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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.21 no.1 São Paulo  2013

 

COMUNICAÇÕES BREVES

Brief Communications

 

 

 

Tatadrama: A violência mantida em segredo que emerge na boneca de pano

 

Tatadrama: Violence kept secret that emerges through working with rag dolls

 

Elisete Leite Garcia

Psicóloga clínica pela Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban) psicodramatista didata e supervisora pela Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama (ABPS)
Membro integrante do grupo Autodirigido do Instituto de Psicodrama J. L. Moreno. Idealizadora do Método Tatadrama e comunicadora social pela Faculdade Alcântara Machado FMU

Endereço para correspondência

 

 

 


RESUMO

O método Tatadrama, com a utilização da boneca de pano do folclore brasileiro como Objeto Intermediário, foi fundamental para recuperar a identidade de mulheres que participaram de 14 oficinas, uma delas descrita nesta comunicação breve. A customização da boneca possibilitou às participantes contextualizar suas necessidades, interagir com elas mesmas desvendando segredos, inclusive de violências, o que lhes abriu novas perspectivas de vida ao resgatarem do inconsciente valores e desejos para enfrentar e transformar sua realidade.

Palavras-chave: Tatadrama. Psicodrama. Violência. Identidade. Boneca de pano.


ABSTRACT

Tatadrama utilizes rag dolls of the Brazilian folklore as Intermediary Object. This method proved to be fundamental in recovering the identity of women who participated in 14 workshops, as described in this brief paper. The use of these dolls has allowed participants to contextualize their needs and to interact with themselves unveiling secrets, such as experiences of violence; this has opened up new vistas of life by redeeming from the unconscious values and desires that can confront and transform these women's reality.

Keywords: Tatadrama. Psychodrama. Violence. Identity. Rag doll.


 

 

INTRODUÇÃO

Em uma visita ao Mercado de Artesanato do Recife, em 2002, reencontrei as bonecas de pano que tanto me divertiram na infância, em Crato, no Ceará.

Ao segurá-las, eu me perguntei: Se aos meus olhos de adulta as bonecas resgataram sentimentos ocultos, poderia ocorrer o mesmo com outras pessoas? O que elas fariam a partir do contato com estas simples, mas carismáticas bonecas? Será que as manteriam como eram ou modificariam seu aspecto em uma transformação que fosse a expressão de seus desejos e suas aspirações? Imediatamente pensei em integrá-las ao meu trabalho em São Paulo e, a partir dessas questões, iniciei um projeto com um método próprio, o Método Tatadrama, em que essas bonecas, frutos da rica cultura popular brasileira, têm papel central.

No início do processo, há o despertar dos cinco sentidos e da imaginação, sensibilizando o participante para o ato de brincar com espontaneidade e criatividade. A próxima etapa, a transformação da boneca de pano, é um dos pronunciamentos mais originais do método Tatadrama e consiste em que o indivíduo, através de grande variedade de contas, linhas, novelos, tecidos, brilhos e quinquilharias, modifique a estética, o visual e a forma da boneca segundo seus critérios íntimos e criativos. Isso lhe propicia uma nova linguagem, rica em metáforas emocionais, reveladora de fatos de seu inconsciente. Ao brincar com a boneca, ocorre uma pesquisa interior que mistura o personagem e o ser real, em que há o ver e o refletir, gerando diversos sentimentos que podem ser trabalhados nos jogos dramáticos. O diretor do Tatadrama sensibiliza, desconstrói, conduz, constrói e finaliza o processo.

O Tatadrama tem por base a frase atribuída a Platão (428-347 a.C.): "Você pode descobrir mais sobre uma pessoa em uma hora de brincadeira do que em um ano de conversa". Além disso, o brincar está envolvido com o crescimento, o desenvolvimento e o valor educacional em nossa cultura (CULKIER, 2002, p. 161). A simplicidade desse objeto familiar o capacita a atender a este e a outros trabalhos dessa natureza (BENJAMIM, 1984).

