uma condição "ganha-ganha", que ajudaria a desenvolver mais pesquisa subsidiada, trabalhando de perto com os alunos mais jovens, enquanto se mantém ativa a especialização dos formadores no campo. Receio que, se não voltarmos a entrar no mundo acadêmico, nosso futuro permanecerá sombrio.

 

CONCLUSÃO

Há um futuro para a filosofia e os métodos de Moreno. Penso que precisamos refletir sobre o que pretendemos alcançar, e como pretendemos fazê-lo. Como bons profissionais reflexivos e pesquisadores, precisamos responder à pergunta: "O que fazemos quando fazemos o que fazemos?".

Também penso que precisamos criar um grupo de pesquisadores e profissionais dedicados a continuar esse questionamento. Um grupo que agiria como uma Academia Mundial para o desenvolvimento da herança de Moreno e que não hesitaria em desafiar o mestre e em desafiar uns aos outros com o que é necessário hoje, em nosso mundo (MARINEAU, 2010).

Indo além, cada um de nós precisa refletir consigo mesmo para esclarecer o que está buscando alcançar ao fazer o que faz no campo da Psicossociologia clínica.

 

Referências

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Endereço para correspondência
René Marineau
1270, Grande Rivière Nord,
Yamachiche, Canada, G0X 3L0
e-mail: rene.marineau@uqtr.ca

Recebido: 23/01/2013
Aceito: 28/03/2013

 

 

Nota
1. IAGP – International Association for Group Psychotherapy and Group Processes.