 

METODOLOGIA

O Tatadrama segue as três etapas do Psicodrama: aquecimento, dramatização e compartilhamento. Tatadrama remete ao tupi, em que tatá significa transformação.

A essência desse método é agrupar as diversidades e os sentimentos, conduzindo a uma sistematização dos procedimentos e das dinâmicas, a saber:

 

AQUECIMENTO

a. Descondicionamento do olhar através do uso de imagens.

b. Dinâmicas corporais autoperceptivas.

c. Trabalho sensorial, concentrando-se no despertar dos cinco sentidos

 

DRAMATIZAÇÃO

a. De uma coleção variada de bonecas(os), cada participante escolherá um (uma) que tenha a ver consigo mesma(o), iniciando o trabalho de observações sobre a(o) boneca(o) (percepções, sentimentos, emoções e associação livre).

b. Ponte entre o personagem e o ser, introspecção, descobertas, reflexões e insights.

c. Transformação, produção das vestimentas e ornamentações da(o) boneca(o).

d. Cenas dramáticas, que dão voz ao personagem.

 

COMPARTILHAMENTO

Reflexão em grupo, contextualização e perspectivas refletidas na boneca de pano. É no momento da contextualização e da customização que emergem os segredos guardados, muitas vezes desde a infância, escondidos no inconsciente, vêm à luz da percepção para que sejam transformados.

 

BREVE CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLÊNCIA FAMILIAR

A violência familiar, ou violência doméstica, é uma das formas contemporâneas que integram o conceito de violência social. Fazem parte desse conceito: a prostituição de adolescentes induzidas pela condição socioeconômica, o abandono familiar, que condena crianças a fazer das ruas sua casa e seu território, a desnutrição infantil, as diferentes formas de abuso e a adição às drogas. Em muitos casos, a vítima sofre várias formas de violência social, todas produzidas por hábitos de sometimento (aceitar, resignar-se com o sofrimento) que a própria estrutura de dominação impõe (IPEA, 2009).

É uma característica específica da violência familiar o fato de esta acontecer no âmbito doméstico, longe de pessoas alheias à família. Ocorre como parte de relações intrafamiliares, ou seja, na vida privada. As práticas violentas tornam-se rotinas para resolver problemas e são acompanhadas de expressões de intolerância, desrespeito e sadismo. Formam circuitos de terror de difícil solução. Acometem tanto pessoas de idades semelhantes, quanto ascendentes e descendentes da vítima. Na maior parte dos casos, além do sometimento com relação à força física, ao fator econômico ou às regras morais, há nas vítimas fatores psicológicos que as impedem de defender-se ou denunciar os maus-tratos sofridos (IPEA,2009).

 

RELATO DE CASO

A seguir, relataremos um caso do uso da boneca de pano como Objeto Intermediário e a contemplação das oito qualificações sugeridas por Rojas-Bermúdez: mulher, 26 anos, casada há 8 anos, tem um filho de 4 anos, depende emocionalmente do marido agressivo, com profundo sentimento de rejeição, abandonada pelo pai na infância e com mãe ausente. No início da terapia foi resistente por temer se ausentar de casa e o marido notar. Sua família também a acusava de passar muito tempo fora de casa, usando o filho como refém desse argumento. Seu desespero era tão grande que a fez vencer seus medos e iniciar a oficina.

A oficina teve como proposta trabalhar o autoconhecimento e o pensamento autônomo, através de atividades lúdicas com um grupo de 30 mulheres por 40 horas.

A participante percebeu quanto sua relação estava desgastada, que as muitas idas e vindas não a nutriam mais; tomou consciência de que seu homem não a valorizava como mulher, nem no aspecto físico, nem em seu potencial criativo. Teve coragem e oficializou a separação do casal. Não foram dias fáceis, mas ela tinha a sensação de que algo novo e bom estava nascendo:

"De repente, durante essa vivência, senti como se estivesse expelindo minhas entranhas e a presença daquele homem de minha vida. Senti como se estivesse tirando todo esse mal com minhas próprias mãos. Eu me senti capaz de mandar toda aquela relação falida para fora do meu mundo".

A participante percebeu que poderia tomar suas decisões, que não queria mais ser dependente emocionalmente e adquiriu sensação de autocontrole e de empoderamento para superar as dificuldades e iniciar sua nova vida.

Anos depois, ela reapareceu para outra atividade do Tatadrama e trouxe sua boneca antiga. As roupas e acessórios escolhidos transformaram a simples boneca de pano na Mulher-Maravilha, heroína com superpoderes que aparece em filmes, dotada de grande força física e equilíbrio para vencer as lutas contra o mal. A participante também precisou de muita coragem, força e determinação para vencer a batalha de transformar e reconstruir sua vida: terminou a casa própria, comprou um carro e voltou aos estudos. Agora segue mais confiante, reconhece seu potencial e abriu seu coração para o novo amor de um homem que a respeita. Ela consegue perceber e blindar-se quando querem invadir seu espaço, desvalorizar seus talentos, agredi-la com palavras ou atitudes. Transformou-se na pessoa que sempre quis e buscou na vida: ELA MESMA.

Essa oficina, realizada só com mulheres, favoreceu o sentimento do cuidar, do acolher, da empatia e a essência da cumplicidade do feminino. Vieram à luz diversas formas de violência doméstica: ter um marido déspota; ser malvista pela família por ser separada; não ter liberdade para sair com as amigas; ter um marido muito ciumento/controlador/ alcoólatra; saber da existência da "outra", mas suportar a dor por ser dependente financeiramente do marido; sofrer um aborto e não ter o acolhimento da família por ser mãe solteira, mesmo sem ter sido mãe; ser expulsa de casa por causa de uma gravidez precoce; ter um marido que culpa a esposa por um filho ser homossexual ou deficiente; ter um marido que dá "tudo" para a esposa, mas em troca ela perde a autonomia; ter tripla jornada de trabalho para sustentar os filhos e o marido que vive desempregado; ter abandonado seus filhos pelos descaminhos da vida; fingir o orgasmo por desinteresse sexual ou por falta de carinho nesse momento íntimo. Eram mulheres que tinham em comum um sentimento de incapacidade de realizar seus sonhos e seus desejos.

 

O TATADRAMA E AS OITO QUALIDADES DO OBJETO INTERMEDIÁRIO

O termo "Objeto Intermediário" foi introduzido pelo psicodramatista Jaime Rojas-Bermúdez na década de 1960, como um facilitador de expressões emocionais de pacientes psicóticos crônicos (Rojas- Bermúdez, 1970, p. 130).

A boneca de pano é mediadora de reflexões no ato de brincar, como se pode ver ao associar o caso relatado e as oito qualidades de Rojas- Bermúdez:

Existencial Real e Concreto: A Mulher-Maravilha como centro e alicerce da renovação de uma vida.

Inocuidade: O ato de transformar de modo inofensivo e a reflexão profunda de processos destrutivos e construtivos nas relações sociais, nos quais a Mulher-Maravilha representou fonte interna da mulher corajosa e forte.

Maleabilidade: A flexibilidade de transformar uma boneca em uma heroína como representação de um papel coberto de caráter e valores.

Transmissor: O Objeto Intermediário foi utilizado como fio condutor para transmitir mensagens subjetivas transpostas através da criatividade e da expressão como interlocutor, transformando-se em um veículo de comunicação, substituindo o vínculo e mantendo a necessária distância para a transmissão do saber.

Adaptabilidade: De modo sutil, possibilitou à participante dar asas à imaginação, com espontaneidade em sua totalidade ao se transformar em Mulher-Maravilha.

Assimilabilidade: Conseguiu, na qualidade de transmissor, passar ao grupo o conteúdo do aprendizado de forma fácil e assimilável por todos, com a criação de uma relação de intimidade como identificação de si mesmo, estabelecida entre a teoria e os valores subjetivos, na projeção das pulsões mobilizadas na contextualização.

Instrumentabilidade: A boneca transformou a mulher sofrida em heroína.

Identificabilidade: A identificação com a Mulher-Maravilha, forte, segura, corajosa, linda e capaz de sustentar a carga moral, social, emocional e com valores como foco de equilíbrio e estrutura familiar no processo construtivo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O método Tatadrama não é só uma técnica que conjuga subjetividade e informalismo, mas mantém uma preocupação singular com a herança cultural e a memória coletiva. Ao criar esse espaço de reflexão em um ambiente acolhedor com adultos em vários contextos sociais, busca-se propiciar, com o ato de brincar com a boneca de pano, a liberação, a transformação e o autoconhecimento do sujeito.

No Tatadrama, a boneca de pano é o instrumento que se torna um meio de detecção dos estados de alarme, favorece a formação de vínculo, é um estímulo em situações de conflito dos participantes em relação ao contexto do trabalho, e contribui para a emergência das manifestações personagem/ser.

O Psicodrama aqui executado surge dos próprios sentimentos e do relacionamento com os membros de um grupo, constituindo profunda troca com membros estilizados em bonecas de pano como membros de uma sociedade estereotipada ou de uma solidão abstraída da sociedade.

Através do ato de tecer a boneca e transformá-la, o Tatadrama desperta o poder de modificar histórias, tanto do sujeito que participa das oficinas, quanto daqueles que com ele vivem, pois é impossível ficar séssil com as mudanças que ocorrem nas pessoas que amamos ou com quem convivemos. Essa afirmação pode ser observada nas pessoas de diferentes grupos sociais, de idades variadas, de gêneros diferentes, de muitas profissões e modo de vida que já se submeteram a essa terapia.

O método Tatadrama se sustenta em quatro pilares teóricos: o Psicodrama, o Sociodrama, a teoria do brincar e a psicologia reichiana, através do recorte da curva orgástica.

É através da boneca, seu Objeto Intermediário, que o indivíduo desenvolve a capacidade de se colocar no lugar do outro e de compreender o pensamento do outro, mesmo que esse outro seja sua projeção incorporada na boneca de pano. Este é um teatro em que se resgatam as potencialidades inatas e latentes da criança interior, que por motivos culturais, sociais e políticos, entre outros, encontram-se adormecidas na rotina e nos conflitos da própria existência. Nas oficinas Tatadrama,mulheres de várias idades refletem sobre as formas de violências a que estão submetidas, reconhecem seus pares e passam a se enxergar como pessoas dignas de direitos.

 

Referências

BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984.         [ Links ]

BUCHBINDER, M. J. A poética do desmascaramento: os caminhos da cura. São Paulo: Ágora, 1996.         [ Links ]

CUKIER, R. Palavras de Jacob Levy Moreno: vocabulário de citações do psicodrama, da psicoterapia de grupo, do sociodrama e da sociodrama e da sociometria. São Paulo: Ágora, p. 161,         [ Links ] 2002.

GARCIA, E. L.; MALUCELLI, M. I. C. Tramas e dramas do boneco de pano no Tatadrama. Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2010.         [ Links ]

__________. ROMAÑA, M. A., ARROYO, M.G. Rumo à linha de chegada – Pluralidades da São Silvestre. Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2012.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Brasil em desenvolvimento: Estado, planejamento e políticas públicas. Brasília: IPEA, 2009, 3 v. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/bd/pdf/Livro_BrasilDesenvEn_Vol03.pdf>. Acesso em 10 ago. 2012.         [ Links ]

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MORENO, J. L. Psicodrama. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 1997.         [ Links ]

ROJAS-BERMÚDEZ, J. G. Títeres y psicodrama: el objeto intermediário. Buenos Aires, Genitor, 1970.         [ Links ]

 

 

 

Endereço para correspondência
Elisete Leite Garcia

Rua Arão Adler, 160 Parque Continental
São Paulo, SP CEP 05328-010
e-mail: elisete@espacoevents.com.br
URL: www.tatadrama.com.br

Recebido: 01/09/2012
Aceito: 19/03/2013